sábado, 11 de setembro de 2021

11 DE SETEMBRO, 20 ANOS DEPOIS – UM LOOPING INFINITO

Me lembro muito bem dos acontecimentos matutinos daquele dia 11 de setembro de 2001. Eu me dirigia para o meu trabalho, no Instituto de Estudos Socioambientais, no Campus da Universidade Federal de Goiás. Naquele dia eu não daria aula pela manhã, era uma terça-feira, e por isso saí de casa um pouco mais tarde, visto que eu teria aula no período noturno.

Foi dentro de meu carro, ouvindo o rádio, que ouvi a notícia de que os EUA estavam sendo atacado. A informação foi dada inicialmente dessa maneira, em meio à edição matutina do noticiário. Claro que era uma notícia impactante, e me deixou impaciente. Afinal, essa era uma área de informação que me tocava diretamente, pelo conteúdo das disciplinas que eu lecionava. Atento, e ao mesmo tempo tenso, pois eu conseguia imaginar as possíveis consequências desse fato, cheguei à universidade tentando me informar melhor sobre o que estava acontecendo. Mas me lembro de falar a alguns colegas que os EUA estavam sendo atacados. Repeti a informação recebida pelo rádio.

Aos poucos fomos nos inteirando pelas imagens impactantes que chegavam, pela televisão e pela internet, em meio a toda uma sensação de incredulidade com o que víamos. O que realmente teria acontecido somente ficamos sabendo algum tempo depois. Afinal, mesmo para quem estava ali em Nova Iorque, a olhar para aqueles dois prédios em chamas, se espantavam com o que viam, e buscavam respostas imprecisas para aquelas cenas dantescas. Os maiores prédios de Nova Iorque, um dos orgulhos da arquitetura estadunidense, pelo viés do poderio econômico, naturalmente, sendo consumidos pelo fogo, e ao mesmo tempo em que o desespero fazia com que algumas pessoas se jogassem do alto de seus mais de cem andares. Impossível ser mais impactante, e cruel.

Depois chegavam as informações de ataques semelhantes ao Pentágono. E de um avião ter sido abatido quando seguia rumo à Casa Branca. Ou seja, escolhido a dedo, alvos que representavam o poderio econômico, militar e civil, da maior potência bélica do planeta. Não poderia ser um começo de século pior para a humanidade. Ao longo daquele fatídico dia e pela semana, com o desenrolar dos acontecimentos e a confirmação de que aquilo teria sido um atentado, em que aviões pilotados por terroristas foram transformados em mísseis que perversamente tirou a vida de quase três mil pessoas, fomos percebendo que os efeitos colaterais daqueles atos marcariam o começo da década. Mas isso foi mais longe, marcou, verdadeiramente, o século XXI, e veremos a seguir o quanto isso impactou as relações internacionais, a geopolítica mundial e a crise econômica que explodiria em 2008.

Há dez anos, em 2011, escrevi neste blog um artigo[1] sobre esse fato, ainda em meio à euforia estadunidense pelo assassinato de Osama Bin Laden, completando assim o compromisso de vingança, bem mais do que de justiça, levada a cabo desde o primeiro momento pelos Estados Unidos. Procurei naquele momento fazer uma análise não somente dos efeitos colaterais dos ataques terroristas ao coração dos EUA. Mas indiquei também as razões que transformaram aqueles atos, eles próprios, em efeitos colaterais das atitudes imperialistas e dos comportamentos rapaces estadunidenses, baseados na doutrina de segurança nacional que praticamente declara guerra antecipada a todo e qualquer país que seja governado por quem não se alinhe aos seus interesses. A busca, perseguição e eliminação do inimigo externo, e também do inimigo interno, se acentuaria e se tornaria uma obsessão, reforçada pelo Patriot Act.

A bem da verdade, e a história está aí para não nos fazer esquecer, diversos outros atentados já tinha acontecido antes, inclusive no próprio World Trade Center, quando a mesma Al Qaeda, ou um grupo que lhe era subsidiário e com seu financiamento, tentou implodi-lo, colocando na garagem uma caminhonete com explosivos, em fevereiro de 1993. O objetivo embora não tenha sido atingido por completo, causou estragos insuficientes para comprometer a estrutura, mas causou a morte de sete pessoas. Já era um indício que a Al Qaeda pretendia atingir instalações no coração financeiro dos EUA.

A estratégia de Osama Bin Laden, concretizada em 11 de setembro de 2001 era não só causar medo à população estadunidense e demonstrar que eles eram vulneráveis a ataques, mas, principalmente, atrair aquela potência para uma guerra distante que inevitavelmente a desgastaria diante da impossibilidade de conseguir derrotar grupos dispersos, com táticas de guerrilha, em ambientes inóspitos e dispostos a morrer por uma causa fanática e anti-imperialista. Além disso, Bin Laden sabia que a reação intempestiva dos EUA ampliaria os danos colaterais na Ásia e no Oriente Médio, jogando em mãos dos grupos terroristas, jovens dispostos a se engajarem numa guerra santa contra um inimigo que viria e eliminaria centenas de milhares dos seus. A “guerra ao terror”, de uma absoluta subjetividade, e não aos terroristas que cometeram aqueles crimes, foi seguramente, o maior erro estratégico da história dos EUA, e isso viria a impactar profundamente a humanidade e este século XXI.

A guerra contra o Afeganistão foi o primeiro passo e era previsível a ferocidade com que o império cairia sobre aquele país, visto que o Talibã jamais entregaria Bin Laden, considerado herói por eles, não somente por aquele ataque ousado, mas por seu envolvimento na luta para expulsar os soviéticos do solo afegão. A força bélica dos EUA, bem como de seus aliados, era amplamente superior, e o resultado era previsível. Em pouco tempo os Talibãs foram derrotados, mas não destruídos, e as montanhas do Afeganistão, que já tinha abrigado guerrilheiros revoltosos em luta contra as ocupações britânicas e soviética, mais uma vez garantiria com o tempo, e o desgaste natural a qualquer exército invasor, o revés que eles aguardariam pacientemente, fustigando com táticas de guerrilhas os jovens soldados estadunidenses movidos pelo sentimento de vingança, mas não por uma causa como a de lutar por liberdade e contra um opressor.

O tempo passaria a ser o principal adversário dos EUA, além da geografia do Afeganistão. Por um tempo a vitória parecia evidente, e assim foi anunciada ainda no segundo governo Bush. Os “falcões” bélicos estadunidenses passaram a ver a partir dali, pouco tempo depois da invasão ao Afeganistão, e diante desse sentimento de vitória alcançada, a oportunidade de ampliar seu belicismo, agora mirando o Iraque. E assim foi feito. Aproveitando-se da neurose que se espalhava diante do ódio pelo ataque terrorista, e manipulando fortemente a mídia subserviente, deu-se início ao que o século XXI passou a se deparar como uma cultura, as mentiras como armas de guerras, chamadas a partir de então de “fake news”. Não que a mentira nunca tenha servido de pretexto para agressões a outros países e guerras violentas. O nazismo mesmo soube usar isso muito bem. Mas ela adquiria um caráter muito mais permissivo, diante das facilidades tecnológicas de comunicação, além da subserviência dos meios de comunicação. E se tornou uma herança perversa nesse século XXI, afetando fortemente também a política.

Sob o pretexto de combater um ditador que supostamente possuíria grandes laboratórios de fabricação de armas biológicas, que poderiam ser usadas em novos ataques terroristas contra os EUA, o Iraque tornou-se o novo alvo da sanha vingativa estadunidense, e dali em diante escancarou-se os reais objetivos por trás de cada argumento de se estar lutando por democracia: destruir governos que representasse uma ameaça à segurança nacional do império.

A escalada de guerras e financiamentos a pequenos grupos de insurgentes se espalhou pelo Norte da África e todo Oriente Médio, dando início a duas novas estratégias: em primeiro lugar as guerras híbridas; e em segundo lugar o uso de drones, veículos aéreos não-tripulados para eliminar possíveis inimigos, ou potenciais terroristas, espalhando-se numa dimensão impressionante, os efeitos colaterais e as mortes de inocentes vistos como naturais em um ambiente de guerra. Ocorre que a imensa maioria dessas mortes foram de civis, em muitos casos mulheres, idosos e crianças.

A guerra ao terror espalhou centenas de milhares de mortes e disseminou ódios, fortalecendo grupos terroristas já existentes, e fazendo surgir outros, que se impuseram pelas forças de armas financiadas pelos EUA e seus aliados. Assim surgiu o Estado Islâmico, e o seu projeto de edificar o califado unindo Iraque e Síria. Os EUA, OTAN e aliados perdiam gradativamente o controle dos monstros que criaram e das consequências dos assassinatos e rastros de destruição que deixaram por onde passaram. Medo, ódio, fundamentalismo religioso, vingança e diversos outros ingrediente foram jogados em um caldeirão de misérias, pobrezas, migrações, guerrilhas, guerras, gastos absurdos que se contaram em trilhões de dólares e uma crise econômica, fazendo explodir em cadeia uma série de eventos e acontecimentos que fariam o mundo se recordar do crash de 1929.

20 anos depois o espectro do World Trade Center paira sobre os EUA, Europa, Ásia Central e Oriente Médio. Atingiu em cheio o orgulho “americano”, empurrou o império para a beira de um abismo e fez ressurgir das profundezas subterrâneas da política, uma extrema-direita perversa, objetivando destruir seus ideais republicanos e democráticos, impulsionados por grupos fanáticos fundamentalistas religiosos, tão cegos e estúpidos quanto aqueles que os levaram a milhares de quilômetros para combatê-los e vingar a ousadia do terror e da destruição de quase três mil vidas de forma perversa.

O mundo hoje, e o século XXI em suas duas décadas que parecem uma eternidade, potencializadas por uma pandemia que completa um ciclo de destruição, não pode ser entendido sem uma necessária compreensão daquele 11 de setembro, e da reação intempestiva, vingativa e pouco racional, do império.

O mais cruel, e de uma ironia perversa, é nos vermos diante de uma espécie de looping, em que tudo praticamente retorna incessantemente ao ponto de partida. Depois de 20 anos, e uma derrota evidente, embora não assumida, os Estados Unidos com todo o seu poderio bélico e econômico, e a arrogância natural dos que se impõem pela força, foram obrigados a se retirar do território afegão, como outrora o fizeram também britânicos e soviéticos. E, dessa forma, entregou aquele país, mais uma vez, àquele grupo que ele próprio empoderara com o intuito de derrotar os soviéticos. Ou seja, os mesmos que supostamente teriam bancado as estruturas para garantir a Al Qaeda a preparação para atacar o império, retornam ao Poder, mais fortes e beneficiados com uma grande quantidade de armamentos sofisticados deixados para trás pelas tropas estadunidenses em fuga.

Importante dizer, no entanto, que a narrativa de ter sido a partir do Afeganistão que se preparou os atentados ao Word Trade Center, se junta ao arsenal das mentiras contadas para justificar uma resposta imediata e vingativa. A bem da verdade, a maioria dos envolvidos, e os próprios recursos que garantiram o sucesso macabro daquele atentado, tem suas origens na Arábia Saudita, país aliado dos EUA.

Não me cabe aqui, ao lembrar dos 20 anos desse atentado que mudou o curso da história mundial, entrar em análises sobre as condições em que se encontram hoje o Afeganistão. Mas é importante dizer, que por mais perversa que seja a ideologia que move o Talibã, que retoma o controle daquele país, a mídia repete os erros do passado, e insiste em querer apontar mudanças significativas naquela região do mundo, encravada em meio a montanhas e submetidas a pobreza e a crenças seculares anacrônicas e absurdamente distorcidas. Os EUA não levaram ao Afeganistão o capitalismo sofisticado de Manhattan, ou Nova Iorque, e muito menos a democracia, isso só aconteceu para uma absoluta minoria. Prevaleceu a miséria e o crescente sentimento de ódio por uma potencia que se arroga no direito de impor a um povo estrangeiro o caminho que ele deve seguir, rompendo com suas culturas e características regionais.

Os drones, ou antes deles, os desequilíbrios típicos das loucuras da guerra propugnados por seus soldados, e os seus efeitos colaterais de eliminação de inocentes, só fez ampliar o exército de revoltosos, e o número de jovens que se aliavam ao Talibã. Para além disso, e por mais cruel que tenha sido aqueles ataques no dia 11 de setembro de 2001, por todo esse tempo a reação que causou a invasão do Afeganistão e do Iraque, e as destruições de suas infraestruturas, são injustificáveis. E não se pode omitir um fato real e histórico, os Estados Unidos da América e seus aliados, eram invasores, ocupantes de nações aviltadas em suas soberanias e submetidas por anos e décadas à sua opressão.

Inegavelmente isso causou também rombos históricos na economia estadunidense. Não somente com essas duas guerras, mas pela necessidade de manter uma aparato bélico impressionante, em centenas de bases militares espalhadas por todas as regiões do mundo, e a vigiarem e atacarem a quem eles determinem serem os agentes do mal. Por muito tempo a economia do império depende disso, mas as consequências dessa política têm trazido, agora no começo da terceira década desse século, a conta fatal, que tem lhe afetado duramente enquanto potência hegemônica, posto que vem perdendo gradativamente para a China. E, seguramente este foi um dos motivos da intempestiva fuga do império do inóspito e até então inconquistável território Afegão.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram, inexoravelmente, de uma barbaridade e crueldade criminosa. Mas foi respondida com igual crueldade, normalizando a tortura e considerando inevitável o assassinato colateral de dezenas de milhares de inocentes civis, que pagaram caro pela loucura terrorista daquele fatídico dia. E a humanidade também. O século XXI nasceu sob o símbolo do ódio, e assim tem permanecido 20 anos depois.

Sugiro como leitura complementar o artigo que escrevi em 2011 e foi citado neste texto, bem como outros já escritos aqui neste Blog. Sua indicação e link encontra-se abaixo.



[1] WORLD TRADE CENTER, RÉQUIEM PARA UM IMPÉRIO - 11 DE SETEMBRO DE 2001: QUATRO AVIÕES, DUAS TORRES, UM PENTÁGONO E O COMEÇO DO FIM DE UMA ERA. https://gramaticadomundo.blogspot.com/2011/09/world-trade-center-requiem-para-um.html

 LEIA TAMBÉM:

BIN LADEN ESTÁ MORTO! MAS E OSAMA? - https://gramaticadomundo.blogspot.com/2011/05/bin-laden-esta-morto-mas-e-osama.html

UMA GUERRA SILENCIOSA: O ATAQUE DOS DRONES, A GUERRA CIBERNÉTICA E A ESPIONAGEM MODERNA - https://gramaticadomundo.blogspot.com/2012/06/uma-guerra-silenciosa-o-ataque-dos.html

A GUERRA CONTRA O TERRORISMO, AO INFINITO E ALÉM! - https://gramaticadomundo.blogspot.com/2014/09/a-guerra-contra-o-terrorismo-ao.html

 

 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

CAÇADORES DE NASCENTES – ONDE NASCEM OS RIOS?

Algum tempo atrás publiquei um artigo no blog Gramática do Mundo, intitulado “Enquanto a chuva cai, a água se esvai”.[i] O objetivo do título era impactar criticamente logo antes de adentrar no assunto, de forma a chamar a atenção para a maneira como se observa os problemas hídricos em nosso país. Fazendo uma analogia às condições de boa parte dos rios brasileiros, principalmente no Nordeste, mas situação que já avança em direção ao Centro-Oeste, as notícias sobre a crise hídrica têm sido apresentadas de forma intermitentes, quando deveria se dar de maneira perenes. Esse era um dos focos que eu abordava, diante do fato de somente nos períodos secos se começar a tratar da falta de água, principalmente para o consumo urbano, de forma alarmante.

Por outro lado, o título impunha uma atenção a um outro fenômeno, também pouco observado, embora sempre gerador de alertas em áreas urbanas, notadamente naquelas com ocupação irregular de áreas de riscos. O alto volume de chuvas, nas cidades, termina por passar uma visão equivocada, diante de diversos cataclismas. A de que as chuvas estão caindo em quantidades excessivas, pelas tragédias que elas causam, quase sempre nas comunidades pobres das periferias dessas cidades. As imagens de verdadeiros rios urbanos em ruas, arrastando violentamente o que vê pela frente, naturalmente causam comoções, pelos estrago, vítimas e as condições a que relega a população daqueles lugares. E mais do que isso, porque comoção se sente por fora da tragédia, pela empatia das pessoas, mas efetivamente esses desastres terminam por levar muitas famílias a perderem suas casas, e em muitos casos carregam vidas, ou pelas enxurradas, ou pelos deslocamentos de encostas.

Mas, para além disso e do que essas tragédias significam, há o outro lado. Findo o período de chuvas a preocupação passa a ser outra. E isso se repete incessantemente, em um efeito borboleta, como na teoria do caos. É sabido que, nas cidades, ao contrário do que diz o velho ditado popular, depois da tempestade não vem a bonança. O que virá, em um curto período, que cada vez se encurta mais, é a ausência de chuvas e a intensificação de um outro drama, a ser vivido pela estiagem e consequente escassez de água.

Fonte: Senado Federal

Vou me atentar para o problema hídrico urbano, embora a crise não se limite a isso, visto que o uso de água pelas populações urbanas, no Brasil, não ultrapassa 12% do total de água potável disponível em nosso território nacional. O que significa também dizer que os rios, que abastecem as cidades, principalmente as enormes metrópoles, antes de entrar no perímetro urbano, ou das regiões metropolitanas, tem suas águas extraídas para uso na agricultura e pecuária (60%) e indústrias (próximo a 30%). Esses percentuais variam de estado para estado. Mas o problema é mais grave, e vai longe. E temos estudado também os problemas que advêm do uso da água, principalmente para a agricultura. O fio da meada se perde em suas origens. No entanto, os problemas ao longo de todo o trajeto das artérias hídricas que serpenteiam nosso planeta terra, não podem ser simplificados. Porque é um todo complexo.

Voltemos aos problemas hídricos urbanos. De onde vem as águas que abastecem nossas grandes cidades? Quantos se perguntam isso? Aonde vão as águas que serpenteiam por ruas e avenidas, sob pontes e viadutos, em aquedutos e canais? Onde surgem, brotam, as nascentes que se tornam mananciais que cortam nossa cidade? E no que eles se transformam tão logo derivem um córrego até se encontrar com um rio onde vai compor com este uma bacia hidrográfica? O uso do verbo transformar, no caso, não está posto equivocadamente. Explico.

Nascente do córrego Cascavel

Lamentavelmente sempre se negligenciou o cuidado com nossas nascentes e com os mananciais gerados por elas. Nos últimos anos passou a haver um cuidado maior com as nascentes, diante de uma política de investimento em parques urbanos, nitidamente com o intuito de favorecer o mercado especulativo imobiliário. Houve resultados, parques importantes surgiram e se tornaram opção de lazer para a população. Na maioria dos casos, no entanto, em se tratando das nascentes que se encontram nesses parques a preocupação com suas manutenções não seguem uma rotina adequada. E para além delas, das nascentes, os mananciais que surgem e seguem por diversas direções, seja para o Córrego Botafogo, para o Ribeirão Anicuns e daí para o Rio Meia Ponte, tornam-se canais e consequentemente depósitos de dejetos, esgotos domésticos ou industriais. Por isso eles se transformam, deixam de ser rios, córregos, no sentido adequado dados a eles, para se tornarem esgotos, abandonados pelo poder público e ignorados pela população.

Embora os parques – onde quase sempre existe um lago – sejam um atrativo, com o espaço sendo utilizado pela população para prática desportivas e lazer, as pessoas não se indagam sobre de onde vem suas águas, por onde elas seguem e para onde irão. Há uma total indiferença, porque assim fomos habituados a conviver na cidade com esses elementos, que se tornam mais do que meras paisagens, quase que uma mercadoria pela qual desfrutamos, porque seu esmero paisagístico atende aos interesses de incorporadoras, com o intuito de valorização de imóveis em seus entornos.

Córrego Capim Puba

E desconhece-se a importância que essas nascentes possuem para a bacia hidrográfica que garante o abastecimento hídrico em nossas cidades, bem como irriga uma grande produção de hortifrutis em todo o entorno da região metropolitana, de Goiânia e diversas outras capitais. Cada uma com o seu perfil diferenciado, mas necessariamente sendo servidas por essas águas, que se tornam turvas pela suas transformações em esgotos, sem que haja políticas de saneamentos adequados para nos salvar de uma hecatombe que poderá nos atingir pela escassez permanente de água.

Incomodado com essas questões, a partir de análises feitas com o objetivo de compreender os constantes problemas com o consumo de água e os racionamentos sistemáticos e constantes, sempre que acaba o período chuvoso, cada vez mais irregular, me debrucei sobre esse tema. Isso devido a minha atuação como professor de geopolítica e atento às questões da biodiversidade e hídrica por um olhar estratégico, visto que lidamos com recursos de suma importância para nossas vidas, de valores imensuráveis, embora sendo constantemente objeto de ganância de especuladores e investidores, que passam a ver na água muito mais do que um bem comum, mas uma mercadoria por onde eles podem lucrar investindo e exercendo controle, sob pretexto da inoperância do poder público. Naturalmente, a velha estratégia de deixar de atender uma demanda que seja da responsabilidade dos estados, tornar esse atendimento insuficiente e, assim, entregar em mãos de corporações, cujas preocupações atendem aos lucros de seus acionistas e não o bem-estar da população.

Mas para fugir do lugar comum, da crítica costumeira que fazemos ao que já é sabido, essa inoperância do poder público, resolvi ir em busca de respostas para compreender as condições em que se encontram nossas nascentes e mananciais. Para isso incorporei como atividade aos meus alunos e alunas, trabalhos de campo para identificação das nascentes que estão na região metropolitana de Goiânia e transformei isso em um seminário, por onde, por muito bons trabalhos, eles puderam expor as condições em que elas se encontram, bem como no que se transformam os seus mananciais. Em seguida resolvi cadastrar um projeto junto à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFG, denominado “CAÇADORES DE NASCENTES – ONDE NASCEM OS RIOS QUE CORTAM A REGIÃO METROPOLITANA DE GOIANIA”.[ii]

Inspirado em trabalhos já existentes em São Paulo e outros lugares, o objetivo é encontrar as nascentes, verificar suas condições, acompanhar o percurso dos mananciais e como ele chega até o rio principal. Quase sempre o Meia Ponte, que forma a principal bacia responsável pelo abastecimento de nossa capital e da cidade de Aparecida de Goiânia, segunda maior cidade do Estado.

Ao mesmo tempo, em sintonia com escolas de ensino médio e fundamental, estabelecer programas paralelos de acompanhamento dessas nascentes, próximas a essas escolas, e também em conjunto com a comunidade adotá-las, como forma de protegê-las, exigir a devida atenção do poder público e educar as novas gerações com um olhar diferente do que aqueles que a minha geração olhava para esses rios, córregos, riachos e nascentes, que faziam parte do nosso universo juvenil, mas sem o reconhecimento da devida importância para a sua preservação, cuidados e necessidades advindas do fato de estarmos lidando com o recurso mais fundamental para a vida, humana, animal e vegetal.

A par de esclarecer sobre esse trabalho, instigo os que me leem, ou me ouvem, a incorporar esse universo de combatentes, defensores de nossas nascentes. Tão logo as escolas reabram para as atividades presenciais, as visitaremos, especialmente aquelas em bairros cortados por mananciais ou onde situam-se algumas dessas nascentes. Já temos trabalhos feitos pelos alunos e alunas da disciplina “Geopolítica das Águas”, que apontam essas condições. Precisamos ampliar esses estudos, publiciza-los e envolver escolas, associações de moradores, ONGs, empresas, e todos que desejem reverter o situação que afetam esses mananciais, como condição necessária para proteger nossas vidas.

As cidades, como estão, por suas condições de administrações negligentes na questão da proteção hídrica e saneamento, assim como há também as responsabilidades da administração estadual, estão matando nossos mananciais e levando ao esgotamento as nascentes que se encontram espalhadas, e esquecidas, por toda a região metropolitana. É preciso cobrar responsabilidades pela elaboração de políticas de estado, de ações permanentes que revertam uma situação que se aproxima do caos e que levará a racionamentos permanentes até a escassez completa de água. E por fim a um cruel paradoxo, de haver tantas nascentes esquecidas ou abandonadas, e mananciais transformados em esgotos a céu abertos, enquanto falta água para a população.

Enquanto isso, nobres edis, que deveriam fiscalizar a administração municipal, e exigir projetos e planejamento adequados, bem como investimentos estatais a fim de permanentemente cuidar de nossas nascentes, se dedicam a elaborar projetos que visa punir a população pelo desperdício de água. Ora, essa é uma questão de educação e informação, cabe aos vereadores exigir do prefeito responsabilidade no trato desse problema, e não jogar a culpa nas costas das pessoas, que são vítimas, e não culpadas, pela negligência e incompetência dos gestores públicos.

Esse é o meu recado. Água é vida, é um bem comum, não é mercadoria, nem deve servir aos objetivos de empresários do setor da construção para valorizar seus imóveis. Aos que desejarem somar conosco nessa árdua, mas necessária tarefa, o convite está feito. Venha compor o exército dos “caçadores de nascentes”, e façamos nossa parte nessa luta em defesa da água, das nascentes e dos nossos rios.

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sexta-feira, 28 de maio de 2021

CENÁRIOS SOMBRIOS E UM MUNDO SEM RUMO – BIOPODER, FASCISMO E HIGIENISMO

Quero começar a partir de uma formulação de Carl Sagan, contido no livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios”:

Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais – o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto – dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia.  É uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir em nossa cara. (Pág. 39)

É impressionante nesse artigo (escrito em 1995) a perspicácia de Carl Sagan, ao analisar o descompasso entre a capacidade adquirida pela humanidade de avançar nas ciências, e o quanto essas se tornaram importantes para o mundo, mas ao mesmo tempo, e numa enorme contradição, ou paradoxo, com um aumento da ignorância e o desconhecimento da importância das ciências e das novas tecnologias, por parte da maioria das pessoas.

Minha preocupação é que especialmente com a proximidade do fim do milênio, a pseudociência e a superstição parecerão mais sedutoras a cada novo ano, o canto de sereia do irracional mais sonoro e atraente. Onde o escutamos antes? Sempre que nossos preconceitos étnicos ou nacionais são despertados, nos tempos de escassez, em meio a desafios à autoestima ou à coragem nacional, quando sofremos com nosso diminuto lugar e finalidade no Cosmos, ou quando o fanatismo ferve ao nosso redor – então, hábitos de pensamento conhecidos de eras passadas procuram se apoderar dos controles.

A chama da vela escorre. Seu pequeno lago de luz tremula. A escuridão se avoluma. Os demônios começam a se agitar. (IDEM, pág. 40)

Todo o deslumbramento tecnológico, que inclui inteligência artificial, robotização, sofisticações impressionantes que nos fazem chegar até Marte e de lá transmitir informações em tempo real para a terra, se depara com um mundo onde cresce assustadoramente o número de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. Situação que foi impulsionada pela pandemia, mas que já vinha dando sinais claros de um caminho quase sem volta, dentro do sistema capitalista, de uma crise estrutural permanente.

Nesse novo mundo que se delineia, a partir desses caminhos que estão sendo construídos, que inclui até mesmo colonização de outros planetas, a maior parte da população está excluída. Passo a passo, os que detém o poder econômico, e controlam os meios de produção, ignoram a abissal distância entre os diversos segmentos sociais, e transformam o mundo virtual em um mundo real, a Matrix se consolida aqui na terra, e os meios de comunicação oferecem mercadorias deslumbrantes, ultrassofisticadas, para um percentual de 10% da população. Essas mesmas pessoas, capazes de se inserir nesse mundo consumista, se deleitam em compartilhar, ostensivamente, seus mundos, onde o deslumbramento ignora a miséria, achincalha a pobreza e milhões de pessoas que padecem na miséria e pouco tem para comer. E transformam a vida em um big brother perverso, ou melhor, de perversões.

Posto isso, quero pontuar os descaminhos pelos quais podemos apontar os rumos que a humanidade pode seguir. Nós não podemos afirmar que este ou aquele será o rumo, mas partimos das condições reais de nossas existências, dos conflitos, dessas características que são marcantes no sistema em que vivemos: ganância, usura, vaidade, egoísmo, individualismo e a crença em deuses perversos, aos quais alguns indivíduos se apegam para justificar seus pecados mortais. Tudo isso se baseia na forma como os que controlam a riqueza e o Poder estabelecem as leis e os mecanismos pelos quais essas estruturas se mantém, a despeito de todas essas misérias e desigualdades sociais. E, fundamentalmente, como essa riqueza é construída, por meios que oprimem e exploram forças de trabalhos cada vez mais mal pagas, restritas e, aos poucos, substituídas por novas tecnologias, para além da robotização, com o uso da Inteligência Artificial.

A globalização, ou mundialização, abriu a caixa de pandora do capitalismo no fim do século XX. Muita coisa mudou muito rapidamente. Aí entram as ciências, incluindo a Geografia tanto como ciência, como também um importante saber estratégico, fundamental nesse processo, de forma essencial e fundamental, no âmbito do conhecimento e dos avanços obtidos pela humanidade. Mas não são elas, as ciências, responsáveis pelo que veio a acontecer. Importa saber quais os destinos dados aos novos conhecimentos adquiridos por meio de avanços científicos que impulsionaram de forma impressionante, e novas tecnologias, nosso destino para o século XXI. Os que viveram nessa passagem de séculos, entre o final de um e o começo do outro, lembram-se dos deslumbramentos e de como a grande mídia indicava aquele momento e como seria o nosso futuro. Isso que é o nosso presente hoje.

Lembro-me de revistas com edições especiais que falavam desses novos tempos, marcados pela desregulamentação da economia, pela liberdade de comércio com o fim das imposições levadas a cabo por governos protecionistas e em seguida às pressões, as aberturas das fronteiras para as mercadorias e o capital. O mundo virou um enorme cassino global, e a pilantragem se transformou em desejos mórbidos, invertendo valores, princípios e ignorando o que com muito custo foi conquistado (embora pouco exercido) dos direitos iguais para todos e todas.

O cinismo passou a conduzir as finanças, a economia se abastardou em meio aos que esbanjavam dinheiro. E assim expunha abertamente um novo comportamento icônico, ser mau-caráter já não era mais algo que desmerecia alguém, mas a condição e garantia de que somente assim, e pela esperteza, seria possível ser incluído ou permanecer no altar de imolação, ou fogueira das vaidades. Onde a riqueza já não ardia mais em chamas como algo pecaminoso, mas a ser perseguido por todos, como a quem de direito, na certeza que o novo capitalismo globalizado garantiria a quem assim quisesse ser. Os neopentecostais ensinavam aos pobres que o caminho da submissão, da idolatria fundamentalista ao deus do capital, era duro mais possível de ser trilhado. Pelo esforço próprio, sem arengas e rebeldias, mas de firmeza na crença de que esse deus é fiel.

Abriram-se as portas do inferno. O capital financeiro jamais foi incensado por quem se julgasse protegido por algum deus. Sua proteção é o demônio, seguramente. E para combatê-lo não seria possível os chicotes pelos quais Jesus teria expulsado os vendilhões do templo. Já não são mais reles mercadores, mas representantes de enormes corporações, gigantescas transnacionais, que se agigantam a cada ano, por fusões que reduzem a força de trabalho, investe-se mais e mais em novas tecnologias, ampliam-se os ganhos em produtividade e, consequentemente os lucros.

Mas tudo isso não significa o fim do caminho, com o descanso necessário para usufruir desses ganhos, pois a ganância impede isso. Esses lucros movimentam o enorme cassino do sistema financeiro, as bolsas de valores, e ali se multiplicam por meio de ladroagens oficializadas, burlas de expertises, golpes e espionagens a envolverem os donos do dinheiro e agentes públicos, numa dança macabra de perversões em busca de mais riqueza e Poder sobre as desgraças e infortúnios de desempregados, miseráveis errantes que se transformam em nômades, favelados, pobres, que são absorvidos pelo comércio mais lucrativo das profundezas do sistema: as drogas.

Embora as mercadorias mais sofisticadas desse comércio sirvam exatamente aos eufóricos agentes do capital financeiro, movidos ao pó mais cobiçado que transita pelos arranhas céus e torres de luxos, e impulsiona o eletrizante cotidiano das corretoras, investidoras e bolsas de valores. Ali onde se realiza o capitalismo financeiro, e onde a riqueza gerada esnoba e dejeta estrume sobre bilhões de pobres por todo o mundo. Mas esse mundo, desse capital financeiro especulativo, improdutivo e pérfido, é disputado por poucos que dominam e controlam impérios, que possuem bilhões... de dólares.

E, pela lógica que movimenta o sistema, cuja característica é a expansividade, não pode ganhar amanhã, nem um centavo menos do que ganhou hoje. É uma corrida febril a mais dinheiro, não importa o quanto se tenha, nem o quanto isso torna a sociedade doente. Assim se chegou ao limite da globalização, escorada nas políticas perversas neoliberais, insensíveis à crescente desigualdade social.

O mundo, não poderia, e nem pode encontrar um destino saudável por esse caminho. De insensibilidade, arrogância, corrupção, injustiça, falta de empatia e desrespeito pelo outro. Tanto o mundo construído, e destruído, por quem por todo esse tempo teve o controle dos meios de produção; quanto o mundo natural, a natureza, desnaturalizada, artificializada, e posta abaixo, para servir a essa ânsia gananciosa e fazer girar a estrutura capitalista, baseada em mercadorias que se esgotam e são substituídas por outras, que envelhecem e precisam ser deixadas de lado, levando a que o sistema se reestruture, e se reinicie todo o processo de inserção de novos produtos e novas fontes energéticas, sob o pretexto de proteger a natureza, que seguirá sendo destruída para comprazer essa lógica expansiva. Não nos iludamos, o fantasma de Goebbells (Ministro da Propaganda do governo Nazista) não está levitando somente por sobre o Palácio do Planalto. Ele está por toda a parte, e incorpora os discursos daqueles que controlam o Poder político, econômico, militar e são disseminados pelos grandes meios de comunicação.

Ora, a história nos ensina que por esses mesmos caminhos, em tempos outros, o resultado dessas loucuras levou a conflitos que geraram guerras, genocídios e o descontrole sobre uma população absolutamente abandonada e revoltada. Assim, cega e desprovida de consciência crítica, tanto lá, quanto nos dias de hoje, o caminho termina sendo a busca de falsos “messias”, protagonistas estúpidos que se colocam de forma invertida no lugar desses pobres e miseráveis, com discursos de ódio, intolerância, ressentimentos, medos e mentiras, reforçando a ignorância, o apego a crenças baseadas em construção de sentimentos de indiferença, raiva e construção de inimigos erigidos assim fundamentados em preconceitos, misoginia, racismo, em novas formas inquisitoriais e invertendo o foco sobre quem de fato se beneficia dessa estrutura. 

Mas precisamos ter claro qual é a estratégia que existe por trás desses comportamentos, daqueles que usufruem de privilégios, se impõe gananciosamente sobre corpos inertes, frágeis pela ausência de recursos para se manterem, ou mesmo sobre trabalhadores superexplorados, cujas reformas feitas retiram o pouco de si, mas ampliam os ganhos dos que controlam a riqueza.

Se já vínhamos de há muito tempo consolidando uma forma de Poder, definido por Michel Foucault, como Biopolítica e Biopoder, as circunstâncias delineadas nos últimos anos, e potencializadas pela pandemia, confirma a sofisticação daqueles mecanismos controladores seja sobre a população enquanto massa agregada, a partir da constituição do Estado moderno, seja sobre o corpo das pessoas individualmente, estabelecendo padrões e definindo regras e comportamentos. Quanto mais as crises surgem e se intensificam, mas se definem políticas e se constroem regras conservadoras para conter a expressão da individualização e da liberdade do corpo das pessoas e de suas vidas.

O controle da vida, pelas políticas do corpo, bem como por uma política (biopolítica) de exploração acentuada do esforço escravizado ou semi-escravizado, pela extorsão da liberdade ou pela exploração da força de trabalho, se constituiu nos elementos cruciais para a transformação do capitalismo no sistema que conhecemos hoje, e no qual nos tornamos engrenagens em sua lógica de absorção de nossos esforços para garantir os privilégios de uma minoria abastada.

A moral protestante definida como elemento fundamental das formas de desenvolvimento da sociedade capitalista, num olhar weberiano, não demorou a ser suplantado por novos elementos de controle de Poder, definido a partir da garantia da vida, na tentativa de controle da morte. Esse foco, expressado por Michel Foucault, como Biopoder, se encerra nos objetivos da burguesia e das classes dominantes, na descrição de uma sociedade liberal, cujos preceitos se encontram definidos em legislações criadas para garantir muito mais do que uma liberdade, mas o controle e a disciplina sobre o corpo, sobre a vida.

Essa política, decorrente das formas que foram delineadas pelo Poder dentro da estrutura dominante capitalista, por meio do Estado burguês, oferecido como fonte da civilização e do progresso, tudo isso feito dentro das normas legisladas pelas instituições formais da democracia, se entesa e emperra quando sob seu controle assumem-se indivíduos dotados dos piores desejos, pérfidos, desprovidos de caráter, de empatia e solidariedade. 

Governantes que reacendem os piores pesadelos transformados em atos, reais, de situações em que a política do controle da vida se inverte na macabra política da morte. Os preconceitos disfarçados se apresentam ostensivamente, o ódio se reflete no olhar às diferenças. Os pretos, pobres, mulheres, velhos, os que possuem algum tipo de deficiência, ou aqueles que escolhem o tipo de prazer sobre os seus corpos e suas sexualidades e gênero, tornam-se alvos e, para além do biopoder, um novo tipo de higienismo se manifesta, e encontra na pandemia do Covid19 um vírus mortal que lhes ajudará, a esse tipo de Poder, a completar o objetivo criminoso de olhares, vieses, ideologias e atitudes neonazistas e de um visível fascismo contemporâneo.

E nessa necropolítica os que comandam o estado se debruçam sobre um macabro e mórbido desejo de encolher a população para melhor definir suas estratégias perversas, mirando no que eles, por esses sentimentos fascistas, entendem como entraves ao desenvolvimento e a consolidação de uma sociedade puritana, pentecostal, ultraconservadora, para lentamente constituir o Estado como um instrumento totalitário, controlado por insanos, cínicos, milicianos, mercadores da fé e fascistas.

As mudanças que ocorrem aqui no Brasil, embora também em outras partes do mundo, decorrem de crises profundas nas estruturas capitalistas, que já estavam se desenvolvendo há anos, são sintomas de um estágio avançado da desintegração desse sistema já atingindo o limite de suas contradições. O século XXI abriu suas portas escancarando essa crise. O ano de 2001 (ataques às torres gêmeas nos EUA); 2008 (crise do subprime nos EUA) e a partir de 2020, com a pandemia do Covid19, se constituem em picos dessa crise, e, em seu ciclo constante, esses momentos disseminaram os medos, por todos os lados e de todos os tipos, despertando de suas profundezas, alguns demônios, que não são estranhos ao sistema, mas suas próprias crias, que viviam em estado criogênico.

Mais do que entender essa conjuntura, devemos identificar os caminhos e os possíveis cenários que nos esperam em um curto prazo, e, portanto, exige de nós a urgência em decisões e estratégias que nos impeçam de despencar do abismo que está à nossa frente. Nunca foi tão importante fazer a junção dentre as ciências humanas, onde se insere a Geografia, ultrapassar o simples diagnóstico da realidade, mas a partir da constatação das desgraças que nos afligem, e que isso se dá no mundo real, urgir mais do que a necessidade de esgrimir argumentos e coragem para se contrapor a esses demônios materializados e que perversamente buscam infernizar nossas vidas. Se trata, como já dito outrora por Marx, de mais do que interpretar a realidade, lutar para transformá-la. Ou para citar um geógrafo de renome, e responsável por um dos clássicos da geografia e da geopolítica, Yves Lacoste, a geografia deve nos ajudar a mais do que descrever o mundo, estabelecer um olhar crítico sobre essa realidade, compreender a dimensão das desigualdades, apontar por quais meios podemos identificar as contradições desse sistema, e não medir esforços para transformá-lo econômica e socialmente.

Estamos correndo contra o relógio.


(*) Palestra apresentada na Mesa Redonda: Geopolítica, Dinâmicas Populacionais e Biopoder, no II SIMPÓSIO INTEGRADO DE ESTUDOS TERRITORIAIS. Em 28/05/2021.

Disponível no Canal do Laboter no Youtube:

https://www.youtube.com/watch?v=E-Q-t-MSuuM&t=582s

Obra citada:

SAGAN, Carl. O Mundo assombrado pelos demônios - A ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996

 

 

 

 

domingo, 9 de maio de 2021

O MITO DE SÍSIFO E O COMPADECIMENTO, EM CONTRAPOSIÇÃO À RAZÃO, À INDIGNAÇÃO E À REVOLTA SOCIAL

“Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo” (D. Hélder Câmara)


Vamos falar de solidariedade. Já tratei disso aqui, de forma mais ampla, quando me referi à empatia, simpatia, cooperação e solidarismo. Mas dessa vez venho falar com uma verve mais afiada, e talvez incomode algumas pessoas, bem-intencionadas, e, creio, verdadeiramente solidárias. Mas de um espírito cristão, tradicional, que tem uma limitação no enfrentamento da realidade. Não é por acaso que começo esse artigo com a frase do então arcebispo de Recife, Dom Hélder Câmara. Essa é a questão.

Se habituar a oferecer esmolas, como na tradição que perdura séculos, isso mais como uma prática das camadas mais pobres da sociedade, ou da classe média. Ou tornar-se um filantropo, nome pomposo para basicamente a mesma ação, só que das camadas mais ricas, daqueles que possuem muito dinheiro. Embora seja um ato que possa demonstrar empatia, se constitui muito mais como um desencargo de consciência, ou no caso dos ricos, puro marketing, que em parte lhe é devolvido pelo “bondoso” Estado, por meio da restituição do Imposto de Renda. Um Estado bondoso para os ricos, naturalmente.

Mesmo sendo uma prática solidária, e na maioria dos casos praticadas por pessoas que tem sensibilidade frente a uma realidade perversa, portanto de boa vontade, e absolutamente necessária, devido às condições de miséria que vive boa parte da população, ela não garante uma transformação na vida dessas pessoas, de forma a conduzi-la por caminhos que a liberte da pobreza crônica. Ora, eu não pretendo propor que diante dessas circunstâncias de pobreza e miséria crescente, deixemos de compartilhar com essa parte excluída da sociedade um mínimo de doações, que seja, para que ajude essas pessoas a sobreviverem.

Mas não irá nos salvar. Nem o doador, e muito menos o recebedor. Só manterá os que assim procedem, com todas as boas vontades, como no mito de Sísifo, condenado a rolar morro acima uma enorme pedra, que ao chegar no topo irá rolar ladeira abaixo. E Sísifo, assim, foi condenado a passar o resto de sua vida, nesse estranho devir, por ter desafiado os deuses. Mas essa história, ou fábula mítica, foi melhor apregoada por Albert Camus (1930-1960)*, escritor de origem argelina e que viveu na França, para se referir à sociedade contemporânea. Por suas obras, expressadas pelo existencialismo, ele busca abordar os absurdos existentes, que geram anseios e uma abissal relação entre felicidade e sofrimento, no que ele vai chamar de “estética do absurdo”. 

Certamente a comparação entre essa atitude não significa considerar, como ele faz na representação ao mito de Sísifo como de uma inutilidade da vida. Mas sim, de se buscar uma resposta para qual o sentido disso tudo? Será que existe, já que optamos por continuar a viver? Essa normalização do sofrimento, a aceitação da perversidade social e a idolatria aos que, no sofrimento, são reconhecidos como heróis ou heroínas, por sobreviverem, nos faz bem? Não será isso muito pouco, quando olhamos em volta e no giro do mundo e verificamos a existência de bilhões de miseráveis, enquanto poucas centenas controlam uma imensidão de riqueza e esnobam cotidianamente isso?

Então, se nos compadecemos com a situação perversa em que milhões de pessoas vivem, num antagonismo absurdo e absolutamente desigual e revoltante com uma minoria de privilegiados que controlam a grande maioria da riqueza do mundo, por que se criminalizam aqueles que bradam contra esses absurdos e essas desigualdades, vistos como subversivos ou pejorativamente como “comunistas”, embora ser comunista signifique exatamente a essência da não aceitação dessas desigualdades? Porque não se apoiam impostos sobre fortunas, em muitos casos adquiridas de maneira criminosa ou sem que se invista em algo produtivo que possa gerar distribuição de rendas? Porque muitos recusam, e isso já existe em alguns países, impostos elevados sobre heranças, de forma a que o Estado distribua esses recursos para investir em programas sociais voltados para tirar as pessoas da miséria (embora não se deva mantê-las permanentemente nessa dependência)?

Vejo nesses dias de tormentos, de sofrimentos, um aumento acelerado da miséria e na outra ponta os bilionários se tornando mais ricos. E no patamar de baixo desse sistema absurdamente desigual e injusto, a correria para conter o desespero e ajudar os que estão desemparados pelo Estado e ignorados pela perversão burguesa da lógica gananciosa e usurária capitalista.

Não adianta inserir nos pacotes solidários livretos religiosos, como observei em reportagens sensacionalistas televisivas, que flertam com a fragilidade daquelas pessoas absolutamente despossuídas. Isso não salvará essas pessoas do inferno em que vivem aqui na terra, nem as incentivará a lutar e se rebelar contra essa condição de miséria em que foram metidos pelos mecanismos que fazem girar a roda do sistema capitalista. Ao contrário, só as manterá submissas, lenientes, obedientes e crentes de que aquela condição se deve a uma possível incapacidade meritocrática, ou a desígnio sabe-se lá de qual deus perverso, que beneficia poucos em detrimento de muitos.

Devemos, sim, sermos solidários, termos empatia, e nos ombrearmos com quem deseja amenizar o sofrimento dessas pessoas. Mas se queremos que tal situação não seja normal, e que não tenhamos a cada ano repetir ações de solidariedades por meio de doações de parcos mantimentos para sobreviverem um dia de cada vez, que botemos no pacote graus elevados de consciência política, de capacidade de discernimento da realidade, de olhares críticos, e, principalmente, de indignação, revolta, sentimento de poder se bater de frente contra aqueles que controlam esse sistema injusto, e que os leve, na conjunção desses sentimentos, a se organizarem, como em muitos outros momentos da história, e resgatarem suas dignidades e direitos na vontade, na luta, certos de que não há muito mais a perder em suas vidas, a não ser suas cadeias.

As pessoas não devem viver de esmolas, isso lhes corrompem a dignidade, as transformam em objetos, as desumanizam. Como canta Caetano Veloso, “Gente quer comer. Gente quer ser feliz. Gente quer respirar ar pelo nariz; Gente lavando roupa, amassando pão. Gente pobre arrancando a vida com a mão... Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.

Mas, se nos apresentamos como indignados com essa situação, que deveria gerar revolta coletiva, de imediato surgem os mecanismos ideológicos que criminalizam quem assim se sente e deseja mudar. Por que é perigoso lutar pelo bem comum? Por qual razão pessoas despossuídas de bens, escravos assalariados, gente que vive para trabalhar e mesmo assim sobrevive em meio à pobreza, se apegam a dogmas religiosos e se prostram a olhar para os céus de onde jamais sairá o solução de seus problemas? E por que reagem negativamente a um clamor por se opor firmemente aos que lhes exploram?

Porque assim foram condicionados pelo aparato jurídico, religioso, midiático e repressivo, que os manipulam, a favor dos interesses de quem domina meios de produção e o dinheiro. No entanto, ao se opor pela força ao grito não meramente dos “excluídos”, mas de quem adquire consciência de classe e se levanta de punhos erguidos e disposto a lutar por uma vida digna, nem que seja pelo enfrentamento revolucionário, esses são repelidos por sicofantas, fascistas, mercadores e traficantes da fé e os que controlam a grande mídia. Essa mesma mídia que finge se indignar com a pobreza e exalta o caráter solidário que se desdobra cotidianamente para apaziguar a fome de muitos. Esmolas, são esmolas que eles recebem, mesmo que tenhamos que dar outros nomes. Porque se repete, é estrutural, e não os salvam da miséria. Excluídos por quê? Por quem? E de que estão excluídos?

Esse rompante/desabafo que faço aqui, não é menos sensível do que aqueles que se irmanam através de corporações religiosas para praticar essas atitudes solidárias, mas é mais incisivo porque aponto a necessidade de romper com esses vícios, esses mecanismos abstratos, esses usos da miséria do outro. E de maneira revolucionária nos levantarmos contra o sistema causador de todo esse quadro desolador. Apontando as causas, criando consciência crítica e estimulando esse povo a acreditar que por meio de sua luta, e da indignação justa, é possível construir um outro mundo.

É isso que deve conter em cada cesta básica que entregarmos. Mais do que livretos religiosos, que exploram a fé e os mantém alienados, devemos inserir manifestos contra a desigualdade social, e estímulos para que se organizem, se revoltem e lutem contra o sistema e contra aqueles que controlam a riqueza e os mantém nessas condições de pobreza e miséria crônica, da qual dificilmente conseguirão sair porquanto perdurar o capitalismo. Mas pode ser também livretos religiosos, desde que apontem ser aqui na terra onde cada um de nós devemos viver com dignidade e respeito, como se pregavam nas comunidades eclesiais de base, por meio da teologia da libertação. Era por assim reivindicar justiça social que esse movimento foi perseguido, depois de muito ser caracterizado como comunista, como na expressão da frase de D. Hélder Câmara.

Empatia e solidariedade devem significar colocar-se no lugar do outro, e, portanto, desejar que as condições em que essa pessoa vive seja digna como as que cada um deseja para si mesmo. E mais do que conceder esmolas, precisamos lutar para que a melhoria das condições de vida seja real, efetiva e permanente. Nossa luta não deve ser somente contra governos insensíveis e elitistas, mas também para que o Estado seja efetivamente um instrumento a serviço dos segmentos majoritários da sociedade. E talvez não seja possível realizar isso somente nos iludindo com processos eleitorais que mantém esse ciclo vicioso.

Creio que já atingimos aquele limite, o auge das contradições de um sistema perverso, desigual e destruidor de vidas, cada vez mais desumanizado e violento com os que vivem na pobreza. Na falta de pão a burguesia não oferecerá brioches, mas repressão. E será assim, enquanto não fizermos como os comunardos de Paris, há 150 anos, tomando “os céus de assalto”. Sabendo que é preciso agir de forma implacável contra os algozes do povo, para que as mudanças sejam definitivas. Em muitos lugares a multidão está nas ruas, e é preciso que aqui no Brasil também isso aconteça, mas é preciso agir com estratégia, organização e política. Se assim for, a força do povo será incontrolável, e poderemos gritar, “basta de injustiça e de miséria”!


(*) CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2018.