sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O DESPERTAR DAS BESTAS... (2ª PARTE)


Em 2016 publiquei um artigo aqui neste blog,[i] em que analisei o quadro político daquele momento, as instabilidades geopolíticas e tracei um desenrolar dos acontecimentos em direção a uma situação sombria para os anos seguintes. Procurei entender como a direita ascendeu tão rapidamente e os mecanismos adotados para aplicar o golpe e levar ao Poder a figura nefasta de Michel Temer. Mas também já havia identificado, e coloco isso no artigo, os movimentos trilhados por um personagem que por muito tempo, inclusive nos governos da esquerda, transitou livremente, adotando comportamentos fascistas e provocando com discursos e gestos as ações que eram feitas para resgatar a história pérfida de torturadores e criminosos durante a ditadura militar brasileira
O gabinete dessa figura torpe era a comprovação de que ali se instalava mais do que um indivíduo provocador, mas um elemento altamente nocivo para a democracia, que deveria ter sido cassado por seu comportamento. Lembro de ver, não somente em foto, mas percorrendo os corredores do Anexo IV da Câmara dos Deputados, um gabinete em que ostentava não somente a imagem dos ditadores militares brasileiros, como também ofendia os militantes de esquerda assassinados naqueles tempos tenebrosos. E um cartaz causava náusea, indicando provocativamente que quem procura osso é cachorro, numa relação ofensiva e macabra com os familiares dos militantes que procuravam resposta para os restos mortais daqueles que foram torturados e assassinados no combate ao movimento guerrilheiro do Araguaia.
Nada foi feito contra esse indivíduo, e ele se fortaleceu na medida em que se enraizava um ódio construído pela grande mídia contra o governo Dilma e o receio que depois dela viesse mais dois governos Lula. Deixar impune um defensor do fascismo e de torturadores, foi um erro imperdoável. Outro foi acreditar em uma possível redenção da burguesia urbana e dos latifundiários, e a aceitação da permanência da esquerda no Poder por quanto tempo a “democracia” permitisse. A elite, a burguesia rural e urbana, os “bem-nascidos”, não são democratas, a não ser nos limites permitidos pela “democracia capitalista”, logicamente desde que o Poder político não se afaste de suas mãos por não mais do que duas eleições. Mais do que isso os golpes são tradição que jamais deveriam ter sido negligenciados pela esquerda.
Mas, embora de relance eu tenha observado um movimento que se encaminhava para a periferia e já estava consolidado na classe média, a expansão do neopentecostalismo evangélico, não consegui observar atentamente e descobrir a dimensão do que estava acontecendo. Em relação à classe média sim, era nítido e perceptível pelos grandes templos luxuosos evangélicos construídos em bairros nobres das capitais.
No entanto, a disseminação de pequenas igrejas, iniciadas como “células” (ironicamente o adjetivo/substantivo que dávamos às nossas organizações de base quando atuávamos no movimento estudantil e militávamos clandestinamente) em alguns casos, ou como consequência das dissenções que ocorrem com frequência nesses grupos que faziam com que se espalhassem pelas periferias. Registre-se que de certa forma empoderadas politicamente, já que muitos de seus pastores-líderes, ou a cúpula que dominava o movimento evangélico, e se organizam em diversas associações, apoiaram ou fizeram parte dos governos da esquerda e após o golpe se tornaram mais fortes ainda, já que se tornaram base importante para derrubar a presidenta Dilma Roussef.
A conversão oportunista de Bolsonaro, justamente naquele ano de 2016, representava então uma estratégia adotada por integrantes do PSC – Partido Social Cristão, principalmente o pastor Everaldo, que havia sido candidato à presidência da República. Mas o perfil de Bolsonaro não indicava nenhuma fidelidade a este ou aquele líder evangélico, ele transitaria por todas as igrejas dessa linha cristã, e soube se aproveitar bem da cegueira de seus fiéis para despejar seu ódio ao sabor das disputas bíblicas, mas unindo “hebreus, filisteus, fariseus e seduceus” (me sirvo aqui de metáforas, naturalmente). Conseguindo até nessa loucura pérfida cristã, pelo discurso reacionário, ultrajante e odiento que representa o “mito”, envolver os grupos mais conservadores da igreja católica, dentre os quais o mais importante: renovação carismática católica.
Mas, o uso do adjetivo no primeiro artigo individualizava o termo, e tinha somente um único sentido, aquele dado na identificação religiosa com o “coisa ruim”. Besta no imaginário cristão é a representação demoníaca. Mas neste eu insiro o plural a fim de ampliar o seu sentido, principalmente depois do efeito manada na última eleição, com a surpreendente escolha eleitoral por um indivíduo cujo comportamento e discurso é completamente oposto ao sentido que sempre foi dado pelo cristianismo. Neste caso, o sentido de “besta” se enquadra também no adjetivo muito usado em diversas regiões do Brasil, identificando as pessoas tolas, bocós, ignorantes, e... estúpidas.
No quadro de uma população majoritariamente alienada e desprovida de senso crítico (algo que os governos de esquerda não se preocuparam em alterar, já que o olhar para a educação reproduziu o viés neoliberal que se espalhava pelo mundo e aportou aqui celeremente, anestesiando uma nova geração de doutores, igualmente alienados) a estratégia da falsificação da notícia e a repetição de frases tolas e estúpidas que reproduzem o que secularmente a cultura dominante impôs, por meio de discursos machistas, homofóbicos, misóginos e preconceituosos, comportamentos que se disseminaram rapidamente (porque era o olhar do espelho), se acelerando pela força dos púlpitos que se espalharam incentivados pelas políticas e pelo dinheiro dos EUA, dentro dos interesses geoestratégicos de combater o avanço da igreja progressista, identificada nas comunidades eclesiais de base. Essa corrente foi sufocada no final dos anos 1980 ao mesmo tempo em que crescia a influência e a força das igrejas pentecostais, depois das neopentecostais, no Brasil e na América Latina[2].
Esse público, “fiel”, se tornaria a base ideal para a ascensão de um candidato bufão. A estratégia foi a mesma adotada nos EUA, com Donald Trump, de perfil parecido, mas em um nível de estupidez mais sofisticado. E no Brexit, plebiscito que aprovou a saída da Grã-Bretanha da União Européia, e permitiu a ascensão de outro indivíduo que fica numa espécie de síntese desses dois primeiros, Bolsonaro e Trump: Boris Johnson.
O estrategista foi o mesmo, Steve Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca e conselheiro de Trump. Sua aposta sempre foi a criação de fake news, facilmente assimilada por um público estúpido, avesso à política, com a exploração dos limites possíveis de estupidez existente em uma camada da população, com nítida deficiência intelectual e de compreensão da realidade em toda a sua dimensão. Isso pode ser atestado em um documentário disponível para acesso na internet, numa produção independente mostrada pela Globonews[3].
Mas essa estratégia se adequou também a uma realidade gerada por uma crise econômica sistêmica, estrutural, que afetou a economia de praticamente todos os países do mundo, gerando uma reação de comportamento, aversão à política, desânimo com as instituições e revolta contra tudo que representasse as crenças alimentadas por longos anos que demonizava o Estado. O neoliberalismo, que houvera destruído o estado de bem-estar social, por suas políticas de abrir o mercado para o livre trânsito das corporações e eliminar os mecanismos de defesa das camadas socialmente mais vulneráveis, de repente alimenta nessas pessoas o ódio àquilo que essa política econômica ajudara a enfraquecer.
O sintoma dessa nova realidade, absurda, porque foge do concreto e se prende em abstração, passou a ser denominada de “pós-verdade”. As pessoas, incapazes de compreender as contradições que as cercam, passam a acreditar naquilo que desejam, e direcionam suas revoltas não contra os causadores dos problemas, mas para as consequências dessas situações geradas pelas perversões dessas políticas. Paradoxalmente esse movimento, basicamente da classe média e de parte da população pobre que ascendera socialmente, se volta contra as políticas desenvolvidas por governos progressistas para amenizar a destruição neoliberal, embora usando em parte esse remédio nocivo. E abre caminho para que as estratégias da extrema-direita se encaixassem facilmente num ambiente de perplexidade, apreensão, medo e revolta, mas tudo isso potencializado e alimentado por corporações midiáticas, aliadas aos segmentos mais oportunistas da burguesia, que fomentaram essas insatisfações e a direcionaram contra os governos de esquerda, principalmente na América Latina.
Claro que no Brasil, especificamente, o tiro saiu pela culatra. Os artífices do golpe, capitaneados pelos tucanos (PSDB), imaginavam retomar o controle do Poder, e confiaram isso a uma figura decrépita moralmente, também presidente desse partido, que disparou a senha para desconsiderar o resultado da eleição de 2014. Primeiro sofreram uma rasteira do PMDB, e em seguida, como consequência de toda a propaganda midiática antipolítica, defenestrando a esquerda, culminou com uma polarização entre o PT e a figura nefasta que captara bem, por meio de uma assessoria não somente de Bannon, mas também de uma malta de figuras perversas, odientas e oportunistas, encravadas nos púlpitos de algumas igrejas evangélicas, mas que de algum tempo já tomavam espaços em outro templo, outrora representante da democracia, o Congresso Nacional.
O antipetismo foi mais forte do que o “ele não”. No meio do caminho, numa atitude tosca e irresponsável, um indivíduo, por meio de uma facada, definiu a eleição de um personagem que não tinha tempo na televisão, não aparecia nos debates e quando convidado pelas TVs agia grotescamente, acusando sem provas e ostentando bravatas irresponsáveis.
A aceitação desse discurso por meio de uma massa inebriada, conduzida pelo conservadorismo evangélico e pelo que de pior existe na política, um movimento fascista, praticamente neonazista, deu suporte para ações viscerais na destruição de conquistas históricas dos direitos dos trabalhadores, das populações pobres, das comunidades fragilizadas e historicamente destruídas em suas tradições e reduzidas pelas ações rapaces de grileiros e marginais que vestem ternos, usam togas e escondem-se por detrás de impunidades piores do que aquelas imputadas aos políticos acusados de corrupção.
Somente um tipo de corrupção tornou-se alvo, aquela praticada por um mecanismo que por décadas foi aceito e passado em branco pela justiça eleitoral: o caixa 2, e suas consequências, por meio do beneficiamento a empresas que financiavam as eleições. Mas a corrupção disseminada por outros setores, polícia, judiciário e até mesmo nos costumes, foi naturalizada pela população, que a vê com menos importância, até mesmo porque se serve dela em alguns momentos.
Esse ambiente criado é absolutamente refratário a mudanças rápidas. Estamos num dilema que necessariamente impõe preocupações para além das lutas eleitorais imediatas, porque essas prosseguirão contaminadas por essa polarização e pelo uso e abuso da incapacidade cognitiva de boa parte da população. Aliás, a luta eleitoral só acentua a polarização e, consequentemente, cria uma espécie de blindagem mental, que dificulta a essas pessoas perceberem o abismo enorme que elas têm pela frente.
A conjuntura política, ao contrário do que possa parecer quando analisamos o erro de cálculo da direita e centro-direita, não é hostil à burguesia e aos latifundiários. Pelo contrário. O ambiente de anestesia que se abateu sobre a sociedade e atingiu até mesmo os segmentos organizados, tem facilitado o desmonte acelerado das estruturas de proteção social inseridas por meio de muita luta por longos anos. Isso tem sido feito numa rapidez impressionante, por meio de um rolo compressor de um congresso majoritariamente conservador, com bancadas perversas como as da “bala, da bíblia e do boi”, que agem nas áreas estratégicas, de segurança, da produção agrícola e dos costumes, inserindo aí um forte ataque à cultura e à educação, com desmonte impressionante de segmentos que são responsáveis por consolidar saber e defender valores culturais que são formadores de nossa identidade nacional.
Mais do que pensar em disputar eleições, embora isso seja essencial para mudar principalmente a correlação de forças nos parlamentos, o que é preciso, necessário e urgente, é retomar o protagonismo que está nas mãos das igrejas, seja por meio de pastores evangélicos e do clero católico conservador, e procurar incutir nas mentes das camadas mais desprotegidas e vulneráveis, os trabalhadores, que estão vendo seu direitos serem retirados, e a população da periferia, que imaginam pela fé, construir algo de bom em suas situações econômicas. Uma ilusão de quem desconhece os mecanismos de funcionamento do capitalismo, principalmente agora, neste momento de transição, em que uma transformação tecnológica impõe uma ampliação da destruição de empregos, como consequência do uso de inteligência artificial e da robotização crescente da força de trabalho.
A organização e conscientização dessa massa alienada é algo bastante difícil, levará tempo, mas contará com a situação de desespero que tende a se acentuar, na medida em que essas mudanças aplicadas contra os trabalhadores começarem a serem sentidas no dia a dia, que transformará o cotidiano dessas pessoas, principalmente dos mais jovens, em um verdadeiro inferno aqui na terra. Isso é inevitável, mas cabe as forças progressista se anteciparem e construírem os bunkers para se defenderem dos ataques da extrema-direita, mas sem se colocarem somente numa posição defensiva, procurando construir táticas de ações ofensivas. Possíveis com arma da organização e da conscientização política desses segmentos. Talvez a Venezuela nos ajude a entender como fazer para resistir, ofensivamente, à escalada de destruição da democracia que parte dos demônios do Norte.
Creio ter me alongado, mas esse ambiente tóxico, de perversão e de mudança rápida de conjuntura, nos obriga a ir bem a fundo na compreensão das causas (é preciso saber onde erramos, e porque erramos), na dimensão do problema e na necessária indicação de que é preciso planejar uma forte reação às investidas que estão destruindo e consumindo a sociedade brasileira, incluídos aí povos originários e comunidades tradicionais, principais alvos dessas perversões, pela cobiça das riquezas que existem em suas terras.



NOTAS:
[2] LIMA, Décio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. https://issuu.com/juliocesarpedrosa/docs/delcio-de-lima-os-demonios-descem-d
[3]Fake News – Baseado em fatos reais -  https://vimeo.com/239115794


sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

QUERIDA CAROL, NUNCA LHE ESQUECEMOS. VOCÊ NOS FAZ MUITA FALTA.

Minha querida Carol,
A última carta que lhe escrevi foi em 2010, muito embora eu tivesse de lá pra cá escrito diversas outras crônicas dedicadas a você. Por esse tempo todo, eu e sua mãe, sempre conversamos com você, de diversas maneiras e cada um a seu jeito. O que não permitimos, jamais, é deixar que nosso pensamento por sequer um dia nos afaste de sua lembrança. Você nos acompanha em cada momento de nossas vidas, ao nosso lado, em nossa memória em nossos corações.
Neste dia, sempre, como no dia de seu aniversário e no dia dedicado aos que já partiram, o dia de finados, reservamos em nosso tempo o momento em que seguimos para o lugar da última morada de seu pequeno e ainda frágil corpo. O que nos resta é nos debruçarmos sobre sua sepultura, simbolicamente, e ali, por alguns minutos, em que lembranças passam celeremente, ficamos num diálogo mudo, silencioso, refletindo sobre a falta que você nos faz por todo esse tempo.
Hoje é um dia em que me retraio, paro para escrever essas cartas e crônicas e passo o dia recluso, a pensar em você e em como teria sido diferente a nossa vida com você entre nós fisicamente, não somente nas lembranças.
Muita coisa aconteceu por esse tempo. Houve uma espécie de revolução no comportamento das pessoas. Aqui em nosso país e no mundo. Para seu pai que é estudioso dessas questões, não houve muita surpresa, mas certas circunstâncias e comportamentos tem nos deixado espantados e apreensivos. Nem tudo poderia ter sido previsto, dado a intensidade com que tem acontecido. E a estupidez se tornou condutora de atos impensáveis há alguns anos. Até na escolha de quem nos governa.
Em meio a tudo isso, e com uma importância que para nós tem uma dimensão enorme, seu irmão, nosso querido Iago, se tornou presidente da maior e mais importante entidade da juventude estudantil brasileira, a União Nacional dos Estudantes.
Minha filha, sabemos o quanto você admirava Iago, e ficamos a imaginar como você estaria por aqui entre nós, nesse momento de protagonismo tão grande de seu irmão, que muito nos orgulha, mas que nos preocupa também. Ficamos eu e sua mãe a nos perguntar como você estaria hoje, provavelmente já na universidade, em meio a um ambiente que se tornou foco das loucuras de um governo bizarro que saiu sabe-se lá de qual galáxia e aportou por aqui para atazanar as vidas das pessoas de bem, trabalhadoras, e daquelas que sempre sofreram as maiores perversidades de um sistema injusto e desigual. Paradoxalmente, muitas dessas pessoas, pobres e viventes da periferia, ajudaram a eleger esse (des)governo. Sabe-se lá as razões, temos que descobrir, e estamos fazendo isso.
A conclusão que sempre chegamos, em nossos sonhos que jamais se realizarão, é que você estaria tão engajada quanto ele, porque foi assim o ambiente em que você viveu em seus intensos dez anos de uma vida curta. Em meio a reuniões partidária, de um partido de esquerda, combativo e combatido por sua ideologia e por se opor firmemente à essa lógica insana capitalista, e, principalmente nas reuniões de mulheres que você frequentava com sua mãe, na associação de moradores do conjunto Caiçara e até mesmo na Assembleia Legislativa, onde sua mãe trabalhava na assessoria da deputada Denise Carvalho e na UFG, onde você percorria os corredores do Instituto em que eu trabalho, mas ainda no prédio antigo.
Esse ambiente só poderia ter lhe criado condições de ver uma vida por um viés progressista, de luta e de busca por tentar corrigir as distorções de um mundo perverso e desigual. Foi esse caminho que Iago seguiu. Não temos dúvida que você hoje seria protagonista dessa luta contra esse modelo nefasto que se tornou o podre poder político em nosso país.
Por todos esses últimos anos minha filha, desde 2015, quando você completaria 18 anos, passei a observar atentamente cada uma das minhas alunas, e a procurar nelas algum traço de como você seria, ou poderia ter sido. Tento encontrar características que poderiam me dizer: assim seria a Carol. Mas em cada uma dessas garotas vejo traços seus, mas me falta identificar nelas um perfil que você teria com certeza, da impulsividade, da ousadia, da intrepidez, traços que já identificávamos em sua personalidade. Vejo isso somente em algumas, pouquíssimas. Apesar de ser um momento tenso, de uma dificuldade que será crescente para essa geração de hoje, da qual você faria parte. Não vejo muita disposição de se lutar contra os absurdos que tem acontecido. Há uma relativa paralisia, talvez um estupor, diante de um quadro tão terrível.
Seu pai é professor, gosta de escrever, e, como de hábito costuma usar palavras que não são muito usuais, principalmente em uma realidade em que as palavras estão sendo substituídas por figurinhas. Mas quando falo estupor, quero dizer que há um entorpecimento nas pessoas, de perda de sensibilidade, e de uma certa conivência com a estupidez que passou a comandar as ações no governo e se espalha pela sociedade perigosamente.
É contra isso que seu irmão tem lutado com muita altivez, se destacando e se transformando em uma grande liderança da juventude. Cremos, com toda a corujice que é possível, embora triste por ser somente a construção de um futuro impossível, apesar de ser absurdo acreditarmos em futuro, já que ele é sempre uma construção que miramos a partir do hoje, que você estaria nesse embate, e talvez a nos causar mais apreensão e digo porquê.
Minha filha, você costumava estar presente nas reuniões do Centro Popular da Mulher, em que se discutia e se discute as pautas do movimento de luta das mulheres. Mas certamente você ainda não tinha o entendimento dessas questões em sua profundidade. Nos últimos anos de sua vida, no entanto, você já começava a ter essa percepção, embora ainda muito distante de compreender a realidade sofrida e opressiva das mulheres. Pois, creia, desde quando você partiu dessa vida, para os dias de hoje, embora o protagonismo das mulheres tenha aumentado em suas lutas por emancipação, respeito, dignidade e igualdade de direitos, o que se vê é a ampliação do machismo de tal forma que nunca se viu tantos casos de feminicídios (essa é uma palavra que nem se falava tanto) e violências absurdas, estúpidas e cretinas como está acontecendo todos os dias de forma escandalosa. Isso é o que nos faz pensar de que forma você lidaria com isso e como nós nos sentiríamos sabendo que hoje cada mulher é um alvo em potencial dessa agressividade doentia, de uma psicosociopatia cruel. Já estou eu a falar novamente uma palavra inusual. Na verdade, procurei seu significado e não encontrei, então fica como uma formulação minha, na junção de psicopatia e sociopatia. É assim que podemos caracterizar muitos desses casos de feminicídio e agressão às mulheres.
Querida Carol, não conseguirei relatar aqui todas as mudanças que aconteceram ao longo desse tempo interminável que marca sua partida e esse momento em que completam 12 anos que não mais a podemos ver em vida. Ao mesmo tempo, como sempre acontece nesse dia em que lhe escrevo, ou escrevo uma crônica sobre você, os meus olhos turvam, as lágrimas me criam dificuldades e a memória me leva mais ao passado distante do que a momentos recentes.
Mas não pense minha querida, que nos escondemos da vida. Por anos a dor era muito forte, a depressão me consumia e eu fiquei travado. Até parte de minha memória se foi, e pouco a pouco fui recuperando. Sua mãe se envolveu em dois projetos maravilhosos, da criação do Instituto que leva o seu nome – Instituto Ana Carol – e depois da criação dele veio a Cooperativa de Bordadeiras – Bordana. Ela juntou terapia, luto, resiliência e desprendimento para envolver mulheres que pudessem não somente manter suas lembranças, mas criar algum tipo de protagonismo e empoderamento para muitas delas. Não tenho dúvidas que ela conseguiu, em meio a dificuldades que persistem, por falta de dinheiro e estrutura.
Ela segue lutando, a Bordana crescendo em visibilidade e eu irei dar a minha contribuição mais efetiva em breve, quando me aposentar. Aí poderei assumir a presidência do IAC e quem sabe poder fazer com que alguns dos projetos que ela tenta desenvolver possam sair do papel, já que a Bordana passou a consumir muito tempo e energia. Positivas, naturalmente, algo que sua mãe sempre procura ter, e nisso ela se contrapõe a mim, já que temos personalidades diferentes, você já percebia disso em vida.
Não que eu seja pessimista, mas como repito sempre citando um grande escritor nordestino, paraibano e pernambucano, Ariano Suassuna, me coloco na condição de um “realista esperançoso”. No entanto, penso às vezes que ela está certa, e talvez deva incluir a palavra “otimista”, sem ser tolo e não compreender que a realidade às vezes nos passa rasteiras quando acreditamos demais no imponderável, naquilo que se torna impossível de se atingir, mas pelo otimismo sempre acreditamos. É assim que ela é, e aprendo muito, embora não tanto na rapidez que ela gostaria. Mas utopia é isso, é acreditarmos em algo muitas vezes distante, aparentemente inatingível, mas que nos ajuda a caminhar, como bem dizia um escritor uruguaio, Eduardo Galeano.
Minha linda para sempre criança, como escrevi em uma crônica remetendo aos tempos de Peter Pan e da Terra do Nunca, “Minha eterna Wendy”. Esses doze anos se contam também em nossas vidas. Seu pai envelheceu, tanto pelo tempo que se esvai, como pelo sofrimento da dor de lhe ver partindo dessa vida. Já vivi mais tempo do que viverei, e, como sou ateu, não alimento expectativa de que após essa vida tenhamos alguma outra que nos faça reencontrar. Quem vive, e fica, carrega no coração e nas memórias as lembranças e as imagens de quem partiu. Como fazemos cotidianamente em relação a você, e às outras pessoas queridas que também já partiram.
Minha vez chegará, em breve ou sabe-se lá daqui a quantos anos. Espero, com toda a força desse mundo, que sua mãe e o Iago estejam ao meu lado quando chegar a minha vez, e, tenho certeza que se minha morte for lenta, seu rosto, seu jeito, suas lembranças serão aquelas que mais fortemente se farão presentes nesse momento. E se rapidamente, de forma fulminante eu me for, por frações de segundos eu me lembrarei de você, tamanho o amor que carrego em meu coração que jamais deixará de bater sem que eu tenha sua imagem em minha frente. Por isso sempre carrego para todos os lados em que vou, principalmente nas viagens, o último cartão que você me deu de presente no dia dos pais, e uma foto em que tiramos na Adufg, com seu olhar meigo, embora triste nessa foto.
Seu pai, desse jeito que relato, materialista, ateu e um realista esperançoso, carrega no peito todo o amor do mundo, por você e por seu irmão, como partes de mim, saídas de mim, e de sua mãe, naturalmente, que junto comigo vive cada momento desses de intensas saudades, dor e lembranças alegres (e triste, por quando você se adoentou e não resistiu à uma doença terrível que não sabíamos estar em seu corpo).
Nunca vamos lhe esquecer e o amor que sentimos não diminui. E isso é que nos dá força, junto com o orgulho que sentimos de se irmão. O amor nos dá força, e temos certeza que será por esse caminho, não do ódio que reconstruiremos essa nossa sociedade. Nos inspiraremos em você, e no Iago, para seguirmos adiante em nossas vidas, honestamente e combatendo as injustiças como pudermos.
Até mais minha querida, beijos, muitos beijos distribuímos no dia de hoje e sempre, por suas imagens que estão espalhadas por nosso casa, em suas lembranças, nas músicas que ouvimos... Ah, aquela música que eu cantava pra você, com minha voz afônica e disritmada, “Você é linda”, uma bela canção do Caetano Veloso que foi cantada à capela em seu velório, sempre me faz lembrar de ti, e às vezes me leva às lágrimas quando a escuto.
Para o todo e sempre, porquanto formos vivos, você estará presente em nossas vidas, em nossas memórias, em nossos corações. As saudades fazem parte do nosso cotidiano, porque “saudade é o amor que fica”.
Beijos de seu pai, de sua mãe e de seu irmão.
13 de dezembro de 2019, 12 anos depois que você partiu.


PS: Ontem, dia 12, assistimos a defesa de um Trabalho de Final de Curso (TCC), no curso de Comunicação da PUC, apresentado pela aluna Jássia Muryelle. Foi emocionante ver, uma apresentação e um vídeo que resgata toda uma luta pela superação de um momento que nos tirou parte de nossas vidas. A seguir insiro o link para esse vídeo, que publiquei no meu canal no Youtube.
Acesse, assista e compartilhe.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

O MENINO QUE DESCOBRIU O VENTO – ANÁLISE


Filme nós avaliamos de acordo com nossa visão de mundo, e a partir daquilo que estamos focados em assimilar no trabalho que desenvolvemos, se desejamos utilizar como referência para debate e discussão.
Esse filme, “O menino que descobriu o vento”, a meu ver possibilita fazer diversas discussões. Particularmente irei usá-lo tendo como foco questões estratégicas e de caráter geopolítico, especialmente em Geopolítica das Águas.
A seguir, então, indicarei os pontos que destaco para discussão, e que representa a minha maneira de ver o que  a história do filme pode me dizer.
- Certamente eu não poderia deixar de começar traçando um histórico da realidade da África. Pelo aspecto econômico, como um continente abandonado após ter sido saqueado pelos países europeus, principalmente. Um pífio desenvolvimento em muitos países deixando a população sem alternativas, que não fosse uma produção para sobrevivência. Isso aliado a governos frágeis, corruptos, submissos aos colonizadores e incapazes de oferecer alternativas que pudessem tornar suas economias mais fortes. Se a colonização nos países africanos foi terrível e desumana, a descolonização foi perversa. As potencias europeias, em crise e endividadas no pós-guerra, abandonaram suas colônias ao sabor das diferenças internas, acentuadas por eles próprios no processo de dominação, fazendo com que as guerras tribais e étnicas se tornassem frequentes. Quando não chegaram a um estágio de extrema divisão, com guerras civis e lutas por libertação do jugo opressor, daqueles países que insistiam em manter o domínio colonial, mesmo em meio à crise. O palco dessa história é o Malaui, ou República do Malawi, país que situa-se na parte oriental da África e faz fronteira com o Moçambique. Neste mês de março esses países foram vitimados por um violento tornado, que mais uma vez trouxe caos e desespero para as suas populações, com destruições terríveis, causadas principalmente por inundações e deixando cerca de mil mortos.
- Essa realidade, de uma pobreza cruel e de absoluta ausência do Estado em diversas regiões, levou naturalmente a população, em seu ímpeto por sobreviver, a utilizar métodos tradicionais que pecavam por não perceber a necessidade de evoluírem em técnicas que garantissem manter um nível de produção que lhes satisfizessem, mas que não destruísse o ambiente em que eles viviam. 
- Sem condições econômicas suficientes para atender uma comunidade que crescia, e tendo que assistir aos seus filhos saírem em busca de oportunidades em outros lugares, as pessoas se submetem a uma postura equivocada do governo que vê suas chances no desmatamento para a venda da madeira. Isso gera um efeito perverso, na medida em que as terras que produziam os alimentos ficam sujeitas às intensas chuvas. Sem proteção florestal as inundações destroem as colheitas, e, para piorar, esse desmatamento provoca um desequilíbrio ambiental que se reflete no regime de chuvas. Enchentes em um ano pela falta de proteção florestal e seca nos anos seguintes, tornando cada vez mais impossível produzir pelos métodos tradicionais, levando a uma forte crise na comunidade e a um enfrentamento com os poderes governamentais, também incapazes de dar resposta aos problemas. Em muito criado por suas próprias políticas de incentivo ao desmatamento.
- Em meio a tudo isso o que se destaca com muita força no filme é o papel do conhecimento. Esse é o diferencial que irá propiciar uma redenção à comunidade, mas não sem muito sofrimento, como decorrência do apego do pai de William aos métodos tradicionais e às crenças, muito forte, de seus antepassados.
- A escola garantiu ao jovem William despertar sua curiosidade e o desejo de aprender se somou a isso. Importante enfatizar o confronto entre o novo que surge sempre, a partir da busca do conhecimento e do que pode apontar para melhorias numa sociedade, e o velho que insiste em permanecer com métodos tradicionais, muitas vezes pelo medo de apostar em algo diferente. Ou, o que prevalece em algumas sociedades, principalmente na África e na Ásia, o temor que persiste entre os mais velhos, em verem seus conhecimentos tradicionais serem superados pelo que os jovens podem apresentar. Em alguns casos isso está ligado a preceitos religiosos, exatamente por isso de caráter conservadores. Já que rejeitam algumas mudanças que possam impactar esses valores.
- Mas há também o aspecto individual. A resiliência. Essa é uma característica que está presente em algumas pessoas, independente da classe social. Claro que na condição de William, a luta para que essa resiliência se mantenha firme até atingir o objetivo que ele deseja, é mais difícil. Em função da pobreza que o cerca e dos desafios imensos para poder continuar na escola. Essa é uma característica presente no William que a irmã dele não adquiriu. O que faz com que, ao final, ele tenha chegado a uma situação de ganhar prêmios e frequentar universidades na África do Sul e nos EUA.
- Por fim, o elemento central para mim, em meio a tantas dessas questões possíveis de serem discutidas. A necessidade da água para a garantia de sobrevivência de uma comunidade e de como ela se torna essencial também para manter uma economia suficiente para que as pessoas possam sobreviver, mesmo que por mera subsistência. A água é essencial. Ao mesmo tempo o uso de energias alternativas, que poderiam ser mais utilizadas pelos governos para melhorarem as condições de vida das comunidades mais pobres. A tecnologia eólica, do aproveitamento do vento, neste caso, demonstra ser uma saída não somente para geração de energia, mas para criar condições de buscar água em lençóis freáticos e possibilitar que por meio da irrigação as comunidades possam produzir alimentos para suas sobrevivências e para comercializarem no mercado, a fim de melhorarem suas condições de vida. Isso pode evitar o deslocamento de populações, já que a escassez hídrica é uma das principais razões para o imenso fluxo migratório que atinge principalmente a África.
- E, para além dessas questões, existem outros aspectos que tem relevância, e que não são  de menor importância. A ausência do Estado em todas as circunstâncias, mas o mais grave é ver uma escola em uma comunidade paupérrima sem ser gratuita, com os pais tendo que pagar para seus filhos estudarem em meio a uma condição de absoluta dificuldade. 
Penso que esse filme, cuja história se passa no começo deste século, nos dá muitas possibilidades de discutir temas que são candentes nos dias de hoje e absolutamente necessários compreendê-los para que tenhamos a compreensão das desigualdades que afetam os diversos países e continentes.
Na parte técnica, a direção do filme e o desempenho dos atores é algo que eu também destacaria. Suas atuações transmitem um sentimento de revolta e frustração diante de uma realidade tão sofrida e tão sombria. E nos emociona ao ver o resultado como consequência da resiliência e na certeza que pode sim, haver soluções para todas as situações, mesmo as que se apresentam como desesperadoras. O conhecimento é a ferramenta para as transformações sociais, mas o papel do Estado é imprescindível.

Ficha Técnica do filme (Disponível no Netflix):
Título no Brasil - O Menino Que Descobriu o Vento
Título original - The Boy Who Harnessed the Wind (2019)
Gênero(s) - Drama Biografia
Roteirista: Chiwetel Ejiofor

MIRAMOS O FUTURO, MAS O TEMPO NOS LEVOU AO PASSADO


De olhos abertos vejo a vida que flui. Observo a paisagem, as pessoas que passam, que vão, que seguem em alguma direção. Elas desaparecem do meu olhar, mas seguem suas vidas adiante. E com seus olhares veem o que não vejo mais. Minha visão tem limites, só mesmo a imaginação seguirá elaborando outras visões, do que já está distante do meu olhar. Mas são reais. Tão reais quanto eu queira acreditar.
Fecho os olhos e vejo o passado. Observo cada momento vivido tempos atrás por meus olhares atentos... ou nem tanto. Tantas coisas olhei que não observei. Passaram. Mas passaram também as que vi, e vivi. Algumas tão intensamente, e fatídicas, que mesmo de olhos abertos, embora passadas, não escapam da minha memória. Minha filha. Sua morte, nossa dor. Essa dor que é passado e é presente. Que confunde nosso tempo pretérito. De um futuro que restou no passado.
Como é possível pensar o futuro? De olhos abertos, com a vista de um presente torpe, embriagado, dominado pela estupidez humana? Tentando entender o passado e como os fatos vividos distorceram nossa realidade, nublaram nossos caminhos e nos trouxeram para um tempo em que nos tornamos cegos sem sê-los? Já não mais acreditamos no que vemos e no que sentimos. Mas no que desejamos ser... e ter. E, principalmente, no que queremos ver, seletivamente. Perdemos nossa visão e passamos a confundir a realidade com a fantasia. Enterramos o passado, mas ele ressurgiu perversamente enquanto mirávamos o futuro.
Penso que o futuro nunca existirá. É uma construção hipotética. Depende até que estejamos vivos, para a possibilidade de sua realização. Mas ele nunca se realizará efetivamente. Quando acontecer, se acontecer, será presente, e a sua construção terá sido passado. Com olhos bem abertos, ou fechados.
Então o que temos é o presente, que passa, e flui. E o passado a nos ensinar como aconteceu o que se foi. Se fecharmos os olhos para o presente e esquecermos o passado, caminharemos a passos largos para um abismo sem fim. Nesse percurso suicida, a aceleração dependerá do grau de estupidez que atingirmos.
Já alcançamos uma escala limite em graus Fahrenheit.
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* LEIA TAMBÉM:
AS LIÇÕES DO PASSADO, AS INCERTEZAS DO PRESENTE, AS ILUSÕES DO FUTURO

domingo, 1 de dezembro de 2019

A EXPERIÊNCIA DE UM SERTANEJO NORDESTINO DA CAATINGA ATÉ O CERRADO GOIANO – E A CAÇA AO PEQUI

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Eu cheguei em Goiás na primeira metade da década de 1970[1]. Para ser mais exato, em 1974. Vim do recôncavo baiano, região enfincada entre o litoral e o sertão. Morava na cidade de Serrinha, famosa por ter uma “água milagrosa”, até cantada em música: “água de Serrinha, milagrosa, muita gente tem a prova...”.[2] Por ali se esparramava muito sisal, onde se produzia corda, muita corda. E se perdia braços, nas máquinas de desfiar o sisal.
Mas minhas lembranças que desejo juntar aqui na transição para o Cerrado, vem é do sertão mais profundo. Perto de onde se convencionou chamar “Raso da Catarina”. Quando eu saí da Bahia tinha 14 anos de idade, e por um tempo morei em Jeremoabo, cidade que faz parte da região que leva esse nome, bem no meio da Caatinga, próximo a Sergipe e Paulo Afonso, onde se situa uma enorme cachoeira e uma enorme represa para geração de energia elétrica. Uma das mais antigas da Bahia.
Passei bons momentos de minha infância por ali. Por certa vez fui por uma necessidade. Minha madrinha, Estelita Montalvão, irmã de minha mãe vivia ali, sozinha. Era uma pessoa que se tornou por um tempo uma segunda mãe. E ela me tinha como um filho, já que nunca tivera um. Eu tinha um carinho e um amor especial por ela. Uma outra tia ficara com nossa família ainda na cidade de Alagoinhas, onde nasci. Era o ano em que nascera meu irmão mais novo, o fatídico ano de 1964. Meu pai era vereador naquela cidade. Se elegeu por cinco mandatos. No último não chegou até o final, foi preso, levado para Salvador, onde ficou por 30 dias, no Forte de Monteserrat. Ele era do PTB, então partido do presidente João Goulart. Minha mãe se recuperava do resguardo pelo nascimento de meu irmão quando os brucutus chegaram lá em casa, armados de fuzis, e sem cerimônia levaram meu pai preso deixando minha mãe no desespero. Eu não vi essas cenas, estava, portanto, em Jeremoabo vivendo com minha tia, exatamente para aliviar a barra para minha mãe.
Ali, numa cidadezinha pacata, sem muita coisa por fazer, vivi bons momentos. E estabeleci uma forte ligação com a caatinga, para onde por muitas vezes saí para caçar com meu pai em períodos de férias. Adentrava aquela vegetação cortante em busca de codorna, nhambu e rolinhas. Adorava fazer farofa desses bichinhos. Não os matávamos por esporte ou diversão.
Andávamos horas e horas por dentro da caatinga, até chegar no rio Vaza Barris. Este tem uma história no meio de outra história. O Vaza Barris nasce próximo a Canudos, lugar que ficou marcado na história pela resistência dos jagunços (O termo "jagunço" é dúbio, com o tempo mudou a sua conotação) liderados por Antonio Conselheiro, na famosa guerra contra milhares de soldados derrotados por três vezes. Até ser completamente dizimada. O açude de Cocorobó, que soterrou parte da história de Canudos, é formado pelas águas do Vaza Barris. Mas nos limites baiano atualmente o rio é intermitente.
De lá o Vaza Barris corta o sertão em direção a Sergipe quando se torna perene, e vai desembocar no Oceano Atlântico, formando no seu estuário na praia de Mosqueiro, em Aracaju.
Foi nesses rincões da caatinga que vivi. Permeados de histórias da jagunçada de Antonio Conselheiro (foi em Jeremoabo a primeira refrega, com os poucos soldados enviados para lá, logo no começo do conflito de Canudos, sendo surpreendidos na delegacia da cidade) de cangaceiros (Lampião visitara várias vezes Jeremoabo, e ouvi muitas histórias do medo imposto por Virgulino e sua turma) e também foi rota da Coluna Prestes.
Carrego comigo cada detalhe daquele lugar, jamais perco esse vínculo e por muitas vezes retornei ali e ainda espero ir mais vezes. A pobreza, a dureza e secura do solo, as árvores espinhentas e pouco frondosas, a raridade dos riachos e rios num ambiente de seca quase permanente, me atraem pela paixão e pela atração do pertencimento. Aquele era o meu lugar. E por isso, por tanto tempo fui apaixonado pela Guerra de Canudos, quase sendo esse o tema do meu mestrado.
Tenho várias edições do livro de Euclides da Cunha, "Os Sertões". Na primeira leitura o sacrifício foi passar das cem primeiras páginas. Mas por ele aprendi a compreender a importância da geologia, embora tenha adquirido um olhar crítico e estratégico e não meramente descritivo. Já li Os Sertões três vezes, e ainda lerei mais.
Nosso destino na Bahia, no entanto, foi encerrado, pelo menos para moradia permanente, com a transferência de meu pai, funcionário do antigo DNER, hoje DNIT, para Morrinhos. Pois é, embora nas cidades, nosso destino nos tirou de uma "Serra" e nos levou para um "Morro". Da caatinga e do recôncavo baiano, para o cerrado goiano.
Um ambiente totalmente diferente. Que nos assustava quando soubemos da mudança que teríamos. Nossos amigos zoavam dizendo que íamos nos ver com os índios. Era essa a imagem que se tinha do “assustadoramente” distante Goiás.
Claro que o que vimos foi completamente diferente. Apesar de características distantes daquela de onde viemos, no falar, no comer, no jeito de se comportar e se vestir. Mas nossa capacidade adaptativa é enorme. Ainda mais quando estamos entrando na adolescência. Foi fácil nos adaptarmos.
Vista panorâmica de Serrinha-BA
Mas as condições econômicas que vivíamos eram muito difíceis. O salário que meu pai ganhava era irrisório, e a vida dele era rolar dívidas. Comprava pacotes de cigarro no armazém da cooperativa dos servidores do DNER, para vender em outros armazéns e ter dinheiro para fazer compras de verduras na feira. Carne, só de frango, criados em casa, e de pombos. Sim, naquela época comíamos pombos, também criados no quintal. E, de vez em quando um tatu, feito ensopado por minha mãe.
Não nos restava outra saída que não nos virarmos para termos um pouco de dinheiro, para nos divertirmos e aproveitar a adolescência. Mas, fazer o quê? Capinei roça de melancia, trabalhei de peão numa usina de fabricar massa asfáltica, tudo ao lado do bairro onde morávamos, em residências construídas para os funcionários do DNER.
E, na ausência dessas atividades, nos embrenhávamos no cerrado. Foi a partir daí que tive contato direto com a flora e a fauna do cerrado, e o conheci na prática, pela necessidade.
Saíamos bem cedo, por volta de cinco horas, ainda escuro, e caminhávamos por quilômetros dentro do cerrado, do lado oposto da BR-153. O bairro onde morávamos era na margem da rodovia. Cada um de nós, íamos em grupo de amigos, às vezes três, mas chegávamos a ir em turma de cinco ou seis, levava dois baldes nas mãos. Os mais fortes ainda carregavam sacolas. Íamos “Caçar Pequi”. Sim, era assim que dizíamos. Ainda cerrado nativo, quanto mais andávamos mais nos deparávamos com imensos pés de pequis. Retornávamos próximo ao meio-dia carregados desse bendito fruto, responsável por nossos divertimentos de finais de semana.
Quando chegávamos nos apressávamos para descascar os frutos (às vezes eram descascados embaixo do próprio pequizeiro). Os dois baldes acabavam virando somente um. E lá íamos para a beira da BR, com um prato, que era como vendíamos os pequis. Não demorava muito e fileira de carros estacionavam perigosamente no encostamento da rodovia, ainda não duplicada. Em menos de duas horas nós conseguíamos vender todos os pequis catados. Era também um divertimento, e não nos envergonhávamos, muito pelo contrário.
Isso durou muito tempo, o pequi tornou-se um fruto bendito, que nos possibilitava aproveitar os fins de semanas, difícil de ser caso dependêssemos de alguma ajuda de nossos pais. Eram tempos difíceis, muito difíceis.
Mas ficou um trauma. Essa também foi a razão por eu nunca ter gostado de comer pequi. Creio que o cheiro forte, por diversas vezes tendo que manuseá-lo, repetidamente, me fez enjoar. Nunca gostei de comer pequi, mas o pequi será inesquecível para mim.
Em 1978 vim para Goiânia, era preciso encontrar um emprego, tão logo concluí o curso colegial. Foi difícil encontrar alguma coisa. Trabalhei de peão de obra, saindo na segunda-feira cedo e dormindo na obra até sábado, como apontador, depois auxiliar de almoxarifado e por fim almoxarife. Até que em 1980, consegui passar no vestibular, depois de me preparar pelos fascículos do curso abril vestibular. Tentei jornalismo, duas vezes, e por fim história.
Vim estudar então na UFG, no Instituto de Ciências Humanas e Letras, bem ao lado da placa que homenageia August de Saint-Hilaire, homenageado neste evento depois de 200 anos de sua passagem pelo Brasil. Desconhecido para mim até então. Mas o bosque, famoso em minha época, mas degradado depois e mal-visto, era conhecido, de forma divertida, como uma área de pouso da “esquadrilha da fumaça”. Os entendedores entenderão. Naquela época era um lugar recôndito para quem queria “relaxar”, e eram poucos os espaços possíveis, diferentes de hoje.
A minha curiosidade me levou a procurar saber quem tinha sido aquele francês que era homenageado com um bosque no recém construído campus da Universidade Federal de Goiás.
E foi dessa forma que conheci um pouco da história de Saint-Hilaire. Não viajei tão longe quanto ele, mas me identifiquei com o seu naturalismo pelo que que já sentira em minha vida.
Hoje sei da importância de viajar, e sempre falo isso para meus alunos e alunas. Viagem, as experiências de grandes geógrafos, biólogos e historiadores (Humboldt, Reclus, Vidal de La Blache... Saint-Hilaire) assim como Charles Darwin, e suas importantes descobertas, se deram pelas viagens, pelos conhecimentos empíricos de realidades complexas, diferentes e admiráveis. Além do mais, vajar nos ajuda a eliminar boa parte de nossos preconceitos.
Era esse o meu relato, e a forma que encontrei de me aproximar do que se propôs a fazer a organização do evento que homenageia esse importante naturalista, botânico, mas sem sombra de dúvidas, pelos seus relatos e observações, também geógrafo e historiador.



Mesa redonda: Romualdo Pessoa,
Eguimar Chaveiro, Lena Castelo Branco
Coord: Profª Fabrizia Gioppo
Foto: Antenor Pinheiro
[1] Esse texto foi elaborado para o evento “Encontro com Saint-Hilaire: 200 anos após sua visita à província de Goiaz”, na mesa redonda: “Solidões” do sertão – estigmas, imaginários e memórias de Goiás. O evento foi organizado pelo grupo de trabalho ligado às linhas de pesquisas da Profª Maria Geralda e coordenado pelo Laboter (Laboratório de Estudos e Pesquisas Territoriais), do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA-UFG).