segunda-feira, 27 de julho de 2020

AINDA SOBRE A DIALÉTICA E A RETÓRICA DO “NOVO NORMAL”

Recentemente pude realizar uma web-conferência sobre dialética em meu canal do You Tube (https://www.youtube.com/watch?v=NX_PAdZo9Ow&t=5187s), com a presença do músico e filósofo Laércio Correntina. Nosso mote partiu de uma das frases da música de Nelson Mota e Lulu Santos, “Nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia”. Extraída da bela música “Como uma onda”, apelidada por mim de “melô da dialética”.
A discussão foi ótima, demonstrando a partir da exposição de Laércio Correntina, a necessidade de conhecermos o significado da dialética, e como por meio desse conhecimento nós podemos ter uma compreensão maior da realidade. Naturalmente, quanto mais nos aprofundarmos no estudo da dialética, mais dúvidas e questionamentos surgirão em nossas cabeças. Por que essa é a essência desse método do conhecimento do mundo real.
A base do conhecimento adquirido pela dialética é a contradição. É por meio da contradição, no embate entre a ideia exposta inicialmente (tese) e da sua negação (antítese), que se pode chegar a uma nova formulação (síntese). Por isso, esses são os elementos principais do método dialético: a contradição, o choque dos contrários e a negação da negação.
Por esses princípios baseados na dialética não há absolutamente nada que não carregue em si a sua própria contradição. Ou que, uma vida sempre traz juntamente consigo os germes de sua própria destruição. É o embate entre a vida e a morte, entre o velho e o novo, entre o ser e o não ser... em uma persistente e eterna mudança. Pelo viés da dialética nada está estático, tudo está em permanente movimento. Por isso a mudança, o movimento, é sempre uma constante. O que não nos permite dizer que “nada muda”, como popularmente ouvimos sempre. Ou, e neste ponto quero polemizar mais adiante, que ao sairmos dessa pandemia que nos aflige iremos lidar com “um novo normal”. Ao afirmar isso negamos a própria maneira como se dá a vida, em nós seres humanos, na natureza em sua plenitude, e na sociedade. O que se chama de “normal” é um olhar estático de uma realidade que está sempre em movimento.
Aí reside a diferença com a lógica formal. Nesta se compreende que as coisas existem cada uma em sua individualidade, de forma que as relações se dão por meio de movimentos externos, e os acontecimentos são na verdade meras ações que obedecem a um princípio lógico em que se exclui a contradição, e que leva a busca do conhecimento por meio da indução e dedução.
A lógica dialética nos conduz à necessidade do entendimento do mundo como num processo contínuo de interligação entre as coisas. Nada se explica isoladamente, e não há acaso, existem causas que se sucedem num movimento cíclico, e isso acontece porque cada coisa carrega em si elementos que a levarão ao envelhecimento, e no choque entre o velho e o novo as mudanças advirão inevitavelmente. Tanto internamente, quanto externamente. Em um processo em que ao mesmo tempo em que as coisas se afirmam, contém em si os elementos de sua própria negação.
Isso pode parecer um olhar pessimista da realidade. Mas é simplesmente o estudo das evidências demonstradas no próprio ciclo da vida, em que se sucedem o nascimento, a infância, a adolescência, o amadurecimento, envelhecimento e morte. Isso no caso dos seres humanos. Mas o ciclo da vida acompanha todos os seres vivos. E se externamente nos deparamos com situações graves que nos levam à morte, às vezes de maneira repentina, fugindo desse ciclo natural, internamente isso se dá de forma incessante. Carregamos em cada um de nós, seres vivos, os germes de nossa própria destruição. Ou seja, existem dentro de nós um número inquantificável de células. São trilhões que nascem por dia, e um tanto aproximado que morrem. Essa relação vai se invertendo à medida em que envelhecemos e que vamos perdemos nossas defesas imunológicas, os anticorpos. Pouco a pouco esses anticorpos vão perdendo a luta que nos imuniza, e inevitavelmente envelhecemos e morremos.
Ao longo do tempo os seres humanos foram criando narrativas com base em crenças que visam justificar algo que não existe, a nossa imortalidade, para além das nossas condições terrenas. De acordo com cada cultura, em cada canto do mundo, foram surgindo seitas, mitos, divindades, religiões... com o intuito de amenizar nossas angústias em torno de algo para o qual nunca estamos preparado: a morte.
Essas angústias, em muitos casos transformadas em medos, surgiram de tentativas de amenizar nossas dúvidas quanto ao limite da vida, ou a inevitabilidade da morte, em buscas de respostas que visavam aliviar esses anseios. Mas essas tensões naturais em nossas vidas foram sendo aproveitadas por oportunistas, charlatões, que conduziram as pessoas pelo medo a aventuras terríveis, e perversões feitas em nome dessas divindades. Esse comportamento provocou genocídios, suicídios coletivos e diversas tragédias, consequências da manipulação decorrente da maneira como as pessoas lidam com a realidade.
Ao não compreender a dimensão da vida, em sua essência, e na sua materialidade, entregam-se às ilusões e se veem presas em crenças fundamentalistas que se escoram nos temores da morte e na esperança da vida para além dela. Nesses casos, perde-se a sensibilidade com o outro, e abdica-se da própria maneira de ser e se viver em sociedade. Os que agem assim fecham-se em redomas onde as verdades são afirmação dogmáticas de ideias, de crenças elaboradas no intuito de manipulação e de construção de poderes. A cegueira diante dessas visões fechadas levaram a esses resultados terríveis, quase sempre explicados em nome de suas divindades.
Ora, quando saímos do campo das questões filosóficas, em relação ao entendimento da vida e como lidamos com as realidades concretas, e resolvemos aplicar o método dialético para compreendermos como as sociedades surgem, se transformam e entram em declínio, veremos que esse método dialético nos permite entender que o sistema no qual vivemos não é eterno, porque nada é eterno, tudo tem começo, meio e fim.
Foi assim que Karl Marx e Friedrich Engels buscaram entender o processo de transformação social, desde os tempos primitivos. Com a aplicação do método dialético no estudo das sociedades, e com uma visão sobre a materialidade da vida, transposta para a história das sociedades humanas, eles formaram um entendimento de que as contradições são os elementos fundamentais que levam às transformações sociais. E que cada sistema carrega dentro de si, por meio dessas contradições, os elementos de sua própria destruição.
A evolução de cada sociedade, é o momento da afirmação de um modo de produção. Com o passar do tempo, o choque entre os contrários, entendendo-se como existente classes sociais antagônicas que entram em contradições, esse sistema entra em declínio e caminha para sua destruição, sendo inevitavelmente substituído por outra formação econômica e social, com outros elementos que lhes darão sustentação.
Ao analisarem assim eles compreenderam que desde as sociedades primitivas, todas as sociedades que surgiram fundaram-se numa luta de classes, entre senhores de escravos e escravos; nobres e servos; burgueses e proletários. E, por assim ser, o capitalismo também chegará ao seu limite, na medida da intensificação de suas crises que acentuarão as suas contradições. Por isso eles propuseram a construção de um sistema onde as classes sociais não mais existissem, onde a estrutura social se baseasse na organização coletiva, na cooperação, e na distribuição da produção com base nas condições individuais e na capacidade de trabalho de cada um.
Mas isso não significa o fim das contradições. Mas tão somente a redução de condições sociais degradantes, e desigualdades vergonhosas entre quem possui o controle dos meios de produção e os que só possuem suas forças de trabalho. Jamais, enquanto houver vida, as contradições desaparecerão, seja na natureza ou na sociedade. Nesses dois casos o que sempre existirá, ao mesmo tempo, é um equilíbrio e um desequilíbrio, que decorre na existência de diferenças naturais, no caso da natureza, e sociais, quando falamos de sociedades humanas. Quando essas diferenças, ou contradições, atingem um determinado limite, forçam necessárias mudanças, o que torna esse processo uma das chamadas leis da dialética: da transformação quantitativa em qualitativa.
Portanto, as mudanças acontecem o tempo inteiro. Muito embora a rotina de nossas vidas deixe a percepção de que “as coisas não mudam”. O que ocorre é que nossas vidas, individualmente, são um sopro na comparação com o tempo de existência das sociedades e civilizações humanas, e menos ainda, quando nos referimos ao tempo geológico, de existência da terra. Por isso muitos, que não possuem a percepção dialética da realidade, imaginam que as coisas não mudam. Ou, em outro extremo, e também absolutamente equivocado, de que a história se repete. Não pode existir repetição na história, por que essa se conta no tempo, e este é irreversível. O que passou jamais pode vir a acontecer novamente.
Por tudo isso a discussão sobre se teremos um “novo normal” é puramente estimulada por uma retórica que advém da maneira como se dissemina, dentro de uma lógica formal, a compreensão que as coisas só mudam como decorrência de um fato espetacular, ou um fenômeno da natureza, ou de guerras. Mas é claro que haverá mudanças. Sim, poderá ser algo novo. Mas a dialética explica exatamente isso: o novo sempre vem, como canta o poeta Belchior.
A questão é a ausência da percepção de que as coisas estão mudando permanentemente. Porque a maneira de ver e sentir o que acontece no mundo, e em suas vidas, da maioria das pessoas, segue essa lógica formal. Evidentemente, dentro das características que marcam o sistema capitalista, após cada catástrofe, ou crises profundas, há um processo de reacomodação. O sistema se retroalimenta dessas crises e, seja por necessidade ou por conveniência dos interesses dos que controlam a riqueza e os meios de produção, as mudanças, principalmente tecnológicas, irão acontecer e o que se convencionou chamar de “novo normal” advém, na verdade, das necessárias transformações no âmbito do próprio sistema. Isso é bem descrito no livro de Naomi Klein, “A Doutrina do Choque – A ascensão do capitalismo de desastre”.
Em muitos casos, como o que vivemos atualmente, já havia uma crise sistêmica, que se estende desde o final do século XX e se acentuou a partir de 2001 e explodiu com força em 2008, quando o sistema financeiro quase quebrou, o que causaria uma forte depressão mundial. De lá para cá, a recessão econômica atingiu diversos países, variando de continente para continente, mas não havia se recuperado quando a OMS declarou situação de pandemia. Como a quarentena forçada, ou o distanciamento físico/social, era a melhor maneira de se proteger do vírus “sars cov-2”, isso paralisou a maioria das cadeias produtivas, causando uma estagnação da economia. O quadro, que era de recessão, pode chegar a tornar-se depressivo economicamente, tornando as mudanças absolutamente necessárias.
Mas isso não significa modificar as condições pelas quais o sistema capitalista organiza sua superestrutura, ou seus valores morais, culturais, jurídicos e o estilo de vida que impõe às pessoas hábitos consumistas. Pelo menos não de forma radical. No entanto, seguramente muitas mudanças ocorrerão, e mais do que isso, já estão ocorrendo, nesses poucos meses de um tempo absolutamente estranho nas vidas dos que vivem essa época.
O que vai acontecer, a partir do que virá, é impossível indicar com precisão. Os prováveis cenários, sob diversos aspectos, sociais, econômicos ou geopolíticos são de difíceis previsões. No entanto as mudanças, de fato, são inevitáveis. Só que o chamado “novo normal” não será nada mais do que uma adaptação sistêmica, capitalista, principalmente com o advento de novas tecnologias e funcionalidades, mas com as mesmas desigualdades sociais inerentes a esse modelo de formação econômica. São mudanças que se encaixarão no estilo consumista frio e desigual, com novas funções, empregos destruídos, elites perversas e ampliação da pobreza. Também não será o velho normal, mas o mesmo sistema injusto, fragmentado e segregacionista.
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(*) Para acessar o vídeo da web-conferência sobre Dialética acesse:
"NADA DO QUE FOI SERÁ, DE NOVO DO JEITO QUE JÁ FOI UM DIA" - MÚSICA E FILOSOFIA NA PANDEMIA -  https://www.youtube.com/watch?v=NX_PAdZo9Ow&t=5187s





quarta-feira, 22 de julho de 2020

A ESTRATÉGIA DA DESTRUIÇÃO E OS CAVALEIROS DO APOCALIPSE

Nos últimos anos, ou melhor nas últimas décadas, as plataformas das redes sociais (You Tube, Facebook, Instagram, twitter...) foram sendo instrumentalizadas pelos segmentos de extrema-direita, e por meio de muitos canais que eles criaram, passaram a atingir um público muito diversificado. E foi dessa forma que conseguiram romper um bloqueio que a mídia tradicional cria. Ela exclui a esquerda e a extrema-direita, e claro, coloca somente aquelas informações que estão alinhadas com a sua linha editorial.
Não vamos, contudo nos esquecer, que a grande mídia tem uma grande responsabilidade na destruição da política, ao causar achaque à democracia, e potencializar uma visão apocalítica da realidade absolutamente manipulada e desvirtuada, impulsionando manifestações que espalharam o ódio e atacaram o governo de uma presidenta legitimamente eleita e alimentaram uma perseguição e um espetáculo grotesco no Congresso Nacional, no processo de impeachment que sabe-se claramente hoje ter se tratado de um golpe institucional. Naquele momento abriu-se a “caixa de Pandora”, libertando todos os males enrustidos nos subterrâneos do parlamento e da sociedade brasileira.
Feito essa observação necessária, já que nosso foco aqui são as redes sociais, e plataformas de vídeos, voltamos ao eixo da nossa avaliação. A extrema-direita descobriu, antes que a esquerda, que por esses canais, por essas plataformas, via redes sociais, havia uma possibilidade enorme de atingir um público que eles chamam de “maioria silenciosa”.
Pois bem, essas plataformas funcionam por meio de algoritmos, que destacam determinada abordagem, por meio de expressões (palavras) ou fatos, que tenham relação com aquilo que uma parcela muito grande da sociedade termina sendo atraída: violência, discurso de ódio, homofobia, racismo e diversos outros temas que esses algoritmos definem no perfil de cada um, que eles possuem armazenados, com os nossos dados que autorizamos as suas visibilizações e ficam em controle dessas empresas, e selecionadas por meio de inteligências artificiais. Isso é potencializado com esses algoritmos, com essas expressões, e atingem milhões de pessoas, escolhidas para terem acesso a essas informações.
Esses segmentos da extrema-direita compreenderam o papel que isso pode desempenhar, e a capacidade que esses canais têm de atingir cada vez um número maior de pessoas. Inicialmente eles começam falando de coisas fúteis, corriqueiras, e assim atraíam essas pessoas, passando depois para uma discussão política, que na verdade transformava-se em ataques à política e disseminava sentimentos antipolítica. Essas questões, envolvendo principalmente o You Tube, foram bem demonstradas em um dos episódios do documentário “The Weekly”, na temporada 1, episódio 9, “Toca do Coelho”.[1]
Portanto, todo esse processo, que advêm do começo desse século, foi pensado estrategicamente. O que quero dizer é o que o “Brexit” não foi acidente, o Donald Trump não foi acidente, assim como também Jair Bolsonaro. Houve, e há, estratégias por trás da maneira como muitos passaram a seguir aquilo que para uma grande parte da sociedade são discursos estúpidos, coisas ditas de forma odiosas, aberrações, esdrúxulas. Mas porque tantos seguem essas ações, esses atos e esses comportamentos, considerados estúpidos por outros tantos? Exatamente porque, por meio desses estudos que tiveram acesso, eles passaram a utilizar essas plataformas, e esses algoritmos seguindo-se expressões definidas como do gosto de inúmeros perfis, eles passaram a ser ouvidos por milhões de pessoas, que por suas próprias condições estavam propensas a acreditar. Sendo que muitas das informações que eles levaram são falsas, essas ondas de fake news. Mas, pelos perfis atingidos isso não fazia diferença, visto que eram, e são pessoas, dispostas a acreditarem naquilo que elas desejam que seja “a verdade”. O que desde há alguns anos se convencionou chamar de Pós-Verdade.
Eu gostaria de sugerir mais dois documentários, que estão disponíveis na Netflix. O primeiro é “Privacidade Hackeada”[2], produzido com base nas investigações sobre a Cambridge Analytica, uma empresa que se tornou um escândalo depois das denúncias de que ela roubara milhões de dados do Facebook (há suspeitas sobre a conivência deste), e esses dados foram utilizados de diversas maneiras, tanto na campanha do “Brexit” na Inglaterra, quanto na campanha de Donald Trump, nos EUA. Isso levou a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no parlamento britânico, no ano de 2018.
Nesse mesmo documentário, é dito uma questão importante, relevante, que as pessoas tem que ter muita clareza disso. Uma ex-diretora da Cambridge Analytica, Brittany Kayser, que foi fundamental nas denúncias apresentadas, disse o seguinte: “As empresas mais ricas são as de tecnologia. Google, Facebook, Amazon, Tesla... No ano passado dados superaram o petróleo em valor. Dados são os recursos mais valorizados da terra”
Ainda nesse documentário, outra frase que destacamos, foi dita por Christopher Wylie, Cientista de Dados, ao se referir  a Steve Bannon (vice-presidente da Cambridge Analytica, e criador do site de notícias Breitbart), que seria a doutrina utilizada por essas empresas: “Se você quer mudar fundamentalmente a sociedade, primeiro tem de destruí-la. E somente depois de destruí-la é que pode remodelar os pedaços segundo sua visão de uma nova sociedade”.
Isso é, portanto, uma estratégia do caos, que foi utilizada no “Brexit”, na eleição do Trump, e tem sido também utilizada aqui no Brasil desde antes da campanha de Bolsonaro. E a forma como é utilizada para atingir esses objetivo é exatamente por meio da desconstrução da política, da desmoralização da democracia, e da tentativa de destruição das instituições que compõem o Estado. O objetivo é destruir instituições que permitem um mínimo de garantias democráticas e constitucionais, e afetar a sua credibilidade, atingindo diretamente algumas personalidades, e depois, claro, recompô-las seguindo as linhas ideológicas desejadas.
Então são essas informações, via esses canais, plataformas e aplicativos, mesmo esses que funcionam como divertidos entretenimentos, seja no Facebook, whatsapp, instagram, com a captura de nossos dados, que são utilizados de diversas maneiras, rompendo compromissos de confidencialidade. Por meio de conivência que garantem aos seus proprietários e acionistas lucrarem escandalosamente. E isso tomou uma grande relevância nessas estratégias de obterem acesso a milhões de dados das pessoas, e assim disseminar mentiras, discursos de ódios e destruição de reputações, que fariam Goebbels parecer um discípulo, embora ele seja a origem dessas perversões.
O outro documentário é “Get me Roger Stone”[3]. Assistam esse documentário e vocês verão que as diatribes, os comportamentos tresloucados, as ações que se repetem e que para muitos de nós, normais, parecem maluquices, loucuras, são na verdade atitudes pensadas, dentro de uma estratégia que visa apostar em comportamentos bizarros, mas sabidamente aceito por uma grande parcela da sociedade. Como o que foi mostrado recentemente, agora no último final de semana pelo portal de notícias UOL, quase que um culto, assim foi a manchete, do Bolsonaro à Cloroquina e o deslumbramento de seus seguidores em ato em frente ao Palácio do Planalto. E que pode ser visto assim mesmo, dessa maneira, porque a manifestação foi chamada pelos segmentos conservadores de algumas igrejas, a maioria evangélicos.
Eles têm noção que esse remédio não serve para combater Covid19, serve para outras doenças, e disso eles têm clareza. Claro. Mas porque eles continuam insistindo nisso? Porque a estupidez, e esses comportamentos meio amalucados fazem parte da estratégia que é da desmoralização. É uma estratégia de levar ao caos. Eles são profetas do caos. Nesse documentário, esse personagem, Roger Stone, demonstra, com as suas próprias palavras, que não há importância nenhuma em falar mal dele. Ele repete uma frase corriqueira, que na política se diz muito, “falem mal, mas falem de mim”. E o seu comportamento é o tempo inteiro desafiador, ofensivo e com gestos e atitudes bizarras e com o intuito de atingir o oponente/adversário, ou alguém que ele deseja destruir sua reputação. Porque isso também dá muita visibilidade, e, claro, por meio dessas loucuras que são apresentadas, eles terminam, e isso inclui o Trump e o Bolsonaro, conduzindo as informações que viram manchetes. Por meio dessas loucuras deles, os jornais proliferam essas maluquices. Então eles se mantêm no centro das atenções e conseguem atrair aquele público de seguidores que lhes ouvem e lhes seguem cegamente, e vão ao êxtase com essas posturas que fogem por completo ao padrão da política.
Mas tudo isso foi construído e consolidado por meio da utilização dessas plataformas e desses canais: Facebook, instagram, twitter, you tube... Eles descobriram como podiam fazer isso. O que é necessário agora é que essas plataformas sejam utilizadas não para rebater discursos de ódio, porque seguir por esse caminho é fazer exatamente aquilo que eles desejam. E eles vão nos pautar. Não podemos ir por esse discurso de violência. Por exemplo, de que vão armar o povo. Que armar o povo? O povo não tem dinheiro para comprar armas. Ele deseja armar um séquito de gente maluca, da classe média, que o segue com as mesmas atitudes irresponsáveis e violentas. Ou de milicianos, que foram e são bases de apoio desse grupo que chegou ao Palácio do Planalto, ao alguns governos estaduais e ao parlamento brasileiro.
Não é esse o discurso do ódio que devemos focar. Claro, não podemos esquecer o que eles estão dizendo. Isso tem que ser combatido. Mas nas entrelinhas de questões que são muito mais importantes, por meio do debate político sério e responsável. Eles ascenderam ao poder com a desconstrução da política, com a desmoralização da democracia e das instituições. Nós sabemos para que serve o Estado. É claro que o Estado se organiza para servir a classe dominante. É preciso tomar esse Estado e fazer dele um instrumento para atender às camadas sociais oprimidas. Isso não é fácil, nós assistimos nos últimos anos golpes e ataques à um mínimo de estrutura que se criou para amenizar os problemas sociais.
Mas, há um caminho enorme a se percorrer, até atingir esse objetivo. Até lá, nós vamos ter que ir lidando com essas situações de conviver com governos que oscilam entre a centro-esquerda, a centro-direita e o centro. E vamos precisar de ter canais democráticos para nos comunicar, pois é preciso levar ao povo a importância que é a política, a filosofia, a história, a sociologia, a geografia, que são as ciências humanas, e estão sendo atacadas nessa aberração de guerra cultural que está destruindo a educação e o ensino brasileiro.
Claro que isso se dá porque é por essas ciências que adquirimos a capacidade de pensar, de raciocinar e de ter compreensão política da realidade e de ter uma visão crítica das condições em que nós vivemos. E adquirindo consciência crítica ser possível fazer outro tipo de ação política. Por meio de ações comunitárias, de envolvimento da juventude. Caso contrário essa juventude se perde seja para o tráfico, seja para as milícias, ou para um fundamentalismo reacionário evangélico.
Não desejo generalizar, todas as igrejas têm suas nuances, suas diferenças, e evidentemente existe uma parcela de irresponsáveis que usam os cultos para propagar também essas perversões. Incrivelmente em nome de Deus, em nome de Cristo, o que é uma aberração quando se sabe das origens do cristianismo. Existem muitas pessoas sérias nessas igrejas.  Mas essa juventude está sendo contaminada por esse vírus dessa fé malévola fundamentalista, neopentescostal.
Então é preciso fazer com que essa juventude adquira capacidade crítica. Esses canais aos quais tenho me referido, essas plataformas, são usadas em larga escala pela juventude, e na maioria dos casos para assistir coisas fúteis, diversões. Não podemos criticá-los por isso. Nós também gostamos disso. Muitas vezes a maioria de nós se perde assistindo esses programas, afinal, precisamos nos divertir, nós precisamos também disso. Mas precisamos da política, da boa política. Porque se nós não nos envolvermos na política vamos deixando o poder para esses indivíduos que pregam o ódio, intolerância, perversões, destruição do meio-ambiente, destruição da sociedade, dos valores democráticos, e nos impõem dificuldades para atender as necessidades terríveis, e urgentes, para resolver graves problemas causados pelas desigualdades sociais que estão aí e que vão piorar depois dessa pandemia. E esse governo não fez, e não faz nada para resolver os problemas sociais, muito pelo contrário. Um ano e meio – nós temos mais dois anos e meio desse governo – imobilizado, somente fazendo esses espetáculos horríveis de manifestações odiosas.
Então é por isso, para finalizar, que devemos dar visibilidades aos canais progressistas que existem nas redes sociais, daqueles que desejam trazer o Brasil de volta para uma realidade que não seja a dessas perversões que estão aí. Claro que isso somente não basta. A luta deve se dar em diversas frentes, e principalmente em amplas manifestações de ruas, algo que no momento é impossível, diante das dificuldades causadas pela pandemia, e preservar vida nos impõe um distanciamento social.
Mas nessas condições esses mecanismos estão à disposição, e se não usamos para o bem, eles serão usados, como tem sido para pregarem o mal, as perversões de uma política segregacionista, fascista, perversa e absolutamente nefasta para a sociedade, na medida em que atende as necessidades de uma minoria reacionária, que se aproveitou de brechas no sistema democrático para inserir vírus que corroem as relações sociais, dissemina o ódio e entroniza a violência como condutora da política. O que significa a destruição da política.
“Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse são personagens descritos na terceira visão profética do Apóstolo João no livro bíblico de Revelação ou Apocalipse. Os quatro cavaleiros do apocalipse são respectivamente peste, guerra, fome e morte, que para os cristãos irão acontecer antes do fim de todas as coisas”. Esse é um trecho copiado da Wikipédia, no verbete destacado. Esses personagens, fictícios, se tornam imagináveis quando olhamos para a família que ocupa a sede central do Poder brasileiro. Não porque eles sejam a representação desses cavaleiros, mas porque eles se julgam exatamente isso, e são incensados por uma malta de fiéis alienados que apregoam o “fim dos tempos”, e para isso precisam naturalizar esses elementos que representam, e como na estratégia identificada e citada anteriormente, desejam destruir essa sociedade para reconstruí-la no formato que desenham suas mentes doentias.
Enfim, eu poderia terminar dizendo que estamos combatendo forças malignas, mas o que são, em verdade, se explica quando analisamos o Poder e os interesses que estão por trás dos objetivos para alcançá-los. São na verdade farsantes, fraudes, como todos aqueles que se apresentam como profetas e se deslumbram em serem chamados de mitos. No entanto não podem ser menosprezados, pois sabemos o que fazem e o que querem, e não têm limites éticos e morais para atingir seus objetivos, assim como todos que lhes dão suporte em seus atos irresponsáveis e inconsequentes.
Mas é preciso se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. E aí, poder dizer como na música de Geraldo Vandré, que será “a volta do cipó de aroeira, no lombo de quem mandou dar”. E ao longe, é possível ver a luz da utopia. É preciso ir em frente, em sua direção. Sempre.
(*) ASSISTA NO YOU TUBE: COMO COMBATER OS PROFETAS DO CAOS E A ESTRATÉGIA DA DESTRUIÇÃO DE BOLSONARO E CIA - https://www.youtube.com/watch?v=Ele_LvYiGlc




NOTAS:
[1] The Weekly S01E09: A Toca do Coelho (The Rabbit Hole)  -https://www.youtube.com/watch?v=b3J7r1H4SYo&feature=youtu.be
[2] Privacidade Hackeada - Entenda como a empresa de análise de dados Cambridge Analytica se tornou o símbolo do lado sombrio das redes sociais após a eleição presidencial de 2016 nos EUA - https://www.netflix.com/br/title/80117542
[3] Get Me Roger Stone - Observe a ascensão, queda e renascimento do operador político Roger Stone, um player influente da Equipe de Trump há décadas - https://www.netflix.com/br/title/80114666

quarta-feira, 8 de julho de 2020

ALTRUÍSMO E EMPATIA – O QUE NOS FAZ EGOÍSTAS OU SOLIDÁRIOS

Em recente discurso, o presidente da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom, fez um apelo emocionado e deixou uma indagação que merece toda a reflexão: “Porque é tão difícil para os humanos se unirem?”
Pois bem, esse é o assunto que trago para discussão. Embora essa temática já tivesse sido escolhida bem antes de ler sobre o desabafo do presidente da OMS, no momento em esta organização está sob pressão dos EUA e de outros países governados por políticos de extrema-direita, inclusive o Brasil. E por isso a minha abordagem vai além da análise política.
São nesses tempos de crises que se escancaram comportamentos que podem definir as condições pelas quais as pessoas se posicionam na relação com os demais. Em tipos de sociedades como a que vivemos, fundadas em elementos que nos dividem e segregam, onde os preconceitos e a intolerância, acompanhados de discursos de ódios, se somam à busca egoísta pela riqueza individual, isso fica evidente mesmo em períodos de normalidade, ou de estabilidade política e econômica. As crises só escancaram e desnudam esses comportamentos, a ponto de descobrirmos haver um alto índice de sociopatas com os quais dividimos até mesmo os espaços familiares. Isso não é genético, é cultural.
Mas precisamos entender como isso funciona. Muitas vezes nos espantamos, e ficamos indignados, com determinadas ações de indivíduos, isoladamente ou em grupos, e nos irritamos com atitudes mesquinhas, desprovidas de um mínimo sentimento de solidariedade, ou de respeito às diferenças sociais, e de origens, em relação à outras pessoas. Só que isso sempre é visto com um viés particularista. Ou seja, imagina-se ser um traço do caráter daquele indivíduo que pratica esse tipo de ato.
Sim, é verdade. Isso reflete um perfil de caráter, que se expõe em atos perversos. No entanto, não é isolado. É resultado de atitudes acumuladas em padrões de comportamentos sociais. Porque isso está ligado às condições de classe social, por um lado, e por outro lado pela assimilação de valores culturais da classe dominante, que afetam pessoas de segmentos da sociedade das camadas baixas da pirâmide social. Ou seja, mesmo entre os pobres, em cuja faixa se mostra mais presente atitudes solidárias, esse padrão de comportamento se manifesta, de forma cada vez mais intensa e com grau de radicalidade que beira o fascismo.

O ALTRUÍSMO

Um dos livros mais importante em minha trajetória como professor, graduado em história e doutorado em geografia, foi “O povo do lago”[1], escrito pelo paleoantropólogo Richard Leakey e o biólogo Roger Lewin. Tendo como cenário o lago Turkana, localizado nas fronteiras do Quênia e da Etiópia, na África, onde um importante sítio arqueológico – Koobi Fora – possibilitou que inúmeros vestígios sobre nossas origens fossem descobertos, esses pesquisadores conseguiram transmitir, de forma simples, em um relato de fácil compreensão até para os mais leigos, como nos constituímos enquanto seres humanos, nossa relação com a natureza e os caminhos em direção ao futuro.
Um de seus capítulos, e no qual foco meu olhar para essa abordagem, faz referência à forma como os hominídeos, nossos ancestrais primitivos, conseguiram sobreviver em meio a ambientes inóspitos, selvagens, embora fossem mais frágeis que seus adversários em uma natureza livre, onde se impunha a força e a condição de sobrevivência adequada à capacidade adaptativa.
É importante destacar como esses autores se referem, ao contrário do que tradicionalmente se via na história, à coleta como elemento mais importante na consolidação da vida sedentária, em comparação com a caça. Porque esta não era garantia de sucesso por todo o tempo, já que nos primórdios a ausência de instrumentos eficazes impedia que os grupos humanos, notadamente os machos, retornassem ao grupo trazendo animais abatidos. A coleta, desenvolvida pelas mulheres, tornou-se, assim, a garantia de alimentos diariamente, fazendo com que surgissem também os primeiros utensílios, as sacolas, para transportá-los. Constituía-se, portanto, como sociedade de coletoras-caçadores.
Mas, tanto em relação à caça, em muitos casos somente com obtenção de carniças, ou seja, dos restos de carcaças deixadas para trás por grandes animais, como também na coleta, o elemento primordial a se destacar, e seguramente o que garantiu a sobrevivência humana, foi o altruísmo.
O altruísmo, ou essa capacidade de compartilhamento e cooperação, adquirida pelos hominídeos, se tornou o elemento mais importante para explicar a nossa sobrevivência em cenários complexos e adversos. Pode-se dizer que o altruísmo foi a condição necessária para que pudéssemos evoluir nos protegendo em grupos e nos ajudando mutuamente.
Isso em grande medida saiu do caminho natural, espontâneo e de sobrevivência, para se tornar disperso entre grupos sociais, sendo mais forte naqueles segmentos mais pobres, nas periferias das cidades, ou nas igrejas e instituições criadas por essas, na medida em que a caridade se constituía como uma maneira de amenizar os pecados individuais.
Evoluímos para formas de organizações sociais que se fundamentaram na propriedade privada da terra, e depois dos meios de produção e da escravização dos indivíduos através da necessária venda de sua força de trabalho, condição a partir do advento do capitalismo para a própria sobrevivência individual. Com essa nova formação econômica e social a cooperação e a visão coletiva foram substituídas pela busca do sucesso individual, numa sociedade marcada cada vez mais pela competição, e nos tempos globalizantes, pela competitividade.
O altruísmo além de nos garantir a sobrevivência por viver em grupo e compartilhar o fruto do trabalho oriundo da caça e da coleta, foi também um forte elemento na constituição da família, e dos sentimentos de pertencimentos não só pelo lugar, pelo território, mas pelo outro. É no princípio desse sentimento que o ser humano aprende a cuidar de seus mortos e a dar aos seus corpos um destino que não fosse aquele de deixá-los ao tempo para ser consumido por aves de rapinas. O altruísmo foi fundamental na nossa formação enquanto núcleo social-familiar.

EMPATIA, SIMPATIA E ALTERIDADE

O altruísmo nos legou a empatia, algo que se manteve no ser humano, homens e mulheres, imbuídos do sentimento de poder sentir as dificuldades e os sofrimentos da outra pessoa, e, mais do que isso, saber compreender suas escolhas, seu jeito de ser, de colocar-se no seu lugar sem querer que esta assimile seu modo de ser e de pensar.
“A empatia implica a capacidade de nos posicionarmos no lugar do outro para compreendermos a sua realidade interna, independentemente da pessoa em questão, de estarmos ou não de acordo com ela ou de simpatizarmos ou não com ela. A empatia genuína está ao serviço da comunhão emocional, da aceitação e do respeito pelo outro e pela sua realidade, o que implica uma atitude de não julgamento e de despojamento de preconceitos do próprio”[2]
Empatia não é sinônimo de altruísmo, embora sejam palavras próximas uma da outra, porque, afinal, elas significam a necessária compreensão do entendimento com o outro. Se o altruísta se dispõe a ajudar, sob quaisquer circunstâncias, um semelhante por ver que há uma fragilidade que precisa ser apoiada, e ele pode fazer isso, a empatia garante que isso seja feito sem que se queira modificar o jeito de ser daquele indivíduo. A empatia significa que temos a capacidade de ajudar as pessoas independente de conhecê-las, ou de ter afinidades com ela, compreendendo o seu jeito de ser e se colocando no lugar desse outrem, mesmo sendo diferente de você, ou que pense diferente.
Uma pessoa que tenha empatia consegue sentir a dor da outra pessoa, buscando se colocar no lugar dela, e não tentando transferir para ela o seu jeito de lidar com aquela dor, procurando imaginar como essa pessoa está se sentindo nas condições dela, com as percepções e compreensões que ela tenha. É o transpor-se para o lugar do outro, sem querer trazê-lo para a maneira de você pensar. Isso é comum nas perdas de entes queridos. O sentimento de uma pessoa é único, a dor é irreparável e intransferível. Mas as vezes muitas pessoas, por suas crenças e fé, tentam transferir isso e procuram confortar o outro à sua maneira de ser e de ver aquele sentimento.
Nesse ponto é preciso encontrar a verdadeira relação que se estabelece. Se alguém não se coloca no lugar do outro e busca expressar um sentimento de carinho, solidariedade e respeito, e extrai isso de dentro de si por uma relação construída com base na amizade, o que temos é uma simpatia.
“Podemos entender a simpatia como um sentimento de afinidade com determinada pessoa, que leva o indivíduo a estabelecer uma harmonia no encontro com ela. Simpatizamos com amigos e com as pessoas com quem partilhamos afinidades, interesses e valores e nas quais reconhecemos alguma compatibilidade e complementariedade com o nosso funcionamento”.[3]
São portanto duas situações diferentes, em que uma requer uma relação construída por afinidades, ou mesmo uma característica própria de determinada pessoa que transborda em gentileza e deseja compartilhar esse sentimento, o que denota simpatia; e na outra situação, de empatia, uma transposição da condição e do seu jeito de ser e sentir, para outra pessoa que não necessariamente você a conheça, mas sente a necessidade de ajudá-la, ou de compreendê-la em suas posições, colocando-se no lugar dela, entendendo as circunstâncias na qual ela vive e aceitando a maneira dela viver e pensar. Nem sempre, pois, uma pessoa simpática tem empatia. Por que sua gentileza e afabilidade é uma característica própria que essa pessoa tenta transferir para o outro, mas ela pode ser incapaz de demonstrar sensibilidade com as condições em que o outro vive e aceitar a maneira como o outro é.
Entre esses dois sentimentos seria importante incluirmos outro, a alteridade. Esse é o sentimento que garante a aceitação do outro do jeito que ele é, por suas escolhas, por mais que seja diferente de você. A alteridade é o que nos garante respeito pelas diferenças e, por extensão, esse sentimento nos possibilita sermos tolerantes.
A empatia faz com que você se coloque no lugar da outra pessoa; a alteridade é a garantia de que respeitaremos aquela pessoa por mais diferente que ela seja de nós, ou para nós; e simpatia é o que nos faz ser afável e querido pela nossa amabilidade, por uma característica pessoal.

POR QUE ESSES SENTIMENTOS IMPORTAM EM NOSSO TEMPO

Ao olharmos para trás e analisarmos cada momento da história, veremos sempre desigualdades, riquezas acumuladas em meio a muita pobreza, o controle do poder por uma minoria e a política de pão e circo para aplacar a ira da maioria e mantê-la inerte. Mas o que nos faz diferente a cada uma dessas épocas, comparando grosso modo com a nossa maneira de viver nos dias de hoje? Seguramente vamos encontrar respostas diferentes e análises sociológicas e filosóficas que destoam uma da outra, mas que na junção delas podemos encontrar coerência. Principalmente se identificarmos sob qual olhar, dimensão ideológica, essa análise está sendo feita.
O olhar que tivermos desse espectro que nos rodeia indicará o tipo de sentimento que nutrimos, o grau de empatia que carregamos e se nos portamos, ou não, de maneira altruísta. A simpatia transita livremente entre essas situações. E a alteridade, normalmente vem acompanhada da empatia e do altruísmo.
O sistema capitalista é incapaz de potencializar esses sentimentos – empatia, altruísmo, alteridade – entre as camadas mais ricas da sociedade. Porque a base do enriquecimento, com raras exceções, embora elas existam, é a usura, a ganância e o egoísmo. A caridade, ou filantropia, advém de um sentimento religioso, uma condição criada pelos dogmas cristãos para transmitir a sua máxima de “amar a deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Isso perpassou ao longo de séculos, milênios, mas se mantém dentro desses princípios até os dias de hoje. E os seus atos representam muito mais um alívio para a alma de um cristão, ou quem pratica o espiritismo, do que uma reparação diante das condições de miséria que tantos se encontram. Tanto que você pode, e deve, ser caridoso, mas jamais pode se atrever a defender a distribuição da riqueza a fim de reduzir as desigualdades sociais.
Mas, há exceção, naturalmente. Aos que assim se comportam restará o uso, tornado “pejorativo”, do termo “comunista”. Cuja palavra advém, aliás, de “comum união”, ou “comum unidade”, muito dito e difundido nos primórdios do cristianismo, entre as comunidades pobres. Isso levou a uma frase de indignação e espanto, do arcebispo católico pernambucano, D. Hélder Câmara (1909-1999), diante da hipocrisia e falta de empatia da sociedade: “Quando dou comida aos pobres me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”.
O altruísmo e a empatia são elementos que compõe a natureza da forma de viver solidariamente, em distribuir o produto do trabalho como ele foi feito e desenvolvido em cooperação, por meio de trocas e de respeito mútuo à condição de ser de cada um.
Alguém que destila o ódio, arrota intolerância, destrata os mais fragilizados socialmente e não aceita a condição de ser do outro, não possui o mínimo de empatia. Se é um governante, então, essa característica fica visível em seus atos governamentais, nas ações e políticas que se opõe à aceitação dessas diferenças e de maneira de viver que sejam distintas daquelas padronizadas culturalmente por uma sociedade abjeta (por ser hipócrita) e desigual. Esse indivíduo, escolhido pelo próprio povo para lhe representar, traduz o comportamento e os valores culturais de quem o escolheu.
E isso nos desafia a compreender as razões pelas quais as pessoas pobres, que vivem em ambientes horríveis, insalubres, despossuídas de qualquer condição humana digna, se apega aos sentimentos que são opostos às suas condições nessa sociedade. E como aqueles que se apegam ao deus do cristianismo se opõem a tudo que originalmente fez nascer uma das maiores religiões do mundo, a busca por um mundo solidário e de comum união?
Seria incompreensível se não soubéssemos que esses valores são adquiridos, por meio de instrumentos culturais, pela religião, pelas condições de existência dessas pessoas, fragilizadas e entregues a messianismos e charlatanismos. A escolha advém desses mecanismos ideológicos que os conformam e extraem de si aqueles elementos que podiam fazer a diferença e os levarem para uma luta que mirasse uma sociedade fundada no cooperativismo, no solidarismo, na empatia, na alteridade e no altruísmo. Nem sempre a lógica funciona nesses casos, não estamos tratando de ciências exatas, mas de ciências humanas, da sociabilidade e dos instrumentos que nos cerceiam e nos amarram enquanto cidadãos coletivos.
Quero finalizar com duas frases que cito sempre. Uma de Heráclito de Éfeso, filósofo da antiguidade que primeiro soube apresentar a maneira dialética de olhar o mundo: O CARÁTER DE UM INDIVIDUO É O SEU CAMINHO. Compreendendo que o caráter é moldado pelos valores que são incorporados à sociedade por mecanismos criados pela classe dominante.
Ou podemos romper com esses valores e seguir por outro caminho. Isso vai depender do caráter que construirmos em nós mesmos. Aí servirá a frase dita por Karl Marx: "Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, seu ser social é que determina sua consciência". Daí porque adquirir consciência de classe é tão importante. Por aí traçamos nosso caminho, e o nosso destino.
O que nos leva a constatar que nem tudo se resume a uma questão de caráter.




NOTAS:

[1] LEAKEY, Richard e LEWIN, Roger. O Povo do Lago. Brasília: Editora UnB, 1996.
[3] IDEM

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sexta-feira, 3 de julho de 2020

OS DESAFIOS DOS(AS) DOCENTES EM TEMPOS DE PANDEMIA E DE NOVAS TECNOLOGIAS DE ENSINO

Estamos vivendo um período de ebulição, em todos os setores da sociedades e que envolve indistintamente a todos os segmentos sociais. Quero me dedicar aqui a analisar as condições pelas quais estão passando nós, professores universitários, em meio a um distanciamento social que fechou as escolas, universidades, institutos tecnológicos, enfim, todos os ambientes de ensino presencial. E isso tem nos jogado para uma realidade inesperada, embora a humanidade já venha se deparando com transformações tecnológicas que impõe a todos nós, homens e mulheres, a tarefa de estarmos acompanhando essas mudanças. Sob pena de ficarmos ultrapassados no tempo e nos enquadramos no perfil de “analfabetos digitais”.
Como consequência disso tudo, e da necessidade de seguirmos cumprindo nossos objetivos, enquanto profissionais do ensino, que é dar aulas, sermos professores, mestres, no sentido literal que essas palavras carregam em suas origens, precisamos saber como transmitir o conhecimento necessário àqueles jovens que estão nas escolas. E, no nosso caso particular, visto que sou professor de ensino superior, como nos comunicamos em tempos de isolamento social, de pandemia que nos aflige e nos impõe o distanciamento, nas universidades.
Nós temos três desafios em um só. Somos docentes de universidades públicas, que se sustentam em um tripé que compõe o arcabouço de nossas atividades na busca pelo melhor conhecimento científico: o ensino, a pesquisa e a extensão.  Ou seja, o que ensinamos deve ter bases científicas e estar conectado com a sociedade, servir a esta, com aquilo que produzimos e comprovamos eficiente para que consigamos atingir um grau de civilização mais inclusiva, solidária e com melhores índices de igualdade social.
A crise sanitária que atravessamos, e que potencializa uma crise econômica tanto conjunturalmente como estruturalmente, nos deixa em meio a indagações sobre quais as melhores estratégias para superar situações que nos limitam em nossas atividades didáticas e pedagógicas. Há, no entanto, uma constatação para mim óbvia, precisamos de todas as maneiras encontrar alternativas que nos permitam ministrar nossas aulas. Não somente porque foi para isso que nos tornamos professores, como também porque não podemos considerar aceitável que dezenas de milhares de jovens que adentraram a universidade atrasem o seu tempo de formação e consigam atingir logo seus objetivos, que é obter um diploma de curso superior.
Sabemos, e pesquisas indicam isso, que o pós-pandemia nos trará um ambiente de fortes disputas no mercado de trabalho, como consequência do desemprego em massa que decorrerá da falência de muitas empresas, principalmente de pequenos negócios onde se concentram a maioria dos empregos. Isso acentuado pela incompetência e incapacidade de um governo que desdenha da vida humana e nitidamente se omite diante da necessidade de agir com urgência, mediante a intervenção do Estado, para salvar essas empresas. O que se vê, infelizmente, vai na direção contrária. Com uma atitude que denominamos de “necropolítica”, o obscurantismo e o negacionismo são os condutores de uma política irresponsável e criminosa que deixará o país em péssimas condições políticas, econômicas e sociais, ao final dessa pandemia.
Nesse cenário provável, a formação acadêmica será um diferencial para a juventude na disputa por um mercado de trabalho absolutamente em forte disputa. Por isso, para além das preocupações com as dificuldades que enfrentamos, esse olhar para mim é o mais importante, e o que deve ser motivador de nossas buscas por saídas que possam amenizar esses desesperos que estão afetando uma legião de jovens que olham para o futuro com mais incertezas do que naturalmente já acontece.
Mas como podemos fazer isso? Nesse aspecto as discussões são intensas e não há consensos. Tenho participado delas, e por características não me omito e defino claramente minhas posições. Embora isso não signifique, necessariamente, discordar de argumentos que colidem com a maneira como vejo a saída para essa situação. Procuro partir, no entanto, desse aspecto que para mim é o mais importante: não podemos estender o tempo de formação dos nossos alunos e alunas indefinidamente. Embora devamos fazer isso tendo sempre presente que a qualidade dessa formação é essencial não somente para eles, mas para que as universidades cumpram aquilo que vem desempenhando em nosso país, formar jovens com qualidade acadêmica e imbuídos de valores éticos.
A discussão mais importante que temos enfrentado gira em torno do trabalho remoto nas universidades públicas. Ou, da necessidade, em função de uma indefinição quanto à volta à normalidade, de encontrarmos uma saída para oferecermos a essas dezenas de jovens que estão sem aulas. O ensino remoto tem sido oferecido já por algumas universidades, inclusive as mais importantes, como a USP e Unicamp, assim como caminha para isso a UFRJ e outras que já estão nesse processo de discussão. Naturalmente isso implica em várias questões, tanto do ponto de vista tecnológico, e aí inclusivo, em função da necessidade de não deixarmos ninguém de fora, como também que isso não seja considerado como uma substituição em definitivo de aulas presenciais. Mas que se torne somente uma alternativa para o tempo em que durar a pandemia, e enquanto a ciência trabalha para encontrar uma vacina que nos livre desse maldito vírus. Embora saibamos que muita coisa do que aprendemos a lidar agora se tornará no pós-pandemia também partes de nossas rotinas.
Creio que a Universidade precisa sair da condição de uma instituição conservadora, no tocante à aceitação às novidades que lhe cerca. Por muito tempo venho criticando um comportamento refratário do mundo acadêmico às inovações, mesmo em se tratando de aspectos metodológicos e pedagógicos, que nos coloca numa espécie de redoma, que termina nos distanciando das transformações tecnológicas em curso.
Por exemplo, estamos testemunhando uma nova geração surgindo já adequada às ferramentas digitais, e se nos anos 70 e 80 a televisão era o instrumento que distraía a atenção das crianças, e as faziam se comportar enquanto estivessem em frente aos programas infantis e desenhos animados que desfilavam pelos canais de tv, hoje são os smartfones que dividem com as chupetas as preferências desde os berços. São incontáveis o número de adolescentes, ou pré-adolescentes, ainda na faixa de dez anos de idade, que se tornam destaques em redes sociais, os famosos “youtubers”, que já demonstram enorme facilidade em lidar com as plataformas tecnológicas virtuais.
Ora, seguindo-se esse processo, que só se acentua na direção de novas e mais sofisticadas tecnologias, como estarão as cabeças desses jovens quando entrarem em um curso superior, nas universidades? Com quais ferramentas estaremos lidando para não tornar esse período em que os teremos como alunos e alunas, entediante e sem ânimo para prosseguir em suas escolhas? Temo que, caso não nos adequemos às novas realidades que já existiam e que despontarão agora com muito mais força no pós-pandemia, não conseguiremos enfrentar o desafio de formar as novas gerações adequadas às suas formas de se situarem e conviverem em uma sociedade tecnologicamente desenvolvida.
Claro, que no meio disso tudo a preocupação com a inclusão social não pode ser enfraquecida, muito pelo contrário. Naturalmente essa é uma luta que vai se tornando difícil na medida em que a escolha da sociedade recai sobre governos ultraconservadores, de extrema-direita, que tem essas instituições como alvo para travar uma guerra cultural a fim de impor valores egoístas, meritocráticos e no interesse de uma elite perversa e entreguista. Mas é preciso que saibamos travar essas lutas simultaneamente, caso contrário poderemos perder essas próximas gerações para os discursos vazios de uma empolgação envolvida por novidades tecnológicas deslumbrantes, e inteligências artificiais, desconectadas de uma realidade social perversa.
Posto isso, não tenho dúvidas que devemos implementar urgentemente novas formas de lidarmos com o ensino nesses tempos de isolamento social. As universidades federais não podem se limitar, por sua importância na formação de uma grande massa de jovens, a desenvolver atividades de pesquisas (sem dúvidas o suporte do desenvolvimento científico nacional) ou de extensão (na sua relação necessária com a sociedade por meio de projetos e programas que envolvam comunidades), mas esquecendo o principal suporte de sua existência: o ensino. Que não deve ter na pós-graduação o elemento principal, porque este é a continuação do processo formativo que se inicia na graduação, onde estão envolvidos o contingente da comunidade universitária que corresponde praticamente a dois terços do que somos enquanto universidade.
Compreendo as preocupações de boa parte dos nossos colegas, em relação à algumas dificuldades que certamente advirão e que não podem significar uma sobrecarga em nossas atividades, à medida em que comprovadamente o trabalho remoto docente impõe muito mais envolvimento, além da confusão que passamos a conviver entre nossa atividade profissional e nosso cotidiano familiar. Além disso será necessário nos capacitarmos em plataformas digitais com as quais não possuímos afinidades. Essas são questões que precisam estar bem definidas e com necessário suporte das administrações/reitorias, mas não me parecem que sejam empecilhos para compreendermos a importância de oferecermos alternativas aos estudantes, e isso passa por aulas remotas, que se atentem à qualidade de ensino e metodologias adequadas.
Resta, no entanto, apresentar soluções para aquelas disciplinas, e áreas, que requerem o uso de laboratórios como condição necessária do aprendizado em algumas formações, bem como as aulas de campo, que não podem ser negligenciadas. A alternativa, nessas situações, é concentrar as aulas teóricas no período em que vigorar as atividades remotas, para nos semestres seguintes ao retorno à normalidade serem oferecidas essas demais disciplinas, que requerem metodologias que extrapolam as salas de aulas.
Tudo isso, contudo, não será possível se as instituições de ensino federais não disponibilizarem para todos, o aparato necessário para o acompanhamento das aulas. Isso significa dizer que, além da disponibilização de redes de dados gratuitos para acesso à internet, também a garantia de empréstimos de equipamentos que a universidade possui, em suas unidades e laboratórios – notebook e tabletes – mediante termos de concessão de uso, para alunos e alunas que comprovadamente se insiram em camadas sociais que não lhes possibilitam a aquisição desses equipamentos. Principalmente quem entrou na universidade pelo mecanismo de cotas étnicas e sociais. Algo que, me parece, já está em curso com um levantamento sendo feito para atender essas necessidades.
Que possamos assim, ir nos adequando a uma situação inusitada, imprevisível, e que tem nos causado enormes transtornos, afetando gravemente toda a nossa rotina de atividades, seja no trabalho, ou em nossas vidas sociais. Isso não significa dizer, no entanto, apesar de todos os transtornos e desconfortos que essa realidade nos causa, ficarmos inertes diante de uma situação que pode significar um atraso de dois semestres letivos (ou mais) na vida de dezenas de milhares de jovens.
Podemos fazer sim, essa flexibilização, o que não significa defendermos como definitivo a metodologia de aulas remotas. As universidades não podem prescindir do velho e bom debate presencial, na secular rotina que transpõe o tempo e nos leva à antiguidade, quando nas Ágoras os mestres provocavam seus discípulos no embate dialético, na confrontação dos contrários, e na necessária junção entre habilidade do conhecimento e a ânsia presente na juventude pelo descoberta do mundo que lhe cerca. Nos dias de hoje acompanhado da necessária preocupação com a formação profissional, condição essencial para se preparar para o mercado de trabalho.
O que a universidade não pode perder, e nós, docentes, mestres e doutores, devemos garantir, é uma formação universitária a essa juventude fundamentada em valores éticos, em princípios humanistas e, principalmente pelas adversidades que nos colocam à prova nesse momento, do altruísmo e da cooperação como elementos essenciais para a construção de uma sociedade mais justa, equânime, verdadeiramente democrática e com inclusão social.