quinta-feira, 7 de novembro de 2019

TEM JABUTI NO TELHADO NO PACOTE NEOLIBERAL DE GUEDES-BOLSONARO

Imagem retirada do site
conversaafiada.com.br

Esse governo, de perfil neoliberal na economia e de extrema direita na política e no trato das questões sociais, se especializou em encaminhar pacotes de maldades para o Congresso Nacional, com o intuito de destruir o Estado naquilo que ele possui de capacidade de intervir na garantia das proteções dos direitos sociais, dos trabalhadores e no combate à miséria e à crescente desigualdade social, diante de um sistema ganancioso e desigual.
Mas há uma estratégia pérfida que acompanha cada uma dessas medidas, que estão chegando sorrateiramente no parlamento, enquanto os filhotes do fascismo, no cio, bradam propostas e frases de conteúdo totalitário e com nítido viés autocrata. Essa é a primeira estratégia, desviar a atenção das medidas absurdas e impopulares que estão sendo aprovadas, ou melhor, tratoradas por uma maioria conservadora, defensora das camadas sociais mais abastadas e no interesse do capital financeiro, nacional e internacional. Nisso eles se confundem, se misturam.
Além disso, juntamente com essas propostas acompanham medidas claramente impossíveis de serem aprovadas, por tocarem em pontos sensíveis, de interesses corporativos da elite econômica e política do país, bem representadas no Congresso Nacional.
Na reforma da previdência o jabuti subiu na árvore. Sabe-se lá como, mas ele estava lá. E como jabuti não sobe em árvore, alguém o colocou lá. Nesse caso, o jabuti era o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Era visível que essa proposta não passaria no Congresso, pois ameaçaria eleições de muitos parlamentares. Contudo, essa foi a discussão central, em meio a um pacote de maldades que ia sendo aprovado e tratado como presente para gerações futuras, numa campanha de marketing paga pelo governo e outra campanha que veio pelo interesse dos ricos por meio dos canais de televisão, a grande mídia corporativa: Globo, Band, SBT, Record... Enfim, tiraram o jabuti da árvore. O BPC se manteve tal qual sempre esteve. Embora outros jabutis estivessem lá para fazer companhia a ele, e seriam acionados caso falhasse a propaganda em torno deste.
Agora, com outro pacote de maldades neoliberais em curso o jabuti escalou algo mais impossível para si, subiu no telhado. E o jabuti das reformas econômicas, o mais importante, chama-se “municípios de menos de cinco mil habitantes”. Qualquer emissora de TV ou de rádio que alguém sintonizar nesse exato momento estará fazendo algum debate sobre a extinção dos pequenos municípios. Esses, em sua maioria, com algumas exceções a se salvarem, criados a fim de garantir os currais eleitorais de políticos oportunistas e conservadores.
Ora, aposto meu mísero salário contra uma garrafa de vinho malbec argentino da região de Mendoza, agora aparentemente livre do neoliberalismo, que essa proposta jamais será aprovada. Mais uma vez, desvia-se a atenção das questões que para eles são essenciais, aprovar um pacote que destrói a capacidade do estado intervir para solucionar problemas sociais e atacar, como deveria estar sendo feito a fim de reduzir a miséria crescente, e beneficiar os bancos e as grandes corporações. O jabuti no telhado vai sair de lá juntamente com os pequenos municípios. Afinal, só foram colocados nesses lugares onde estão por uma questão de estratégia e oportunismo político.
Mas atentem para um enorme jabuti que foi colocado no alto da torre de tv de Brasília. Aquela em que todos sobem para ver portentosamente a esplanada do poder federal, de onde atualmente saem alguns inocentes jabutis e se atacam direitos sociais. Esse jabuti, no caso, são os servidores públicos federais. Como é possível de se ver, em todos esses pacotes há alguma referência ao que seria “privilégio” do servidor público. Algo que vem sendo repetido ad nausean, desde que a grande mídia conseguiu eleger o “caçador de marajás”. Não por acaso deposto por corrupção. De lá para cá, sistematicamente, os servidores públicos tem sido alvo da anti-propaganda, a fim de criar uma cultura de desmoralização não só desses servidores, como do serviço público em geral. Isso é o que se chama de pavimentar o caminho para que a população rejeite o trabalho que é feito pelo Estado, e aceite a sua redução, assim como a retirada de direitos conquistados pelos trabalhadores e trabalhadoras do serviço público federal. Assim como também nos demais níveis federativos.
Os jabutis estão escalando perigosamente tais lugares? Claro que não, eles estão sendo colocados estrategicamente por lá, a fim de desviar a atenção para as maldades e perversidades contidas nos pacotes de reformas, cujo intuito, claramente, é atender as demandas das classes dominantes: burguesia industrial, financeira e latifundiária. E uma parte da classe média, alta, que gerencia grandes corporações, ou atuam como testas de ferros para os interesses destas.
Temos sabido lidar com essas questões? Creio que não. As forças de esquerda dividem-se naquilo que é essencial, a partir de demandas próprias e de estratégias que visam as campanhas eleitorais. Isso que se tornou um vício. Perdeu-se a capacidade de focar na organização dos trabalhadores, da população em geral, abdicou-se disso que foi e está sendo feito por igrejas neopentecostais, ou por grupos conservadores da igreja católica, como carismáticos e TFP. Erra o maior partido de esquerda, que esgrime como sua maior bandeira a liberdade de sua grande liderança, e foco obsessivamente nisso, erra o candidato de esquerda que foi o terceiro mais votado, erra os pequenos partidos de esquerda porque, como sempre, lutam entre si pelo protagonismo que os tornem maiores do que o outro, e se engalfiam em minúcias ideológicas intermináveis.
Enquanto isso a população tem a sua atenção voltada para os jabutis, sofrem com os riscos que tais espécimes correm, porque não foram feitos para escalar árvores, telhados e torres de tv. E se aliviam quando os mesmos que puseram os jabutis nesses lugares, os tiram de lá e se satisfazendo com isso esquecem as maldades que estão a apunhalá-los pelas costas.
E assim segue a procissão, seja com as cordas que os levam à virgem, ou com os gritos histéricos de neopentecostais reacionários. E as pessoas cedem a fé, de que do céu virão as melhorias que elas esperam. Talvez com o tempo elas precisarão se proteger, porque no andar da carruagem o que cairá do céu será uma chuva de jabutis. Como aliás conta uma velha fábula da festa no céu. Bom, originalmente foi o sapo que imaginava poder voar e se esborrachou no cão, e, sendo salvo pela virgem Maria, foi remendado.
Mas nos dias de hoje, os sapos estão em extinção, e já não se fala mais nesse tipo de festa no céu. Agora é a vez dos jabutis correrem o risco de se estropiarem. Esses colocados em lugares estranhos pelos farsantes para ludibriar incautos, que acreditam nessas histórias e em outras lendas mais.
Salvemos os jabutis, mas não nos esqueçamos do povo, inebriado pela fé alienante, escorados em discursos preconceituosos e iludidos de que serão bem servidos no banquete dos ricos.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A MÁSCARA DO CORINGA E O QUE SE VÊ NO ESPELHO


O filme do Coringa tem gerado muitas controvérsias. Mas observo algo que vejo passar despercebido nas opiniões de boa parte daqueles que se dispõem a comentar sobre o impacto gerado por um personagem que carrega em suas características pessoais os sintomas de uma patologia social.
Há uma ausência de percepção temporal nessas análises e nos comentários sobre o filme. No afã de identificar esses sintomas ligados aos comportamentos dos dias atuais, muitos não percebem que a Gotham City do Coringa vive os ares dos anos 1980.
Identifico essa confusão no desejo de muitos de verem aquelas reações causadas pelo comportamento violento, mas anti-sistema, que está por trás da história e do personagem do filme, como se ocorrendo nos dias de hoje, marcados pelos mesmos sintomas identificados naquela década: violência, desesperança, desemprego, pobreza, intolerância, ridicularização do outro, falta de perspectiva da juventude, individualismo, ódio e preconceito contra quem não se enquadra no perfil e no padrão definido pelas camadas ricas da sociedade, ou dos que aspiram atingir esse grau de riqueza, a classe média.
O Coringa surge nos quadrinhos, como o grande vilão a infernizar a vida de Batman, no começo dos anos 1940. Um período conturbado, tumultuado pela grande depressão que assolou praticamente todos países na década anterior, cujas consequências levou o mundo a uma guerra cruel e de uma perversão terrível. A década de 1930 e de 1940 foram tensas e historicamente nefastas para a humanidade.
Mas, eliminado e depois renascido, o personagem ainda reapareceu noutros tempos menos desesperadores. No entanto, o enredo no qual o Coringa do filme atual transita, e cujo perfil do personagem carrega as mazelas de mais um tempo de crise, é aquela década que ficou conhecida como a década perdida, assim denominada pela mídia e pelos economistas.
De quais maneiras foi construído esse período, e o que ele pode nos dizer sobre como o Coringa carrega os traumas dessa época?
Os anos 1980 são reflexos da grave crise que afetou o mundo na década de 1970, conhecida como a “crise do petróleo”. Momento em que os países produtores de petróleo, que haviam tomam para si a produção e o controle da distribuição desse “ouro negro” nos anos 1960, quando criaram a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), deram um choque no preço elevando-o a patamares insuportáveis, com aumentos superiores a 400%, levando a bancarrota uma série de países dependentes desse produto.
A crise se alastrou por todo o mundo, afetando principalmente os países menos desenvolvidos e com altas taxas de desigualdades sociais. Outros fatores geopolíticos não só contribuíram, mas foram os elementos causadores em larga escala, oriundos no Oriente Médio. O resultado levou o mundo a uma recessão e a um enorme déficit nas contas tanto dos países ricos como dos mais pobres. A América Latina sofreu mais fortemente as consequências dessa crise.
Por outro lado, e como acontece em todas as crises no capitalismo, a concentração de rendas aumentou e, consequentemente, a desigualdade social. Essa equação deixa sempre um resultado perverso, o desespero da população pobre. Mas, por incrível que isso possa parecer, os ricos tornam-se mais insensíveis e ao invés de defenderem políticas publicas para amenizar a situação de pobreza e miséria, fecham-se em seus casulos e bradam ao estado o reforço da segurança pública para protegê-los. E seguem acumulando riqueza em meio a uma intensa pobreza.
Ora, o que faz as pessoas se confundirem ao assistirem o filme do Coringa é o fato de a situação do mundo no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980 ser muito parecida com as condições econômicas e sociais que vivemos atualmente. Isso considerando a situação de crise e de acumulação de riquezas de forma acentuada nas mãos de poucos, com ampliação de desemprego e falta de perspectiva da juventude.
Desde o ano de 2008, momento em que estourou a crise financeira que por pouco não quebrou o sistema, a instabilidade econômica e as fortes disputas comerciais se tornaram frequentes. O mundo vive hoje a consequência da quebradeira dos Estados, em função da necessidade de esses salvarem as corporações financeiras do desastre gerado pela ampliação da ganância. De lá para os dias de hoje o que se vê é uma crescente insatisfação social, e até por isso com a população fazendo escolhas suicidas, elegendo governantes que vão na contramão de suas expectativas. Naturalmente que a frustração tende a gerar um efeito previsível, de descontentamento e revolta, com explosões sociais levando à grandes manifestações e a cada vez mais a não aceitação da democracia, a refutação da política e a desesperança em relação às suas próprias escolhas.
“No final dos anos 70, os presidentes das 350 maiores companhias do mundo ganhavam, em média, 30 a 40 vezes mais que os funcionários de base. Hoje, a diferença de salário entre o presidente e o peão passa de 300 vezes. Nos Estados Unidos, o salário médio dos trabalhadores encolheu de US$ 4 mil para US$ 2.750 (em valores reais, descontando a inflação do período) entre 1978 e 2010. Já a remuneração do 1% mais rico disparou: foi de US$ 25 mil para US$ 83 mil”. (https://super.abril.com.br/comportamento/os-verdadeiros-donos-do-mundo/)
Esse quadro dos dias de hoje é semelhante ao dos anos 1980, potencializado pela ampliação dos defeitos do sistema e pela acentuação da riqueza cada vez mais controlada por menos pessoas.
Agora como Coringa se insere nisso tudo? Vou ter que dar spoiler, não tem jeito. Primeiramente eu me preocupei em criticar o anacronismo presente em diversas análises. Feito isso, preciso falar sobre o personagem que me inspira a escrever sobre esse tema, e também procurar entender a razão de tantos manifestantes atualmente usarem uma máscara de palhaço, a marca do Coringa. Substituindo a máscara de “V”, personagem do filme (e dos quadrinhos) “V de Vingança”, muito usada a partir das Jornadas de Junho, aqui no Brasil, como também em diversas manifestações por outros países.
O Coringa é um filme tenso. Brinco com alguns que para ir assistir é bom tomar Rivotril antes. É tenso mesmo na primeira parte, quando a violência não explode explicitamente, mas que está inserida nos comportamentos e na maneira das pessoas se relacionarem, na negação do outro, na indiferença diante das complexidades sociais e da miséria que torna a cidade fria e angustiante.
Há a possibilidades de se extrair do filme diversas interpretações, tal qual a parábola dos monges cegos e do elefante. Sem entrar no mérito de outras análises apresentarei o meu olhar sobre o que eu considero a sociopatia que para mim caracteriza o personagem (e, creio que há também uma esquizofrenia) até a descoberta de que fora enganado por sua mãe, em uma história que deixa dúvida no espectador (esse é um spoiler pela metade). A partir disso, e de algumas outras situações nas quais a frustração dele se junta com a revolta por se sentir estigmatizado e desprezado em seus desejos, sua patologia muda de grau e torna-se psicopatia.
O riso, que poderia interpretar uma insensibilidade diante da violência e do mal, e certamente muitos viram assim ao longo da história de Batman e sua relação com Coringa, representa tão somente uma dessas patologias. O riso foge do seu controle, e representa aquilo que historicamente incomoda, a sensação que o outro ri não por alguma coisa, mas de alguma coisa. Coringa não controla o seu riso, e isso o torna potencialmente um alvo da fúria dos que veem nisso uma forma de ironizar ou escrachar o outro. Com o tempo essa sua risada torna-se marca registrada e se vinculará à sua história, de absoluta permissividade com a sociedade que o afrontara e o humilhara.
O Coringa sai dos subterrâneos para se tornar uma imagem no espelho. É essa imagem do espelho que reflete também atrás de si todos os sintomas de uma sociedade doente, violenta, insensível e intolerante. De repente ele vira um símbolo que carrega o desejo de pessoas oprimidas, revoltadas, deprimidas, inseguras e sem esperanças. À espera de um momento para explodirem.
A opressão, marca de uma sociedade desigual, vem cercada de mecanismos que mantém as pessoas submissas. Há uma estrutura perversa, em que micro-poderes estão dispersos e envoltos em elementos repressivos violentos ou não-violentos. Seja a estrutura policial ou do aparato de leis e costumes que perpassam eras e se consolidam às custas de valores jurídicos, religiosos e outras formas visíveis ou invisíveis.
Isso tudo explode quando algo realiza aquilo que no íntimo muitos desejam. Espalha-se rapidamente um anseio de vingança, e da panela de pressão social os ressentimentos contidos vê naquele que ousa romper essa lógica e atingir aqueles que representam a perversão do sistema, pela exploração e condição social diferenciada em meio às desgraças e infortúnios, se não um herói, pelo menos a representação de seus desejos oprimidos.
A palavra de ordem expressa pela multidão que se revolta e se deslumbra com a ousadia de alguém vestido e fantasiado como um palhaço, desconhecido em sua identidade, é o sintoma que não somente o personagem carrega uma patologia social. Toda a sociedade demonstra estar corrompida e adoecida, pela pressão de um sistema injusto, perverso, insensível e cego. “Morte aos ricos”, brada a multidão sedenta de vingança, revanche, ódio, sabe-se lá quantos outros sentimentos estiveram contidos. Pouco importa a identidade de quem friamente comete assassinatos. Pela origem das vítimas tal ato corresponde a esses desejos, e é aceito como bem feito.
E nesse momento que o Coringa se descobre, comete mais desatinos agora já com a convicção do que deseja, de fato. E o que ele quer é potencializado por aqueles sintomas doentios que se espalha também pela sociedade: vingança. Seu ato final expressa agora o perfil de um psicopata, mas não sem antes transmitir ao vivo e pela televisão, para cada um que, com máscara ou sem máscara, se deslumbrava com seu comportamento e ousadia, que aquele ali, nada mais é do que a imagem de cada um expressa em um espelho.
O Coringa, seja no começo dos anos 1980 do século XX, ou no final da segunda década do século XXI, é a imagem no espelho de uma sociedade oprimida, de uma população cordata e submissa em meio a uma desigualdade impressionante. Pelas periferias de cidades pobres e de cidades ricas, humilhadas, desempregadas e sombrias, revoltadas muitas vezes consigo mesmo por seus fracassos, porque assim são educadas a crer, seja pela esperança da fé religiosa ou pela cegueira da crença no que é transmitido pela grande mídia e no marketing bem preparado de especialistas meritocratas. Tudo isso estruturado a serviço dos ricos, dos que acumulam riquezas escandalosamente às custas da exploração desenfreada, da corrupção sistêmica e das transmissões hereditárias de enormes fortunas.
Assim como a máscara de “V”, a máscara de palhaço do Coringa também carrega um simbolismo que reflete a realidade na ficção, e sai da ficção com toda virulência contida em uma enorme panela de pressão. Explodiu em Gotham City... explode em Santiago, em Barcelona, Em Bagdá, no Líbano, no Equador, em Hong Kong, no Haiti... e vai explodir alhures. E como diz Caetano "o Haiti, é aqui". Vai explodir também no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, por outras razões, diferentes das Jornadas de Junho de 2013. Por essas razões contidas explicitamente no filme.
O Coringa está por aí. Ele está na multidão. A qualquer momento seu riso se fará ouvir. O coringa é cada um que carrega o sofrimento, a dor, a miséria, a humilhação e a vergonha de se sentir culpado por ser pobre. Até que se descobre que a culpa de tudo isso, não é sua. É daqueles que enriqueceram às custas de uma violenta e degradante exploração.
O filme, O Coringa, é devastador. E a máscara de palhaço, que se torna a sua marca registrada, vai assombrar cada vez mais os ricos!