domingo, 15 de setembro de 2013

A GUERRA DEPOIS DA GUERRILHA DO ARAGUAIA

ENTREVISTA COM O PROF. ROMUALDO PESSOA
Por Osvaldo Bertolino, no Portal da Fundação Maurício Grabois
Publicado 12.09.2013
O professor Romualdo Pessoa Campos Filho é um dedicado pesquisador da Guerrilha do Araguaia. Esse baiano de Alagoinhas, de 56 anos de idade, se embrenhou na região e saiu de lá com um farto material para a sua pesquisa que resultou na dissertação de mestrado publicada na obra “Guerrilha do Araguaia – a esquerda em armas”, já em sua segunda edição pela editora Anita Garibaldi. Agora ele volta ao tema para a sua tese de doutorado, que deve ser defendida em novembro e igualmente se transformar em mais livro sobre o tema.
Formado em História pela Universidade Federal de Goiás, após uma ativa passagem pelo movimento estudantil, tendo sido diretor da UNE entre os anos de 1984 e 1986, Romualdo Pessoa Campos Filho é professor de Geopolítica no Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) da mesma Universidade e membro da Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), vinculada ao Arquivo Nacional.
Na entrevista a seguir ele comenta seu novo trabalho.
Professor, fale um pouco sobre mais esse trabalho abordando a região onde atuou a Guerrilha do Araguaia.
É o meu projeto de doutorado, no qual dou continuidade ao estudo da região onde aconteceu a Guerrilha do Araguaia. Como a minha dissertação de mestrado foi sobre a Guerrilha, publicada em livro, agora eu tento entender como os camponeses viveram nessa região marcada pelo movimento guerrilheiro. Busco exatamente compreender de que forma a repressão, que permaneceu na região, se abateu sobre aqueles moradores. E com isso eu fui investigando e descobrindo que boa parte dos conflitos que existiram ali teve a terra como elemento principal da disputa, mas que por trás disso havia muito mais.
À medida que eu ia estudando a pesquisa documental a que tive acesso — muitos documentos do Serviço Nacional de Segurança (SNI), do Centro de Informações do Exército (CIE) e do Centro de Inteligência da Aeronáutica (Cisa) —, fui percebendo que havia uma rede densa de informações e fui estabelecendo uma relação com a maneira como a área estava sendo monitorada. A ação dos militares se dava através do serviço que era desenvolvido pelos agentes de informações comandados pelo major Sebastião Curió, que atuou na repressão à Guerrilha.
Era uma ação articulada com o poderoso esquema de poder montado na região pelo Curió?
Sim. Depois da Guerrilha, o Curió criou um poder praticamente paramilitar, que era escorado nas ações dos agentes do serviço de informações, o SNI, o CIE e a Cisa, e em certa medida o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Por trás de cada um desses conflitos, portanto, havia a presença de agentes monitorando, acompanhando, dando as indicativas e as coordenadas sobre quem estava por trás deles. E sempre nesses relatos aparecia o receio desses militares que comandavam os serviços de informações de que havia a presença de remanescentes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) com atuação muito próxima aos camponeses. Havia, de fato, mas os objetivos eram outros.
Ao lado do PCdoB estavam os padres vinculados à Teologia da Libertação, das Comunidades Eclesiais de Base, que faziam trabalho conjunto com os camponeses. E isso incomodava os militares sobremaneira. Em seus relatórios eles expressavam sempre que tanto os padres quanto os comunistas estavam reorganizando o movimento guerrilheiro. Portanto, em toda a ação que gerou assassinatos de camponeses em vários conflitos eu fui identificando que havia um acobertamento muito forte desses órgãos de informações, pelo poder do Curió.
Esse aparato esteve presente nas eleições do Sindicato de Conceição do Araguaia em um momento crucial, no começo dos anos 1980, quando estava surgindo uma grande liderança, Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, que foi assassinado. Logo em seguida foi assassinado outro dirigente sindical, João Canuto, militante do PCdoB. E assim sucessivamente. Aconteceu também com os padres Aristides Camio, Francisco Gouriou e Josimo Moraes Tavares. Ou seja: os padres que atuavam ali também estavam na lista dos marcados para morrer.
Mas o principal alvo, o que os militares mais temiam pela ação que desenvolvia e pela organização que efetivava, inclusive resgatando antigos membros do PCdoB que estavam praticamente perdidos depois de participar da Guerrilha, era Paulo Fonteles. Na maioria dos documentos que eu tive acesso, ele era o nome que mais apareceu. Havia um temor muito grande dos militares em relação à atuação e à ação de Paulo Fonteles. E ele terminou sendo assassinado, em 1987.
Pode-se caracterizar esses acontecimentos como legado da Guerrilha?
Sim. Toda a região adquiriu um poder de reação muito forte, de efetiva participação dos camponeses. Muitos dos quais conviveram com os guerrilheiros e estiveram lado a lado em suas roças. Muitos dos quais foram presos também. O líder da revolta da comunidade dos Perdidos, em São Geraldo do Araguaia, em 1976, era amigo dos guerrilheiros. Tinha a roça dele ao lado da dos guerrilheiros. Um dos enteados dele se tornou militante do PCdoB. E havia também a presença de um antigo militante do Partido que fora para lá como base de apoio dos guerrilheiros, que era o Amaro Lins. Ele estava atuando ali na região dos Perdidos e foi reencontrado por Paulo Fonteles.
Mais tarde Paulo Fonteles foi um dos responsáveis pela organização da caravana dos familiares dos desaparecidos no Araguaia que percorreu a região em busca de informações sobre seus parentes. Então, a figura de Paulo Fonteles é um elemento marcante, forte, nesse período pós-Guerrilha. E, por isso, ele passou a ser visado. O temor dos militares, presente em todos os documentos aos quais eu tive acesso, era que ele estivesse preparando um novo movimento guerrilheiro; quando, na verdade, claro, o que havia era uma luta intensa dos camponeses pela manutenção de suas posses contra a grilagem, contra o poder dos grandes fazendeiros que constituíam milícias, que contralavam pistoleiros e tudo mais. 
Era, então, uma neurose dos militares injustificável.
Havia uma luta muito intensa ali. E nessa luta o PCdoB esteve presente, assim como a Igreja com as Comunidades Eclesiais de Base. Mas a neurose dos militares trazia consigo o fato de que a Guerrilha poderia estar sendo reorganizada. Por trás de cada um daqueles assassinatos que aconteceram ali, por trás de cada uma das grandes repressões, estava a Polícia Federal atuando ao lado de pistoleiros. Eu tenho comigo, portanto, que boa parte dessas atuações não tinha o objetivo de resolver os problemas do conflito de terras. Nem a atuação do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins (Getat), que foi criado para isso, mas que não cumpria esses objetivos.
O objetivo era eliminar possíveis lideranças que se destacassem na região e que poderiam constituir empecilhos às políticas que estavam sendo desenvolvidas pelos militares. Principalmente pelo poder do major Curió, que controlou a região da Guerrilha e depois abriu um braço de poder em direção à Serra Pelada, que viveu sob seu domínio por muito tempo. Acredito que possa ser algo difícil de ser comprovado, mas fácil de ser compreendido quando a gente analisa esses documentos.
O senhor acha que essa neurose perpassou o tempo e chegou a casos como os envolvendo o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST)?
É possível que sim. Porque a questão do MST e dos conflitos que aconteceram ali, como o caso de Eldorado dos Carajás, têm a ver também com o esvaziamento de Serra Pelada. Serra Pela, em um primeiro momento, foi um atrativo, serviu para que os militares atraíssem posseiros para o sonho do ouro e tirassem eles do meio dos conflitos. Só que quando o ouro se esgotou havia ali em torno de cem mil pessoas e boa parte delas permaneceu na região. Tornaram-se pistoleiros, foram invadir terras ou participar de acampamentos do MST.
Essas pessoas também passaram a ser monitoradas pelos órgãos de informações. A ação repressiva que viria em consequência das ocupações, dos trabalhos que foram sendo desenvolvidos pelos camponeses, tinha não só o objetivo de atender, digamos, as pressões dos fazendeiros; era para conter explosões sociais em uma região já marcada pelo fato de ter acontecido a Guerrilha do Araguaia. O receio era ligado à estratégica que eles sempre tiveram para a Amazônia, que sempre foi um elemento de preocupações dos militares dentro daquilo que se chama de Doutrina de Segurança Nacional. A preocupação com as fronteiras e principalmente com a defesa da Amazônia.
Soma-se a isso o fato de ali ao lado ter os maiores projetos de mineração do Brasil, concentrações enormes de riquezas minerais e uma montanha de ouro que ainda não foi completamente explorada. Nos dias de hoje ainda há embates, muitos violentos, como os entre antigos mineradores por conta do uso de máquinas no local, a exploração em grande escala. Como se vê, é uma região complicada do ponto de vista da geopolítica. E os militares sempre tiveram essa questão presente. Toda essa neurose, essa obsessão.
Não tem um aspecto positivo nessa visão geopolítica dos militares?
Olha, no aspecto do controle das fronteiras sim. O problema é que com a Doutrina de Segurança Nacional ela gera uma concepção extremamente maniqueísta. E dentro dessa visão da luta contra o inimigo externo e interno há sempre a preocupação em conter o comunismo. Essa neurose foi construída tendo a preocupação com a Amazônia, mas vendo o comunismo como seu inimigo principal. O que do ponto de vista lógico, estratégico, e de quem de fato monitora a região e tem interesse por ela, é completamente equivocado. É o inverso, o oposto; a preocupação com aquela região e o seu monitoramente sempre se deu a partir dos Estados Unidos.
O senhor acha que os militares hoje ainda têm essa neurose anticomunista, essa propensão a se aproximar dos interesses norte-americanos?
Penso que não. Muito embora a Doutrina de Segurança Nacional ainda esteja presente no imaginário dos militares. Não só brasileiros. Essa doutrina fomenta a política externa dos Estados Unidos. Mas hoje eu vejo de forma diferente. Até o começo dos anos 2000, sim, ainda estava bastante presente entre os militares brasileiros.
O senhor chegou até esse ponto na pesquisa?
O foco do meu estudo vai até mais ou menos o ano 2000. Constato que essa neurose vai se enfraquecendo à medida que novas gerações de militares assumem e aqueles que carregavam esses preceitos vão indo para a reserva. Tanto que o foco de grande resistência às políticas progressistas adotadas no Brasil está presente no Clube Militar, em áreas de reservas desse oficialato. O que não quer dizer que não exista esse tipo de pensamento. Eles estão lá. Acredito que não são dominantes como eram antes.
Isso foi muito ruim para a região. Porque eles acabaram adotando uma política inversa àquela que planejaram inicialmente, na década de 1970, que era ocupar a região com camponeses, com migrantes. Modificaram isso a partir do final da década de 1980 e abriram a Amazônia para as grandes empresas, para os grandes fazendeiros, para grandes conglomerados agropecuários e até para grandes grupos financeiros. Bancos passaram a investir na Amazônia. Multinacionais, como a Vokswagem, passaram a investir na Amazônia.
Atrás de lucros?
Aparentemente para ter controle sobre as terras; parte delas para a criação de gado. A terra se mostrou infértil para a grande  produção agrícola. Ela dá certo para a agricultura tradicional. Mas não para essa grande agricultura que rompeu o cerradão. Prevaleceu a criação de gado em enormes fazendas, de onde foram expulsas quantidades muito grande de pessoas, antigos posseiros. Essa mudança no foco da política por conta da neurose criada foi a responsável por transformar o Sul do Pará e boa parte da Amazônia em uma terra de pistoleiros, de grileiros. Uma terra sem lei, que tinha por trás o reforço da Doutrina de Segurança Nacional, que transformou aquilo ali em um Frankstein. E que é responsável pelo grande atraso existente até hoje, uma região em que as terras estão nas mãos de grandes latifundiários.
Tem previsão para terminar o trabalho?
Acredito que em novembro faço a defesa da tese. Pretendo entregá-la no mês de outubro para a banca e espero fazer a defesa em novembro para a obtenção do grau de doutor.
A ideia é ter um segundo livro sobre o tema Guerrilha do Araguaia?
Na tese anterior eu trato da Guerrilha em si; fiz como dissertação de mestrado. O objetivo agora é dar continuidade à produção anterior. O título da tese provavelmente vai ser “Araguaia depois da Guerrilha — outra guerra”. Será exatamente isso: esse olhar sobre a região tendo como foco a Doutrina de Segurança Nacional, que vai impregnar a ação dos militares ali e como consequência o surgimento dos conflitos, dos quais em alguns deles os camponeses agiram de fato com tática de guerrilha. O que levou os militares a imaginar ser o surgimento de novas guerrilhas, com os comunistas por trás. De fato, os comunistas estavam por trás, assim como a Igreja progressista, mas no apoio à luta dos camponeses por suas terras.
Não cabia mais a organização de guerrilha...
Não era esse o objetivo, até porque o Brasil já estava passando por um processo de transição, com o apoio do PCdoB. Mas em 1986 esses remanescentes da espionagem, dos serviços de informações, ainda soltaram relatórios dizendo que os comunistas estavam preparando uma nova guerrilha no Sul do Pará. O que é inverossímil


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Veja o programa "Linha direta" sobre a violência no Sul do Pará
http://www.youtube.com/watch?v=ppe6at7A0cM