terça-feira, 28 de abril de 2020

COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI E COMO SERÁ O MUNDO PÓS-PANDEMIA?


Embora nos sintamos permanentemente instados a construir cenários sobre o que pode vir a acontecer no pós-pandemia, como estudioso da Geopolítica sinto que é necessário evitar precipitações. É bem verdade que podemos montar diversos cenários, sem querer até mesmo criar expectativas que haja 100% de acerto. O que nunca é possível. Mas uma criteriosa observação sobre o que tem acontecido no mundo, nos permite ver que há distinções na maneira como cada país, e dentro deles, cada região, tem se comportado no tratamento da Covid19.
Isso nos permite também deduzir que não está descartado uma segunda onda epidêmica, naqueles países que não souberem criar as condições para retomar as atividades normais pós-quarentena. Imagino ser necessário aguardar até o segundo semestre deste ano para podermos compreender melhor como as governanças globais, e cada governo em particular, vão se preparar para reconstruir nações devastadas, economicamente e psicologicamente. Certamente no decorrer desse artigo eu vá me contradizer, e aponte alguns elementos que, em minha opinião, comporão os novos cenários que definirão o que nos acostumamos a chamar de futuro.
Em outras oportunidades já escrevi aqui nesse blog textos que tinha como objetivo extrair de dentro de mim angústias que me acompanhavam, e ainda me acompanham. Naturalmente cada um de nós carregamos sentimentos angustiantes e lidamos com situações próximas ou distantes de nós que nos levam a rever nossos comportamentos e como vivemos até aquele momento em que um trauma, ou acontecimento impactante, nos afetou, ou a sociedade.
Esse momento em que vivemos, marcado por uma pandemia causada por um vírus que se tenta conhecer ainda, e que por isso inexiste medicamentos e vacina para lidar com a doença que ele causa, os traumas serão pessoais e coletivos. No âmbito de famílias, de grupos de amizades e das sociedades. São formas de se relacionar, de afetos e de comportamentos, que necessariamente pelas condições ainda indefinidas que persistirão enquanto não for possível conter esse vírus, irão transformar nossas condições sociais e a interatividade que construímos na forma de viver em sociedade.
Mas isso pode, e deve, nos possibilitar se não construir cenários que apontem como serão as sociedades em um futuro incerto, pelo menos questionar as formas de relacionamentos que construímos até aqui, e que geraram distorções por todo o mundo, entre nações e dentro de cada país, entre pessoas que se situam em condições absurdamente desiguais. E para isso é preciso em primeiro lugar parar de viver para um futuro que não somente é incerto, como inexiste.

UM MODELO DE SOCIEDADE CONSUMISTA E DESIGUAL

O modelo de sociedade, consumista e individualista, construído pela burguesia, em seu interesse ganancioso e usurário, gerou distorções criminosas. No entanto, essas distorções foram naturalizadas por outros elementos que vão além das condições materiais de existência das pessoas. São as ideias, crenças, concepções filosóficas e políticas, construídas no sentido de acomodar as pessoas, e fazerem com que elas aceitem desigualdades sociais impressionantes. Na medida em que os estados-nações foram sendo estruturados, o seu aparato ideológico também foi construído, e suas ideias e elaborações intelectuais foram sendo geradas para criar na sociedade a aceitação das diferenças. Formas de controles também foram sendo criadas, envolvendo escolas, igrejas, aparatos jurídicos, estruturas repressivas, a fim de manter as pessoas submetidas à lógicas que as condicionavam na aceitação de um sistema perverso e concentracionista, com a acumulação da riqueza em mãos de um percentual mínimo de pessoas. Cerca de 1% da população controla mais de 80% da riqueza.
O modelo de democracia inverteu a lógica determinada desde a antiguidade, em suas origens, que a definia como geradora de formas de governos que atendessem os interesses da maioria. Se disseminou princípios que caracterizava a democracia de forma simplificada, determinando que esse seria um regime definido por processos eleitorais, onde cidadãos teriam direito a escolher seus dirigentes. Nada mais falso. Construiu-se modelos de democracia que sucessivamente, desde que a burguesia assumiu o controle dos meios de produção e da riqueza, sempre elevou e manteve no Poder seus representantes diretos ou indivíduos que se corrompiam numa estrutura viciada, definida claramente para que não houvesse nenhuma possibilidade de alteração na ordem vigente. De valores democráticos falsos, onde o voto sempre foi definido pela manipulação e os eleitos jamais representaram estatisticamente o perfil da sociedade.
Para manter as pessoas submissas decantava-se mantras criados ideologicamente, mas estranhamente jamais vistos como sendo construções ideológicas. Ideologia passou a representar apenas aquilo que se contrapunha a esse formato de sociedade e a esse modelo de democracia. As notícias apresentadas pela imprensa, os cultos e celebrações religiosas, a cultura e suas representações burguesas, tudo isso, e muito mais, nunca foram vistos como formas por onde a ideologia dominante sempre penetraram e conformaram a maneira de viver das pessoas. Suas aceitações da miséria e a passividade diante dela se justificavam à espera de milagres ou que pela fé essa situação pudesse se reverter. Jamais essas pessoas inserem em seus objetivos lutar para destituir do poder os que lhes oprimem e reverter um modelo de sociedade profundamente desigual e absurdamente injusta.
Qualquer tentativa de construir cenários pós-pandemia necessariamente tem que levar em conta a maneira como essas pessoas se comportam e aceitam seus “sacrifícios”, pretensamente definidas por uma divindade que define os seus eleitos, a partir da dimensão de sua fé.
Lendo a história da rebelião dos escravos, antes da era cristã, no ótimo livro de Howard Fast,[i] construo o raciocínio (embora historiador não deva trabalhar com suposições, mas o faço para justificar meus argumentos) que Jesus se tornou a liderança que alimentou um exército de seguidores, de crescimento exponencial, porque um século antes dele despontar, Spartacus foi derrotado. A rebelião espetacular que levantou centenas de milhares de escravos e foi a duras custas derrotada pelo poderio romano, poderia ter alterado os rumos da humanidade. Mas, da necessidade de se libertar pela força de suas lutas e no enfrentamento com os opressores, em busca da liberdade, prevaleceu após a crucificação de Spartacus um outro caminho. Tempos depois a ideologia pregada, embora na defesa dos fracos e oprimidos, definia-se que se devia “dar a César o que é de César”, ou que era preciso oferecer a outra face ao ser agredido, em vez de reagir na mesma dimensão.[ii]
A história vai demonstrar como se deu o transcurso do tempo em que essa ideologia se impôs, após ser absorvida pelos imperadores, que espertamente se converteram ao cristianismo e impuseram a obrigatoriedade de que todos os seus súditos também o fizessem. Assim, de uma filosofia libertária, embora defensora da reação pacífica, o cristianismo se transformou em religião oficial com a decadência do Império Romano, momento em que as religiões politeístas e as divindades pagãs foram atacadas e destruídas. Dominou a Idade Média de forma contundente, controlando por meio de disciplinas rígidas e pelo medo uma população que vivia em situação caótica e desprovida de proteção de mecanismos estatais, até se ver em meio a uma forte disputa que se transformou em um grande cisma, dividindo-se em cristãos católicos e evangélicos.

A IDEOLOGIA CRISTÃ E A ACOMODAÇÃO SOCIAL

A ideologia cristã evangélica, foi representada a partir da elaboração de teses que foram afixadas às portas das igrejas católicas, confrontando o poder abusivo, a corrupção e o enriquecimento do alto clero católico. Ao enfraquecer o poder da igreja com esses ataques, e com a divisão que se concretizou, Martinho Lutero construiu outro caminho para os que queriam crer no deus cristão sem o controle de um alto clero corrompido. Mas esse outro caminho também se deparou com essas vaidades e com a submissão ao poder da nobreza. Lutero se aliou aos príncipes alemães na primeira revolta que despontou, com os camponeses à frente lutando contra a opressão em que viviam. Na guerra que se seguiu ele ficou ao lado dos príncipes, defendendo que os camponeses deveriam ser eliminados como cães.
Mas se deu nesse momento o começo da divisão que não pararia mais, e só cresceria entre essa nova vertente do cristianismo. Thomas Munzer rompe com Lutero e torna-se ferrenho defensor das revoltas camponesas, a liderando inclusive. Dessa divisão surgiu os anabatistas, em contraposição ao luteranismo. Logo depois João Calvino se integrou nesse movimento disseminando pela Europa valores que passaram a ser incorporados pela burguesia emergente e que nortearam os princípios do capitalismo. Principalmente porque não via pecado na acumulação de riqueza, mas desígnio divino, e que os ricos não deveriam se envergonhar dessa condição, estando aos demais se esforçarem pelo trabalho para ascenderem socialmente. A fé seria o mecanismo pelo qual cada um deveria entregar-se à adoração cristã, e os que conseguissem sucesso isso se deveria ao esforço individual e à escolha feita por Deus.
Figura que representou o Destino
Manifesto - Séc. XIX
A partir desse movimento inicial o protestantismo se espalhou por toda a Europa, dando origem a um grande número de outras correntes cristãs de origem evangélica. A crise econômica no Reino Unido, gerado pela segunda onda da peste bubônica, no século XVII, e após o grande incêndio que devastou Londres, acentuou as diferenças entre algumas dessas correntes. A dominante na Inglaterra era a Anglicana, criada praticamente como uma religião de Estado, em função do rompimento de Henrique VIII com o catolicismo, por questões de fórum íntimo. Boa parte da população pobre foi enviada para a América, em navios bancados pelo governo britânico.
Como resultado desse processo vamos ver a disseminação pela América, a partir dos EUA da influência de novas correntes, minoritárias na Europa, mas que irão se consolidar no continente americano: pentecostais, adventistas, mórmons, testemunhas de Jeová, metodistas, batistas e puritanos, dentre outras denominações religiosas, que se expandiram e constituíram um forte poder nacional com o chamado “Destino Manifesto”, pelo qual esse país estava designado por Deus para comandar o destino da América . E a partir do final do século XX, a influência crescente dos neopentecostais, inflados estrategicamente no interesse dos EUA em combater a teologia da libertação e o movimento de forte penetração popular exercido pelas comunidades eclesiais de base.[iii]
A Igreja Católica se refez do cisma que gerou o protestantismo e a enfraqueceu, pelo menos em termos quantitativos de seguidores, por alguns países europeus. Manteve sua influência na Itália, Espanha e Portugal. Na Grécia e Rússia uma nova divisão gerou a Igreja Católica Ortodoxa. Mas o movimento que levou ao seu ressurgimento foi escorado em linhas de caráter contemplativo e de rejeição à riqueza. Cumpriu papel importante as correntes franciscanas e os jesuítas, que comungavam praticamente dos mesmos valores. E foram essas correntes católicas, inspiradas na veneração à pobreza por Francisco de Assis, e no caráter missionário da Companhia de Jesus, que se deu a maior influência no que se denominou chamar de Novo Mundo: a América. Embora na última década tenha vigorado um pensamento católico conservador, com o fortalecimento de segmentos que usam práticas semelhantes aos evangélicos, como a corrente mais forte nesse aspecto, a carismática, e outros ultraconservadores a ponto de se oporem a certas ações do próprio papa Francisco, que tem adotado discursos que se contrapõem à lógica gananciosa capitalista.
Enfim, qualquer discussão sobre ideologia não pode menosprezar esses movimentos e como a história das religiões explicam a forma como foram se dando o processo de transformação das sociedades modernas. E podemos incluir nisso a influência e o crescimento exponencial do islamismo, na configuração das sociedades orientais, ou do hinduísmo e budismo em grandes populações asiáticas. Mas não é esse o caso, embora ilustre bem como as religiões se tornaram fatores de disseminação de ideologias que serão apropriadas pelos detentores do poder, notadamente por aqueles que avidamente disputavam as riquezas.
Ou seja, se quisermos compreender por quais caminhos, ou cenários, podemos seguir no pós-pandemia, o melhor que fazemos é olhar para o passado. “A história é um profeta com o olhar voltado para trás. Pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será” (Eduardo Galeano). O que aconteceu em épocas passadas após situações de caos atingirem as sociedades? Sobre quais suportes as pessoas se sustentaram para superarem as adversidades? É essencial conhecermos esses processos, para nos ensinar como superar o momento crítico em que estamos.

UM MUNDO PÓS-PANDEMIA OU PÓS-CAPITALISMO?

Mas em direção a que futuro? O que temos hoje como presente pode ser visto como o futuro pensado lá atrás, em circunstâncias parecidas, de crise e de caos? Se chegamos até aqui, com uma sociedade desigual, com dois terços das pessoas vivendo em condições de pobreza e um desiquilíbrio social vergonhoso, foi porque a forma como saímos dessas crises não se fundamentaram em perspectivas que fossem solidárias e coletivistas.
O que podemos encontrar em um mundo devastado? Seja em temos de guerra, de grave crise econômica ou em meio a uma pandemia, cuja doença não pode ser contida por medicamentos? Desespero, medo, descontrole social, agonia e sofrimento. Esse cenário, que é o atual, nos leva em direção ao aprisionamento doutrinário que as religiões comandam. Não à toa que houve toda uma pressão para que as igrejas não fechassem durante a pandemia. Haverá a corrida na disputa pelos desesperados. E a fé, convenhamos, constitui-se em um bálsamo em meio a situações desesperadoras, de perdas de entes queridos e falta de perspectivas para as pessoas.
metropole.com
Por outro lado, aqueles que controlam os meios de produção e definem os caminhos por onde seguirá a economia, irão desesperadamente recuperar seu poder de riqueza. Já que não estão acostumados a ver escaparem por meio de seus dedos uma quantidade tão grande de ativos, de ações desvalorizadas e de redução de seus lucros. A fé no dinheiro soma-se aquela esbravejada nos templos, e conduzirão os rebanhos, em metáforas bíblicas, seus carneiros e ovelhas, sempre cordatos, pelos mesmos caminhos de aceitação das desgraças como desígnios divinos, tendo os sacrifícios como provação aos que têm fé. Como sempre, poucos serão os ungidos.
Evitar esse caminho não é fácil, mas é o cenário mais provável. Resta no entanto apostar na construção de meios que nos levem a romper com esses mecanismos, o que não necessariamente significa tornar-se ateus, mas reforçar o poder das comunidades, por alternativas solidárias e através da cooperação construir alternativas, que, inclusive, se contraponha a estrutura gananciosa de um sistema capitalista absolutamente perverso, e de combate a políticas perversas que obstruem qualquer caminho que não seja o determinado por uma lógica insana e individualista. Esse caminho inevitavelmente levará ao descontrole social.
É necessário tornar usual palavras como resiliência, solidariedade, comunidade, comum união. Se observarmos o comportamento deste governo que nos deixa apreensivos quanto ao que será o futuro desse país, veremos que suas ações se contrapõem ao que significam essas palavras. O atual presidente e seus seguidores, inclusive os que gritam dos púlpitos de templos acintosamente e estupidamente, de igrejas que pregam vidas em bolhas somente com aqueles que ali frequentam, possuem comportamentos centrados no ódio, no distanciamento da sociedade, na frieza dos relacionamentos e na insensibilidade com as pessoas mais vulneráveis. Por isso esse governo tem como estratégia principal a desunião. Não visa uma união nacional, não deseja o fortalecimento do país e o respeito à suas diferenças e diversidades.
O cenário mais provável do que virá pela frente não será muito diferente em termos ideológicos do que estamos deixando para trás. Poderá ser pior, porque em meio a um caos e uma enorme crise econômica, com milhões de desempregados, provavelmente com um percentual que chegará a um terço da população.
Como vejo o mundo hoje, e analiso o passado, me resta enfatizar a necessidade de buscarmos fortalecer os mecanismos que venham a aglutinar as pessoas vulneráveis, oprimidas, desempregados, enfim, principalmente aqueles que vivem nas periferias das grandes cidades. Em um forte movimento que garanta a essas pessoas terem à sua disposição entidades que lhes deem voz e a exigirem a presença do Estado em ações que lhes protejam, por direito. Para que possam lutar por esses direitos que mesmo antes da pandemia já estavam sendo destruídos e retirados. E a partir dessas organizações focar na busca por outro mundo, outra globalização, outra mundialização, em que a solidariedade, a cooperação e o bem comum, seja o objetivo alcançável, e que garanta à essas pessoas mesmo que em condições miseráveis de vida um sentimento de autoconfiança, de percepção da realidade e de possibilidade de adquirir capacidade crítica para compreenderem que o mundo em que vivemos é movido pela luta de classes. E somente sua organização e senso de comunidade garantirá conquistar esse novo mundo. Para além da pandemia do Covid19 e do capitalismo.



NOTAS:

[i] FAST, Howard. Spartacus. São Paulo: Círculo do Livro, 1979.
[ii] Aqui refiro-me à construção do mundo ocidental. O Império Romano do Oriente, e, principalmente após a sua queda, tomou outra direção e seguiu outros preceitos religiosos fundados no islamismo, cuja ideologia indicava reação diferente às agressões sofridas: olho por olho, dente por dente.
[iii] LIMA, Décio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1991.
Leitura complementar:
CAMPOS FILHO, R. (2020). A peste, a gripe espanhola e a covid19 – geografizando as pandemias pelo mundo. Élisée - Revista De Geografia Da UEG, 9(1), e912014. Recuperado de https://www.revista.ueg.br/index.php/elisee/article/view/10301

sexta-feira, 10 de abril de 2020

A DIMENSÃO DA GEOPOLÍTICA NO MUNDO ATUAL

De repente, não mais que de repente, muito se ouve falar de geopolítica. Tudo que se fala é geopolítica. Mas, afinal, o que é a Geopolítica?
A Geopolítica pode ser vista como a junção da Geografia, História e Ciências Políticas, com necessárias pitadas de economia devido a ser preciso compreender a dimensão sistêmica que conduz cada época e serve como motor da engrenagem dos Estados-Nação.
Mas a geopolítica, ao contrário do que erroneamente se imagina, não é somente uma ferramenta para noticiar as transformações conjunturais, e os eventos que aflige a humanidade, as crises econômicas e o espocar das guerras. Ela é fundamental para a compreensão das causas geradoras de cada um dos fatos abordados dentro dos aspectos citados e da construção de cenários para o que se desenrolará a posteriori. Ou, caso estejamos analisando um fato histórico já ocorrido, ela permite compreender o jogo do Poder que o desencadeou, as disputas em torno do controle de territórios e, principalmente, a compreensão das estratégias utilizadas para se atingir os objetivos daqueles atores envolvidos no processo.
Esse é o elemento principal da geopolítica: a estratégia. Sua origem remonta o tempo em que os estados nações se expandiam, final do século XIX, época do poder crescente dos impérios, mas também da modernização do Estado e da criação de mecanismos que fortaleceriam toda a estrutura necessária para garantir a defesa das fronteiras territoriais nacionais, do controle da “core área” na expressão de Ratzel, da manutenção dos seus recursos naturais e da sua população.
Inicialmente vista como Geografia Política, na construção temática e epistemológica elaborada por Ratzel, e depois tornada Geopolítica na criação desse acrônimo por Rudolf Kjellen, que se consolidou com a expansão desse saber estratégico pela Europa, principalmente Alemanha, onde se difundiu fortemente através de Karl Haushofer, criador da escola alemã de geopolítica e o tornou personagem dúbio na relação com a estratégia nazista do expansionismo do III Reich.
Os embates com a escola francesa, vidaliana ou lablacheana, e tendo sido o foco das diatribes de Hitler, na Alemanha, a geopolítica amargou um forte revés, pela dimensão que alcançou naquele país. De Ratzel a Haushofer, o caráter expansionista, elemento da visão estratégica que considerava a um estado-nação uma condição necessária para o seu hegemonismo, e até mesmo sobrevivência, a escola geográfica naquele país deveu a geopolítica toda a sua influência. O pós-guerra reforçou os ataques franceses, e prevaleceu as intrigas feitas por historiadores da recém projetada Escola dos Annales, principalmente Lucien Febvre, que oporia Ratzel (identificado como determinista) a La Blache (visto como possibilista). 
A queda do nazismo levou junto a geopolítica, e Haushofer ao suicídio. Os ares democráticos que virão depois, e mais do que a identificação da Alemanha com a geopolítica, também a preocupação com a União Soviética, induziria as escolas ocidentais a transformar a geopolítica como “persona non grata”. Por trás disso o temor com um poder estratégico advindo desses conhecimentos. Sempre usado pelos estados, mas negligenciado a partir de então pela academia. A geopolítica tornou-se vítima de si mesma.
Naturalmente por trás da geopolítica há a Geografia, e o saber estratégico que a mesma carrega, isso posto a nu em um trabalho paradigmático que resgatou o papel crítico da geografia, depois de ser levada ao limbo pelas marcas que ficaram no embate com a escola francesa e com o pós-guerra: “A geografia, isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra”, obra de Yves Lacoste.
Mais do que reforçar o caráter político desse saber, e tecer forte crítica à geografia ensinada nas escolas, até aquela época e como consequência desses embates políticos e geopolíticos, Lacoste é enfático em afirmar que, mais importante do que considerar ser uma ciência, a geografia é essencialmente um saber estratégico. E essa é a real grandeza de sua importância, e por isso tão temida por determinados setores, mais inerentes e necessários ao planejamento e ação do Estado. E não somente para a guerra.
Lacoste reforça a necessidade da política para a geografia e, além de resgatar o papel de Ratzel na projeção desse saber estratégico, traz também de volta a importância das obras de Elisée Reclus, este um geógrafo francês mais engajado, de visão mais progressista, até pelo seu histórico de militância e participação nos movimentos populares e revolucionários de sua época.
O movimento da Geografia Crítica que advém a partir dessa obra de Lacoste buscou tirar a geografia do limbo, e junto com ela a geopolítica. Mas o elemento diferente que vai projetar a geopolítica de volta ao seu patamar de importância, mesmo que em muitas escolas tendo como denominação Geografia Política (o que para Lacoste é redundante), é asua afirmação que a Geopolítica é a Geografia em toda a sua essência. E o caráter de totalidade, essencial para essa ciência e saber estratégico, só poderia estar completado com a devida importância da inserção da política em seus conteúdos, por sua própria natureza.
Lacoste critica em sua obra a fragmentação da Geografia, algo que será objeto de preocupação de uma geração de geógrafos até o final do século, quando submetido como outros conhecimentos ao processo da globalização, tornou-se difícil de evitar que isso deixasse de acontecer. Ao contrário, se acelerou, como um elemento forte da característica marcante de uma nova etapa do capitalismo, levando todas as áreas do conhecimento na mesma direção, para o bem ou para o mal.
Evidente que a visão de totalidade acompanhava toda uma condição e uma visão epistemológica advinda da influência marxista na geografia. Mas, como entender as partes sem o todo, e como compreender o todo sem o conhecimento das partes? Isso é o que garantiria à Geopolítica a condição de reforçar o caráter crítico da geografia e o resgate da política como elemento fundamental de sua essência como saber estratégico.
Mas todo esse movimento não foi suficiente. O estigma criado em torno da geopolítica era muito forte, e ideologicamente se constituiu em uma arma muito bem utilizada no âmbito da guerra fria. Muito embora nenhum estado-nação, de qualquer um dos lados, abdicasse da geopolítica como fundamento de seus planejamentos, de estudos do potencial de riquezas estratégicas, principalmente no âmbito da geração de energia, e da proteção e expansão de suas fronteiras, em síntese, da defesa de seus territórios nacionais, e até mesmo de suas colônias, muitas ainda mantidas diretamente ou de forma disfarçada.
No entanto, a mesma globalização que acentuou a fragmentação, e os conhecimentos, projetou a geopolítica. A aceleração contemporânea, o desenvolvimento científico e tecnológico, o poder da informação acessível a praticamente todas as pessoas, o deslocamento de mercadorias com muito mais facilidade, e das pessoas, com certas restrições, mas por veículos mais rápidos e eficientes, e, principalmente, a multipolarização do mundo, decorrente desse processo, muito embora não sendo algo desejado pelo império. Todos esses elementos já não podiam mais ser compreendidos sem a geopolítica, notadamente quando a partir de 2001, com um ataque mortal no coração do império, disseminou conflitos por todos os cantos e modificou para sempre o formato das guerras e o sentido da paz. A clássica frase “se desejas a paz, prepara-te para a guerra”[i], passou a fazer cada vez mais sentido.
Em sua nova fase, o capitalismo disseminou pelo mundo a ganância e a usura, distribuiu riqueza para poucos, e a pobreza para muitos. O que se projetou com a globalização, em seus momentos de deslumbramentos, se demonstrou pérfido, perverso e destruidor a partir do final da primeira década do século XXI. Impossível tentar compreender esse mundo sem a geopolítica, pela noção de totalidade que ela representa.
Mas qual geopolítica? Porque de repente se falava de geopolítica de alimentos, de biodiversidade, da água, do oriente médio, da África, do petróleo, dos recursos naturais, das questões ambientais... e por aí foi. A grande mídia trouxe para o foco de suas análises e interpretações aquilo que a geografia refutou por muito tempo, e a popularizou. Isso se acentuou com a disseminação de um vírus, mortal, o “Sars-Cov-2” sem nenhuma forma de contenção, a partir da China e daí para o mundo primeiro pela Europa, depois América, restante da Ásia, e África, e praticamente paralisou o sistema, com o necessário isolamento social para conter a sua propagação. O olhar crítico e cirúrgico a ser feito sobre esse processo não pode prescindir da geopolítica.
Os embates que se acentuaram, e estremeceram as relações políticas e comerciais entre grandes potências, notadamente EUA e China, fez parecer como restrito apenas a um desses países eventuais descontroles internos em suas políticas e levaram a uma quebra daqueles princípios que foram constituídos com a criação de organismos multilaterais. Assim, a ocorrência de uma epidemia foi inicialmente vista como algo localizado, típico do estilo de vida chinês, algo já enfaticamente questionado com o agravamento da pandemia. Havia um desejo implícito que isso reduzisse o poder crescente da China.
Os países não se prepararam para o impacto que isso teria na vida das pessoas, na economia dos países e do sistema caso houvesse uma disseminação global. De repente, o mundo se deparou com uma crise de impactos monumentais, com uma quarentena necessária para se prevenir do contágio e paralisou praticamente todo o processo produtivo, algo inédito na história recente, e vista de forma catastrófica somente comparado à grande depressão da década de 1930. Mas em número de mortos ainda perde, longe, da gripe “espanhola”, apesar da celeridade do contágio. 
Essa reviravolta por completo na maneira como a vida das pessoas se acostumara com a facilidade de deslocamento e com um consumo acelerado, embora o sistema não tivesse ainda se livrado dos sintomas da crise de 2008, deixou atônito o mundo como um todo. E não chegamos ainda sequer ao topo da disseminação desse vírus.
Em um ambiente criado pela globalização, de notícias que viajam por todo o globo em tempo real, e de redes sociais onde as pessoas se conectam e conversam a qualquer instante estejam onde estiverem, tentar compreender tudo isso se tornou a nova rotina. Ao mesmo tempo sendo necessário combater uma nova onda que esses mesmos mecanismos criaram, as notícias falsas, fake News, que confundem e criam uma horda de estúpidos, dispostos a acreditar naquilo que desejam, no que se convencionou chamar, ainda antes do Covid19, a doença que tem impactado o capitalismo, de “pós-verdade”.
Naturalmente cada noticiário vem acompanhado de relatos e análises de especialistas em diversas áreas, principalmente naquelas ligadas à epidemiologia, infectologia, das ciências médicas de uma maneira geral, mas também da economia, da política, da psicologia... e, naturalmente, da geopolítica. Enfim, nunca se intitulou tantos artigos com a palavra geopolítica a ilustrá-los, como nesse nosso tempo de impactantes imprecisões sobre não somente o que estamos vivendo, mas, principalmente, sobre o que virá como consequência dessa pandemia.
Mas porque é interessante olhar para todas essas reviravoltas, de como uma área temática da geopolítica se torna malquista como consequência de uma guerra mundial, na qual em tese ela teria sido coadjuvante, e para os dias de hoje, com uma guerra a um inimigo quase invisível, e não é o terrorismo, mas o terror de um vírus implacável e sem formas de contê-lo até então?
Porque assim chego ao ponto em que desejo demonstrar que não é tão somente a geopolítica, essencial para a compreensão de tudo isso. Mas a Geografia. A maioria desses artigos que são intitulados com a geopolítica, são centrados em seus conteúdos, nos elementos que compõem a geografia. O objetivo não é reforçar o que dito por Lacoste há pelo menos cinco décadas, de que a geopolítica é a geografia. Porque a globalização, como dito, fragmentou tudo, inclusive o conhecimento geográfico.
Ocorre que esses elementos que são necessários para identificar a origem do vírus, as condições em que ficam as cidades como forma de combatê-lo, a disseminação pelo espaço geográfico, a alteração dos lugares e hábitos até então corriqueiros, o reforço das estruturas nas áreas de saúde em grandes metrópoles de fortes densidades demográficas bem como o atlas ou mapeamento dessas fragilidades, a transposição de fronteiras praticamente inexistentes enquanto barreira, a forma de aceleração do contágio inicialmente por meio de vias de transportes aéreas ou de grandes transatlânticos, o necessário isolamento social de populações que precisam ficar restritas a suas residências, em seus bairros, seja em casas, condomínios horizontais ou verticais, o impacto na economia e a distribuição espacial como ele ocorre, e as mudanças nos comportamentos individuais e coletivos que tudo isso possibilita, são, inevitavelmente questões necessárias e postas no hoje e no depois para serem analisadas, entendidas e compreendidas em todas as suas dimensões pela geografia. Não há um único elemento em todo esse processo que não caiba em trabalhos de pesquisas da Geografia em suas mais diversificadas áreas do conhecimento, inclusive da geolocalização, nas informações geoprocessadas, por onde “viaja” esse vírus, os países, as regiões e setores das cidades mais infectados.
Em que entra a Geopolítica, então? Na análise estratégica dos impactos gerados pelas medidas tomadas para combater o vírus; a paralisia das cidades e os impactos econômicos que deverão gerar processos recessivos e depressivo; as alterações na ordem geopolítica mundial, com a provável troca de hegemonia entre as grandes nações líderes do comércio mundial e dos possíveis conflitos e guerras que advirão como resultado de desentendimentos naturais nesse processo. Some-se a isso, como área de interesse da geopolítica, a ação de organismos multilaterais, como a OMS, FMI e a ONU, dentre outros, e como sairão desse processo altamente desgastante a partir da forma como os países verão suas ações. Fundamentalmente, a geopolítica centra o seu olhar eminentemente estratégico no interesse dos estados nações, das grandes corporações, da beligerância e das relações entre os estados-nações, e, internamente, como sobreviverão os setores estratégicos e empresas que representam o capital nacional para além fronteiras e na defesa do território nacional.
A globalização, o neoliberalismo principalmente e o sistema capitalista em essência, se tornam pacientes em alto grau de contaminação e com grandes possibilidades de frequentar uma unidade de terapia intensiva. O olhar sobre essa possibilidade e as consequências do estrago que essa pandemia causará em todos os segmentos sociais e por todos os cantos do mundo, se tornam, sim, elementos essenciais da abordagem Geopolítica.
Pode-se então observar diferenças, nuances que são identificadas quando se compreende a Geografia como um saber estratégico, e um ramo de seu conhecimento que se preocupa por meio da necessária busca do conhecimento estratégico, a identificação da política que norteia as ações dos países e/ou grupos de países e como se dão e se darão suas relações: a geopolítica.
Concluo considerando como algo relevante, inclusive como parte do ensinamento posto por Yves Lacoste, ser necessário resgatar o papel da geografia crítica. E reforço o seu destaque à urgência de se retomar os estudos de um dos mais renomados geógrafos, contido por governos da época pelo caráter social de sua obra e pelo seu olhar libertário para o mundo. Este é o momento da geografia resgatar a obra e os ensinamentos de Elisée Reclus. Por uma Geografia crítica, política e necessária para que os geógrafos não se limitem somente a descrever o mundo, mas que possam contribuir para transformá-lo.



[i] “Si vis pacem, para bellum”, Públio Flávio Vegécio Renato, conhecido como Vegécio, escritor do Império Romano do século IV.

domingo, 5 de abril de 2020

O COVID 19 E O MUNDO NA ENCRUZILHADA

Vivemos, inegavelmente, um dos momentos mais complexos da história da humanidade. Uma paralisação sistêmica que atinge praticamente todo globo terrestre, forçando quase uma estagnação no processo produtivo. Não existe precedentes, mesmo nos momentos mais críticos seja por questões de guerras, de depressão econômica, ou mesmo de outras pandemias que já nos atingiu. Se pegarmos cada um desses momentos, e analisarmos suas dinâmicas, veremos que por maiores que tenham sido os impactos, isso não gerou uma quase completa paralisação no sistema produtivo, de forma que afete a maioria das cadeias produtivas tal qual elas funcionam, desde a aquisição de matérias-primas até a circulação de mercadorias.
Somente essa constatação nos permite considerar as dificuldades que teremos de lidar com os momentos seguintes a essa pandemia e à quarentena necessária para conter a propagação do vírus “Sars-Cov-2” e a COVID19. Claro, ainda estamos no começo do inferno. Teremos de passar ainda por fortes labaredas para atingirmos um ponto seguro que permita a humanidade retomar o curso da história. Nesse processo, não podemos esperar que algum deus nos acuda. Essa não é uma tarefa para Deus, e muito menos deve ser atribuído a qualquer um deles que seja a responsabilidade por essa tragédia. Isso é parte de um processo que decorre das escolhas humanas pelo seu estilo de vida. Uso a referência ao inferno como uma metáfora, já que também não aponto para qualquer demônio que seja as diatribes responsáveis por esse vírus, ou tantos outros que nos atormenta.
Durante a propagação, e principalmente no combate à peste bubônica (conhecida como “peste negra”), na Idade Média, as crenças religiosas dogmáticas tornaram-se um forte empecilho para a superação da pandemia, com atribuições metafísicas ao problema. Isso se repete hoje, de certa forma, principalmente entre um segmento evangélico, de viés neopentecostal. Isso ocorre pelo caráter usurário da prática existente nesse segmento, motivado pelas cobranças exorbitantes dos dízimos de seus seguidores, baseado no medo, na culpa e no individualismo que prega a doutrina da prosperidade, portanto radicalmente distanciado dos princípios e valores fundamentais do cristianismo primitivo, o que é possível por uma leitura bem particular e distanciada do tradicionalismo das próprias igrejas protestantes, do livro sagrado do cristianismo, a bíblia.
Esse segmento tem sido, por um lado absolutamente refratário ao isolamento social, principalmente ao impacto que isso causa em suas igrejas, impedidas de realizarem cultos presenciais; por outro lado é a parcela da sociedade que, inspirada nesses ensinamentos dogmáticos, anticientíficos e metafísicos, aprofundam a ignorância e o distanciamento em relação à ciência, constituindo-se em uma forte base de apoio ao negacionismo científico e ao próprio poder destrutivo do vírus, propagado pelo presidente da república do Brasil. Junta-se a esse segmento do protestantismo uma parte dos católicos, seguidores da chamada renovação carismática cristã, que se aproximam por esses caminhos dogmáticos e conservadores. Certamente serão esses seguidores, não todos, mas em sua maioria, que acompanharão o presidente no seu chamamento para um jejum contra o vírus. Só não se sabe se o vírus entenderá isso como um ataque mortal à sua existência.
No entanto, majoritariamente, a sociedade tem se guiado pelos cuidados e orientações científicas, isso bem explicitado em pesquisas que apontam uma concordância com as orientações técnicas que têm permeado as decisões dos governadores, prefeitos e do Ministério da Saúde, escorados nos fundamentos apresentados pela Organização Mundial da Saúde.
Os embates existentes carregam elementos da rejeição à ciência, da religiosidade conservadora, da metafísica, mas também da política. Até porque há um projeto de poder subsumido nessas atitudes aparentemente idílicas, de preocupações com a necessidade de aquecer o espírito ou de combater o monstro que desde o século XIX atormentava a Europa e depois o mundo: o comunismo. Para tanto, o anticientificismo e a ignorância, como revés para comportamentos medievais, constituem-se em combustíveis para disseminar a mentira e acirrar ódios de vieses fascistas e neonazistas, trazendo para o noticiário e as análises sociológicas uma nova terminologia: a necropolítica.
Mas, desviando desse rumo, sem, no entanto, perder o fio da meada, faço junção dessa nova expressão, que tende cada vez mais a ser utilizada, a partir do momento em que se faz escolhas sobre quem deve morrer. Algo que já é costumeiro na estrutura social, não só brasileira, como de boa parte do mundo, e acompanha a própria maneira do sistema lidar com as desigualdades sociais, sem atacar o principal fundamento que a causa, a forte concentração de riqueza nas mãos de poucas pessoas. Essa expressão foi criada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe[1], e se aproxima da elaboração dada por Michel Foucault para compreender a maneira como os Estados passaram a utilizar de certas metodologias de controle do corpo, da população, e suas formas de imposição e controle social. Segundo ele, isso acontece quando os governos passam das formas de utilização de mecanismos disciplinares para mecanismos de controle. A saúde, a sexualidade, a alimentação, os costumes... tudo isso leva a emersão do biopoder[2], e da governamentabilidade, como forma de garantir o controle social[3]. As tecnologias surgem e se desenvolvem, como reforço para essas novas formas de se estabelecer o controle por meio da biopolítica.
Tudo leva a crer que nos deparamos com essa realidade tal qual descrita por Foucault, e certamente poderá estar reforçada no pós-Covid19, se não houver reações por parte da sociedade, de forma organizada e na direção oposta ao rumo que a humanidade tem seguido até aqui.
O que poderá fazer com que os rumos sejam outros? A partir daqui o que podemos fazer é deduzir, com base naquilo que nossa experiência pode permitir e nos conhecimentos históricos que nos remetem a momentos, senão iguais, mas muito parecidos, cujas crises chegaram ao ápice, à exaustão da economia. Não se pode estabelecer comparações, porque como dito no início desse artigo, essa é uma situação de absoluta excepcionalidade que estamos atravessando.
No entanto, nos baseando no que ocorreu após a grande depressão, que se inicia no final de 1929 e atravessa toda a década de 1930, até desembocar na segunda guerra mundial, houve uma transformação radical na sociedade, um aumento considerável do papel do Estado na solução dos problemas econômicos e sociais, e da garantia de emprego para a população, bem como levou a mudança de hábitos, nesse caso quebrado pelo advento da guerra, que pode também ser incluída dentre as consequências dessa crise de proporções mundiais, mas cujos efeitos foram mais fortes nos EUA e na Europa. E, embora tenha havido um forte impacto nas estruturas do sistema capitalista, esse não foi tão intenso a ponto de paralisar as estruturas produtivas como consequência de uma imposição externa, aparentemente casual (embora se saiba que isso decorre da forma como a sociedade está organizada em grandes cidades, bem como a destruição da biodiversidade do planeta), mas podendo ser cientificamente demonstrada em suas causas fundamentais, inerentes ao próprio sistema.
Tomemos por base, portanto, uma forte crise econômica nas primeiras décadas do século XX, mas tendo como causa o excesso de produção do sistema e a redução do consumo, sem, contudo, ter havido forçosamente uma paralisação da economia, já que esta se deu na sequência da elevação produtiva. E estabeleçamos um relativo parâmetro com o que temos hoje, numa dimensão muito maior, já que a paralisia do processo produtivo se deu forçosamente, como necessidade para conter o poder viral, e aqui a expressão foge ao que comumente usávamos até há pouco tempo, quando nos referimos à ataques de vírus que afetam nossos computadores e smartfones.
Nessas circunstâncias, de uma absoluta impossibilidade das cadeias produtivas funcionarem, e uma paralisia no sistema afetando a quase totalidade das empresas, o que se prevê é um impacto muito mais forte na estrutura do sistema capitalista em comparação com o que ocorreu na depressão de 1929, ou mesmo na mais recente explosão de crise, em 2008, com a quase debacle do sistema financeiro mundial. Isso tenderá a jogar por terra toda e qualquer iniciativa de gerir a economia com base nas receitas neoliberais, pois a única possibilidade de conter um caos de dimensão planetária, são os estados investirem maciçamente na economia, fortalecendo as empresas, dando suporte aos micro e pequenos empreendedores, e garantindo fortes investimentos em infraestruturas por todo o país, como elemento gerador de empregos, tal qual foi feito na grande depressão, seguindo-se as orientações keynesianas. Necessariamente terá que haver um retorno ao estado de bem estar social, desmontando por completo todo esse aparato de reforma que levava a uma quase destruição do Estado naquilo que se tornava mais essencial a sua importância nas políticas sociais.
Isso inevitavelmente irá levar a uma mudança substantiva no poder político, tanto maior quanto mais próximas estejam os processos eleitorais nos países. Atentando-se para um elemento que pode ser motivador de reforçar governos de viés autoritário, de extrema-direita com intenções totalitárias, os possíveis adiamentos de eleições, sob argumento do caos gerado pelo Corona Vírus, mas que em essência pode significar a tentativa de implementação de projetos totalizantes, como aliás já ocorre em alguns países, por meios de medidas profundamente autoritárias e antidemocráticas.
Por fim, mas sem ser conclusivo, outro elemento que está fora das formas com que as demais crises se desencadearam. Focando aqui nas duas principais e mais assustadoras crises para a economia capitalista, a grande depressão de 1929 e a crise dos sub-primes de 2008. O isolamento social, o distanciamento das pessoas e o enclausuramento em circunstâncias as mais diversas, a depender da condição social e da dimensão habitacional onde cada família vive, é um elemento novo e diferencial nessa situação que estamos vivendo. Certamente, o pós-quarentena trará novos comportamentos sociais. Em primeiro lugar porque a crise imporá uma necessidade do estabelecimento de relações muito mais solidárias, em função do aumento da miséria e a disseminação da pobreza; em segundo lugar porque esse confinamento poderá trazer diversas reflexões sobre as formas como temos vivido em sociedade até então, com um distanciamento entre os próximos, e uma proximidade entre os distantes. Aquilo que nos transformou enquanto sociedade com o advento de novas tecnologias e das redes sociais, bem como dos mecanismos criados pela competição a qualquer custo e a necessidade de se garantir o primeiro lugar como condição de se ver inserido nos mecanismos inclusivos do sistema.
Penso que devemos resgatar aquilo posto pelo geógrafo Milton Santos em uma de suas últimas obras, e seguramente a de maior leitura: Por uma outra globalização. Não creio que devamos culpar a globalização pela disseminação do vírus, até porque outros vírus se disseminaram pelo mundo com alto grau de letalidade, embora não com a velocidade deste. Claro que nosso estilo de vida, nos últimos anos se acentuou muito fortemente pela forma como se deu a globalização, com o esvaziamento acelerado do campo e o crescimento exponencial das cidades, bem como uma forte destruição da nossa biodiversidade. Mas a globalização não é um sistema. Ela é apenas uma forma pela qual o sistema ampliou seu poder de contaminação da ganância, da usura, do acesso às novas tecnologias e das desigualdades sociais. No entanto esses são elementos inerentes ao sistema capitalista, em sua forma perversa, como descrito por Santos como uma das etapas, ou seja, da globalização como perversidade.[4]
Cumpre-nos enfatizar o aspecto final de seu livro, quando ele defende ser possível uma outra globalização, que possa primar pela solidariedade e pela necessidade de as pessoas por todo o mundo se ajudarem mutuamente, de forma a reduzir as desigualdades sociais. Porque não veremos, por mais que desejemos, o fim do capitalismo como consequência da disseminação da Covid19. Ainda teremos um processo lento e doloroso, de ampliação da crise, da miséria, do aumento das desigualdades sociais, da violência, da perseguição aos que lutam contra essas condições perversas, e o poder concentrado nas mãos dos representantes das grandes corporações, principalmente as financeiras, que podem sair dessa crise mais fortes e concentradas, na medida em que terão fortes injeções de recursos financeiros, como já está acontecendo e como aconteceu em 2008. Assim, suas garras podem se ampliar, através da aquisição de empresas em estado falimentar, levando as suas recuperações mediante a destruição de empregos, como se deu no final da década de 1980 na Europa e nos EUA, principalmente.
O que vai estar em jogo nos próximos meses pós-quarentena será a capacidade da sociedade não se abater com esse confinamento, e as organizações sociais e associações comunitárias conseguirem disputar contra o poder discriminatório do estado e das igrejas neopentecostais, o protagonismo no envolvimento das populações periféricas, apontando para elas a necessidade de seguir por um caminho de construção de relações solidárias e de comum união.