quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

TREZE ANOS SEM CAROL. O QUE MUDOU NO MUNDO. O QUE MUDOU EM MIM.

13 de dezembro de 2020. Reescrevo e atualizo esse texto a cada dois anos, desde 2016 quando o publiquei pela primeira vez no Blog Gramática do Mundo. E agora inserindo também em vídeo no meu Canal do You Tube. É uma necessidade, uma catarse, escrever algo sobre minha filha nessa época. Gosto quando muitos o leem, compartilho alguns sentimentos necessários, principalmente nesses tempos turbulentos, mas fico aliviado somente por escrever.

Há 13 anos vivíamos o pior momento de nossas vidas. A pequena Carol falecia aos dez anos de idade em 13 de dezembro de 2007. Tudo mudou para nós, e por muito tempo passamos a conviver com a necessidade de lidar com uma situação absolutamente cruel. Ver a morte de uma filha, ou quando acontece a um filho, nos empurra para o fundo de um poço, e temos assistido tantos pais e mães a perderem seus filhos, isso é cruel, seja qual for a razão. A depressão é praticamente inevitável, e evitá-la é muito difícil, só possível se buscarmos nos envolver em alguma atividade que tenha relação com aquele ente falecido, para que a lembrança de sua presença fique latente desde os momentos iniciais de sua morte. O sentimento da ausência, porquanto durar, somente nos faz despencar cada vez mais no abismo de um vazio que se transforma em doença.

É muito difícil equacionar essa perda. Tive muitas dificuldades em sentir a presença de minha filha em sua ausência. É uma dialética perversa, o limite de uma contradição presente sempre por todo o tempo em que vivemos. Podemos conviver com a ideia da morte, sabendo que ela naturalmente nos atinge, dentro de uma lógica inevitável. Mas nossas forças não são suficientes para suportar a perda de uma filha, ou de um filho. É uma sensação de fracionamento de seu corpo, de tal forma que somos acometidos de uma enfermidade denominada no ambiente da medicina como “síndrome do coração partido”.

Uma das formas de suportar essa dor foi me dedicar a escrever. Neste blog, e, antes dele na edição de um livro de crônicas dedicadas à minha filha e que intitulei, “Depois que você partiu”. Assim o fiz por um ano, logo depois da morte dela. E, nos anos seguintes, sempre que a angústia me tomava conta, ou naqueles dias cujas datas são marcantes, porque elevam a saudade a patamares insuportáveis. A proximidade do dia em que, fatidicamente perdemos nossa pequena Carol, sempre nos deixa reflexivos, tristes. Isso ter acontecido no final do ano torna as festas deste período menos alegres do que antes, quando ela vivia entre nós. Esses momentos perderam parte de seus brilhos, tornaram-se, pelo menos para mim, até mesmo sombrios. Fico torcendo para que os dias de dezembro passem mais depressa.

O tempo ameniza a dor, aprendemos sempre isso. É verdade. Porque também precisamos encontrar formas de continuar vivendo. Sempre digo que a melhor maneira de ter minha filha ao meu lado continuamente, em boas lembranças de sua presença em vida, é estar vivo e saudável.

Mas aprendi a sair das tristezas e, aos poucos, fui reforçando cada vez mais a sensação de tê-la comigo, em meu coração, em minhas lembranças, ao meu lado. Aprendi que tristeza e alegria convivem mutuamente, e que felicidade é um conceito muito relativo, que se adéqua somente a momentos precisos, nunca a felicidade pode ser algo permanente em nossas vidas.

Como posso ser feliz, sem minha filha? Não sou. Tenho alegrias e tristezas, e aprendi a viver dessa maneira, porque minha vida segue ao lado das pessoas que eu amo. E minha filha segue comigo, bem apegada ao meu peito, do lado esquerdo, e a sinto na pulsação das minhas veias e nas batidas do meu coração.

Depois que minha filha partiu muita coisa mudou em minha vida. Se já não somos os mesmos à medida que envelhecemos, deixamos de ser muito mais, quando perdemos uma filha. Nos tornamos mais emotivos, sensíveis com a realidade que nos cerca, a presença dos familiares e amigos, em gestos solidários a nos confortar, desperta uma sensação altruísta, um sentimento que sempre nos acompanhou enquanto humanos, apesar de esquecido em algum canto nos dias atuais.

Afastei-me por um tempo de diversas atividades, profissionais e políticas. A condição depressiva me desestimulava. Somente a sala de aula, onde por diversas vezes me emocionei em frente a meus alunos e alunas, me dava algum alento. O prazer de dar aulas me aliviava das angústias, paradoxalmente tratando nelas as contradições de um mundo em transe. Aos poucos, os anos, o tempo, diminuiu meu desalento. A não ser em datas específicas, quando não podemos fugir da amargura, da angústia e da ansiedade. As lembranças vêm com muita força. A pandemia causada pela Covid19, essa doença perversa que nos isola e nos distancia torna mais difícil reviver aqueles momentos de treze anos atrás, que sempre retornam nos finais de ano. Nessas condições em que nos encontramos, a distância dos amigos e amigas, até mesmo dos parentes, de quem sempre nos encontramos para reconfortar das angústias, deixa os dias mais tristes ainda.

São treze anos que parecem uma eternidade, mas, paradoxalmente, parece que foi ontem que nos debruçamos pela última vez sobre o corpo de nossa filha, já sem vida, numa imagem que ficará retida em nossas mentes até o último dia de nossas vidas. Cada momento, cada segundo, daqueles infortúnios desde quando soubemos de sua morte, em que o chão se abriu para nós, e, que alguns creem, os céus se abriram para ela, se repetem como flashes em nossa memória, ou, como no linguajar das novas tecnologias das redes sociais, como “gif”. Imagens em movimento que se repetem. Somente no cotidiano de nossas atividades, a nos ocupar pelo que necessariamente precisamos fazer, encontramos lapsos de tempo, que nos distraem, e seguimos o curso de nossas vidas. Mas, jamais, como antes. Perdemos um pouco de nosso corpo e de nosso jeito de ser. Como diz Antoine de Saint-Exupéry: “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós, deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”.

Mas, parafraseando Chico Buarque, em uma das tantas músicas que nos lembram da Carol, o tempo passou na janela, e ela não mais estava aqui para ver as transformações aceleradas de um mundo e um tempo que deveria ser seu, que certamente lhe traria dissabores, mas que inevitavelmente a faria se incorporar às lutas contra as injustiças sociais, por liberdade, respeito e tolerância. Essa sempre foi nossa luta, e por dez anos ela conviveu conosco em ambientes de debates, discussões e lutas sociais.

Quando a Carol faleceu o nosso país vivia momentos de expectativas positivas. As esperanças deixavam as pessoas animadas com as possibilidades de adentrarmos em um outro mundo, de desenvolvimento e de redução de desigualdades sociais. Apesar de já naquele momento, escândalos de corrupção também serem a tônica dos noticiários, era nítido uma mudança no país, que crescia em termos de aumentos de empregos, de sensação de melhorias nas condições de vida das pessoas, de perspectivas positivas. Em 2007 já se estremeciam por todo o mundo os alicerces de um sistema econômico que avançou o sinal, e onde a ganância expôs as debilidades de uma estrutura que era tênue, porque escorada numa especulação financeira desenfreada.

Por todo aquele ano alertei em minhas aulas para o desastre que se apresentava como eminente, apesar de escondido pela grande mídia. Mas isso já era abordado por especialistas e publicado inclusive em livros. O ano em que minha filha morreu, pode-se dizer, foi o último ano tranquilo do resto de nossas vidas. E isso não é uma análise amarga causada pela perda que tivemos com sua morte. O ano de 2008, que nos levou a uma imensa escuridão, por ser o primeiro ano sem a presença dela entre nós, foi também o momento de uma grande virada na conjuntura econômica e geopolítica mundial. Tudo seria diferente a partir de então.

Como a acompanhar nosso calvário, naquele sentimento de dor, que ainda nos acomete, mas sufocado pelo tempo e superado por nossas forças de viver, também nossas expectativas de um mundo melhor, de um país diferente, começou gradativamente a se desvanecer. Diferente de nosso infortúnio, repentino e aos poucos restrito a parentes próximos, mas fundamentalmente a mim, como pai, e a minha esposa, como mãe, as desgraças que afetaram o mundo e o país foi, pouco a pouco ampliando e atingindo um número cada vez maior de pessoas.

E, ao passo em que fui me transformando pela minha dor e sensibilizado pelo número grande de pessoas amigas que demonstravam sempre o afeto e a solidariedade com nosso sofrimento, percebendo cada vez mais a importância de entendermos o sentido de alteridade por todos os momentos de nossas vidas, o mundo e o nosso país caminhava num sentido oposto, marcado pela disseminação do ódio, do preconceito, da rivalidade política extremamente agressiva (antessala do fascismo), pelo aumento perigoso da intolerância e na incapacidade de entender, compreender e escutar o outro. A crise econômica, num ambiente de consumismo exacerbado e de disputa cada vez mais individualista, arduamente e duramente competitiva, jogou a sociedade humana num enorme poço de dimensões profundas e cada vez mais impossível de se enxergar a luz.

Procurei por esse período ser compreensivo com as diferentes opiniões e formas das pessoas se manifestarem e escolherem suas maneiras de viver e se comportar. Até porque, imerso em minha dor, pouco ânimo eu tive nos primeiros anos depois que perdemos a Carol, de me envolver com qualquer tipo de embates e polêmicas que pudessem significar um confronto com alguém por simples divergências quanto às suas escolhas de vida, política e ideológica.

Mas, aos poucos fui me reencontrando com o meu passado, tristemente sem a minha filha, mas que, sem resgatá-lo eu me afundaria mais e mais na depressão. A sensação de tê-la presente, conforme muito me orientou a psicanálise, foi aos poucos me tirando da letargia e me trazendo de volta para a realidade e para resgatar a impulsividade que me marcou por toda a minha militância política, estudantil e sindical. Ainda assim, muito mais compreensivo no entendimento das diferenças, e tendo aprendido muito com as manifestações de solidariedade e carinho de amigos, amigas e até mesmo pessoas distantes que passaram a conhecer nossas histórias, pelo livro que escrevi e pelo projeto criado por minha esposa, Celma Oliveira, concretizado hoje na existência do Instituto Ana Carol, e, através dele, mas que se tornou maior, a Cooperativa de Bordadeiras – Bordana.

Assim como pelo amadurecimento na luta, e com uma formação política inteligente que nos enche de orgulho, de nosso filho Iago, atualmente presidente da União Nacional dos Estudantes, entidade da qual participei em meus tempos de estudante. Embora orgulhosos com isso, o que certamente nos motiva vê-lo seguindo nossos passos e se destacando, mesclamos esse sentimento com outro, a preocupação com a situação de indefinição que ronda o nosso país e a necessidade de ele precisar se enquadrar em um mercado de trabalho que se tornará cada vez mais competitivo e excludente pelo ambiente de crise e desemprego crescente. São sentimentos naturais, de pais que se preocupam com o futuro de seu filho, agora único, mas, como já disse em outras oportunidades, que carrega duas vidas pela consequência do acaso e do destino.

Vivemos, portanto, nesses treze anos uma luta intensa contra a dor de perder uma filha. Superar tornou-se o verbo que passou a ser por nós expressado intensamente, e superação o substantivo que nos impedia de chegar ao limbo. Isso é algo permanente, que nos acompanhará para sempre. Mas, tendo conseguido nos reencontrarmos com a intensidade que a vida nos impõe em realidade, e sendo uma característica que sempre me acompanhou, percebi que mais do que viver essa realidade eu deveria lutar para melhorá-la, mesmo que como uma gota d’água em um oceano de problemas que nos afetam em nossas vidas particulares, no país e no mundo. 

Assim, juntamos nossas lutas, sem por nenhum momento nos esquecermos de nossa pequena Carol, uma estrela que nos ilumina, um raio de sol que aponta os nossos caminhos. Iago cada vez mais se afirmando como uma liderança estudantil nacional, essencial para levantar a parcela da população que mais grita e impõe medo aos governos, a juventude; Celma com seus projetos de economia solidária e cooperativismo, se capacitando com uma pós-graduação nessas área; e eu, imerso em um mundo que representa um microcosmo da sociedade, mas que exerce uma enorme importância sobre ela: a universidade. Apesar dos ataques toscos e da estúpida “guerra ideológica” escarnecida por um governo medíocre adepto da necropolítica, sem nenhum respeito à vida, à ciência e ao conhecimento.

Treze anos depois, (desde o dia 14 de dezembro de 2007, treze anos do sepultamento da nossa pequena, em que entramos na contagem desses anos sem ela), certamente somos os mesmos, embora diferentes. Eu me sinto muito mais tolerante no tratamento de situações em que o nosso julgamento só pode atingir apenas uma superficialidade do acontecimento. Porque no mais, ir além da superficialidade, impõe que eu conheça a realidade do outro, sua forma de pensar e de viver, suas crenças e escolhas de caminhos por vezes diferentes do meu. O que digo nessas últimas frases representa o sentido de alteridade, aquela necessidade que temos, ou que deveríamos ter sempre, de nos vermos no outro, para que isso facilite cada vez mais a nossa condição de vivermos em sociedade aceitando o jeito diferente de cada um ser, sem preconceitos e mais tolerantes. Caminho natural para adquirirmos empatia e sabermos lidar com as diferenças.

Mas isso não tem sido fácil nos tempos atuais. As recorrentes crises econômicas, que afetam as estruturas do sistema capitalista, esse que se impôs hegemonicamente de forma unipolar a partir da última década do século passado, acentuou embates terríveis dentro da sociedade, seja na disputa pelo poder, seja na necessidade de se conquistar um lugar a fim de adentrar o universo do consumismo. Se qualificar e ganhar muito bem, tornou-se uma obsessão, que se descortinou como uma onda, principalmente pela maneira como a burguesia mundial, por meio de seus mecanismos ideológicos de imposição dos valores, via globalização e políticas neoliberais, consolidou na maior parte do mundo. Mas fracassou.

Isso foi bem e criou uma fantasia de um mundo deslumbrante mediado pela concorrência e pelo mercado, mas por pouco tempo. Só que o tempo suficiente para o despontar de uma época marcada por esses valores de forma tão intensa, em função dos meios tecnológicos que se desenvolveram nesse período, que disseminou entre as pessoas um valor das coisas de forma absolutamente fútil, e uma inversão daquilo que antes importava mais. Os sentimentos se diluíram muito mais do que antes, embora já existisse, como uma tendência que só era controlada devido à existência de um mundo socialista que se apresentava como alternativa ao capitalismo egoísta e usurário. Quando aquele mundo ruiu soterrou boa parte das esperanças, enquanto despertou neste a ganância, a usura e o individualismo. Tudo isso em meio a uma crise imensurável.

A pandemia gerada pela Covid19 chegou e nos atingiu em meio a uma situação de fragilidade do mundo, de desespero gerado pelo crescimento de desemprego e ampliação das desigualdades sociais. O distanciamento social, tornado uma necessidade pela ferocidade da contaminação do vírus SARS-COV2, aliado a negacionismos no trato de uma doença terrível pela desconstrução da ciência, justamente a única capaz de apontar saídas para essa tragédia, bem como o menosprezo por parte de um governo obtuso, que desvaloriza a vida, nos deixou à mercê de incertezas piores do que aquelas que vivenciávamos nos momentos mais difíceis da perda de nossa filha.

Karl Marx, a quem recorro sempre, possui frases que, mesmo destacadas do contexto em que abordou, são emblemáticas porque se aplicam, filosoficamente compreendendo-as, a diversas épocas. E uma que eu destaquei consta do Manifesto do Partido Comunista: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.

Iago - Manifestação pela educação
(Curitiba - PR)

O mundo sem minha filha é esse em que, diante de uma crise crônica, sistêmica, somos obrigados a compreender as condições sociais em que estamos e como as relações estão sendo destruídas em ambientes onde se fortalece o egoísmo, a ganância, a intolerância, a perversidade e o uso pérfido e em vão de Deus, com a utilização da fé como instrumento de guerras santas contra fantasmas criados e construídos por sicofantas hipócritas, vendilhões de templos e aproveitadores de crenças alheias. Assim, meu desalento teima em voltar, e torna mais tristes esses momentos que nos trazem memórias terríveis.

Contudo, fui percebendo que depois de tantos anos me debatendo contra as injustiças sociais, estudando-as e participando ativamente de lutas para combatê-las, isso se tornou um alimento que me fortalece e me dá ânimo para encarar tempos tão difíceis, mas diante dos quais não podemos nos entregar. Mesmo com o coração pesado por carregar tamanha dor e tristeza.

Neste dia 13 iremos ao cemitério mais uma vez, como fazemos todos os anos, e, silenciosamente estabelecerei um monólogo com suas lembranças, também como sempre faço, reforçando nossas saudades, e refletirei sobre como ela se situaria neste mundo. Se seus desejos, enquanto criança poderiam ter se concretizado, se meus sentimentos seriam diferentes caso não tivesse passado por tamanha dor, se seus beijos e afagos por tantas vezes repetidos manteriam a mesma singeleza num tempo de tantas incertezas, se suas vontades se encontrariam com os verdugos da liberdade, se bateriam contra os arautos da intolerância e encontrariam forças para gritar, como seu irmão, contra as injustiças sociais. Cremos, com toda convicção, que ela carregaria nesses tempos as mesmas indignações e desejos de transformações que correm em nosso sangue, e estão presente no Iago, pois esses valores sempre nos acompanharam em nosso cotidiano, na realidade que vivíamos no passado e vivemos no presente.

E, dentre tantas músicas que nos fazem sentir tanta falta dela, quando as escutamos, “Você é linda”; “Jardim da Fantasia”; “Carolina”; “Gostava tanto de você”; “Com a perna no mundo”; “Velha Infância”... uma recitarei sempre de forma especial, porque como tantas sempre nos emociona, e às vezes nos faz chorar, “Pedaço de Mim”: “Oh, pedaço de mim/ Oh, metade adorada de mim/ Lava os olhos meus/ Que a saudade é o pior castigo/ E eu não quero levar comigo/ A mortalha do amor/ Adeus”.

Nesse monólogo surdo com minha filha, como uma oração de um ateu, crente que irá algum dia encontrá-la, “seja onde for, pra falar de amor”, assim, eu expressarei em pensamento:

Celma e Carol - 1997

“Treze anos depois sem você, Carol, em seus vinte e três anos construídos em nossas fantasias, nosso amor se mantém como nos dez anos em que a tivemos ao nosso lado, presencialmente, com afeto, com carinho e com alegria. Nossa vida terá sempre você ao nosso lado, a nos dar forças para encarar os infortúnios, as incertezas e o tempo que nos encaminha para a velhice. E você está sempre presente quando olhamos seu irmão, porque ali estão juntos também seus traços, suas vontades, seus desejos de justiça, seus clamores por um mundo mais justo e solidário e o coração repleto de bondade, empatia e da luta pelo comum. Por um novo mundo, mais solidário.

E assim, a cada ano em que passamos mais tempo sem você, nos leva a estarmos mais próximos do dia em que, quem sabe, possamos estar para sempre ao seu lado. Beijos. Seu pai”.

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(*) Este artigo foi escrito originalmente em dezembro de 2016. Atualizei-o, porque, em essência, continua a representar o pensamento que me acompanha neste momento em que se completam treze anos da morte de Ana Carolina Oliveira Campos, nossa eterna Ana Carol.

https://gramaticadomundo.blogspot.com/2016/12/nove-anos-sem-carol-o-que-mudou-em-mim.html

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

ESTADO, AGRONEGÓCIO E MEIO-AMBIENTE – POLÍTICAS TERRITORIAIS E O MODELO DE DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA BRASILEIRO

Nos últimos tempos o mundo tem se deparado com um desafio, muito além das preocupações malthusianas, mas que nos força a relembrar das teorias de Thomas Malthus.  A análise que indicava a impossibilidade da humanidade poder garantir produção de alimentos para uma população que crescia vertiginosamente, praticamente perde força quando passamos a conviver com a capacidade tecnológica que o mundo alcançou ao final do século XX, inclusive na possibilidade de produzir alimentos nas situações mais adversas. 

Técnicas de lidar com o solo, inovações tecnológicas que aceleram o ritmo do plantio e da colheita, insumos que aumentam a capacidade produtiva, e o crescimento da indústria química utilizada no combate às pragas (para o bem ou para o mal), colocaram por terra boa parte das questões postas por Malthus.

Mas, por outro lado, há uma lógica que impede essa capacidade tecnológica de vir suprir a contento a necessidade que existe em quase todos os continentes, principalmente África e Ásia, de reduzir o número de indivíduos que vivem na mais absoluta miséria e com boa parte deles, principalmente crianças, morrendo de desnutrição. Não tem acesso aos alimentos básicos que possam garantir suas sobrevivências.

Essa lógica é a maneira como o capitalismo transforma toda essa capacidade tecnológica em potencial produtivo visando exclusivamente a ampliação dos lucros. Assim, existe sim, uma enorme potencialidade decorrente de todas as inovações que revolucionaram incessantemente os meios de produção, mas toda essa capacidade termina servindo aos interesses mais gananciosos de acumulação e concentração de rendas.

Produzir alimentos, principalmente as chamadas commodities, mercadorias que tem os seus preços fixados no mercado internacional tem atraído muitos investidores. Traduzindo em miúdos, são mercadorias, principalmente minerais e produtos agrícolas, com pouca ou nenhuma industrialização, consequentemente com baixíssima agregação de valor, permanentemente monitoradas pelas bolsas de valores.

Esses produtos agrícolas têm seus preços fixados em dólares em nível internacional, com uma produção de larga escala, como característica principal o fato de serem produzidos em grandes propriedades e quase sempre monoculturas. Seus preços são, portanto, variáveis não somente em função da cotação do dólar, moeda padrão de referência internacional, mas também porque termina também sendo submetidas às oscilações das bolsas de valores, e, consequentemente, estão sujeitas às manipulações tradicionais que ocorrem no mercado financeiro. O Brasil tem se destacado nesse setor, como um dos maiores produtores de Soja, superando os EUA em 2017. A soja, assim, soma-se ao café, suco de laranja, açúcar e carne bovina.[1] Embora essas produções oscilem de acordo com as condições climáticas.

Obviamente, esses mecanismos que movem o sistema capitalista global, não possuem a menor preocupação em transformar toda a capacidade tecnológica em investimentos para conter o aumento da fome em várias partes do mundo, notadamente nessas que citei anteriormente. Em alguns lugares, como na região da Somália e todo o seu entorno, no chamado “Chifre da África”, a situação aproxima-se de uma enorme catástrofe, com milhões de pessoas deslocando-se para outras regiões e boa parte delas sucumbindo à fome e perdendo suas vidas nesses trajetos.

Portanto, o interesse é meramente especulativo, com base na ganância e na garantia de lucros crescentes, como de resto é a maneira como o sistema funciona. Isso significa dizer que os investimentos possíveis de serem feitos obedecem à lógica do mercado mundial, e, portanto, se a crise econômica já estava alterando os rumos do capital, isso tende a ser mais determinante no pós-pandemia, até mesmo por conta da intensificação da necropolítica, termo elaborado por Achille Mbembe, inspirado nas formulações de Michel Foucault com a biopolítica e biopoder. Uma atitude de negligência e de negação de um racismo estrutural contido nas instâncias do Estado e reforçado por uma política governamental que despreza a vida, principalmente das camadas mais pobres e desassistidas da sociedade.

Mas é sempre bom considerar que o mercado de alimentos é potencialmente lucrativo, ou, melhor dizendo, das commodities agrícolas, já não mais somente como produtos que visem atender apenas às necessidades alimentares da população, mas também porque boa parte deles passa a se constituir em matéria-prima para produção de energia, como no caso da cana-de-açúcar (embora o etanol não seja ainda uma commoditie, o açúcar o é), o milho e outros que podem passar também a serem produzidos com esse objetivo. Além de boa parte da produção de soja atender ao mercado de ração para alimentar o gado que em boa parte do mundo, principalmente Europa é criado em confinamento.

A crise econômica, que segundo a ONU levará o mundo em 2021 a maior crise humanitária desde a segunda guerra mundial,  tende a ampliar a crise alimentar em algumas partes do mundo, mas a tendência deve se manter, de os investimentos continuarem sendo feitos naqueles produtos marcados como commodities porque são os que garantem mais divisas para os países como o Brasil e possibilitam maiores lucros a quem investe no mercado de produtos agrícolas. Mesmo que isso signifique uma crescente concentração de rendas, por serem produtos de baixo valor agregado. Para o Estado Brasileiro o que mais importa é o fato de essa atividade ser a principal responsável pelo superávit na balança comercial. Além do poder político que possui esse setor do grande agronegócio, de grandes latifúndios, sustentados no Congresso Nacional por uma forte banca ultra conservadora, empoderados pelas bancadas do boi e da bala.

Como esse é um espaço com enorme potencial produtivo e com ainda uma área cultivável imensa a ser explorada, se for desconsiderado, como tem sido, a importância da biodiversidade, provavelmente poucas alterações acontecerão em relação ao crescente interesse pela aquisição de terras em áreas desse bioma, como também na Amazônia e na região de transição entre o Cerrado e a Caatinga. Essa nova fronteira agrícola já atende pelo nome de MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí, e Bahia), que tende a se acelerar quando a ferrovia Norte-Sul entrar em funcionamento integralmente. Algum dia isso deve acontecer.

A delineação desse quadro, já em curso, tem levado à aquisição de grandes quantidades de terras por empresas, e suspeita-se que até mesmo governos estrangeiros através de “laranjas”, ou como chamávamos nos anos 1980, “testas-de-ferros”, e passa a se constituir em um excelente investimento, principalmente em regiões de expansão agrícola como o Cerrado.[2]

Consequentemente os impactos que decorrerão de tudo isso tende a ampliar o processo de degradação ambiental e de aceleração da devastação desse bioma. Por mais que as pesquisas desenvolvidas nas Universidades e por algumas ONGs e institutos focados na sustentabilidade ambiental, indiquem a existência de um rico potencial da biodiversidade do Cerrado, a resposta para investimentos e o quantitativo de lucro que advirá em atividades exploradas pelas populações tradicionais, não são suficientes para se contrapor a essa lógica gananciosa e destrutiva. Especulação, grilagem de terras e violência, tendem a aumentar, seguindo uma lógica perversa que afeta há décadas a população da Amazônia.

Nos dias de hoje assistimos estarrecidos aos desmatamentos impunes na Floresta Amazônica, avançando sobre áreas de proteção ambientais e reservas onde vivem populações indígenas, com o objetivo de espalhar gado por toda aquela região. À custa de um genocídio ambiental.

Cabe a todos aqueles que vivem nesses biomas sob perversos ataques criminosos e os que estudam sua riqueza natural e importância da sua biodiversidade, insistir em apontar os riscos que isso causa e a possibilidade de futuramente boa parte desses biomas se tornarem improdutivos e desertificados. O uso excessivo da água para irrigação, por exemplo, com a utilização de grandes pivôs centrais, a esgotarem rios, córregos e lençóis freáticos, é um bom exemplo dos desatinos que se cometem sem levar em conta os desgastes inevitáveis desses excessos, como por exemplo, a salinização do solo.

Acrescente-se a isso outros interesses que estão por trás desse modelo de produção agrícola. Refiro-me agora às essas disputas exercidas por corporações gananciosas, e criminosas, que inundam o campo com produtos químicos responsáveis pela ampliação dos casos de câncer, e outras doenças que causam deformidades, no Brasil e no mundo. São os agrotóxicos, venenos que eliminam pragas, mas que trazem junto um efeito perverso e profundamente destrutivo para as pessoas e toda a biodiversidade.[3] Agora que os representantes latifundiários tomaram o Congresso de assalto, já se realizam mudanças da legislação para facilitar a comercialização desses venenos.[4]

Essas corporações, a maioria multinacionais, ou transnacionais (porque o mercado de ações se globalizou), usam de todos os tipos de práticas delinquentes para burlar legislações e buscar apoio em setores políticos conservadores com o intuito de conter proibições – como ocorre em outros países – mesmo para certos produtos claramente comprovados como extremamente nocivos à vida humana. Calcula-se que cada brasileiro, em média, por ano consuma em torno de 5,2 litros de agrotóxicos, embora existam estudos que apontem para uma maior quantidade.[5]

E essas Corporações atuam não somente na área de alimentos, como é de suas características, mas em outros setores geradores de disputas internacionais e guerras como o petróleo, indústria farmacêutica e de produtos veterinários. São gigantes que possuem fortes influências em poderosos Estados-Nações, principalmente os de suas origens, como os Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha etc. Muitas delas tem seus produtos também fabricados aqui no Brasil, como Basf, Bayer, Syngenta, DuPont e Monsanto.

Como defender o Cerrado e a Amazônia em um tempo em que todos os olhares gananciosos e geopolíticos estão voltados para esses imensos chapadões de uma paisagem que dá uma impressão de pobreza, mas que esconde uma enorme riqueza? Se todas as transformações que são visíveis nos Estados centrais, ou do imenso sertão brasileiro, se deram às custas de grandes investimentos agrícolas, e com isso possibilitou um forte crescimento econômico, como frear nos dias de hoje a continuidade de um processo que se agigantou e ameaça a riqueza natural de um importante bioma? Pois se foi exatamente isso que aconteceu com a Mata Atlântica, em toda sua extensão, desde o Nordeste brasileiro até o Sudeste? A diferença é somente temporal, pois enquanto a destruição da Mata Atlântica levou séculos para atingir esse percentual ínfimo de menos de 15% do remanescente original, o ímpeto e a celeridade com que se dá a destruição do Cerrado e da Amazônia é muito mais acentuado, decorrente de todos os avanços tecnológicos e levará apenas décadas para atingir esses mesmos índices.

Esse é um desafio que se apresenta para todos aqueles que são estudiosos do Cerrado e da Amazônia, mas que compreendem também todo o processo de desenvolvimento socioeconômico desse enorme sertão brasileiro, até a metade do século XX pouco valorizado. O progresso que se vê é conseguido às custas de uma enorme concentração de riqueza, como decorrência do modelo agrícola utilizado, que causa outros efeitos colaterais. Um deles, a expulsão de quase toda uma população rural para as cidades, potencializando um crescimento desordenado das mesmas e um cinturão de miséria em suas periferias responsáveis em grande parte pelo aumento da criminalidade e do consumo de drogas que destrói o futuro de boa parte da sua juventude e mantém as pessoas reféns da violência e do medo.

Assim, são as condições criadas pela acelerada penetração em direção ao heartland brasileiro, desde a marcha para o Oeste na época varguista, até a instalação da capital federal, seccionando o território goiano, e todo o projeto de integração nacional visando o controle estratégico da grande Amazônia posto em prática por Juscelino Kubitscheck no final da década de 1950 e consolidada pelos governos da ditadura militar.

Mas foi mesmo a revolução tecnológica na agricultura o principal responsável pela transformação acelerada de um solo seco em terreno de ótimo potencial produtivo. Aliado à característica climática sem muitas alterações, dividida em duas estações, a seca e a chuvosa, propícia à atividade agrícola e à pecuária.

Desfazer essa visão de um território somente adequado à instalação do grande agronegócio, e buscar outros caminhos alternativos de desenvolvimento, que se preocupe com a conservação da biodiversidade e de outros modelos sustentáveis de produção agrícola, é uma enorme tarefa, que cabe à universidade, aos pesquisadores e a todos aqueles que lutam pela exploração democrática e não destrutiva das riquezas que a natureza possui, em benefício da maioria e em prol da construção de um mundo com outra compreensão a respeito da vida.

É evidente que a conjuntura política torna muito difícil essa tarefa. Aliado a uma crise sanitária, decorrente dessa terrível pandemia que nos aprisiona. Infelizmente, a população brasileira, majoritariamente citadina e entregue às promessas divinas de prosperidades farsescas, tem feito escolhas políticas que alimentam políticos insensíveis para essas realidades e que incentivam todo o tipo de perversidades e práticas destrutivas sobre a natureza. O povo pobre das periferias nas metrópoles, e nas pequenas e médias cidades, que empoderam esses indivíduos, são os mesmos que sofrerão as mais perversas consequências, de políticas de estado concentracionistas e tendo como alvo a produção agrícola de commodities.

Ao apostar nesse tipo de investimentos o governo brasileiro, e da maioria dos estados, abdica de uma política econômica que valorize cadeias produtivas que possuam enormes valores agregados, com altos investimentos em ciência e desenvolvimento tecnológico. O incentivo ao grande agronegócio, além de perverso para a natureza e a biodiversidade dos biomas, expulsa do campo o pequeno produtor, não agrega valor aos produtos e alimenta uma desigualdade social criminosa, com a concentração de riqueza cada vez mais nas mãos de um percentual menor de pessoas. Além de enfraquecer o pequeno produtor, a agricultura familiar e o associativismo necessário para a sobrevivência do trabalhador rural e sua permanência no campo.

Isso representa um enorme atraso para o nosso país, para o nosso povo, e já se reflete nas estatísticas que apontam o crescimento da pobreza, do aumento do número daqueles que passarão fome nos próximos anos, mas, conforme tem sido divulgado amplamente, do crescimento da riqueza de um número restrito de bilionários sem nenhum compromisso com o desenvolvimento nacional brasileiro, e certamente possuidores de contas em paraísos fiscais, e de off shores, como denunciado nos escândalos recentes conhecido como “Panamá Papers”.

Nos cabe, conhecedores dessa realidade perversa, prosseguirmos apostando na ciência, no conhecimento, nas universidades, e no fortalecimento de diversas instituições não governamentais que são incansáveis em apontar essas políticas nocivas e defenderem os biomas que estão sendo destruídos e nos levando mais rapidamente, por conta dessas ações antropogênicas, para a sexta extinção, que afetará milhares de espécies em nosso planeta. Não é simples, mas requer disposição, compreensão e determinação para enfrentar esse momento muito complicado para o nosso país, para o planeta, para a natureza e a humanidade de maneira geral.


NOTAS:

(*) Esse texto é uma adaptação e atualização de artigos que já produzi e publiquei, inclusive aqui neste blog, preparado especialmente para o X MAF 2020, evento organizado pelo grupo PET GEO UFPE. A mesa redonda, da qual participei, ao lado da profª. Drª Monica Cox, foi intitulada: ESTADO, AGRONEGÓCIO E MEIO AMBIENTE: POLÍTICAS TERRITORIAIS E DESENVOLVIMENTO DO BRASIL, realizada por via remota em 02/12/2020. Pode ser acessada através do link: https://www.youtube.com/watch?v=kQ4XxWGuKTs


[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/brasil-assume-lideranca-mundial-na-producao-de-soja-segundo-eua.shtml?loggedpaywall – Acesso em 10.05.2018