sexta-feira, 22 de março de 2019

QUANTO MAIS IDIOTA, MELHOR

Tenho sentido uma ansiedade desmedida nos últimos meses. Ansiedade, frustração, raiva, desesperança… São sentimentos que, naturalmente, vão e vem dependendo da forma como reajo a cada instante em que me deparo com uma ou outra notícia sobre a política brasileira. Mas não só. Também sobre como a humanidade tem entrado num processo de transição de um sistema falido, mas ainda em alta em seu estado de perversão, para uma outra forma de sociedade indefinida, sequer em início de construção.
Estamos vivendo, portanto, uma transição longa e dolorosa, como aliás todas as transições também foram. Momento em que ocorrem choques e conflitos entre as forças que apontam para o progresso, para mudanças substanciais, e aquelas que tentam frear as transformações sociais e a entrada em um novo modo de se viver e de se aceitar as diferenças. Choque econômico, decorrência de uma crise estrutural, e como consequência disso choques de valores, de cultura, de comportamentos. Ampliação do ódio, da intolerância, do fundamentalismo religioso, enfim, do estado de conflagração social, ampliado pela violência e pelo medo, que se torna estratégia política dos setores conservadores. Tudo isso tem uma causa: a decomposição do sistema capitalista, cada vez mais excludente e concentrador, elementos contraditórios que o empurra para o abismo.
Esse quadro, que, a meu ver, sintetiza a crise estrutural e suas consequências conjunturais, nos leva por caminhos insólitos, às vezes impressionantes por ser resultados inesperados. E assim foi na mudança política que ocorreu após as eleições de 2018. Claro que tais situações são explicáveis, e no caso específico do Brasil, decorreu também de erros cometidos pela esquerda, sendo os principais deles negligenciar a crise sistêmica e negar, ou, menosprezar a ganância dos senhores do capital. Além de cometer erros repetindo vícios por tanto tempo combatidos, na relação republicana com o Estado e os privilégios que o Poder concede.
Mas, embora esses erros sejam capitais na política, o que pesa mesmo nessa transformação é o ambiente corrompido pela crise estrutural, em alguns aspectos não necessariamente ao alcance de medidas próprias de um governo. Principalmente porque a globalização trouxe essa consequência, a quase impossibilidade de um país se livrar das relações geopolíticas que afetam todo o sistema. E se nesse jogo nos situamos perifericamente, mais ficamos sujeitos as mudanças abruptas, e entre o jogo pesado travado entre as grandes potências, principais protagonistas nas relações internacionais.
Evidentemente que essas mudanças que acontecem aqui no Brasil tem ocorrido também por diversos países. Seja inevitavelmente, como consequência da crise estrutural, ou por ação das guerras híbridas, deflagradas pelos EUA sobre aqueles países que não se submetem estritamente aos seus interesses. Notadamente aqueles que situam-se em regiões estratégicas, ou possuem reservas consideráveis de petróleo em seus territórios. Esse segundo caso é o que nos envolve, enquanto país que buscava um protagonismo maior na geopolítica regional, e até mesmo mundial, bem como pelo fato de possuir uma enorme reserva de petróleo conhecida: o pré-sal.
Seguramente o Brasil não passaria ao largo, por essa crise mundial. Mas seu impacto poderia ser bem menor, diante das condições que tinham sido criadas na primeira década deste século. Restou à burguesia, aos segmentos reacionários da política brasileira e aos representantes dos interesses das corporações estrangeiras, construir uma crise que impusesse uma derrota a uma linha política que os assustavam, pelos seus resultados e pela perspectiva negativa de ter seus representantes de volta ao poder em médio prazo. Assim gestou-se, artificialmente, um golpe institucional. Propagandeou-se incansavelmente informações manipuladas, se não ainda as “fake-news”, mas algo parecido, notícias distorcidas repetidas ad nausean, invertendo todo o sentimento da população e fazendo com que as massas acreditassem que haviam sido traídas, e que o futuro seria melhor sacrificando aquelas lideranças que as ensinaram a sonhar com dias melhores.
O país passou por dias ruins, que se transformaram em meses e tem sido anos sofridos, com a intensificação de uma crise que inicialmente se deu por erros cometidos pelo governo Dilma, mas que foi potencializado escancaradamente e desavergonhosamente pela mídia, que comprou a idéia de derrubá-la a qualquer custo, sem que necessariamente pudesse encontrar em seu governo algo plausível para isso. Não era os erros que contavam, nem o desejo de corrigi-los. Mas a necessidade de tomar o Poder, e alterar o projeto em curso, retomando o viés mais abertamente liberal e alinhado com a economia restritiva das políticas sociais e da redução do Estado como suporte dos interesses mais vinculados às camadas mais pobres. Embora os governos de então tivessem feito concessões, ampliando o poder das corporações nacionais e dos bancos, o que importava era ter o Poder político, e o comando do Estado, nas mãos. E assim foi feito.
O golpe institucional, do qual participou o parlamento, a mídia e o STF, jogou o país no abismo. O parlamento, tresloucadamente pela ação de um deputado obcecado e ganancioso, um perfeito expert em solapar dinheiro público mediante pressões e chantagens, tornando-se um dos maiores gangster da política brasileira, os seus pares, em sua maioria, se identificava com o seu caráter; O STF por recusar-se em seguir preceitos jurídicos reconhecíveis até mesmo por um leigo, acovardando-se e negando-se a adotar uma postura que brecasse a loucura que estava em curso; e a grande mídia. Esta, em uníssono, se tornou a principal responsável por despertar a perversão de uma massa alienada, estúpida, conservadora e idiota, principalmente a classe média, reconhecida historicamente pelo oportunismo em portar-se nas crises ao lado de quem esteja em condições de assumir o Poder de acordo com os seus interesses imediatos. Agregando-se aos de cima e desprezando os de baixo.
Desde então entramos numa espiral de idiotização sem precedentes. Claro que essa característica acompanha muitos que se alienam e se afastam do mundo real. Vivem de fantasias, de crenças no imponderável, no improvável e no incomprovável. Mas são alimentados pelo medo. Medo da morte, da perda do emprego, da violência, dos pobres, dos negros, dos homossexuais… medo… medo… medo. Um fator de controle geopolítico, mas também de domínio das mentes e muito bem aproveitado pelas igrejas. Notadamente as de origem neopentecostais, cujo objetivo político, marcadamente reacionário, está explícito há décadas. E mais visível desde a primeira campanha eleitoral dos EUA que elegeu Barack Obama. Negro, descendente de africanos e tido naquele país como “comunista”.
Quando uso o termo “idiota”1, o faço em seu sentido etimológico, no significado original que representa determinado indivíduo que se aliena das questões essenciais que dizem respeito às formas como funcionam as estruturas governamentais e do Estado. Depreciativamente essa expressão vai tomando outras designações, que não deixam também de servir no perfil de boa parte da população, desinformada da essência do conhecimento, culturalmente tosca e conduzida pela propaganda midiática, fiel e servil a ensinamentos milenares decorados de livros sagrados e aplicados anacronicamente.
O bombardeio midiático, a crise instaurada, o aumento do desemprego e a violência, criaram as condições perfeitas para que entrassem em ação os personagens que carregassem esse perfil, e gradativamente tendo suas posições radicalizadas a ponto de tornarem-se agressivos, intolerantes e absolutamente refratário à política, e, principalmente, aos políticos, generalizando o seu olhar, mas não independente de distinções ideológicas. Foram gradativamente abduzidos pelo discurso da extrema-direita.
Aí entra a questão da ideologia. Alguns ressentidos personagens, cuja revolta pessoal dirige-se contra a academia, as universidades, por não serem reconhecidos nessas e sequer tivessem conseguido se verem aceitos em seus espaços, ou por não terem chegado sequer a concluir cursos secundários. Inclua-se nessa lista charlatões que ocupam púlpitos e apostam na idiotização para destilarem discursos de ódios, transformando o Deus que tantos procuram em uma figura vingativa, persecutória e alimentadora da individualidade gananciosa. O sentido coletivista, elemento essencial para a compreensão do cristianismo primitivo, tornou-se alvo de ataques, e aqueles que comportam esse sentimento visto como comunista, expressão tornada um adjetivo perigoso e sinônimo de comportamento pecaminoso. Substitui-se, nessas circunstâncias, e por meio desse discurso absolutamente ideológico, o sentido de libertação e de busca pelo bem-estar em sociedade, por um comportamento tosco, rude, que torna-se definidor de caráter, já que incorpora atitudes permeadas de ódio e de não aceitação do outro indivíduo que consigo vive nessa sociedade, por escolherem caminhos diferentes dos seus para viverem.
Alimentados nesse ódio, e com um discurso intolerante, falsos filósofos e teólogos tornaram-se referências, e encontraram um ambiente para transformarem esse público em uma sólida base, circunstancialmente, para consolidarem políticas regressivas, medidas medievalescas e projetos que retrocedem a tempos nefastos, de insensibilidade social e de negação das nossas diferenças, atacando perversamente os que buscam se libertar das amarras conservadoras e seguirem os caminhos que desejarem em suas escolhas sexuais e culturais.
Claro que com um quadro desses a eleição não poderia trazer surpresas. Embora muitos ficaram impactados com o resultado eleitoral. Mas haviam mais de dois anos que o Brasil caminhava para a escolha de um presidente que se encaixasse no perfil que esses idiotas desejavam. Enfim, buscavam alguém que lhes representassem nessas características que explicitaram nesse período. Alguém que fugisse do perfil tradicional trazido pela velha política, essa que foi largamente defenestrada, e que por consequência atingiu duramente a democracia.
Posto isso, ao fim e ao cabo tivemos um presidente eleito e um governo montado de acordo com o que essa turba revoltada, e tornada assim preventivamente, desejava. Ao seu perfil e à forma como sua consciência fundamentalista passava a determinar. O resultado não poderia ser diferente. Um governo caótico, desorganizado, cujo maior adversário é ele próprio e sua base insólita e gelatinosa. Ideologicamente definida, mas estupidamente refratária da ideologia, com um slogan do governo que prega um Deus vingativo, intolerante, homofóbico, racista, machista… enfim, carregando em suas ações e políticas tudo aquilo que por séculos tem sido combatido no afã de se construir uma sociedade mais humana e tolerante. Esses tempos ficaram décadas para trás. Contraditoriamente, os tempos que tinham ficado mais para trás ainda deram um salto, de séculos, se defrontaram desafiadoramente com a história e tentam reassumir a condução de nossas vidas.
Nessa conjuntura atual, o que esses que hoje governam desejam, eles e os que dominam multidões alienadas, é manter esse nível de (in)compreensão. Portanto, quanto mais idiotas, melhor. Claro, não podemos entrar nesse jogo baixo, devemos elevar as consciências, trazer as discussões para a racionalidade.
Seguramente, estamos diante de um desafio que não é único em termos de situações desesperadoras. A humanidade já conviveu com situações piores. No entanto, não se pode neglicenciar a capacidade desses obtusos que nos governam, e aqueles que conduzem milhões controlando seus cérebros e os mantendo cegos para a realidade, de fazer emergir fantasmas já exorcizados do passado. O fundamentalismo econômico, base da barbárie social, e o fundamentalismo religioso, responsável pelos crimes de ódio e intolerância, estão sendo chocados há anos e precisam ser combatidos enfaticamente. Essa é a condição de termos uma sociedade liberta desses farsantes e dos medos que eles alimentam. Só no enfrentamento ideológico a humanidade poderá retomar aquele patamar do final do século XX e começo do século XXI, da expectativa de melhorias sociais consideráveis e de pavimentação dos caminhos que pudessem levar àqueles modelos de sociedades desejadas, baseadas na cooperação e na solidariedade.

É hora de retomar a Utopia, arregaçar as mangas e combater as trevas medievais. Luz! Combater a alienação, a estupidez e a idiotização. Isso deu certo uma vez, certamente nos ajudará mais uma vez a reencontrar o caminho da justiça social e da paz.
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1 https://www.significados.com.br/idiota/