sexta-feira, 28 de março de 2014

A GEOGRAFIA DO MANIFESTO

Por David Harvey(*)
Publicado em (**):

É imperativo reacender as paixões políticas presentes no Manifesto. Eis um documento extraordinário, cheio de insights, rico em sentidos e explodindo em possibilidades políticas. Embora não tenhamos o direito de o alterar, temos a obrigação de interpretá-lo à luz das condições contemporâneas. Marx e Engels escreveram, no prefácio à edição alemã de 1872, que a aplicação dos princípios do Manifesto dependeria, “em todos os lugares e em todas as épocas, das condições históricas vigentes” (p.71).
Sem expansão geográfica, reorganização espacial e desenvolvimento geográfico desigual, o capitalismo teria parado de funcionar há muito tempo. A procura contínua de um “ajustamento espacial” para as contradições internas do capitalismo, junto com a inserção desigual dos diferentes territórios e formações sociais no mercado mundial capitalista, tem criado uma geografia histórica mundial da acumulação capitalista, cuja natureza precisa ser bem compreendida. Vale a pena examinar como Marx e Engels conceituaram o problema no Manifesto Comunista.
*
A abordagem que fazem é profundamente ambivalente. Por um lado, as questões da urbanização, da transformação geográfica e da “globalização” ocupam um lugar importante na exposição. Mas, por outro, as ramificações potenciais das restruturações globais tendem a se perder em uma retórica que privilegiam o tempo e a historia em detrimento do espaço e da geografia.
O Manifesto é, sem dúvida, eurocêntrico. Mas a importância do contexto global não é ignorada. O surgimento da burguesia é intimamente ligado a suas atividades e estratégias:
“A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a expansão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média.” (p.41)
A burguesia ultrapassou os poderes feudais e transformou o Estado (com os seus poderes militares, organizacionais e financeiros) no executivo das suas próprias ambições. Uma vez instalada no poder, continuou sua missão revolucionária em boa parte através de transformações geográficas. Internamente, a rápida urbanização levou à dominação da cidade sobre o campo, simultaneamente salvando-o da “estupidez” da vida rural e reduzindo o campesinato a uma classe subordinada. A urbanização concentrou espacialmente tanto as forças produtivas quanto a força de trabalho, transformando populações espalhadas e sistemas descentralizados de direitos à propriedade em concentrações maciças de poder político e econômico. E depois:
“Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.
Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela roubou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas — indústrias que já não empregam matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do mundo.  Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos.
No lugar do antigo isolamento de regiões e nações auto-suficientes, desenvolvem-se um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum. A estreiteza e a unilateralidade nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal.” (p.43)
Aliás, a burguesia:
“Sob pena de ruína total [...] obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.” (p.44)
A temática da globalização e da “missão civilizadora” da burguesia é explicada, embora com um toque irônico. Mas, se a missão geográfica da burguesia é a reprodução das relações de classe e de produção numa escala geográfica de progressiva expansão, então as bases para as contradições internas do capitalismo e a revolução socialista também se expandem geograficamente. A conquista de mercados abre o caminho para “crises mais extensivas e mais destrutivas,” enquanto simultaneamente “diminuem os meios de prevenir as crises”. A luta de classes começa a ser global; trabalhadores de todos os países tem que se unir numa luta revolucionária anticapitalista e pró-socialista.
Existem vários problemas nesta explicação. Eles precisam ser resolvidos se quisermos desenvolver uma compreensão politicamente útil de como a geografia da acumulação do capital ajuda a perpetuar o poder da burguesia e suprimir os direitos e aspirações dos trabalhadores.
1.
A divisão do mundo em nações “civilizadas” e “bárbaras” é anacrônica, senão positivamente ofensiva, ainda que possa ser perdoada como típica da época. O modelo centro-periferia de acumulação que a acompanha é, na melhor hipótese, uma simplificação excessiva e, na pior, enganoso. Ele faz parecer que o capital se origina em um lugar (a Inglaterra ou a Europa) e depois se difunde para fora, atingindo o restante do mundo. Embora, às vezes tenha sido o caso, tal explicação é contrária ao que aconteceu no Japão depois da restauração Meiji ou o que está acontecendo hoje em dia em países como Coréia do Sul e a China, que internalizam a acumulação primitiva e inserem as suas forças de trabalho e produtos nos mercados globais. A geografia da acumulação de capital merece um tratamento muito mais elaborado do que o esboço rápido provido pelo Manifesto. A falta de uma teoria geográfica do desenvolvimento desigual (com frequência envolvendo acumulação primitiva desigual) impede a compreensão da dinâmica da formação da classe operária e da luta de classes no espaço global.
O mundo não se apresenta como um tabuleiro sobre o qual a acumulação do capital jogou o seu destino. É uma superfície muito variada, diferenciada ecológica, política, social e culturalmente. Os fluxos do capital encontram alguns terrenos mais fáceis de ocupar do que outros, em diferentes fases de desenvolvimento. O contato com o mercado global capitalista levou algumas formações sociais a se inserirem agressivamente, enquanto outras não o conseguiram, com efeitos extremamente importantes. A acumulação primitiva ou “original” pode acontecer e tem acontecido em lugares e tempos diferenciados. Como e onde acontece depende das condições locais, ainda que os efeitos sejam globais. Hoje é crença generalizada no Japão, por exemplo, que o sucesso comercial do país após 1960 deveu-se, em grande parte, à posição isolada e não competitiva da China depois da revolução e que a inserção contemporânea do poder chinês no mundo capitalista significa o fim para o Japão como um país produtor, ao contrário de uma economia rentista. Uma contingência geográfica deste tipo tem um papel importante na história do mundo capitalista. Aliás, o caráter global da acumulação do capital cria o problema de um poder burguês disperso que pode ser muito mais difícil de controlar geopoliticamente precisamente por causa de sua multiplicidade geográfica. O próprio Marx se preocupava com esta possibilidade. Em 1858, escreveu:
“Para nós a pergunta difícil é a seguinte: a revolução no continente é iminente e o seu caráter será socialista; não será necessariamente esmagada neste pequeno canto do mundo, sendo que em um terreno muito maior o desenvolvimento da sociedade burguesa é ainda ascendente”. [Correspondência com Engels, 8 de outubro de 1858]
É instrutivo refletir sobre o número de revoluções socialistas que foram cercadas e esmagadas pelas estratégias geopolíticas de um poder burguês em ascendência.
2.
O Manifesto corretamente destaca a importância de reduzir as barreiras espaciais através de inovações e investimentos em transporte e comunicação. Neste sentido, o Manifesto é de uma extraordinária presciência. “A aniquilação do espaço através do tempo”, como Marx o chamou posteriormente [Grundrisse], enfatiza a relatividade das relações espaciais e vantagens geográficas, fazendo da vantagem comparativa no comércio um assunto muito dinâmico, em vez de estável.
3.
Uma das maiores lacunas do Manifesto é a sua falta de atenção para a organização territorial. Se, por exemplo, o Estado é “o braço executivo da burguesia”, então ele tem que ser definido, organizado e administrado territorialmente. O século dezenove foi um grande período de definições territoriais (com o estabelecimento da maioria das fronteiras do mundo entre 1870 e 1925 pelos poderes coloniais). Mas a formação e a consolidação do Estado envolve mais do que a definição territorial e tem se mostrado uma tarefa longa e muitas vezes instável (em particular, por exemplo, na África). Foi só depois de 1945 que a descolonização tornou a formação mundial do Estado um pouco mais próxima do modelo altamente simplificado do Manifesto.
4.
O Estado é só uma das muitas instituições mediadoras que influi na dinâmica da luta mundial de classes. O dinheiro e as finanças também têm que ser consideradas. Mas o Manifesto não se pronuncia a este respeito. Temos duas maneiras de aprofundar a questão. O dinheiro mundial (world money) pode ser visto como uma representação universal com a qual os territórios se relacionam (através das suas próprias moedas) e os capitalistas se conformam. Este é um ponto de vista muito funcionalista (é a concepção dominante na ideologia neoclássica contemporânea da globalização). Ou o dinheiro pode ser visto como uma representação do valor que surge de uma relação dialética entre trabalhos concretos feitos em lugares e tempos específicos e a universalidade de valores (trabalho abstrato) conseguida na medida que a troca de mercadorias se efetua como um ato social corriqueiro no mercado mundial. Bancos centrais e outras instituições financeiras mediam esta relação. Muitas vezes são instáveis (e baseadas territorialmente), sugerindo uma relação problemática entre condições locais e os valores universais. Mas estas instituições também afetam trabalhos concretos e relações de classe formam padrões de desenvolvimento geográfico desigual através de seu comando sobre a formação e os fluxos de capital.
5.
O argumento de que a revolução burguesa plantou a semente de uma maior unidade política da classe operária através da urbanização e a concentração da indústria é importante. Diz que a produção da organização espacial não é neutra com respeito à luta de classes. Este é um princípio vital, não importa quanto sejamos críticos com respeito ao modelo de três etapas desenhado no Manifesto. Estas etapas são
1    a luta individual que começa a se coletivizar ao redor de fábricas, profissões e lugares específicos;
2    a unificação de muitas destas lutas através da concentração de atividades e a formação de sindicatos que começam a se comunicar um com o outro;
3    a emergência da luta de classes ao nível nacional.
Durante a maior parte do século dezenove, este modelo descreve um caminho bastante comum do desenvolvimento da luta de classes. E trajetórias parecidas podem ser percebidas no século vinte (por exemplo, Coréia do Sul). Mas uma coisa é retratar isto como um modelo descritivo útil e outra é argumentar que estas são etapas necessárias através das quais a luta tem que evoluir rumo à construção do socialismo. Aliás, a burguesia pode desenvolver estratégias espaciais próprias de oposição de classe.
O ataque atual contra o poder sindical através da dispersão e fragmentação espacial de processos de produção (muitos deles, está claro, indo para os assim chamados países em desenvolvimento, onde a classe operária é mais fraca) tem se mostrado uma arma poderosa para a burguesia. O estímulo ativo à concorrência entre os trabalhadores através do espaço também tem ajudado aos capitalistas, sem falar do problema do regionalismo e do nacionalismo nos movimentos operários.
Em geral, os movimentos operários têm tido mais sucesso controlando poder em lugares e territórios do que controlando espacialidades. A classe capitalista tem usado os seus poderes de manobra para derrotar as revoluções proletárias/socialistas, que sempre estiveram ligadas a um lugar (conforme a preocupação de Marx em 1858, citada acima). Nada disso é incompatível com o argumento básico do Manifesto. Mas também é claro que se trata de algo muito diferente do retrato que ele constrói sobre a dinâmica da luta de classes.
6.
Embora a unidade global da classe operária ainda fique como a única resposta apropriada às estratégias globalizantes de acumulação de capital, a maneira de conceituar esta resposta merece um estudo crítico. No núcleo do argumento do Manifesto está a crença que a indústria moderna e o trabalho assalariado têm tirado dos trabalhadores “todo traço de caráter nacional”, com o resultado de que “os trabalhadores não têm pátria”.
“Os isolamentos e os antagonismos nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade de comércio, com o mercado mundial, com a uniformidade da produção industrial e com as condições de existência a ela correspondentes. A supremacia do proletariado fará com que desapareçam ainda mais depressa. A ação comum do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições para sua emancipação. À medida que for suprimida a exploração do homem pelo homem será suprimida a exploração de uma nação por outra.”
A visão condutora é bastante nobre, mas existe muito de pensamento desejo aqui. No melhor dos casos, o Manifesto concede que a estratégia socialista vai “ser diferente em países diferentes” e que problemas podem surgir na tradução de ideais políticos de um contexto a outro — os alemães adaptaram ideias socialistas francesas às suas próprias circunstâncias, criando um tipo de socialismo alemão que Marx criticou de forma contundente.
Existe uma sensibilidade limitada com respeito às condições materiais desiguais e às circunstâncias locais. Mas a tarefa dos comunistas é conferir unidade a estas lutas, definir os pontos comuns dentro das diferenças e criar um movimento onde os trabalhadores do mundo possam se unir.
O Manifesto insiste, com toda razão, que a única maneira de resistir ao capitalismo e construir o socialismo é através da formação global da classe operária, o que talvez possa ser alcançado por meio de uma progressão que passa de uma etapa local a uma nacional e global. Os comunistas têm de encontrar maneiras de incorporar os movimentos locais e particulares, direcionando-os para algum tipo de objetivo comum. Mas também existe uma leitura mais mecanicista que vê a eliminação automática de diferenças nacionais através do avanço burguês, da des-localização e des-nacionalização de populações operárias e portanto das suas aspirações e movimentos. Os comunistas, em seguida, têm que se preparar para apressar o final desta revolução burguesa. Têm que educar os trabalhadores acerca da verdadeira natureza da sua situação e organizar seu potencial revolucionário. Tal leitura mecanicista é, do meu ponto de vista, errada, embora o Manifesto tenha um argumento bastante forte a favor dela.
A dificuldade central aqui se encontra na presunção que a indústria capitalista e a mercantilização vão levar à homogeneização da população trabalhadora. Em certo sentido isto é verdade, mas não consideram como o capitalismo simultaneamente se diferencia, às vezes se alimentando de antigas diferenças culturais, relações de gênero, predileções étnicas e crenças religiosas. O capitalismo faz isto em parte através de estratégias burguesas de divisão e controle, mas também converte a escolha de mercado num mecanismo para a diferenciação de grupos. O resultado é a implantação de divisões de gênero e classe, juntamente com muitas outras divisões sociais, na paisagem geográfica do capitalismo. Divisões como as que existem entre cidades e subúrbios, entre regiões e entre nações não podem ser compreendidas como resíduos de alguma ordem cultural antiga.
Não são automaticamente descartáveis. São produzidas ativamente por meio dos poderes diferenciadores da acumulação de capital e das estruturas de mercado. Lealdades ligadas a lugares proliferam e, em alguns aspectos, se fortalecem, em vez de se desintegrarem através dos mecanismos da luta de classes e através da atuação tanto do capital quanto do trabalho, cada um atuando a favor de si mesmo. A luta de classes facilmente se dissolve em uma série de interesses comunitários geograficamente fragmentados, facilmente cooptados ou explorados pelos mecanismos da penetração neoliberal do mercado.
Existe no Manifesto uma subestimação potencialmente perigosa da capacidade do capital para fragmentar, dividir e diferenciar, absorver, transformar e até exacerbar divisões culturais antigas, produzir diferenciações espaciais e mobilizar geopoliticamente. Do mesmo modo, há uma subestimação de como o movimento operário mobiliza através de formas territoriais de organização, construindo, no caminho, lealdades ligadas a lugares. A dialética da comunidade e da diferença não está desenvolvida do modo implicado no esboço fornecido pelo Manifesto, embora sua lógica subjacente e sua tendência à articulação estejam corretas.
As condições para que os trabalhadores se unam globalmente através da luta de classes não tem diminuído. O Banco Mundial avalia que a força de trabalho global dobrou em tamanho entre 1966 e 1995. Hoje ela é estimada em 2,5 bilhões de homens e mulheres e mais de um bilhão de indivíduos vivem de um dólar ou menos por dia. Em muitos países, “os trabalhadores não têm representação e trabalham em condições insalubres, perigosas ou humilhantes. Ao mesmo tempo, 120 milhões ou mais estão desempregados e mais alguns milhões já desistiram de procurar emprego”. Isto existe em uma época de crescimento acelerado dos níveis médios de produtividade (que também parecem ter dobrado, em escala mundial, desde 1965) e do comércio mundial, alimentado por reduções nos custos de transporte e uma onda de liberalização comercial. Como consequência, afirma a OIT:
“o número de trabalhadores empregados em indústrias que operam com exportações e importações tem crescido de maneira significativa. Pode-se dizer que os mercados de trabalho no mundo inteiro estão se tornando mais interligados. Alguns observadores vêem nestes acontecimentos a emergência de um mercado global de trabalho, onde o mundo tem se tornado uma enorme feira com nações competindo pela venda de suas forças de trabalho, oferecendo-as ao menor preço possível. A preocupação central é que a intensificação da concorrência global vai gerar pressões para baixar salários e padrões de trabalho no mundo inteiro”.
Movimentos massivos rumo à constituição de uma força global de trabalho também têm ocorrido (por exemplo na China, Indonésia e Bangladesh). Cidades como Jakarta, Bangkok e Bombaim têm se tornado polos de formação duma classe operária transnacionalizada — com elevada composição feminina — sob condições de pobreza, violência, poluição e repressão feroz.
Do mesmo modo, a desigualdade está fora de controle. O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas informa que, “entre 1960 e 1991, a parte da renda global detida pelos 20% mais ricos da população cresceu de 70% para 85%, enquanto a dos mais pobres diminuiu de 2,3% para 1,4%”.
Até 1991, “mais de 85% da população do mundo recebia apenas 15% da renda” e “o valor possuído pelas 358 pessoas mais ricas, os bilionários em dólares, é igual à renda combinada dos 45% mais pobres da população mundial — 2,3 bilhões de pessoas”. Esta polarização de riqueza e poder é tão obscena quanto surpreendente:
“A Indonésia, em nome do sistema de mercado livre, promove as violações mais flagrantes dos direitos humanos e mina o direito à subsistência de quem a vantagem competitiva do país depende”.
Muitas multinacionais estão subcontratando aqui: Levi Strauss, Nike, Reebok. Muitas subcontratadoras pertencem a coreanos. Todas tendem a exercer uma administração brutal e pagar salários baixos. Nike e Levi estipulam um código de conduta como critério de investimento, mas, na realidade, sempre procuram obter o menor custo de produção. Alguns subcontratadores saem de Jakarta para cidades menores, onde os trabalhadores tem ainda menor capacidade de se articularem para melhorar suas condições de vida”.
Em O capital, Marx conta a estória de uma trabalhadora, Mary Anne Walkely, com vinte anos de idade, que muitas vezes trabalhava 30 horas sem parar (embora ressuscitada de vez em quando por xerez, porto ou café) até que, depois de um esforço particularmente duro requerido pela preparação de “vestidos maravilhosos para as senhoras nobres convidadas ao baile em honra ao novo Príncipe de Gales,” morreu, segundo o depoimento de um médico, “de longas horas de trabalho numa oficina superlotada e um quarto pequeno demais e mal ventilado”. Compare-se isso com a descrição contemporânea das condições de trabalho nas fábricas de Nike, no Vietnã:
“[O Sr. Nguyen] constatou que o tratamento dos operários pela administração da fábrica no Vietnã [normalmente cidadãos da Coréia ou Taiwan] é uma ‘fonte constante de humilhação’, que o abuso verbal e o assédio sexual acontecem com freqüência e que a ‘punição corporal’ também é freqüente. Ele descobriu que quantidades extremas de trabalho extraordinário são impostas aos trabalhadores vietnamitas. O Sr. Nguyen escreveu em seu relatório que ‘é comum’ que vários trabalhadores desmaiem de esgotamento, calor e má nutrição durante o turno. Fomos informados de que vários trabalhadores até tossiram sangue antes de desmaiar”.
As condições materiais que motivaram o ultraje moral no Manifesto não desapareceram. Estão personificadas em tudo, nos tênis Nike, nos produtos de Disney, nas roupas do GAP, nos produtos de Liz Claiborne. O contexto básico do Manifesto, portanto, não tem mudado radicalmente. O proletariado global é maior do que nunca. A necessidade de os trabalhadores se unirem é maior do que nunca. Mas as barreiras à unidade são muito mais formidáveis do que eram no já complicado contexto Europeu de 1848. A força de trabalho é hoje muito mais espalhada geograficamente, culturalmente heterogênea, etnicamente e religiosamente diversificada, racialmente estratificada e linguisticamente fragmentada. Os modos de resistência ao capitalismo e a definição de alternativas são muito diferentes.
E, embora seja verdade que os meios de comunicação e as oportunidades de tradução tenham melhorado muito, isto tem pouco significado para o bilhão ou mais de trabalhadores que vivem com menos de um dólar por dia, possuindo histórias culturais, literaturas e compreensões muito diferenciadas (comparados aos banqueiros internacionais e às multinacionais, que sempre os usam). Diferenças (tanto geográficas como sociais) em salários e cláusulas sociais dentro da classe operária global também são maiores do que nunca. A brecha política e econômica entre os trabalhadores mais ricos na, por exemplo, Alemanha e Estados Unidos, e os trabalhadores mais pobres, na Indonésia e Mali, é muito maior do que a brecha entre a assim chamada aristocracia do trabalho européia e suas contrapartidas não qualificadas no século dezenove. Isto significa que certo segmento da classe operária (na maior parte, mas não exclusivamente, dos países capitalistas avançados e que, muitas vezes, possuem uma voz politicamente mais forte) tem muito a perder além dos seus grilhões. E, embora as mulheres sempre tenham sido um componente importante da força de trabalho nos primeiros anos do desenvolvimento capitalista, sua participação tem se generalizado, ao mesmo tempo em que se concentra em certas categorias ocupacionais (normalmente chamadas “não-qualificadas”), de modo a gerar questões agudas sobre a política operária que com grande freqüência foram varridas, no passado, para baixo do tapete. Junto a tudo isto as problemáticas da urbanização massiva, os transtornos ecológicos graves, os movimentos migratórios transnacionais e o terreno para a construção de uma alternativa socialista aparece tão diferenciado e desigual como complicado.
O movimento socialista precisa compreender estas transformações geográficas extraordinárias e desenvolver táticas para lidar com elas. Isto não dilui a importância da palavra de ordem final do Manifesto (união dos proletários). As condições que hoje enfrentamos fazem esse chamado mais imperativo do que nunca. Mas não podemos fazer nem nossa história nem nossa geografia sob condições histórico-geográficas de nossa própria escolha.
Uma leitura geográfica do Manifesto enfatiza a não-neutralidade das estruturas e poderes espaciais na complexa dinâmica espacial da luta de classes. Revela como a burguesia adquiriu seus poderes vis-à-vis de todos os modos precedentes de produção, mobilizando o comando sobre o espaço como uma força produtiva peculiar a ela mesma. Mostra como a burguesia tem aumentado e protegido continuamente seu poder através desse mesmo mecanismo. Portanto, até que a classe operária aprenda como enfrentar esse poder burguês de comandar e produzir espaço, sempre vai jogar em uma posição de fraqueza não de força. Do mesmo modo, até esse movimento compreender as condições e diversidades geográficas de sua própria existência, vai ser incapaz de definir, articular e lutar por uma alternativa socialista realística à dominação capitalista.


*David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital. É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001. Foi também professor de geografia nas universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados desde a Segunda Guerra Mundial. Seus livros mais recentes são O enigma do capital e Para entender O capital, livro I.
** Publicado originalmente, em português, na revista Lutas Sociais, do Neils-PUC.

sexta-feira, 21 de março de 2014

50 ANOS DO GOLPE MILITAR NO BRASIL - Os militares, a ideologia de segurança nacional e a ação guerrilheira no Araguaia

Por Romualdo Pessoa*
Artigo publicado na Revista Princípios (SP), nº 129, março 2014

Mesmo ao fim da Guerrilha, as políticas adotadas seguiram as linhas definidas pela Ideologia de Segurança Nacional, inclusive nos conflitos que se intensificavam a partir do final dos anos 1970 entre posseiros e grileiros

A estrutura militar do Estado brasileiro e a doutrina de segurança nacional
A crise política brasileira, causada pela renúncia do então presidente Jânio Quadros, em 1961, gerou uma instabilidade institucional e reações nas Forças Armadas que culminou, em 1964, com a deposição do vice que o sucedeu, João Goulart. A Doutrina de Segurança Nacional foi, além do elemento motivador da intervenção militar, a questão basilar que esteve por trás de todas as políticas que foram implementadas, principalmente após 1968, quando o regime assumiu declaradamente as feições de uma ditadura, e toda a sua estrutura estatal foi organizada baseada nos conceitos formulados nas escolas militares.
É preciso considerar os diferentes motivos que originaram o golpe, que se confundem entre questões econômicas nacionais e elementos da geopolítica mundial, com a guerra fria em curso, opondo socialismo x capitalismo, e a construção de valores de cunho nacionalistas conservadores que envolviam civis. Mas todo o seu arquétipo foi montado a partir da Escola Superior de Guerra, tendo à frente seu mais conhecido ideólogo, o general Golbery do Couto e Silva.
Todo o poder político, notadamente os setores estratégicos, e aí compreendendo esse termo vinculado ao conceito de segurança nacional, permaneceram sob o controle dos militares. O planejamento estratégico formulado por Golbery, que pode ser avaliado em livro publicado pela Editora da Universidade de Brasília (SILVA, 1981), tem toda a sua preocupação centrada na “segurança nacional”. Destaco um pequeno trecho desse livro que expõe com clareza essas ideias.
“Limitemo-nos, pois, ao âmbito mais restrito da política de segurança nacional, aquela já tantas vezes definida como visando a salvaguardar a consecução dos objetivos vitais permanentes da Nação, contra quaisquer antagonismos tanto externos como internos, de modo a evitar a guerra se possível for e empreendê-la, caso necessário, com as maiores probabilidades de êxito” (Ibidem, p. 22).
É bem verdade que nos discursos elaborados desde o começo do movimento golpista, dizia-se que o objetivo era ceder a condução política para os civis e retomar o processo democrático no rumo por eles considerado o correto. Nitidamente com o objetivo de garantir com certeza que o Brasil estaria ao lado dos Estados Unidos contra o perigo comunista que encontraria guarida no governo Goulart.
Mas, todos esses fatos se modificaram a partir de 1968. Com a aplicação do Ato Institucional nº 5 e, logo no ano seguinte, com a doença do general--presidente Costa e Silva, não se permitiu a posse do vice-presidente Pedro Aleixo (2). Assumiu, logo em seguida ao afastamento do então presidente, uma Junta Militar composta pelos ministros: Aurélio de Lira Tavares, do Exército; Augusto Rademaker, da Marinha; e Márcio de Souza e Melo, da Aeronáutica. Essa Junta Militar escolheu posteriormente, dois meses depois, o novo presidente, aquele em cujo período de governo se intensificarão a repressão e o endurecimento do regime, ao caracterizar mais destacadamente uma ditadura sangrenta: o general Emílio Garrastazu Médici.
Fortaleceu-se a partir de então, todo o aparato construído com base na Ideologia da Segurança Nacional, que já funcionava desde 1964, mas que recebeu os maiores investimentos a partir desse período, espalhando o terror e impedindo qualquer tipo de manifestação da sociedade civil organizada.
Os que ousaram enfrentar esse aparato militar foram caçados, presos, torturados e assassinados nos porões dessa estrutura, nas sombras de quartéis e delegacias de polícias civil, militar e federal, todas elas enquadradas no organograma do Sistema Nacional de Segurança (Figura 01), comandado a partir do SNI, por um ministro-chefe militar, general obviamente.
Figura 01
Nas palavras do então coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fonteles, “(...) o Estado ditatorial era como um polvo negro com tentáculos. A sua cabeça era o Sistema Nacional de Informações (Sisni), alimentado por outros órgãos de informação como o SNI, CIE (Exército), Cenimar (Marinha) e Cisa (Aeronáutica)” (3).
Além disso, por todos os ministérios e órgãos públicos, incluindo universidades, funcionavam as Divisões de Segurança e Informações (DSIs). E os Departamentos de Operações de Investigações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODIS). Ainda havia a Polícia Federal, e até mesmo a estrutura das polícias militares, fato que persiste até os dias de hoje, foi concebida para incorporar esse sistema – e indiretamente estavam vinculadas ao controle da cabeça dessa estrutura.
Segundo Gaspari (2002, p.159),
“Em setembro de 1974 havia no SNI vinte oficiais do Exército”. “Dessa lista de vinte sócios fundadores do SNI saíram um presidente da República (Figueiredo), dois chefes do Serviço (Figueiredo e Octavio Aguiar de Medeiros) e dois chefes da Polícia Federal (Newton Leitão e Moacyr Coelho). Outros cinco (Newton Cruz, José Luiz Coelho Netto, Edmundo Adolpho Murgel, Mario Orlando Ribeiro Sampaio e Geraldo Araujo Ferreira Braga) chegaram ao generalato e tornaram-se destacados chefes nos serviços de informação do regime” (Apud APGCS/HF).
O SNI era o cérebro de um sistema montado desde o golpe de 1964 para manter o controle do poder político e o domínio do Estado brasileiro, nas mãos dos militares. Era a espinha dorsal do regime militar, e ela estava sob o comando e o pulso firme dos oficiais generais, na presidência da República e no Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA).
“Pela estrutura logística, o SNI ficou entre os dez mais bem equipados serviços de informações do mundo. Seu poder de alavancagem política foi superior ao da CIA, do Intelligence Service, ou mesmo da KGB” (Idem, p.169).
Naturalmente, toda essa estrutura contava com o apoio civil, inclusive e principalmente, nas DSIs. Mas o comando estava com os militares. Inclusive na Operação Bandeirante (OBAN), tida como uma prova do envolvimento de grandes empresários, portanto civis, na “condução do regime” (sic).
Figura 02
A OBAN foi gestada dentro do Sistema Nacional de Informação, e também ela não fugiu ao controle dos generais que estavam em seu comando. Assim como a malfadada Operação Condor, montada por esse sistema de informação e repressão brasileiro que se espalhou por outros países da América Latina, com o apoio da CIA (Figura 02). Constituía-se, assim, um regime militar, que se tornou uma ditadura violenta e descontrolada. Contando com o apoio e a participação de elementos da sociedade civil.
Portanto, do início (1964) ao fim (1985) o comando do regime sempre esteve nas mãos dos militares, das suas mais altas patentes, e toda a condução da política seguia-se às estratégias definidas pela DSN (Doutrina de Segurança Nacional) executadas pela estrutura militar-repressiva.

O combate à guerra revolucionária e a identificação do “inimigo interno”
A ideologia da segurança nacional, que direcionou as políticas públicas durante o regime militar brasileiro, teve suas bases ideológicas firmadas nos EUA, onde a doutrina que a sustentava foi criada pelos geopolíticos daquele país. Suas ações eram direcionadas para a proteção daquelas áreas consideradas estratégicas pelos estadunidenses e para manter, ou construir, regimes políticos que lhes fossem favoráveis.
A partir da década de 1960 inúmeros programas e ações foram aplicados no sentido de reforçá-los, e, também, apoiar os militares na aplicação de golpes de Estado contra governos que porventura ameaçassem estabelecer relações políticas com países da chamada “Cortina de Ferro”, ou os países socialistas, inclusive a China.
E, na América, com a pequena ilha de Cuba, que após um processo revolucionário alinhava-se com a União Soviética e a transformava em alvo principal no continente americano. No âmbito da Guerra Fria, os militares da “Sorbonne brasileira” optaram por firmar compromissos com a geopolítica estadunidense, fosse por pragmatismo político ou pela preservação dos valores da civilização ocidental-cristã. “No Brasil, consequentemente, a geopolítica serve de firme suporte para a bipolaridade e a adesão da Nação à luta anticomunista no interior da segurança nacional” (COMBLIN, 1978, p. 30).
Três conceitos, segundo Coblin (1978), compõem a espinha dorsal da Doutrina de Segurança Nacional: “A guerra generalizada, a guerra fria, e a guerra revolucionária” (Op. cit., p.33).
A partir do conceito de “guerra revolucionária” os militares brasileiros se uniram às formulações ideológicas estadunidenses para construir um ideário semelhante ao daqueles, e que será responsável por construir, no Brasil, uma estrutura de segurança nacional implacável, que se estendeu nos momentos de maior radicalidade contra os grupos de esquerda lhes faziam oposição, muitos dos quais sem optarem pela luta armada.
Definido o inimigo externo, os estrategistas da “Segurança nacional” passaram a identificar em todos os processos de lutas na América Latina a presença do comunismo. Procuraram construir uma estratégia contrarrevolucionária considerando não haver distinções entre os vários tipos de guerras. Fossem de libertação, guerrilhas, subversão, terrorismo. Para eles, tudo eram “fases diferentes de um único processo, o da guerra revolucionária” (COMBLIN, 1978, p. 44).
Passaram a ver a guerra revolucionária mecanicamente, de forma maniqueísta e dentro dos princípios da bipolaridade. Buscavam combatê-la mediante a utilização de técnicas semelhantes utilizadas pelo inimigo, na crença de que obteriam, assim, as mesmas possibilidades de sucesso. O que significava, necessariamente, ganhar o apoio do povo. Segundo Comblin (Op. cit., p.44), esse teria sido o principal erro cometido no combate aos guerrilheiros do Vietnã e que seria também aplicado no continente americano.
Fechados em suas concepções de Segurança Nacional, e ao considerarem que a população da América Latina e do terceiro mundo não possuíam nenhuma afinidade em sua história com o ideário comunista, menosprezavam o processo histórico de seus países e a violência que se abatia por séculos contra esses povos.
A estratégia deveria, portanto, se basear em técnicas que fossem capazes de superar os soviéticos. Os guerrilheiros e “subversivos” que lutavam as guerras revolucionárias eram vistos como meros instrumentos de Moscou, e para derrotá-los era suficiente estabelecer o controle da população, tirá-la da influência desses grupos, impedir que a propaganda revolucionária encontrasse respaldo entre a população e isolar os combatentes, para poder destruir toda a sua organização.
Por essa compreensão, seria natural que todos os que porventura simpatizassem com a luta guerrilheira fossem considerados inimigos. Espelhando-se nas lutas anticolonialistas que se espalhavam pelo mundo, onde os grupos de libertação nacional obtinham apoio da União Soviética, os estrategistas militares que criaram a Doutrina de Segurança Nacional procuraram aperfeiçoar as técnicas adotadas nessas lutas, e o exemplo mais marcante é a da guerra de libertação da Argélia. Buscaram as mesmas táticas, como estratégia para uma contrarrevolução.
O mais importante seria, então, o trabalho de inteligência que identificasse e localizasse o inimigo, e isso deveria ser feito anteriormente ou paralelo ao combate que se travava, de forma a transformar em alvo todos os simpatizantes e grupos favoráveis à causa revolucionária.
Em seguida trata-se de detectar todos os membros da subversão. As técnicas são as mais variadas: presença permanente em toda parte: nos locais de trabalho, de transporte, de recreio; prisões rápidas, informações. Principalmente informações. Nessa guerra, a arma decisiva é a informação. Ela é necessária através de quaisquer meios. Os revolucionários sabem o que os espera. A tortura é a regra do jogo.
Se a inteligência é um dos polos da guerra contrarrevolucionária, o outro polo é a ação psicológica. Trata-se de manter o povo afastado de qualquer contato com a subversão. Existem, com essa finalidade, técnicas de organização da população (...) formação de brigadas, propaganda para controlar qualquer crítica. Finalmente, existe o que se denominou, nos Estados Unidos, a ação cívica militar: encontram-se equivalentes em toda parte, na América Latina: os exércitos seguem fielmente as receitas. A ação cívica militar nasceu por iniciativa de Kennedy (COMBLIN, 1978, p. 46).
Todo esse processo identificado nesse estudo de Joseph Comblin, que traça uma radiografia da Ideologia de Segurança Nacional, pode ser atestado empiricamente a partir dos estudos das estratégias adotadas no combate à Guerrilha do Araguaia, bem como na maneira como os Planos de Ação do regime militar foram impostos para a região sul do Pará, e para toda a Amazônia.
Mesmo ao fim da Guerrilha, as políticas adotadas seguiram as linhas definidas pela Ideologia de Segurança Nacional, inclusive nos conflitos que se intensificavam a partir do final dos anos 1970, entre posseiros e grileiros.
Muitos dos relatórios dos órgãos de segurança, disponíveis e obtidos junto ao Arquivo Nacional, demonstram que, para além do Movimento Guerrilheiro, e até o período de transição, entre o fim do regime militar e o novo governo civil da chamada “Nova República”, o que movia as ações dos órgãos do Estado militar brasileiro eram as concepções que fundamentaram todo o ideário da ditadura militar, inspiradas nessa ideologia.
Tratava-se, ainda, de identificar como “inimigo interno” aqueles que se opunham ao regime vigente e procuravam “subverter” a ordem estabelecida, fundada nos valores “cristão-ocidentais”. Seguindo-se esses preceitos, tornava-se essencial separar os “subversivos” do meio do povo, e combatê-los implacavelmente, como representantes do “comunismo internacional”.
Incluíam-se dentre esses, padres e missionários, que seguiam a linha da Teologia da Libertação e buscavam orientar-se, segundo essa doutrina, por uma “opção preferencial pelos pobres”, lema que eles adotavam, dando apoio aos camponeses e posseiros na luta pela terra.
Sobre todos eles os rótulos de subversivos e terroristas eram usados com frequência, e a estratégia utilizada para afastá-los do povo, e que num primeiro momento deu certo, era, portanto, a utilização dos meios disponíveis na estrutura do Estado que possibilitariam atender à população em áreas em que havia fortes carências de assistência pública.
O que deveria ser feito de forma permanente passava a ser feito ocasionalmente, obedecendo aos interesses estratégicos, que fazia parte da preparação dos militares no combate contrarrevolucionário, no âmbito da ideologia que os moviam.
Um dos pontos dessa estratégia foi a ação cívico-militar, formulada em suas origens nos Estados Unidos. Ela foi aplicada em vários momentos, durante e depois da Guerrilha do Araguaia, na região sul do Pará, denominada “Operação Cívico Social” (ACISO) (4).
A ação cívica é uma defesa contra a subversão: é ação preventiva e é também uma resposta. Os militares são chamados a assumirem tarefas públicas para o bem-estar da população (estradas, edifícios públicos), serviços de saúde pública, serviço social etc. Em suma a ação cívica consiste em tomar em mãos as tarefas de um governo. Graças à idealização dessa “ação cívica”, os militares se convencem de que só eles são capazes de organizar o desenvolvimento de seu país (COMBLIN, 1978, p.143).
Assim, desde a política específica através de ações para combater iniciativas consideradas subversivas, bem como no intenso conflito que atraiu as atenções para os problemas existentes na Amazônia Oriental, toda a estratégia utilizada pelos governos militares obedeceu à Ideologia de Segurança Nacional. E, por ela, os ferrenhos combates contra os guerrilheiros transformaram-se, ao final da Guerrilha, em perseguições, prisões, torturas e assassinatos de lideranças camponesas, padres da teologia da libertação e comunistas por todo o sul do Pará e o norte do Tocantins, por toda a área conhecida como “Bico do Papagaio”, uma das regiões brasileiras de maior concentração de luta e resistência à ditadura militar, à pistolagem e ao poder do grande latifúndio.
___________________________
*Romualdo Pessoa Campos Filhos é graduado e mestre em História, doutor em Geografia pela Universidade Federal de Goiás. Professor adjunto efetivo desta instituição, atua na área de Geopolítica. É autor do livro Guerrilha do Araguaia, a esquerda em armas, publicado pela Editora Anita e Fundação Maurício Grabois.


NOTA DO AUTOR – Desde quando iniciei a minha pesquisa sobre a Guerrilha do Araguaia, em 1992, entendi que somente seria possível compreender o que havia levado os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) a se embrenharem nas matas do Araguaia buscando o fio da meada, ou seja, as origens do golpe militar de 1964. Até por uma questão metodológica, da aplicação da dialética materialista na conjuntura histórica brasileira daquele período. Recentemente, concluí mais uma parte desta pesquisa, encerrando um doutorado defendendo uma tese onde analiso a região do Araguaia no período posterior à Guerrilha, a “Operação Limpeza”, que procurou sumir com os corpos dos guerrilheiros e de camponeses mortos no conflito, a pistolagem e sua relação com a estrutura montada pelo major Curió, a rede de espionagem que se criou na região, o seu QG montado a partir de Serra Pelada e a perseguição e assassinatos de lideranças comunistas, padres e camponeses. Este artigo é originado da segunda parte desse trabalho. Em abril o livro "Araguaia: Depois da guerrilha, outra guerra - A luta pela terra no Sul do Pará, impregnada pela Ideologia da Segurança Nacional (1975-2000), será lançado pela Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois.
Notas
(1) Araguaia: Depois da Guerrilha, uma outra guerra – A luta pela terra no Sul do Pará, impregnada pela Ideologia de Segurança Nacional. Tese de doutorado em Geografia, defendida em novembro de 2013 no Instituto de Estudos Socioambientais da UFG, orientada pela professora doutora Celene Cunha M. A. Barreira.
(2) O Congresso Nacional inclusive já aprovou uma lei, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, de nº 12.486, de 12 de setembro de 2011, que “inclui o nome do cidadão Pedro Aleixo na galeria dos que foram ungidos pela Nação Brasileira para a Suprema Magistratura”.
(4) Ver CAMPOS FILHO, 2012, p.153: “Procurando abranger toda a área conflagrada, a Operação ACISO levou para a região médicos e dentistas, distribuiu remédios e vacinas em grandes quantidades, patrulhou estradas, legalizou posses, doou terras através do Incra, e ainda perseguiu pistoleiros e grileiros”.

Fontes consultadas
CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia, a esquerda em armas. São Paulo: Anita Garibaldi/FMG, 2012.
CARNEIRO, Ana & CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962-1985 – Camponeses mortos, torturados e desaparecidos. Brasília: MDA, 2010.
CASTRO, Therezinha de. Geopolítica: princípios, meios e fins. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1999.
COMBLIN, Pe. Joseph. A ideologia de segurança nacional – O poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
GASPARI, Elio. As ilusões armadas (I) – A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional e o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.

____________. Planejamento estratégico. Brasília: Editora UnB, 1981.

sexta-feira, 7 de março de 2014

BOTANDO OS PINGOS NOS “IS”

Legenda: Ego-Sistema
Aproveitando o longo feriado carnavalesco, e estando definitivamente afastado dessa festa momesca desde que perdi minha filha, em 2007, resolvi ser mais um seleto espectador de uma enorme diversidade de filmes para todos os gostos, na Mostra “O Amor, a Morte e a Paixão”. Pudemos ver por aqui, nos sertões brilhantemente intelectualizados dos cerrados goianos, antes que paulistas e cariocas, sempre à frente dos principais lançamentos cinematográficos de qualidade, uma enorme gama de filmes premiados em diversos festivais do mundo, incluindo Cannes, Berlim e o Oscar.
A mostra, competentemente organizada pelo curador Lisandro Nogueira, atual presidente da Cinemateca Brasileira (http://www.cinemateca.gov.br/) e os Cinemas Lumiére/Bouganville, tem como parceiros a ADUFG-Sind e o SINTEGO. Por isso temos a satisfação de entre um e outro filme podermos trocar opiniões sobre diversos assuntos com amigos e colegas. Numa época caracterizada por uma intensa complexidade e pela profusão de rebeldias, focadas em reivindicações locais, ou em interesses geopolíticos globais, pauta é o que não falta para os debates entre amigos e colegas. Além dos temas abordados em filmes carregados de polêmicas e roteiros que trazem toda essa complexidade e nos brindam com a possibilidade de debatermos intensamente.
Num desses encontros, fui interpelado por alguns amigos. Espantavam-se com as postagens e comentários que frequentemente insiro nas redes sociais. Diziam que eu estava erroneamente defendendo o governo “petista”, o que consideravam um absurdo.
Tenho comigo, sempre, que uma boa amizade não se perde para a política. Por isso mantenho convivências harmoniosas com amigos que circulam entre todos os setores e/ou partidos políticos. Particularmente, mantenho minha filiação ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ao qual tenho ligação desde meus tempos de movimento estudantil. Aliás, desde quando entrei na Universidade em 1980. Naquele ano ingressei no Centro Acadêmico de História, participei do meu primeiro Congresso da UNE, e fui “recrutado” para o movimento comunista. Minha militância sofreu oscilação ao longo dos anos. Afastei-me de Goiânia, fui dar aulas numa Faculdade em Araguaína, retornei à Goiânia, fiz mestrado na UFG e no ano em que o finalizei ingressei na Universidade Federal de Goiás como docente. Primeiro como professor substituto e no ano seguinte como efetivo. Era o ano de 1995.
1981: Av. Tocantins, 7 de setembro.
Greve nacional dos estudantes.
Embora as reminiscências da vida tenham freado o meu ímpeto revolucionário, que me impulsionou na minha juventude, mantive ideologicamente minha proximidade com os valores que construíram uma visão de mundo, pautada firmemente nas teorias e experiências do marxismo, da dialética e do materialismo. Essas mesmas agruras me fizeram mais tolerantes, e pelo apoio e solidariedade recebidos em momentos difíceis de minha vida, quando da perda de minha filha, compreendi que as barreiras existentes entre concepções diferentes de mundo, já que são muitas as ideologias que nos cercam, não podem destruir uma amizade. O que era difícil antes, poder dialogar com aqueles que enxergavam o mundo por um paradigma diferente do meu, tornou-se uma prática comum, simplesmente porque mantive como prioridade nessas relações a defesa da amizade.
Mas, e aqui entro no mérito da questão, isso nunca significou para mim, abrir mão de determinados princípios, valores construídos com convicções e referendados pelo que eu sempre experimentei no cotidiano de uma vida vivida com dificuldades, e com uma trajetória de superação de problemas sociais, que nas décadas de 1970 e 1980 eram infinitamente maiores do que as que conhecemos nos dias de hoje. In-com-pa-rá-veis. Não somente pelo anacronismo no qual incorreríamos, mas pela própria realidade sentida no cotidiano de ontem e de hoje. Para além da certeza que temos da necessidade de prosseguirmos nas mudanças, objetivando, naturalmente, aquilo pelo qual sempre defendi enquanto concepção revolucionária de mundo: por fim às desigualdades sociais e às absurdas e injustas concentrações de riquezas nas mãos de uma minoria.
Ocorre que a interpelação que gerou essa iniciativa, de produzir um texto, partiu, e sempre tem partido em outras ocasiões, de antigos militantes de esquerdas, amigos hoje que no passado ou militavam nas mesmas fileiras partidárias ou eram adversários, defensores de ideias mais sectárias e radicais do que as que eu defendia. Pelo menos no discurso, na aparência. Em minha opinião, naturalmente.
Mais interessante, para analisarmos buscando a ajuda não somente dos clássicos marxistas que sempre nos orientavam ideologicamente, mas, quem sabe, incluirmos aí um pouco das concepções freudianas, é saber que os ataques mais virulentos partem de antigos militantes de correntes que antigamente compunham o Partido dos Trabalhadores. Agora duramente criticado.
Quero dizer, no entanto, que comungo de algumas das críticas feitas por esses colegas, quanto aos rumos tomados por aqueles que, outrora esquerdistas radicais, transformaram-se quando da ascensão ao Poder. Creio ser essa quase que uma tendência natural, infelizmente. Pelo choque do que significa gerenciar o Estado, na concepção mais geral, em que se incluem todas as estruturas burocráticas administrativas; ou pela sedução que acompanha o Poder e que desperta os piores sentimentos, dentre eles a vaidade, a arrogância e o oportunismo. É difícil ser refratário a eles, mas é possível resistir. Com a firmeza ideológica.
Amigos e amigas desde tempos
de militância estudantil. Juntos
para além das divergências políticas
Mas divirjo pelo viés conservador, e pelo ódio que carrega e deforma boa parte dessas críticas. Muitas delas parecendo muito mais buscar uma justificativa para uma escolha, de mudança dos paradigmas que os fazem enxergar outra visão de mundo, do que visando as ausências de ações que executem aqueles velhos princípios pelos quais lutaram em décadas passadas.
Principalmente, porque no afã de encontrar uma justificativa para suas novas escolhas, à direita, cegam-se, ou fingem não ver as transformações pelas quais passou o nosso país desde os intensos anos de luta contra a ditadura até os dias atuais. Principalmente, e isso é inegável, até mesmo por avaliadores internacionais e entidades que reconhecem programas que transformaram a realidade de milhões de brasileiros, a partir do começo do século XXI. Algumas mudanças, inegavelmente, se iniciaram no governo de Itamar Franco, com a estabilidade monetária e a criação do Plano Real, prosseguiram lentamente durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas com um viés nitidamente neoliberal, mas foram expandidas e potencializadas durante os governos Lula/Dilma.
Não restam dúvidas, que muitas das bandeiras pelas quais lutávamos estão longe de terem sido implementadas. Auditoria sobre as dívidas brasileiras; reforma agrária; controle sobre o capital estrangeiro; fim das privatizações; salário mínimo conforme exige a Constituição; salário dos professores ao nível de outros profissionais de carreiras do Estado brasileiro; ensino público, gratuito e de qualidade. Etc, etc, etc...
Mas a política brasileira impõe dificuldades para transformações radicais, na medida em que se torna necessário a composição com forças políticas conservadoras, majoritárias no Congresso Nacional onde a esquerda se reduz a um mínimo de um quinto do quantitativo de parlamentares ali presentes.
Nada disso, contudo, é capaz de frear o ímpeto conservador e raivoso daqueles amigos que optaram por seguir um novo curso em suas vidas. Compreendo o rigor de suas críticas, e o ódio que transcende a racionalidade do discurso, como uma justificativa para suas novas escolhas. O que para mim é desnecessário, pois ao longo dos anos, conforme disse anteriormente, fui sabendo separar a relação de amizade com as escolhas ideológicas dos amigos.
Pode ser que em determinado momento da vida política do país tenhamos que fazer outras escolhas. Sabemos como isso acontece por conhecermos processos históricos e políticos de países onde a luta sectária atingiu o ápice e levou a embates violentos separando velhos amigos, e até mesmo famílias. Torço para que o Brasil esteja livre de seguir por esses caminhos traumáticos. Mas o discurso do ódio, disseminado pela classe média, pelos setores conservadores e pela grande mídia corporativa, tem se intensificado na medida em que se aproximam os dias de debates eleitorais. E as estratégias adotadas por países em crises, como EUA e algumas potências europeias fragilizadas economicamente, de gerar instabilidades em países estrategicamente importantes para voltar a contar com governos que lhes sejam confiáveis, e poderem aplicar as receitas neoliberais, fazem com que a situação fuja do controle de muitos desses governos mais progressistas. Isso pode também acontecer por aqui.
Mas apontar esses riscos, ou considerar os avanços obtidos no campo social, soa para esses antigos companheiros como defesa do “jeito petista de governar”. O que significa dar vazão a todos os ataques feitos por esses setores midiáticos.
Porquanto eu possa ter crítica à ausência de iniciativa no atendimento de reivindicações históricas, e até mesmo seculares, como no caso da Reforma Agrária, à manutenção de uma política econômica de viés neoliberal, com elevação das taxas de juros a níveis estratosféricos, ou à covardia em se recusar a atacar com firmeza o monopólio da informação e não conter os desvarios de uma mídia golpista, que tende a repetir o papel que desempenhou durante o golpe militar de 1964, não me vejo como replicador de ataques que poderia levar o país a um retrocesso político. Principalmente do ponto de vista do atendimento das questões sociais.
EU NÃO VIVO DO PASSADO, O PASSADO VIVE EM MIM.
Anos atrás escrevi um texto, publicado aqui mesmo no Blog, em que eu descrevia a minha trajetória política e encerrava a militância, ou o engajamento partidário tal qual eu fizera até um momento crucial em minha vida. A partir dali, lutando para superar uma depressão causada por uma perda inestimável, compreendia que o caminho que eu deveria trilhar seria aquele que profissionalmente eu tinha escolhido: a Universidade.
Não quero dizer que haja incompatibilidade entre militar ativamente na política e ser um professor universitário. Mas eu não me prendia às questões de compatibilidade, e sim de escolhas.
Contudo, muito embora sinalizando com a possibilidade de eventualmente poder contribuir em funções do Estado, em setores estrategicamente ligados à minha área de atuação, eu abdicava da militância. Mas, em nenhum momento afirmei que abria mão de minhas concepções políticas e ideológicas, daquelas que me guiaram por três décadas e pelas quais eu mantinha, e mantenho profundas afinidades.
Isso, naturalmente, me leva sempre a analisar a política dialeticamente, e compreendendo os embates que despontam no Brasil e no mundo, seguindo-se a lógica irrefutável apresentada por Karl Marx: a luta de classes. Tentada ser encerrada nos anos 1990, auge do avanço neoliberal pelo mundo, quando muitos intelectuais, antes defensores das análises marxistas, “bateram em retirada”, e esconderam-se covardemente nas abordagens de cotidiano e das migalhas da história.
Esse momento que vivemos, de pressão conservadora e de ações provocativas com o intuito de gerar instabilidades políticas pelos setores que não conseguem retomar o poder dentro do processo democrático tradicional, mas ao mesmo tempo de insatisfações crescentes de uma massa que aprendeu que pode querer, e quer mais do que tem sido lhe garantido, cria um divisor de águas. A minha verve marxista, revolucionária, embora diletante e não mais militante, fala mais alto. Parto da análise dialética das contradições, do choque dos contrários e da luta de classes e me defino como dantes. Assumo com prazer o lado onde sempre me mantive, ao longo de quatro décadas.
Por isso, ao escrever o artigo citado[1] recorri a uma frase de Paulinho da Viola que ele diz no DVD “Meu Tempo é Hoje”: “Eu não vivo do passado, o passado vive em mim”.
Mantive-me ao longo desses últimos anos distantes das agitações políticas, mas não me desvinculo de minha ideologia. Até porque no meu cotidiano convivo com alguém que herdou essa verve revolucionária, às vezes sem a devida temperança (como era também o meu estilo), meu filho, que segue meus passos, mas com passadas mais largas do que as que eu dei. Não me comporto como antes, reconheço, talvez um pouco conservador ou mais conciliador, mas sabendo distinguir com base naquilo que aprendi ao longo de meus melhores momentos de embates políticos, o que é o joio e o que é o trigo.
Documentário que apresenta
vários fatos acontecidos
no mundo
Isso é suficiente para delimitar meu campo. Por mais que eu tenha que ser tolerante nas críticas vociferantes e carregadas de ódios, inexplicáveis, de alguns de meus amigos, elas jamais serão suficientes para me convencer de mudar o rumo do meu destino. Não que seja porque ele tenha sido “traçado na maternidade”, mas porque sempre soube, na vida, e no que aprendi ideologicamente, em qual lado eu deveria me situar na luta de classes. Mais do que uma questão de escolha, é principalmente de origem social. Se estivesse na Venezuela, certamente eu seria bolivariano. Para desespero desses meus amigos.
Mais farei um convite aos mais próximos. Assistirmos juntos, tomando um bom vinho aos filmes: “O declínio do Império Americano”[2] e “As Invasões Bárbaras”[3]. Teremos assuntos para além da revolução, ou dos golpes “suaves” de Estado que se espalham pelo mundo.




[1] http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2013/01/a-encruzilhada-os-proximos-anos-do.html
[2] O Declínio do Império Americano (Le Déclin de l'Empire Américain), de Denys Arcand. Canadá, 1986, Cores, 101 min. Com: Dominique Michel, Dorothée Berryman, Louise Portal. O que pensam realmente as mulheres dos homens? De que é que falam quando eles não estão presentes? E os homens, de que falam? Enquanto Rémy, Pierre, Claude e Alain, professores na faculdade de História, preparam um jantar requintado, as suas companheiras, Dominique, Louise, Diane e Danielle, treinam-se num ginásio. Os homens falam sobre as mulheres, as mulheres sobre os homens. Estas duas conversas põem em evidência as mentiras de uma época e mostram que cada um deles procura a felicidade individual a qualquer preço. Fantasias, tentação, desejo, indiscrições, infidelidade, confissões são os ingredientes do argumento. "O Declínio do Império Americano" (1986), de Denys Arcand, que foi um dos maiores sucessos do cinema canadiano e foi apresentado na Quinzena dos Realizadores em Cannes. Disponível no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=DVxnkiMqZak
[3] As Invasões Bárbaras (Les invasions barbares) – É um filme franco-canadense de 2003 realizado por Denys Arcand. Direção: Denys Arcand. Prêmios: Oscar de melhor filme estrangeiro. Elenco: Rémy Girard, Marie-Josée Croze, Stéphane Rousseau. Considerado um dos melhores filmes de 2003, "As Invasões Bárbaras" é um filme raro. Emocionate sem ser piegas e ao mesmo tempo moderno. O diretor Denys Arcand promove o reencontro dos amigos de "O Declínio do Império Americano" dezoito anos depois. Eles estão juntos novamente para se despedir do divorciado Rémy, abatido por um câncer raro. A reunião é promovida por seu filho yuppie. Sensível, envolvente, com um humor afinadíssimo e muito inteligente, "As Invasões Bárbaras" ganhou dois prêmios no Festival de Cannes: Melhor Roteiro e Melhor Atriz (Marie-Josée Croze), além de ser Indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. Fonte: filmesdecinema. Disponível no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=jATYBTQ4Z9c