quarta-feira, 9 de junho de 2021

CAÇADORES DE NASCENTES – ONDE NASCEM OS RIOS?

Algum tempo atrás publiquei um artigo no blog Gramática do Mundo, intitulado “Enquanto a chuva cai, a água se esvai”.[i] O objetivo do título era impactar criticamente logo antes de adentrar no assunto, de forma a chamar a atenção para a maneira como se observa os problemas hídricos em nosso país. Fazendo uma analogia às condições de boa parte dos rios brasileiros, principalmente no Nordeste, mas situação que já avança em direção ao Centro-Oeste, as notícias sobre a crise hídrica têm sido apresentadas de forma intermitentes, quando deveria se dar de maneira perenes. Esse era um dos focos que eu abordava, diante do fato de somente nos períodos secos se começar a tratar da falta de água, principalmente para o consumo urbano, de forma alarmante.

Por outro lado, o título impunha uma atenção a um outro fenômeno, também pouco observado, embora sempre gerador de alertas em áreas urbanas, notadamente naquelas com ocupação irregular de áreas de riscos. O alto volume de chuvas, nas cidades, termina por passar uma visão equivocada, diante de diversos cataclismas. A de que as chuvas estão caindo em quantidades excessivas, pelas tragédias que elas causam, quase sempre nas comunidades pobres das periferias dessas cidades. As imagens de verdadeiros rios urbanos em ruas, arrastando violentamente o que vê pela frente, naturalmente causam comoções, pelos estrago, vítimas e as condições a que relega a população daqueles lugares. E mais do que isso, porque comoção se sente por fora da tragédia, pela empatia das pessoas, mas efetivamente esses desastres terminam por levar muitas famílias a perderem suas casas, e em muitos casos carregam vidas, ou pelas enxurradas, ou pelos deslocamentos de encostas.

Mas, para além disso e do que essas tragédias significam, há o outro lado. Findo o período de chuvas a preocupação passa a ser outra. E isso se repete incessantemente, em um efeito borboleta, como na teoria do caos. É sabido que, nas cidades, ao contrário do que diz o velho ditado popular, depois da tempestade não vem a bonança. O que virá, em um curto período, que cada vez se encurta mais, é a ausência de chuvas e a intensificação de um outro drama, a ser vivido pela estiagem e consequente escassez de água.

Fonte: Senado Federal

Vou me atentar para o problema hídrico urbano, embora a crise não se limite a isso, visto que o uso de água pelas populações urbanas, no Brasil, não ultrapassa 12% do total de água potável disponível em nosso território nacional. O que significa também dizer que os rios, que abastecem as cidades, principalmente as enormes metrópoles, antes de entrar no perímetro urbano, ou das regiões metropolitanas, tem suas águas extraídas para uso na agricultura e pecuária (60%) e indústrias (próximo a 30%). Esses percentuais variam de estado para estado. Mas o problema é mais grave, e vai longe. E temos estudado também os problemas que advêm do uso da água, principalmente para a agricultura. O fio da meada se perde em suas origens. No entanto, os problemas ao longo de todo o trajeto das artérias hídricas que serpenteiam nosso planeta terra, não podem ser simplificados. Porque é um todo complexo.

Voltemos aos problemas hídricos urbanos. De onde vem as águas que abastecem nossas grandes cidades? Quantos se perguntam isso? Aonde vão as águas que serpenteiam por ruas e avenidas, sob pontes e viadutos, em aquedutos e canais? Onde surgem, brotam, as nascentes que se tornam mananciais que cortam nossa cidade? E no que eles se transformam tão logo derivem um córrego até se encontrar com um rio onde vai compor com este uma bacia hidrográfica? O uso do verbo transformar, no caso, não está posto equivocadamente. Explico.

Nascente do córrego Cascavel

Lamentavelmente sempre se negligenciou o cuidado com nossas nascentes e com os mananciais gerados por elas. Nos últimos anos passou a haver um cuidado maior com as nascentes, diante de uma política de investimento em parques urbanos, nitidamente com o intuito de favorecer o mercado especulativo imobiliário. Houve resultados, parques importantes surgiram e se tornaram opção de lazer para a população. Na maioria dos casos, no entanto, em se tratando das nascentes que se encontram nesses parques a preocupação com suas manutenções não seguem uma rotina adequada. E para além delas, das nascentes, os mananciais que surgem e seguem por diversas direções, seja para o Córrego Botafogo, para o Ribeirão Anicuns e daí para o Rio Meia Ponte, tornam-se canais e consequentemente depósitos de dejetos, esgotos domésticos ou industriais. Por isso eles se transformam, deixam de ser rios, córregos, no sentido adequado dados a eles, para se tornarem esgotos, abandonados pelo poder público e ignorados pela população.

Embora os parques – onde quase sempre existe um lago – sejam um atrativo, com o espaço sendo utilizado pela população para prática desportivas e lazer, as pessoas não se indagam sobre de onde vem suas águas, por onde elas seguem e para onde irão. Há uma total indiferença, porque assim fomos habituados a conviver na cidade com esses elementos, que se tornam mais do que meras paisagens, quase que uma mercadoria pela qual desfrutamos, porque seu esmero paisagístico atende aos interesses de incorporadoras, com o intuito de valorização de imóveis em seus entornos.

Córrego Capim Puba

E desconhece-se a importância que essas nascentes possuem para a bacia hidrográfica que garante o abastecimento hídrico em nossas cidades, bem como irriga uma grande produção de hortifrutis em todo o entorno da região metropolitana, de Goiânia e diversas outras capitais. Cada uma com o seu perfil diferenciado, mas necessariamente sendo servidas por essas águas, que se tornam turvas pela suas transformações em esgotos, sem que haja políticas de saneamentos adequados para nos salvar de uma hecatombe que poderá nos atingir pela escassez permanente de água.

Incomodado com essas questões, a partir de análises feitas com o objetivo de compreender os constantes problemas com o consumo de água e os racionamentos sistemáticos e constantes, sempre que acaba o período chuvoso, cada vez mais irregular, me debrucei sobre esse tema. Isso devido a minha atuação como professor de geopolítica e atento às questões da biodiversidade e hídrica por um olhar estratégico, visto que lidamos com recursos de suma importância para nossas vidas, de valores imensuráveis, embora sendo constantemente objeto de ganância de especuladores e investidores, que passam a ver na água muito mais do que um bem comum, mas uma mercadoria por onde eles podem lucrar investindo e exercendo controle, sob pretexto da inoperância do poder público. Naturalmente, a velha estratégia de deixar de atender uma demanda que seja da responsabilidade dos estados, tornar esse atendimento insuficiente e, assim, entregar em mãos de corporações, cujas preocupações atendem aos lucros de seus acionistas e não o bem-estar da população.

Mas para fugir do lugar comum, da crítica costumeira que fazemos ao que já é sabido, essa inoperância do poder público, resolvi ir em busca de respostas para compreender as condições em que se encontram nossas nascentes e mananciais. Para isso incorporei como atividade aos meus alunos e alunas, trabalhos de campo para identificação das nascentes que estão na região metropolitana de Goiânia e transformei isso em um seminário, por onde, por muito bons trabalhos, eles puderam expor as condições em que elas se encontram, bem como no que se transformam os seus mananciais. Em seguida resolvi cadastrar um projeto junto à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFG, denominado “CAÇADORES DE NASCENTES – ONDE NASCEM OS RIOS QUE CORTAM A REGIÃO METROPOLITANA DE GOIANIA”.[ii]

Inspirado em trabalhos já existentes em São Paulo e outros lugares, o objetivo é encontrar as nascentes, verificar suas condições, acompanhar o percurso dos mananciais e como ele chega até o rio principal. Quase sempre o Meia Ponte, que forma a principal bacia responsável pelo abastecimento de nossa capital e da cidade de Aparecida de Goiânia, segunda maior cidade do Estado.

Ao mesmo tempo, em sintonia com escolas de ensino médio e fundamental, estabelecer programas paralelos de acompanhamento dessas nascentes, próximas a essas escolas, e também em conjunto com a comunidade adotá-las, como forma de protegê-las, exigir a devida atenção do poder público e educar as novas gerações com um olhar diferente do que aqueles que a minha geração olhava para esses rios, córregos, riachos e nascentes, que faziam parte do nosso universo juvenil, mas sem o reconhecimento da devida importância para a sua preservação, cuidados e necessidades advindas do fato de estarmos lidando com o recurso mais fundamental para a vida, humana, animal e vegetal.

A par de esclarecer sobre esse trabalho, instigo os que me leem, ou me ouvem, a incorporar esse universo de combatentes, defensores de nossas nascentes. Tão logo as escolas reabram para as atividades presenciais, as visitaremos, especialmente aquelas em bairros cortados por mananciais ou onde situam-se algumas dessas nascentes. Já temos trabalhos feitos pelos alunos e alunas da disciplina “Geopolítica das Águas”, que apontam essas condições. Precisamos ampliar esses estudos, publiciza-los e envolver escolas, associações de moradores, ONGs, empresas, e todos que desejem reverter o situação que afetam esses mananciais, como condição necessária para proteger nossas vidas.

As cidades, como estão, por suas condições de administrações negligentes na questão da proteção hídrica e saneamento, assim como há também as responsabilidades da administração estadual, estão matando nossos mananciais e levando ao esgotamento as nascentes que se encontram espalhadas, e esquecidas, por toda a região metropolitana. É preciso cobrar responsabilidades pela elaboração de políticas de estado, de ações permanentes que revertam uma situação que se aproxima do caos e que levará a racionamentos permanentes até a escassez completa de água. E por fim a um cruel paradoxo, de haver tantas nascentes esquecidas ou abandonadas, e mananciais transformados em esgotos a céu abertos, enquanto falta água para a população.

Enquanto isso, nobres edis, que deveriam fiscalizar a administração municipal, e exigir projetos e planejamento adequados, bem como investimentos estatais a fim de permanentemente cuidar de nossas nascentes, se dedicam a elaborar projetos que visa punir a população pelo desperdício de água. Ora, essa é uma questão de educação e informação, cabe aos vereadores exigir do prefeito responsabilidade no trato desse problema, e não jogar a culpa nas costas das pessoas, que são vítimas, e não culpadas, pela negligência e incompetência dos gestores públicos.

Esse é o meu recado. Água é vida, é um bem comum, não é mercadoria, nem deve servir aos objetivos de empresários do setor da construção para valorizar seus imóveis. Aos que desejarem somar conosco nessa árdua, mas necessária tarefa, o convite está feito. Venha compor o exército dos “caçadores de nascentes”, e façamos nossa parte nessa luta em defesa da água, das nascentes e dos nossos rios.

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2 comentários:

  1. Um texto magnífico!
    As ações de recuperação e proteção das nascentes devem ser contínuas e coletivas. As comunidades de bairros devem se sentir partícipes de projetos que valorizem ao meio ambiente e os seus elementos; bem como reconhecer que os corpos hídricos que passam ou se situam em seus bairros são pertencentes à comunidade!
    As escolas são pontos estratégicos em que crianças e adolescentes poderão desenvolver um olhar consciente e responsável com o foco de recuperação e preservação das nascentes. Os alunos serão multiplicadores do aprendizado adquirido com leituras, discussões e trabalhos de campo e poderão contribuir com novas parcerias.
    Parabéns pelo texto professor!
    Como sempre, um blog que nos oferece o conhecimento científico e análises críticas acerca de inúmeras e importantes temáticas.

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  2. Maravilhoso,vamos tentar implementar em Salinas

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