Algum tempo atrás publiquei
um artigo no blog Gramática do Mundo, intitulado “Enquanto a chuva cai, a
água se esvai”.[i]
O objetivo do título era impactar criticamente logo antes de adentrar no
assunto, de forma a chamar a atenção para a maneira como se observa os
problemas hídricos em nosso país. Fazendo uma analogia às condições de boa
parte dos rios brasileiros, principalmente no Nordeste, mas situação que já
avança em direção ao Centro-Oeste, as notícias sobre a crise hídrica têm sido apresentadas
de forma intermitentes, quando deveria se dar de maneira perenes. Esse era um
dos focos que eu abordava, diante do fato de somente nos períodos secos se
começar a tratar da falta de água, principalmente para o consumo urbano, de
forma alarmante.
Por outro lado, o
título impunha uma atenção a um outro fenômeno, também pouco observado, embora
sempre gerador de alertas em áreas urbanas, notadamente naquelas com ocupação
irregular de áreas de riscos. O alto volume de chuvas, nas cidades, termina por
passar uma visão equivocada, diante de diversos cataclismas. A de que as chuvas
estão caindo em quantidades excessivas, pelas tragédias que elas causam, quase
sempre nas comunidades pobres das periferias dessas cidades. As imagens de
verdadeiros rios urbanos em ruas, arrastando violentamente o que vê pela
frente, naturalmente causam comoções, pelos estrago, vítimas e as condições a
que relega a população daqueles lugares. E mais do que isso, porque comoção se
sente por fora da tragédia, pela empatia das pessoas, mas efetivamente esses
desastres terminam por levar muitas famílias a perderem suas casas, e em muitos
casos carregam vidas, ou pelas enxurradas, ou pelos deslocamentos de encostas.
Mas, para além
disso e do que essas tragédias significam, há o outro lado. Findo o período de
chuvas a preocupação passa a ser outra. E isso se repete incessantemente, em um
efeito borboleta, como na teoria do caos. É sabido que, nas cidades, ao
contrário do que diz o velho ditado popular, depois da tempestade não vem a
bonança. O que virá, em um curto período, que cada vez se encurta mais, é a
ausência de chuvas e a intensificação de um outro drama, a ser vivido pela
estiagem e consequente escassez de água.
Fonte: Senado Federal |
Vou me atentar para o problema hídrico urbano, embora a crise não se limite a isso, visto que o uso de água pelas populações urbanas, no Brasil, não ultrapassa 12% do total de água potável disponível em nosso território nacional. O que significa também dizer que os rios, que abastecem as cidades, principalmente as enormes metrópoles, antes de entrar no perímetro urbano, ou das regiões metropolitanas, tem suas águas extraídas para uso na agricultura e pecuária (60%) e indústrias (próximo a 30%). Esses percentuais variam de estado para estado. Mas o problema é mais grave, e vai longe. E temos estudado também os problemas que advêm do uso da água, principalmente para a agricultura. O fio da meada se perde em suas origens. No entanto, os problemas ao longo de todo o trajeto das artérias hídricas que serpenteiam nosso planeta terra, não podem ser simplificados. Porque é um todo complexo.
Voltemos aos
problemas hídricos urbanos. De onde vem as águas que abastecem nossas grandes
cidades? Quantos se perguntam isso? Aonde vão as águas que serpenteiam por ruas
e avenidas, sob pontes e viadutos, em aquedutos e canais? Onde surgem, brotam, as
nascentes que se tornam mananciais que cortam nossa cidade? E no que eles se
transformam tão logo derivem um córrego até se encontrar com um rio onde vai
compor com este uma bacia hidrográfica? O uso do verbo transformar, no caso,
não está posto equivocadamente. Explico.
Nascente do córrego Cascavel |
Lamentavelmente
sempre se negligenciou o cuidado com nossas nascentes e com os mananciais
gerados por elas. Nos últimos anos passou a haver um cuidado maior com as
nascentes, diante de uma política de investimento em parques urbanos, nitidamente
com o intuito de favorecer o mercado especulativo imobiliário. Houve
resultados, parques importantes surgiram e se tornaram opção de lazer para a população.
Na maioria dos casos, no entanto, em se tratando das nascentes que se encontram
nesses parques a preocupação com suas manutenções não seguem uma rotina
adequada. E para além delas, das nascentes, os mananciais que surgem e seguem
por diversas direções, seja para o Córrego Botafogo, para o Ribeirão Anicuns e daí
para o Rio Meia Ponte, tornam-se canais e consequentemente depósitos de
dejetos, esgotos domésticos ou industriais. Por isso eles se transformam,
deixam de ser rios, córregos, no sentido adequado dados a eles, para se
tornarem esgotos, abandonados pelo poder público e ignorados pela população.
Embora os parques –
onde quase sempre existe um lago – sejam um atrativo, com o espaço sendo
utilizado pela população para prática desportivas e lazer, as pessoas não se
indagam sobre de onde vem suas águas, por onde elas seguem e para onde irão. Há
uma total indiferença, porque assim fomos habituados a conviver na cidade com
esses elementos, que se tornam mais do que meras paisagens, quase que uma
mercadoria pela qual desfrutamos, porque seu esmero paisagístico atende aos
interesses de incorporadoras, com o intuito de valorização de imóveis em seus entornos.
Córrego Capim Puba |
E desconhece-se a
importância que essas nascentes possuem para a bacia hidrográfica que garante o
abastecimento hídrico em nossas cidades, bem como irriga uma grande produção de
hortifrutis em todo o entorno da região metropolitana, de Goiânia e diversas
outras capitais. Cada uma com o seu perfil diferenciado, mas necessariamente sendo
servidas por essas águas, que se tornam turvas pela suas transformações em
esgotos, sem que haja políticas de saneamentos adequados para nos salvar de uma
hecatombe que poderá nos atingir pela escassez permanente de água.
Incomodado com
essas questões, a partir de análises feitas com o objetivo de compreender os
constantes problemas com o consumo de água e os racionamentos sistemáticos e
constantes, sempre que acaba o período chuvoso, cada vez mais irregular, me
debrucei sobre esse tema. Isso devido a minha atuação como professor de
geopolítica e atento às questões da biodiversidade e hídrica por um olhar
estratégico, visto que lidamos com recursos de suma importância para nossas
vidas, de valores imensuráveis, embora sendo constantemente objeto de ganância
de especuladores e investidores, que passam a ver na água muito mais do que um
bem comum, mas uma mercadoria por onde eles podem lucrar investindo e exercendo
controle, sob pretexto da inoperância do poder público. Naturalmente, a velha
estratégia de deixar de atender uma demanda que seja da responsabilidade dos
estados, tornar esse atendimento insuficiente e, assim, entregar em mãos de
corporações, cujas preocupações atendem aos lucros de seus acionistas e não o
bem-estar da população.
Mas para fugir do
lugar comum, da crítica costumeira que fazemos ao que já é sabido, essa
inoperância do poder público, resolvi ir em busca de respostas para compreender
as condições em que se encontram nossas nascentes e mananciais. Para isso
incorporei como atividade aos meus alunos e alunas, trabalhos de campo para
identificação das nascentes que estão na região metropolitana de Goiânia e
transformei isso em um seminário, por onde, por muito bons trabalhos, eles
puderam expor as condições em que elas se encontram, bem como no que se
transformam os seus mananciais. Em seguida resolvi cadastrar um projeto junto à
Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFG, denominado “CAÇADORES DE NASCENTES –
ONDE NASCEM OS RIOS QUE CORTAM A REGIÃO METROPOLITANA DE GOIANIA”.[ii]
Inspirado em
trabalhos já existentes em São Paulo e outros lugares, o objetivo é encontrar
as nascentes, verificar suas condições, acompanhar o percurso dos mananciais e
como ele chega até o rio principal. Quase sempre o Meia Ponte, que forma a
principal bacia responsável pelo abastecimento de nossa capital e da cidade de
Aparecida de Goiânia, segunda maior cidade do Estado.
Ao mesmo tempo, em
sintonia com escolas de ensino médio e fundamental, estabelecer programas
paralelos de acompanhamento dessas nascentes, próximas a essas escolas, e também
em conjunto com a comunidade adotá-las, como forma de protegê-las,
exigir a devida atenção do poder público e educar as novas gerações com um
olhar diferente do que aqueles que a minha geração olhava para esses rios, córregos,
riachos e nascentes, que faziam parte do nosso universo juvenil, mas sem o
reconhecimento da devida importância para a sua preservação, cuidados e
necessidades advindas do fato de estarmos lidando com o recurso mais
fundamental para a vida, humana, animal e vegetal.
A par de esclarecer
sobre esse trabalho, instigo os que me leem, ou me ouvem, a incorporar esse
universo de combatentes, defensores de nossas nascentes. Tão logo as escolas
reabram para as atividades presenciais, as visitaremos, especialmente aquelas em
bairros cortados por mananciais ou onde situam-se algumas dessas nascentes. Já
temos trabalhos feitos pelos alunos e alunas da disciplina “Geopolítica das Águas”,
que apontam essas condições. Precisamos ampliar esses estudos, publiciza-los e
envolver escolas, associações de moradores, ONGs, empresas, e todos que desejem
reverter o situação que afetam esses mananciais, como condição necessária para
proteger nossas vidas.
As cidades, como
estão, por suas condições de administrações negligentes na questão da proteção
hídrica e saneamento, assim como há também as responsabilidades da
administração estadual, estão matando nossos mananciais e levando ao
esgotamento as nascentes que se encontram espalhadas, e esquecidas, por toda a
região metropolitana. É preciso cobrar responsabilidades pela elaboração de
políticas de estado, de ações permanentes que revertam uma situação que se
aproxima do caos e que levará a racionamentos permanentes até a escassez
completa de água. E por fim a um cruel paradoxo, de haver tantas nascentes
esquecidas ou abandonadas, e mananciais transformados em esgotos a céu abertos,
enquanto falta água para a população.
Enquanto isso,
nobres edis, que deveriam fiscalizar a administração municipal, e exigir
projetos e planejamento adequados, bem como investimentos estatais a fim de
permanentemente cuidar de nossas nascentes, se dedicam a elaborar projetos que visa
punir a população pelo desperdício de água. Ora, essa é uma questão de educação
e informação, cabe aos vereadores exigir do prefeito responsabilidade no trato
desse problema, e não jogar a culpa nas costas das pessoas, que são vítimas, e
não culpadas, pela negligência e incompetência dos gestores públicos.
Esse é o meu recado. Água é vida, é um bem comum, não é mercadoria, nem deve servir aos objetivos de empresários do setor da construção para valorizar seus imóveis. Aos que desejarem somar conosco nessa árdua, mas necessária tarefa, o convite está feito. Venha compor o exército dos “caçadores de nascentes”, e façamos nossa parte nessa luta em defesa da água, das nascentes e dos nossos rios.
______________________________________
Um texto magnífico!
ResponderExcluirAs ações de recuperação e proteção das nascentes devem ser contínuas e coletivas. As comunidades de bairros devem se sentir partícipes de projetos que valorizem ao meio ambiente e os seus elementos; bem como reconhecer que os corpos hídricos que passam ou se situam em seus bairros são pertencentes à comunidade!
As escolas são pontos estratégicos em que crianças e adolescentes poderão desenvolver um olhar consciente e responsável com o foco de recuperação e preservação das nascentes. Os alunos serão multiplicadores do aprendizado adquirido com leituras, discussões e trabalhos de campo e poderão contribuir com novas parcerias.
Parabéns pelo texto professor!
Como sempre, um blog que nos oferece o conhecimento científico e análises críticas acerca de inúmeras e importantes temáticas.
Maravilhoso,vamos tentar implementar em Salinas
ResponderExcluir