Enfim,
a chuva chegou! E como no velho niilismo nietzschiano nos vemos preso a um
fim que não se acaba e estará de volta em um eterno retorno de um
discurso que retomará seu recomeço no próximo período de estiagem.
É
impressionante como recorrentemente o problema hídrico é tratado
somente no limite da necessidade. Há um provérbio popular que
sintetiza bem isso: “Só percebemos o valor da água depois que a
fonte seca”. Naturalmente, o interesse da grande mídia comercial
está na criação de um sentimento de perplexidade, e da geração
de temores e medos que compõem o universo dos jornais e telejornais
sensacionalistas, em sua maioria. Às vezes até aparecem boas
reportagens sobre o assunto. Mas pecam pela superficialidade, e pela
insistência em tratar o problema da falta de água como decorrente
dos gastos abusivos, ou excessivos, por consumidores urbanos.
Podem
acontecer abusos, e certamente acontecem, no uso da água nas
cidades. Mas longe está desta ser a principal razão da grave crise
hídrica que ameaça não somente a economia, mas como nossas
próprias vidas, humanos, animais ou plantas. O mesmo pode-se dizer
da forma como aparece na abordagem dos problemas climáticos,
insistentemente focado no discurso do aquecimento global com um viés
voltado para o interesse da reestruturação capitalista e
favorecimento das grandes corporações. Desvia-se do eixo central,
das questões que são, de fato, as responsáveis pela forma com a
falta de água se tornará, provavelmente tendo seu auge em 2050, no
pior problema da humanidade para o século XXI.
A
literatura acadêmica, focada em pesquisas sobre esse tema, tem
apontado há mais de uma década, não somente os diagnósticos que
indicam as causas da crise hídrica seja escassez ou estresse, como também indicam as necessárias medidas para amenizar esse problema.
Mas, tanto o diagnóstico, quanto as medidas a serem tomadas,
esbarram na forma perversa como funciona o sistema capitalista, ou
decorrente da escolha de um estilo de vida altamente urbanizado,
exageradamente marcado pelo consumismo, mas, principalmente devido ao
fato de todos citadinos necessitarem adquirir os alimentos
necessários à sua sobrevivência. Ao contrário de sistemas
anteriores, por séculos e milênios passados, em nossa época os
bilhões de pessoas que vivem nas cidades não produzem seus próprios
alimentos. Essa equação, aliada à lógica gananciosa e usurária
que marca a vida contemporânea, dificulta a tomada de decisões que
são essenciais para conter essa crise.
Com
algumas indagações, que o levam a iniciar a discussão sobre o
problema da escassez de água, Laurence Smith é um daqueles que veem
na falta de água uma ameaça para o futuro da humanidade. Em sua
obra “O mundo em 2050”, ele dedica boa parte a essa discussão.
O
que nos reserva o futuro? Nossa água está acabando, a exemplo do
que acontecerá com o petróleo? Nos últimos 50 anos, dobramos
nossas terras cultivadas irrigadas e triplicamos o consumo de água
para atender à demanda global de alimentos. Nos próximos 50 anos,
teremos de dobrar mais uma vez a produção de alimentos. Será que
haverá água para tudo isso?i
Apesar
de, diferentemente do petróleo, retornar à superfície por meio de
um ciclo hidrológico que a renova permanentemente, a celeridade com
que se dá o consumo esgota rapidamente a água superficial, ou mesmo
os lençóis freáticos, o que levará inevitavelmente à escassez,
ou ao estresse hídrico.
Mas
há uma cegueira ideológica na identificação dos problemas, ou
melhor, das causas que são geradoras de um consumo elevado e com
intenso desperdício desse recurso. Como questiona Smith, até onde
será possível ir a nossa capacidade de produzir alimentos para
abastecer cidades com milhões, ou dezenas de milhões de habitantes?
Mas não somente alimentos. Tudo o que se produz depende da água, na
indústria, na construção, nos usos diversificados urbanos.
Em um dos artigos que produzi aqui neste blog, e que tinha também a água
como referência, abordei esse tema diante da grave situação
que passa o bioma cerrado.ii
Desta feita, embora ainda procurando reforçar esse problema, por ser
este o bioma que concentra uma enorme quantidade de nascentes que
formam as principais bacias brasileiras, vou dar mais amplitude ao
tema. Embora não seja a primeira vez que faço isso. O fiz também
quando a cidade de São Paulo correu um sério risco de
desabastecimento, em decorrência da diminuição do volume de água
do sistema Cantareira, conjunto de barragens que abastecem aquela
cidade, por meio de dois outros textos.iii
De lá para cá, o problema tem se agravado, muito embora no caso
específico do Estado de São Paulo, o governo tenha iniciado um
conjunto de obras visando a transposição do rio Paraíba do Sul. Só
que são soluções que não atingem o problema da redução dos
níveis de água, e gerarão outros efeitos colaterais. No caso deste
rio a situação já está crítica em alguns pontos, de diminuição
do volume de águas, em função da destruição de suas margensiv
e da poluição que tem afetado a reprodução de diversas espécies
de peixes, alguns já à beira da extinção.v
É
correto agir para evitar desabastecimentos nas grandes cidades, em
todas as aglomerações urbanas, obviamente, até porque
constitucionalmente a prioridade do uso da água deve ser para
atender as necessidades humanas. Mas a gestão que os governos
aplicam quando a questão é a água, se limita somente a isso. E não
de forma preventiva, com algumas exceções, mas as medidas são
tomadas quase sempre quando o problema atinge o seu ponto crucial, de
estresse ou de escassez hídrica.
É
bom que se diga, antes de qualquer aprofundamento nas razões dessa
crise, que o estresse hídrico ocorre quando há água, mesmo que em
quantidade elevada, mas é insuficiente para atender a demanda, tanto
do uso urbano, quanto na indústria e agropecuária.
Pode-se
definir o estresse hídrico como resultado da relação entre o total
de água utilizado anualmente e a diferença entre a pluviosidade e a
evaporação (a água renovada) que ocorre em uma unidade
territorial, em geral, definida por um país.vi
Já
a escassez decorre pela absoluta falta de água numa determinada
região, que pode vir a ocorrer também como consequência dos usos
abusivos e da consequente diminuição do volume de água. Ou seja, o
estresse hídrico pode vir a se transformar, futuramente, numa
escassez crônica.
A escassez hídrica é uma das medidas de avaliação geográfica de uma unidade territorial. Ela pode ser física e econômica. Quando a quantidade disponível de água de um país não é suficiente para prover as necessidades de sua população, existe uma escassez física de água. Se um país não tem recursos financeiros para levar água de qualidade e em quantidade suficiente à sua população, apesar de ela ocorrer em seu território, a escassez é econômica.(idem)
Objetivamente
pode-se encontrar resposta para as dificuldades de diversas regiões
do mundo em ter acesso à água potável, seguindo-se o processo
produtivo, os mecanismos que levam à produção industrial, à
criação de gado e, principalmente à agricultura, com uso intensivo
de irrigação, completamente fora de controle. Neste último caso,
embora a irrigação seja um elemento essencial para garantir
produção de alimentos suficiente para alimentar a população, a
preços acessíveis, a ausência de fiscalização sobre os métodos
adotados, muitos deles feitos de forma clandestina, tem sido um fator
de destruição de importantes rios. Aqui no Brasil isso é nítido,
é sabido, mas não é fiscalizado como deveria. E
quando há fiscalização e multas os punidos não pagam,
em função do poder exercido pelos grandes produtores rurais,
absenteístas em sua maioria, latifundiários e que são responsáveis
por produção em larga escala de monocultura.
Canal ilegal desvia água para irrigação - Rio Araguaia - G1 |
Recentemente
no Estado de Goiás, como consequência de uma forte seca provocada
por uma prolongada estiagem, e que teve como efeito colateral o
esvaziamento de rios importantes para o abastecimento (veremos mais
adiante que a seca é consequência, não causa), levou a
intensificação da fiscalização em diversas bacias, como as bacias
dos rios Meia Ponte e Araguaia, a fim de garantir o direito da água
à população urbana, mas esse é um problema antigo, sem que haja
punição aos que desviam água sem licença, ou quando a tem
extrapola o limite do que lhe é permitido.
O
que se vê, de forma impune, embora sob investigação do
Ministério Público, é uma série de irregularidades praticadas por
grandes produtores rurais, com desvios de águas do rio Araguaia por
meio de extensos canais.vii
No entanto isso já ocorre há tempos, e mesmo na reportagem citada
isso é dito como se fosse natural, pois há abertura de processos, a
indicação de multas, mas esse setor consegue por meio de forte
articulação política, concentrada numa bancada poderosa no
Congresso Nacional, se livrar de qualquer punição. E seguem
cometendo irregularidades no uso da água. Não são poucos os que
assim o fazemviii,
e, embora essas últimas ações estejam concentradas no Rio
Araguaia, elas se estendem por todo o Estado de Goiás e por diversos
outros estados brasileiros, levando destruição a rios importantes
da hidrografia brasileira, e ressecando pequenos córregos e riachos
também por meio de outras ações destrutivas.
Captação irregular de água do rio Meia Ponte - GO |
Poderíamos
listar aqui diversos outros casos de irregularidades na captação de
água para irrigação, bem como o desperdício gerado pelo uso de
velhos pivôs centrais. Na região de Cristalina, muito embora haja
em algumas propriedades técnicas mais sofisticadas, com uso de
tecnologias modernas que controlam a emissão de água e até mesmo o
horário em que isso ocorre, elas compõem uma minoria. Soma-se a
esses fatores a disputa entre irrigantes e investidores de Pequenas
Centrais Elétricas (PCHs), bem como de obras mais suntuosas para
geração de energias, barragens que prejudicam o curso normal das
águas do rio São Marcos e de outros, e afetam também espécies da
fauna fluvial, em alguns casos de forma irreversível.
Mas
a discussão em torno do problema da escassez de água, bem como da
seca gerada pela irregularidade além do natural, do ciclo das
chuvas, se dá, a meu ver, de forma enviesada. Nada, no entanto, que
não siga um roteiro pré-elaborado por quem controla setores que tem
interesses na criação de uma opinião consensual, no caso mais em
conta o “aquecimento global”, a fim de proceder a transformações
na matriz energética e prosseguir na reestruturação do
capitalismo.
As
mudanças climáticas estão a ocorrer, naturalmente. E não há
dúvida que a ação humana contribui para acentuar desequilíbrios e
potencializar transformações que, pelo tempo, demorariam mais a
ocorrer, ou não se dariam com a intensidade com que acontece.
Portanto, as alterações climáticas são fato, acontecem, e a ação
humana tem reflexo nisso.
Contudo,
a dimensão que se dá ação humana tem mais a ver com questões da
geopolítica do que com a climatologia, por exemplo. Mas seja por aí,
ou pela física, oceanografia, geografia, ecologia, biologia… etc…
etc… etc... Explico.
Pivôs ilegais captam água do rio araguaia |
É importante considerar que as duas questões estão ligadas. As
discussões em torno da crise hídrica, bem como a que envolve as
mudanças climáticas.
A
insistência em centrar no consumo urbano o problema da água, ou de
considerar que o aquecimento global se deve principalmente a efeitos
colaterais da industrialização, esconde a essência do problema, as
reais causas que estão deteriorando nossa qualidade de vida no
Planeta Terra. O interesse em desviar o foco, ou em construir versões
sobre as causas, tem o objetivo de amenizar as responsabilidades
sobre a maneira como o sistema capitalista esgota nossos recursos,
destrói a natureza e impacta perversamente no clima, principalmente
nas regiões com altos índices de urbanização, como decorrência
de um estilo de vida que implica em consumir além daquilo que o
planeta pode oferecer para produzir mercadorias.
As
interferências das atividades humanas no ciclo hidrológico ocorrem
em todos os continentes e em muitos países. Os impactos dessa
intervenção no ciclo variam para cada região ou continente. De
modo geral esses impactos são:
a)
construção de reservatórios para aumentar as reservas de água e
impedir o escoamento;
b)
uso excessivo de águas subterrâneas;
c)
importação de água e transposição de águas entre bacias
hidrográficas.ix
Complexo de represas em fazend a na cidade de Inhumas - águas do meia ponte - O Popular |
O
que aponta Tundisi é o resultado desastroso de ações que são
feitas sem a devida adoção de mecanismos protetivos, bem como
ausência de planejamento para garantir que um bem imprescindível
não corra o risco de se acabar. A gestão dos recursos hídricos
somente acontece na contracorrente das necessidades. Ou seja, não
estabelece a priori políticas que antevejam os riscos da escassez
hídrica. As medidas somente são tomadas quando se está no limite
da utilização da água, mormente em períodos de estiagem.
Inevitavelmente,
esse descontrole afetará o ciclo hidrológico, que por sua vez
implicará em desequilíbrios climáticos e oscilação acentuada de
temperaturas. Na situação atual, de aquecimento sucessivo em
algumas regiões, mas o efeito não é global, já que ele ocorre de
forma diferente porque a própria distribuição da água é desigual
no planeta e cria desequilíbrios naturais.
O
fato é que há uma relação dialética entre a crise hídrica, as
constantes mudanças climáticas, em um tempo mais acelerado que o
normal e o intenso desenvolvimento capitalista. No entanto, é
necessário ter a compreensão exata de quais são os elementos nesse
processo que são responsáveis por esse desequilíbrio.
Mesmo
que não houvesse mudança climática, o mundo continuaria
enfrentando o declínio no abastecimento de água per
capita
por causa do desenvolvimento econômico e do crescimento da
população. Mesmo que pudéssemos congelar o crescimento
populacional, a modernização significa maior consumo de carne, bens
acabados e energia; tudo isso eleva o consumo de água per
capita. Contrariando
a crença popular, o crescimento populacional e a industrialização
representam ao suprimento de água global um desafio ainda maior do
que a mudança climática.x
Ou
seja, é exatamente as condições criadas por um modo de produção
acentuadamente predatório, na medida em que constitui um estilo de
vida consumista baseado no crescimento econômico concentrador,
reprodutor de mercadorias em larga escala, bem como em uma
urbanização acelerada, e que leva a necessidade de suprir
populações concentradas aos milhões em centros urbanos, que torna
difícil a solução dos problemas.
Desvio de água - Rio Descoberto - You tube |
Mas,
tem sido mais difícil identificar essas soluções porque o foco dos
possíveis motivos geradores desses desequilíbrios se concentram nas
consequências, e não nas causas. E a forma como a grande mídia
comercial trata esses problemas gera mais dificuldades na
identificação das causas reais. Por um lado espetaculariza a
informação e por outro não responsabiliza como deve os principais
agentes causadores das condições que aceleram destruição de
ecossistemas e biomas.xi
Volto
a insistência como se trata do fenômeno que se tornou midiático, o
“aquecimento global”. Ele (o discurso, e/ou a preocupação)
surge por efeito da crise econômica e do deslocamento do centro
produtor de mercadorias, e naturalmente, concentrador do dinheiro,
dos Estados Unidos e Europa para a Ásia. Ao mesmo tempo, o
crescimento de outras economias regionais, de menor porte, que foram
colocadas na condição de, agora, serem responsáveis pela
intensificação da emissão de gases gerados pelo forte
desenvolvimento industrial e pelo uso de matrizes que potencialmente
impactariam nos efeitos climáticos, gerando um aumento da
temperatura em todo o globo.
Portanto,
todo o discurso que há por trás dessa questão envolve elementos de
geopolítica, e ao mesmo tempo, o que é cruel a meu ver, encobre as
razões naturais tanto dos desequilíbrios climáticos regionais como
da escassez e estresses hídricas. Porque visivelmente abrange
interesses estratégicos, tanto econômicos como na disputa por
recursos naturais.
Trocando
em miúdos. O problema que se acentua gravemente no Brasil, mas que
afeta também outras partes do mundo por diversos continentes, a
deficiência hídrica, é causada por essa forma de desenvolvimento
que destrói a natureza. E as medidas, ou repercussões dessa crise,
só aparecem nos períodos em que ocorre ausências de precipitações
pluviométricas.
Vou
ficar no exemplo do Bioma Cerrado. Esse que já foi considerado por
Guimarães Rosa como “a caixa d’água do Brasil”. E que de fato
pode ser assim chamado, por ser por meio de suas nascentes, córregos
e rios, que se formam algumas das principais bacias brasileiras. Mas,
que sabemos, o problema não se resume a um único bioma, afeta os
demais de forma diferente, pela especificidade em suas
características geomorfológicas.
Ocorre
que nos últimos anos houve uma intensificação acelerada da
produção agrícola e criação de gado, impactando fortemente nesse
Bioma. A redução do mesmo decorre da exploração predatória,
baseada na grande produção de monocultura em propriedades
latifundiárias que usam fartamente, por meio de grandes pivôs
centrais, a irrigação como forma de aumentar suas produtividades. E
o Estado é o financiador dessa situação, muito embora não o faça
na mesma proporção, em termos de importância na cadeia de produção
alimentar, com os pequenos produtores e com a agricultura familiar
(que recebeu uma certa atenção na primeira década do século XX,
mas que vê isso retroceder diante da crise que afetou o país e que levou à deposição da presidenta legitimamente
eleita).
Mas
além de citarmos a irrigação, é preciso identificar um problema
anterior. O desmatamento, que destrói aceleradamente o Cerrado e
leva ao fim, além de uma rica biodiversidade, as veredas, principais
fontes de água, por cujas nascentes formam-se córregos e rios.
Tanto o desmatamento, como o pisoteio do gado, são fatores
destrutivos que vão reduzindo a capacidade de recarga e
consequentemente tornarão córregos e rios de perenes a
intermitentes. Registre-se
que o Centro-Oeste é o maior produtor de gado bovino do Brasil, e
somando-se com a região Norte, concentram mais da metade dessa
produção. Justamente as regiões que atualmente mais são afetadas
pelo desmatamento.xii
UHE_batalha - rio são marcos go-mg |
É
óbvio que a consequência disso será a diminuição do volume de
águas que verterá para os principais rios que formam grandes
bacias. Aliado a isso, as intervenções que são feitas para
construção de barragens, seja para Pequenas Centrais Elétricas, ou
para Grandes Centrais Elétricas, causam fortes impactos também
sobre a fauna fluvial e gradativamente reduzindo o tamanho e a
importância daquele rio. A destruição de suas margens, ou matas
ciliares, consequência do desmatamento, da extração descontrolada
de areia e em muitos casos devido a garimpos clandestinos, são
outros fatores que transformam a paisagem por todo o percurso de
montante à jusante e vão reduzindo o volume desses rios até que em
alguns casos eles cheguem à sua foz na condição de um pequeno
riacho.
Essas
ações predatórias são as principais razões pela redução da
capacidade hídrica de uma determinada região. E isso tem acontecido
numa escala criminosa no Bioma Cerrado, a ponto de, pela primeira vez
a capital federal, construída bem no coração desse bioma, passar
pela primeira grande crise de escassez, levando a necessidade de
rodízio na
distribuição a
fim de evitar uma situação mais drástica de absoluta falta de água
para toda a capital federal.
Nascente do córrego Santa Clara - Araguaína TO Assentamento Gurgueia - Desvio de água por fazendeiro |
Mas
embora seja óbvio para os que estudam os problemas hídricos,
inclusive da gestão, onde estão as origens dos problemas, os
lobbies organizados que reforçam o poder dos grandes proprietários
de terras, representados por uma forte bancada de parlamentares no
Congresso Nacional, pressionam os governos para que isentem as
dívidas daqueles produtores flagrados em ilicitudes na exploração
da água. E, sob o argumento de que a produção de alimentos é uma
necessidade para alimentação de uma população crescente,
reivindicam mais investimentos para ampliar a área irrigada, sob o
pretexto de que há ainda no Brasil um enorme potencial hídrico a
ser explorado. O que pesa, na verdade, para além dos rumos que pode
ir nossa capacidade hídrica, é a ganância e os lucros que são
gerados para manter a opulência de uns poucos, que estão sempre
protegidos desses infortúnios, já que a escassez de água afeta
principalmente a população mais pobre.
Infelizmente,
os governos dos Estados que compõem o bioma Cerrado, cometem
desatinos quando desviam recursos que deveriam ser investidos na
prevenção dessas irregularidades e punição de criminosos que não
só destroem mananciais e fontes por onde nascem o líquido essencial
à vida. Além de acobertarem, juntamente com uma justiça venal e
uma incompetente Agência Nacional de Águas, as recorrentes
irregularidades praticadas por grandes produtores, em muitos casos
uma casta da qual eles próprios fazem parte. Banalisam a importância
de cuidar bem dos recursos hídricos e estupidamente se escoram na
ilusão de que a água é infinita.
Outro
aspecto, de certa forma também de difícil solução, haja vista a
incompetência dos gestores na administração pública, cujo foco é
sempre a eleição seguinte, é a absoluta ausência de um
planejamento adequado que identifique quais setores são estratégicos
para a manutenção e fortalecimento do espaço vital seja nacional,
ou regional. E no caso das grandes cidades, principalmente as
capitais, as condições de crescimento levaram a uma absoluta
inoperância na preocupação com o abastecimento de água na mesma
proporção e aceleração com que se dava o crescimento
populacional. Enquanto isso, nascentes eram aterradas, córregos
transformavam-se em canais e a quase totalidade dos que cortam as
zonas urbanas foram transformados em depósitos de descargas de
dejetos de casas e indústrias, constituindo-se em verdadeiros
esgotos a céu abertos. As águas que por ali circulam em tempos de
grandes pluviosidades perdem-se na podridão e não são aproveitadas
para consumo. Em tempos de estiagem o que prevalece são os líquidos que
saem dos esgotos.
Esgoto no meia ponte (Domício Gomes - O Popular) |
No
entorno das cidades, os cinturões verdes, de produção de
hortifrutícolas, disputam boa parte dessa água e a usam para
irrigação. Até aí se pode dizer ser um uso tolerado, na medida em
que são produtores que abastecem as feiras e centrais que distribuem
frutas e verduras essenciais em nossa alimentação. O problema é
que não há fiscalização adequada, nem se busca usar de novas
tecnologias para amenizar os gastos de água. Invariavelmente o poder
público prefere grandes financiamentos para empreendimentos de
produção para exportação, menosprezando a importância do pequeno
produtor. Que de outra forma não consegue adequar seu sistema de
irrigação às necessidades de controle do consumo de um recurso em
absoluta escassez. Sem
contar que alguns usam águas poluídas e produzem alimentos
contaminados geradores de doenças para a população.
Mas,
dessa forma, e sem o devido planejamento, a água que cruza as
cidades são impróprias para o uso, e as que as circundam, ou mesmo
que estão prestes a serem captadas pelos sistemas de abastecimentos,
vão tendo o volume reduzido pelo uso que se faz dela para irrigação
a montante. Só que essa é uma situação absolutamente previsível.
Assim como é a previsibilidade de que após o período chuvoso, já
que a água que escorre por esses mananciais torna-se imprópria para
consumo e perde-se rapidamente nas vias impermeabilizadas, um novo
período de estiagem, sempre com maior intensidade, virá para preocupar
e gerar pânico e revolta entre as pessoas.
Rio Meia Ponte - Goiânia - O Popular |
A
alternativa encontrada por muitos, os que tem condições para isso,
naturalmente, inclusive condomínios horizontais e empresas, é
recorrer às empresas que instalam poços artesianos. Ora, como a
cidade cresce acentuadamente, e se espalha por uma periferia cada vez
mais distante do centro, o abastecimento de água demora a atender a
essa crescente demanda. A retirada de água dos lençóis
subterrâneos assume assim a condição de prover inúmeras
residências do abastecimento necessário, obviamente. O que resulta
disso? O aumento da retirada de água desses canais subterrâneos faz
com que os mesmos se esgotem gradativamente, reduzam o volume dessas
águas e forçando a que cada vez mais seja necessário aprofundar os
poços para atingi-los. Ao mesmo tempo, isso vai afetar o processo de
recarga de água e será também gerador do esgotamento de inúmeras
nascentes, cujas águas desaparecem como decorrência da diminuição
da quantidade que existem nesses lençóis e
aquíferos.
E,
para voltar a um tema espinhoso, que continuará por muito tempo
gerando polêmica e repercussão, o “aquecimento global”,
suponhamos
que os céticos estejam errados, e, de fato se possa considerar essa
expressão para se referir às transformações climáticas que
acontecem no mundo. Não será, contudo, repito, por causa dos
efeitos gerados pela industrialização, e consequentemente pela
atual matriz energética, que esses desequilíbrios ocorrem. Mas pela
destruição acelerada da natureza, pelo desmatamento em larga escala
e a consequente destruição de nascentes, córregos, riachos e
rios.xiii
O maior perigo do mundo, inegavelmente, está na possibilidade de uma
escassez geral da água, por não haver nenhuma alternativa para a
humanidade com o fim de um líquido que é vital para a vida.
Canal clandestino de desvio de água |
Não
me parece que tudo que aqui escrevi seja novidade. Como já disse, eu mesmo já
publiquei alguns artigos neste blog alertando para os problemas que
advirão devido à incapacidade de lidar com o controle do uso da
água. Acontece que, e aí termino da forma como comecei, sempre que
a situação chega num ponto crônico em função do aumento do
período de estiagem, soa o alarme, a mídia se alvoroça e confunde na
explicação, cria um pânico que é natural, já que a falta de água
é a pior coisa que existe para a vida. Aí temos alguns momentos de
preocupação, e vemos as autoridades se debaterem com uma situação
que não poderá ser resolvida no auge de uma escassez real.
O
que estou a propor, portanto, é que devemos urgentemente encontrar o
eixo correto para identificar as causas que estão nos levando por um
caminho que pode tornar-se difícil de recompor o que se está a
destruir. Claro
que ainda é possível corrigir esses rumos, a ciência ajuda, com
certeza. Mas é na gestão, no planejamento estatal e fiscalização
severa, que devem se concentrar as principais correções.
Mas,
de repente, vem a chuva! É como o soar dos sinos, alertando para um
novo tempo. População, meios de comunicação (com exceções) e
autoridades se quedam aliviados. Eis que a preocupação passa a ser
a quantidade e a força com que cai a água, e as atenções
agora voltam-se para aquelas populações, as mesmas vítimas
principais da estiagem ou da seca, que vivem em áreas de riscos e correm o perigo
de serem arrastadas por enchentes causadas pelas péssimas condições
da arquitetura das cidades. E boa parte desta água, como visto, não
poderá ser aproveitada.
Enquanto
a chuva cai, a água se esvai.
______________________________
NOTAS:
i
SMITH, Laurence C. O Mundo em 2050: Como a demografia, a demanda de
recursos naturais, a globalização, a mudança climática e a
tecnologia moldarão o futuro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Pág.
71.
iv
http://ranoticias.com/2017/10/29/o-paraiba-agoniza-pois-e-sangrado-em-varios-pontos-ate-chegar-onde-deveria-repousar/
vi
RIBEIRO, Wagner Costa. Geografia Política da Água. São Paulo:
Annablume Editora, 2008. Pág. 62.
vii
https://g1.globo.com/goias/noticia/mpf-e-mp-entram-com-acao-para-proibir-que-fazendeiro-retire-agua-do-rio-araguaia-para-agricultura.ghtml
viii
http://g1.globo.com/goias/videos/v/mais-de-30-produtores-rurais-da-regiao-do-rio-araguaia-sao-indiciados-por-crime-ambiental/6270430/
ix
TUNDISI, José Galizia. Água no Século XXI: Enfrentando a
escassez. São Carlos: RiMa, IIE, 2003. Pág. 14-15.
x
SMITH, Laurence C. Op. Cit. Pág. 74
xi
O
que é um Ecossistema e um Bioma. Dicionário Ambiental. ((o))eco,
Rio de Janeiro, jul. 2014. Disponível em:
.
Acesso em: XX (dia) xxx. (mês) XXXX (ano).
xiii
https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/nascente-de-corrego-seca-apos-desmatamento-e-povoado-fica-sem-agua.ghtml
Gostei do artigo. E na sociedade de consumo, individualista, onde o lucro comanda, não vejo saída. O que fazer? Apontar caminhos, mais do que denuncias/constatar, já dizia o velho Illich, é uma ação revolucionária.
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