domingo, 10 de dezembro de 2023

16 ANOS SEM NOSSA QUERIDA ANA CAROL

COMO COMPREENDO A MORTE E COMO SINTO A PRESENÇA DE QUEM JÁ MORREU, E QUE ESTÁ NAS LEMBRANÇAS, EM NOSSAS MEMÓRIAS

https://youtu.be/JVhPrA6zmI8

Há 16 anos vivi o pior momento de minha vida. No fatídico dia 13 de dezembro de 2007, perdi minha querida filha Ana Carolina, aos 10 anos de idade. De lá para cá, claro, muita coisa mudou. Nós envelhecemos, o mundo se transformou radicalmente, e posso dizer sem medo de errar, para pior. Isso não se refere a mim, mas as sociedades, como um todo. Se afunila uma crise sistêmica que passa imperceptível, porque as pessoas vivem suas rotinas e os meios de comunicação procuram formas de evitar considerar a existência de uma realidade tóxica, causada pelo acirramento das contradições nas sociedades.

Algo não mudou, no entanto, na minha rotina após esses 16 anos vividos, mais sofridos do que antes, de lembranças latentes e permanentes. Porque quando perdemos uma filha, ou um filho, jamais esquecemos... nunca esqueceremos. O que não mudou, então, é a nossa permanente presença, sempre no dia 13 de dezembro, em visita à sua sepultura. Outros dois momentos nos levam até lá, a data de seu aniversário, em 05 de março; e no dia dedicado aos mortos, 02 de novembro.

Em uma das crônicas que escrevi para o livro que dediquei a ela, “DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU”, eu explico por que não professando nenhuma religião, mantenho essa rotina, ao lado de minha companheira Celma Grace. Ela, diferente de mim, que sou ateu, é agnóstica, e professa a sua espiritualidade à sua maneira.

Infelizmente, para nosso sofrimento e enorme tristeza, já não temos mais nossa filha entre nós. Ela permanece nas lembranças, e na crença dos que acreditam haver alguma forma de experiencia espiritual após a morte. Eu, como materialista que sou, não tenho essa crença, embora respeite quem quer que assim veja o mundo, ou o pós-mundo.

Então o que me leva rotineiramente ao cemitério, a visitar uma sepultura onde o que existe são os restos mortais de minha filha? Sei de outros amigos que passaram pela mesma dor que eu, e adotam outro comportamento. Respeito, pois cada pessoa lida com a morte e com a perda de entes queridos de maneira diferente. E isso não significa sentir menos ou mais essas perdas. Mas representam escolhas de cada uma dessas pessoas, que seguramente carregam dentro de si seus sentimentos sinceros. Não as julgo.

Para mim a morte é algo sempre presente em nossas vidas. Não sabemos quando, nem escolhemos a forma como vamos morrer. Embora alguns resolvam, por questões psicológicas e angustiantes, tirar a sua própria vida. Mas a morte é inevitável, e a única certeza que temos na vida: que em algum momento de nossas vidas cessaremos de existir e morreremos.

Para um materialista, isso para além de me considerar ateu, porque essa é uma denominação “concedida” pelos cristãos, lidar com a morte pode ser mais angustiante do que para quem acredita na espiritualidade, e na existência de uma vida pós-morte. A religião se torna, assim, um refúgio, por onde se aceita a morte e se prepara para ela. Ou, de maneira mais contundente, o espiritismo.

Não creio nisso. A morte, na concepção materialista é o momento em que deixamos de existir para a vida, e o nosso cérebro para de funcionar. Mesmo que por um certo tempo, por meio de aparelhos, partes de nosso corpo ainda funcionem, e por isso são utilizadas para transplantes, já não há mais vida em um corpo onde o cérebro tenha parado de funcionar. Ocorre de, em algumas vezes, haver uma falência múltipla de órgãos, que implicará também no fim daquele corpo. É trágico tratar disso, mas é a pura consequência de nossa existência. De uma maneira, ou de outra, passaremos por isso.

Penso na morte como um sono profundo, definitivo, onde não haverá mais a possibilidade de sonharmos, e do qual jamais sairemos. É o fim, dessa vida. Sem reagir, o corpo padece e se consumirá ou na forma tradicional do sepultamento, ou no método que cresce como escolha, da cremação.

Restarão as lembranças, que estarão presentes nas mentes dos que ficarão vivos, de maneira mais fortes nos primeiros momentos daquela perda, ou de forma significativa pelo resto da vida das pessoas que vivenciaram a história de quem partiu, particularmente os parentes, e mais especialmente em datas específicas. Porque, por mais que amemos aquelas pessoas que já partiram, nossas vidas devem seguir em frente. Porque continuamos a viver.

Mas essas lembranças, os possíveis diálogos imaginários que possamos fazer para quem morreu, principalmente uma filha, não tem a ver com a crença na permanência de um espírito que vaga até encontrar um “paraíso”, onde os encontraremos quando também morrermos. Para mim, se trata de estabelecer um diálogo com minhas próprias lembranças, e de manter sempre presente o amor que sinto pela minha filha, apesar de ela não estar mais entre nós.

Para mim, importa agora tê-la viva nas minhas lembranças, em minhas memórias, principalmente ela, porque perder uma filha um filho, foge do que imaginamos ser a ordem natural de nossas vidas. Esperamos sepultar nossos pais, e desejamos que eles vivam até os cem anos, com saúde. Já nossos filhos e filhas, perdê-los é como retirar partes de nossos corpos. É uma ferida que jamais cicatriza, se mantém aberta, e cuidamos dela de maneira diferente, dependendo de como cada um, ou cada uma, veja a morte. E aprendemos a viver assim.

Não é uma questão de ser religioso ou não, acreditar na espiritualidade ou ser ateu. É um sentimento que extrapola qualquer relação com crenças religiosas. A única coisa que precisamos para manter presente esses sentimentos e essas relações é o amor. Esse é o sentimento que percorre nosso corpo, entre o coração e o cérebro, e nos faz manter nossas lembranças sempre num estágio de permanente presença, que nos faz sonhar até mesmo com quem já não está mais entre nós.

Embora não seja visto assim, o coração tem um papel fundamental nessa relação. Para mim, é lá que está o “deus” que cada um de nós procura. Pode ser um deus de bondade, ou um deus que justifique todas as perversidades, guerras, mortes, crimes. Ele se liga inevitavelmente com o cérebro, e esses dois órgãos agem concomitantemente definindo nossas vidas, nossa forma de ser e o nosso caráter. Não é o que “criamos” pelo nosso cérebro que nos faz ser o que somos. Importa pouco “inventarmos” um deus, se nossos corações estiverem estimulados por ódios e por indiferenças diante das coisas, das outras pessoas e de uma realidade social perversa. Infelizmente, a maior parte da humanidade se refere ao coração de maneira abstrata, figurativa.

Eis porque mantenho minha rotina, mesmo sendo “ateu”, de ir frequentemente ao cemitério, nas datas especiais, para ali, em frente à sepultura de minha filha, travar um monólogo, embora eu queira ser que se trate de um diálogo. Mas é um monólogo. Ela não me ouvirá. Mas do meu coração trato como se ela estivesse ouvindo, e minhas memórias em minha mente, trazem as lembranças de sua vida, no tempo em que esteve conosco.

Essa é a primeira vez, de tantas vezes que já escrevi sobre esses sentimentos que nutro por minha filha, desde quando ela partiu, em que faço referência explícita à minha condição de ateu, ou materialista.

Quero assim romper com essas concepções odiosas, de quem julga por meio de um coração recheado de ódio e intolerância, ser melhor por “crer” em um deus. Ter uma religião, ou acreditar em um deus, não torna as pessoas melhores, nem piores. O que define uma pessoa é o seu caráter. Não é possível imaginar que existe um deus de perversão, que estimule o ódio, que justifique a intolerância e os crimes praticados em seu nome. O que vemos ao longo dos séculos, e milênios, são violências sendo praticadas em nome de Deus. Nessas condições o que determina esse comportamento é a ilusão criada nas mentes, que impõe a essas pessoas um grau de intolerância que a leva a não aceitar que o outro não seja seguidor de suas crenças, e o faz sentir ódio e até matar, com a justificativa perversa que todos tem que acreditar em seu deus.

O materialista não age no sentido de combater de forma odiosa as crenças na espiritualidade ou nos mitos, que a nosso ver, são criados pelo ser humano. Mas visa explicar o mundo pela concretude da vida. Por meio dos sentidos, da objetividade de nossa existência real, daquilo que é comprovável. No entanto, compreendemos que o ser humano sempre precisou da crença em deuses e na existência da vida para além da morte, como forma de serem resilientes diante de adversidades inevitáveis, até mesmo como lidar com a morte. Isso não é necessariamente algo ruim. Se torna ruim quando se transforma numa justificativa para a disseminação de ódio e intolerância, quando se deseja obrigar, por meio dessas crenças, que todos os demais se enquadrem nessas concepções. Isso é o que se chama, doutrinação.

Assim, sigo visitando minha filha em sua última morada. Transportando os sentimentos bons de sua existência para o meu coração e mantendo-a sempre presente ao meu lado. Sofro, choro, sinto tristeza... sua ausência é para mim ainda incompreensível e resultado de uma perversão. Afinal, filhos não deveriam morrer antes de seus pais. Mas cada vez mais não temos como evitar isso, em um mundo transtornado, cujos valores se vão com enorme intensidade precipício abaixo. Doenças como câncer e leucemia, vírus, bactérias, pesticidas, guerras, esses dentre outros elementos nocivos, aliados à própria perversão humana, seguem vitimando crianças em grau insuportável. E, apesar de tudo isso, sinto alegria em alguns momentos, me divirto, mantenho algumas esperanças, porque, como disse, sigo vivo em meio a tudo isso. Só não perco a empatia, mesmo com a frustração por ver o mundo indo em direção oposta a tudo o que sonhei. Eu até posso ser um pouco pessimista, embora me julgue sendo realista, mas a geração de meu filho tem a obrigação de ser otimista, ou de acreditar em um mundo diferente décadas adiante.

No silêncio que cerca a sepultura de minha filha, tento ali me comunicar mentalmente, e nesses pensamentos transmito as minhas sensações sobre o mundo, a falta que ela faz, e fico ainda a imaginar como seriam nossas vidas com ela entre nós, hoje com 26 anos. Seguramente estaria ao lado daquelas pessoas que incansavelmente lutam contra as injustiças sociais, pelos direitos das mulheres, se incorporando às causas antirracistas e por um sistema social mais justo e menos desigual.

Sei que ela seria uma guerreira, como a Mulan, personagem forte da história, ou do folclore, oriental chinês. Em um dos últimos diálogos que travei com ela, ainda antes de ser levada para a UTI, disse que ela era uma guerreira, e perguntei com qual personagem ela se identificava: Mulan ou Pocahontas, filmes que havíamos assistidos juntos. Ela escolheu Mulan. Até hoje vejo e revejo os filmes sobre a Mulan, que eternizo nas lembranças que tenho dela.

Assim, essa rotina, e esse diálogo imaginário com minha filha, persistirá enquanto eu estiver vivo. Lá, onde seu corpo repousa, também estão sepultados meu pai e minha mãe. Também é um sentimento de perda enorme, muitos de nós sabemos disso. Mas nada comparável ao sentimento que ainda sinto, com um misto de revolta, pela morte de minha filha.

A razão da revolta está explícita no texto. Porque sempre considerei que são os filhos que devem enterrar seus pais e mães, e não o contrário. Só que esse é um sentimento, que nem sempre segue o destino que desejamos e muitas vezes não temos como evitar.

Encerro por aqui, mais uma crônica que tem para mim um objetivo claro, amenizar as minhas angústias e saudades de minha filha. Ana Carol está eternizada em nossas memórias, mas merecia ter vivido por muito mais tempo do que viveu. Seguirei, portanto, produzindo textos como esses, mesmo depois de tantos outros que já escrevi e se encontra no meu livro e neste blog Gramática do Mundo. Blog este que foi justamente criado para servir de anteparo, ou de catarse, ao sofrimento que se impôs sobre nós desde sua morte.

13 de dezembro trará, sempre, essas lembranças mais fortes. E os finais de ano, bem como as festas que tradicionalmente festejávamos, jamais serão como eram nos tempos em que Carol estava conosco. Se tornou um tempo frio e sombrio, que procuramos alimentar de esperanças com a presença de nosso filho, de nossos parentes, amigos e amigas. Mas nada será como antes.

Me resta seguir o lema que adotei, e que intitula o meu blog: “Carpe diem quam minimum credula postero!”[1] Até que o amanhã não exista mais para mim.



[1] "Odes" (I, 11.8) do poeta romano Horácio (65 - 8 AC): Carpe diem, quam minimum credula póstero. (Aproveite o dia, confia o mínimo no amanhã).