segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

REVOLTAS NO EGITO, TUNÍSIA, OMÃ, IÊMEN... O EFEITO DOMINÓ AMEAÇA DITADURAS ÁRABES

Quando eu era adolescente me deliciava em fantasias lendo contos maravilhosos da literatura árabe. Hoje sob críticas quanto à tradução, tanto que recentemente foram publicados dois volumes com os contos das 1001 noites traduzidos diretamente do árabe. Também as histórias de Malba Tahan, heterônimo de Julio Cesar de Mello e Souza, principalmente “O Homem que Calculava”, que extraí diretamente da biblioteca de meu velho pai (que assinava em suas primeiras páginas: “o amigo dos livros”) para deleite de meu intelecto. Guardei por muito tempo esse livro, até suas páginas amarelarem.

Mas o Oriente desde há muito vive o mistério das belezas milenares com o inferno que a geografia lhe proporcionou. As riquezas em seu subsolo, de onde se extrai o principal componente da energia que movimenta o mundo capitalista, é também a sua desgraça. Pelo menos para a maioria de sua população, submetida a controles monárquicos, religiosos e imperialistas.

O que se sabe do Oriente Médio, pelas (contra)informações passadas pela grande imprensa, fazem daquela parte do mundo um verdadeiro mosaico de loucos fundamentalistas a explodirem-se em nome de Alá, sob a certeza de deliciarem-se com o paraíso pós-morte com várias virgens a lhes esperarem. Transformam a exceção em regra.

As belezas da cultura árabe, bem como a importância histórica de um conhecimento milenar, são desprezados tanto mais quanto os governos daqueles países sejam nacionalistas. Monarquias e tiranos pró-ocidentes, melhor dizendo, pró-EUA, compõem a galeria de chefes de Estados “democratas”. Mas, mesmo assim, a visão que se transmite dos valores daquela gente mantém-se numa linha de desdém e menosprezo. Valores, hábitos e cultura ocidentais são impostos na medida em que se busca desvalorizar todo um arcabouço de riquezas que contam a história de importantes civilizações.

Os líderes que despontam são destacados segundo as medidas de suas cumplicidades com o imperialismo. Tornam-se “democratas” em monarquias seculares ou em regimes tirânicos monocráticos e ditatoriais, características que são omitidas pela imprensa internacional. Ou não compactuam com o imperialismo, caso em que caem em desgraças e seus perfis passam a virem acompanhados da alcunha de ditadores e a serem considerados aparentados de lúcifer. Diabólicos e criminosos genocidas a arquitetarem planos para destruir o mundo civilizado com suas “armas de destruição em massa”. Repete-se isso ad nauseam, e o mundo todo acredita, não tendo a menor conseqüência se tudo é negado depois.

Mas, há um tempo em que as contradições empurram as coisas na direção das mudanças. Crises sejam políticas ou econômicas impõem a necessidade de transformações sociais. E como dito na velha canção de Geraldo Vandré, as pessoas despertam do domínio tirânico, e aos poucos vão “...escrevendo numa conta, pra junto a gente cobrar, no dia que já vem vindo, que esse mundo vai virar. (...)Madeira de dar em doido, vai descer até quebrar, é a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”.

Eis que chega a vez daqueles países que se situam na condição de marionetes dos EUA, da mesma forma como tempos atrás ocorreu na América Latina. Segue agora a crise econômica que se iniciou em 2008 e tem desde então começado um processo de alteração da ordem geopolítica mundial, com a decadência do poder que os EUA exerciam no mundo.

O efeito dominó que ameaça o Oriente Médio nada mais é do que a extensão dessa crise e o fracasso do modelo Neoliberal, com estagnação econômica, concentração de riqueza e ampliação da pobreza.

Estados Unidos, Europa, Oriente Médio... esgotamento de um modelo que sucumbe com a ajuda de instrumentos (ou ferramentas) criados, paradoxalmente, para fazer acelerar esse processo de domínio global do capitalismo.

Ironicamente, para desmoralização dos meios de comunicação tradicionais, o Egito silenciou-se nesta segunda-feira pela internet. Antes, a rede de TV Al-Jazeera já havia sido bloqueada. Para quem por muito tempo ignorou esses regimes ditatoriais, porque aliados neoliberais do Ocidente e EUA, deve ter sido uma enorme decepção ter que noticiar fatos por tanto tempo escondidos.

Somente quanto o assunto é América Latina (Cuba, Bolívia, Venezuela, Brasil...) os setores conservadores e seus órgãos oficiais, incluindo-se aí a matilha de comentaristas que desfilam horrores quando analisam as “ditaduras” latino-americanas (mesmo que seus líderes tenham sido eleitos democraticamente) e rangem seus dentes quando o assunto é o controle de uma mídia corrupta e mentirosa.

Para o cidadão pouco informado (e o “pouco informado” refere-se àquele indivíduo que se limita a ouvir noticiários da mídia tradicional), os países em questão nesse momento, submetidos a uma crise sem proporção e a manifestações populares nunca vistas, representavam o lado “civilizado” do Oriente. Ao contrário de Iraque, Afeganistão, Líbano, Palestina, sempre mostrados como territórios dominados por terroristas, fundamentalistas religiosos, dispostos a iniciarem uma carnificina numa guerra sem fim contra os ocidentais.

Ocorre que até há pouco tempo esses eram os países mais democráticos e laicos daquela região. O Iraque por muito tempo foi modelo de saúde para os países do Oriente Médio, e tradicionalmente um país com farto histórico no campo do conhecimento. Da mesma maneira o Afeganistão, que por muito tempo possibilitou o convívio entre pessoas com crenças religiosas díspares e com valores culturais marcados pela tolerância. O Líbano sempre conviveu com cristãos e muçulmanos, inclusive na composição de seus governos, tanto quanto Iraque que tinha um vice-presidente católico; e os Palestinos já de há muito realizam eleições livres.

O que os fazem diferentes dos demais? Primeiro sentiram as conseqüências da guerra fria, e a invasão do Afeganistão pelos soviéticos precipitou a decadência daquele país, e a partir daí uma completa inversão de valores conduziu a sua política, com os EUA apoiando uma contra-revolução escorada naqueles elementos que algumas décadas depois seriam tratados por eles como terroristas.

No Iraque da mesma maneira, só que mais do que a localização geográfica, sua geologia o fez cair em desgraça. A riqueza do petróleo tornou-o objeto de cobiça em um tabuleiro de enorme interesse dos países imperialistas. Entremeado com o Irã, já completamente demonizado pela mídia ocidental e Arábia Saudita, outra monarquia ditatorial pró-EUA. Neste caso, a confirmar a hipocrisia nas relações internacionais, pouco se cobra de democracia e direitos humanos.

Aliás, quase todos esses países que agora passam por um efeito dominó e vêem suas ditaduras balançarem, inclusive a Arábia Saudita e Egito, usaram de suas forças policiais truculentas para prenderem suspeitos de terrorismo e os entregarem à CIA para serem torturados em navios especialmente planejados para isso, longe das fronteiras territoriais e das legislações internacionais que punem os crimes de tortura.

Seguramente a única coisa que une historicamente esses diferentes governos nesses países é a forte corrupção. Seja a fragilidade democrática por um lado, ou o apoio explícito à um banditismo institucional lhes dado pelos EUA, compõem elementos que facilitam o controle da riqueza por famílias tradicionais, ditas monárquicas, ou ditadores que se perpetuam no poder e ao se afastarem nomeiam filhos ou parentes próximos. Uma região riquíssima, em termos de recursos naturais (leia-se petróleo), desperta a cobiça em meio à frágil organização popular, submetida ao controle de suas consciências pelo forte domínio islâmico.

No entanto, a juventude, impulsionada pelas novas ferramentas tecnológicas que a internet proporciona, encontrou um meio espetacular para aglutinar insatisfeitos e a explodir revoltas por muito tempo contidas. Claro que por trás de tudo isso se encontra também setores organizados, partidos de esquerda e mesmo aqueles ligados ao fundamentalismo religioso.

O que pode resultar dessas revoltas é imprevisível. Democracia, nos moldes ocidentais, é muito difícil de imaginar, pelas características culturais. Tanto esses ditadores podem ser “sacrificados” pelo Ocidente para em seu lugar colocar alguém que lhes seja confiável, como pode também emergir um poder escorado no fundamentalismo islâmico anti-ocidente, possibilitando um choque com Israel e fazendo eclodir um conflito de grandes proporções.

Algo que em meio à crise capitalista afeta grandes economias, viria a servir como uma alternativa para a recuperação econômica. Não nos esqueçamos que as duas grandes guerras se iniciaram logo após conflitos regionais e na sequência de crises econômicas e de disputas hegemônicas entre grandes potências. O capitalismo se encontra diante de uma grave crise, e as guerras constituem-se em momentos importantes para a retomada de lucros em meio às desgraças. Não importando as vidas humanas. Isso serve também para as tragédias que a natureza proporciona.

Fica aqui um alerta. O mundo pode entrar em convulsão para uma recomposição geopolítica. Portanto, ao ouvir alguma notícia sobre instabilidades políticas em algum país nos noticiários e jornais da mídia tradicional, corra à procura da informação verdadeira.

domingo, 23 de janeiro de 2011

A REVANCHE DA NATUREZA

“...não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança”. (F. ENGELS)


Há cinco anos, quando estive na presidência da (Adufg (Associação dos docentes da UFG), na edição da Mostra Multicultural Milton Santos, simpósio que realizávamos bianualmente, sugeri que o tema fosse esse do titulo que encabeça esse artigo. Minha referência, para essa sugestão, foi exatamente a leitura da obra de Engels (segue o link abaixo ao fim do artigo)*. Mas foi também em função de vários eventos violentos, em especial o tsunami que varreu o sudeste asiático.

Como sempre acontece, essas catástrofes são acompanhadas de uma repercussão tão, ou mais, espetacular do que o próprio evento. Embora seja logo esquecido. Principalmente porque a mídia tradicional vive disso, da espetacularização da notícia, da dramatização dos acontecimentos, de forma a envolver os espectadores e elevar seus índices de audiência. Mas ela tem também seus pontos positivos e falarei deles depois.

Dentre as palestras que realizamos naquela edição da Mostra, uma foi especial. Tivemos a satisfação de contar com a presença do professor e pesquisador renomado da Geografia, Aziz Ab’Saber. Sua palestra foi tão disputada que precisamos colocar um telão do lado de fora do auditório. Tudo isso, consequência do conhecimento que se tem a respeito da excelência dos trabalhados dele, aliado à atração que o tema em si já proporcionava.

Lúcido e apresentando a competência de sempre, apesar de quase centenário, Ab’Saber discorreu com precisão sobre a temática proposta e teceu críticas à maneira como as cidades crescem desordenadamente e às razões que levam a esse tipo de situação.

De lá para cá, em meio a inúmeras tragédias que se repetiram com enormes semelhanças, outros especialistas apontaram as mesmas causas, e a convicção de que as conseqüências seriam praticamente as mesmas, em tempo e espaços diferentes.

CRÔNICA DE UM DESASTRE ANUNCIADO

Resta-nos, portanto, constatar que tudo do que se vê nessas catástrofes já tem a assinatura da incapacidade dos gestores (principalmente nos municípios) em lidarem com o planejamento urbano. Notadamente naquelas áreas menos valorizadas, em situações de riscos de ocupação, que, exatamente por essa condição terminam por ser as mais procuradas pela população pobre para construir habitações frágeis, na medida em que estão livres da especulação imobiliária. Pelo menos até começar a receber infraestruturas urbanas. Infelizmente segue uma “lógica” sistêmica.

São casos os mais variados, mas todos eles carregam em si a irresponsabilidade de se erguer habitações em lugares que, sabidamente, correm riscos de serem atingidos por fenômenos típicos de uma realidade que sempre fez da natureza uma somatória de eventos que demonstra toda a dinâmica que a envolve.

Embora essa não seja uma regra geral, na medida em que pessoas com ganhos razoáveis buscam também construir casas de veraneios, ou sítios, em regiões bucólicas. Em muitas dessas áreas também são erguidos hotéis e pousadas, que visam atrair um público saudoso de ambientes diferentes do estressante cotidiano das grandes cidades.

Mas, a região Serrana no Estado do Rio de Janeiro, embora com uma paisagem belíssima, está permanentemente sujeita a deslizamentos de terras em função da sua geologia. Naturalmente, situações como as que ocorreram esse ano, podem se repetir a qualquer momento em que as chuvas acontecerem intensamente, e não só ali, mas mesmo em outras áreas com características semelhantes. Como já aconteceu, por exemplo, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina e que já começa a se repetir. Bem como em São Paulo, em várias cidades, Mauá, especialmente, e aqui no Estado de Goiás, na antiga cidade de Goiás. Senão deslizamentos, enchentes de graves proporções arrastam quarteirões inteiros e vitimam dezenas de pessoas.

(Veja mais informações no site: http://www.geologo.com.br/)

A Natureza não é estática, ela está em permanente mudança e sujeita a intempéries causadas pela dinâmica que a torna dialeticamente contraditória. Independente da ação humana, mas potencializada por ela. É a somatória de todos esses absurdos, entendendo-se essa palavra em seu sentido etimológico, que faz da Natureza um eterno ciclo da vida (nascer, crescer, morrer; mesmos compreendendo essas palavras metaforicamente).

O que se pode dizer, sem ser necessariamente profeta, é que esses eventos continuarão a acontecer, independente de qualquer polêmica que veja nisso efeitos de um “aquecimento global”, já que nem mesmo isso é consensual e provoca intensos debates entre cientistas do mundo todo. Pressupõe-se, inclusive, que essas tormentas nada tenham a ver com “aquecimento global”.

Mas, obviamente, entra em discussão aquilo que é da essência do texto de Engels, escrito no século XIX, e também fez parte da abordagem citada de Ab’Saber. O crescimento das cidades, hoje seguramente o principal problema que afeta a humanidade (ver também entrevista de David Harvey no site Carta Maior: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17303), acontece seguindo uma lógica do sistema capitalista, e o expansionismo urbano ocorre tanto como decorrência do forte deslocamento da população rural, como da necessidade de valorização do uso do solo, a fim de atender à especulação usurária que é a marca do modelo de sociedade em que vivemos. E, principalmente, como já disse em outros textos aqui mesmo nesse blog, é nas cidades que o capitalismo se realiza, com todas as suas contradições.

Nessa equação, apesar das exceções citadas, são os pobres as principais vítimas desse processo. Porque a procura por terrenos em áreas de riscos decorre da incapacidade dessas pessoas poderem construir habitações em lugares mais seguros, em função da especulação imobiliária. O lucro, acima de qualquer coisa, até mesmo das vidas humanas, é o elemento principal a definir tanto o expansionismo das cidades como o investimento em infraestruturas urbanas. As prioridades, quase sempre, são de aplicação da maior parte dos recursos arrecadados nos setores mais valorizados economicamente. E, lamentavelmente, essa é uma regra geral, independente de quem esteja administrando a cidade, devido aos interesses em jogo e às negociações com as “representações” parlamentares.

E o que se vê, nessa onda de hipocrisia que marca a maneira como os problemas são expostos, é ainda, uma forte campanha contra os impostos. Os que se opõem consideram-nos desnecessários, visto que são mal aplicados.

Ora, os ricos não precisam tanto da cobrança de impostos para garantir melhorias urbanas, já que buscam outras alternativas como os condomínios fechados e autosuficientes (pode-se ver, em terrenos planos, e bem localizados); ou em setores valorizados pela especulação e bem atendidos pelo poder público. Se andarmos em Goiânia, por exemplo, veremos não uma, mais várias cidades, com perfis e populações diferentes. A paisagem da cidade vai se modificando, à medida que nos deslocamos de norte a sul e é visível a diferenciação econômica dos lugares e, consequentemente, os benefícios concedidos por quem administra o seu traçado.

A população pobre, sim, precisa que esses impostos sejam cobrados de quem mais pode pagar e os investimentos devem ser feitos onde são mais necessários. Habitações seguras, construídas em terrenos planos, devem ser priorizadas e a ação do Estado, em todas as suas dimensões (municipal, estadual e federal) deve ser a garantia de que os absurdos sejam combatidos com medidas que tenham como objetivo possibilitar às pessoas condições dignas de vida. Inclusive com desapropriação de terrenos desocupados à espera de valorização, para a construção dessas moradias.

Mas há um problema na democracia (dentre tantos outros), o discurso eleitoral e o marketing são feitos para ludibriar os incautos. Pouco do que se promete é feito e o retorno só é garantido para quem financia milionariamente aqueles candidatos que, em função desses apoios, saem vitoriosos. Depois são vistos em igrejas e templos rezando e orando, e às vezes chorando lágrimas de crocodilo. Talvez o choro encubra a leniência em solucionar problemas sociais crônicos que afetam principalmente os mais pobres. Pode ser um arrependimento, quem sabe. Mas fora daquele espaço, tudo é esquecido, e volta-se a “pecar”, garantindo-se o direito de poder pedir perdão desses pecados. Mater Dei, ora pro nobis, pecattoribus. Assim se faz há milênios.

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(*) https://gramaticadomundo.blogspot.com/2011/01/dialetica-da-natureza.html

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A DIALÉTICA DA NATUREZA(*).

Apresento abaixo extratos de um texto de Engels, escrito no século XIX. A partir dele, meu próximo post irá abordar os problemas sociais gerados pela ação violenta da natureza e os comentários que se fazem sobre a tragédia humana que acompanha as “catástrofes naturais”.

FRIEDRICH ENGELS

“Os animais, como já indicamos, modificam, por meio de sua atividade, a natureza ambiente, da mesma forma (mas não no mesmo grau) que o homem; e essas transformações por eles produzidas em seu ambiente, atuam, por sua vez, como já vimos, sobre os elementos causais, modificando-os. Isso porque, na Natureza, nada acontece isoladamente.

Mas, quando os animais exercem uma influência duradoura sobre o ambiente em que vivem, isso se dá independentemente de sua vontade, constituindo um fato puramente causal. O homem, porém, quanto mais se afasta da animalidade, tanto mais sua influência sobre a natureza ambiente adquire o caráter de uma ação prevista, que se desenvolve segundo um plano, dirigida no sentido de objetivos antecipadamente conhecidos e determinados.

O animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença.

Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança.

Cada uma delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas conseqüências com que podemos contar; mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras conseqüências.

E assim, somos a cada passo advertidos que não podemos dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente.

Na realidade, a cada dia que passa aprendemos a compreender mais corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes de nossas intervenções no processo que a mesma leva a cabo. Principalmente em virtude dos gigantescos progressos realizados pelas ciências naturais no século atual (XIX), cada vez mais nos encontramos em condições de conhecer as consequências mais remotas de nossas mais comuns atividades de produção.

Mas, se foi necessário o trabalho de milênios para que chegássemos a aprender, dentro de certos limites, a calcular os efeitos remotos de nossos atos orientados no sentido da produção, isso era muito mais difícil no que diz respeito aos efeitos sociais remotos (de longo prazos), desses atos.

Na verdade, porém, aprendemos nesse campo (do trabalho), gradualmente, por meio de uma longa e quase sempre dura experiência (e mediante a coordenação e investigação do material histórico), a compreender claramente as consequências sociais, indiretas e remotas, de nossa atividade produtiva, o que nos proporciona a possibilidade de dominar e regular também essas conseqüências.

Mas, a fim de conseguir essa regulação, não basta o simples conhecimento. Para isso, será necessária uma completa revolução em nossa maneira de produzir e, ao mesmo tempo, de toda a ordem social atualmente dominante.

A ciência social da burguesia, a economia política clássica, ocupa-se apenas com os efeitos sociais imediatos a serem obtidos através das atividades humanas dirigidas no sentido da produção e da troca. Isso corresponde inteiramente à organização social da qual ela é a expressão teórica. Daí a razão por que os capitalistas, cada um por seu lado, produzem e trocam tendo apenas em vista o lucro imediato e, assim sendo, só podem colocar em primeiro lugar os resultados mais próximos e diretos.

Considerando que qualquer industrial ou comerciante apenas se preocupa em vender, com um pouquinho de lucro embora, a mercadoria fabricada ou comprada, está claro que fica satisfeito e não mais se interessa pelo que possa acontecer com a mercadoria e com o seu comprador.

O mesmo (sucede) com as conseqüências naturais dessas mesmas atividades. Aos agricultores espanhóis estabelecidos em Cuba, que queimaram as matas nas encostas das montanhas (tendo conseguido, com as cinzas daí resultantes o adubo suficiente para uma só geração, para cafeeiros muito lucrativos), que lhes importava o fato de que mais tarde, os aguaceiros tropicais provocassem a erosão das terras que, sem defesas vegetais, transformaram-se em rocha nua?

Em face da Natureza, como em face da sociedade, o modo atual de produção só leva em conta o êxito inicial e mais palpável; e, no entanto, muita gente se surpreende ainda pelo fato de que as conseqüências remotas das atividades assim orientadas sejam inteiramente diferentes e, quase sempre, contrárias ao objetivo visado.”


(*) Extratos do Apêndice do livro DIALÉTICA DA NATUREZA de Friedrich Engels, escrito no final de 1875 e começo de 1876. O texto, que inicialmente recebeu como título: “a humanização do macaco pelo trabalho”, foi modificado posteriormente para “A servilização do trabalhador” e foi redigido originariamente como introdução a um trabalho mais extenso denominado “As Três formas Fundamentais da Servidão”.

Essas citações foram retiradas da 3ª edição do livro DIALÉTICA DA NATUREZA, editado em 1979 pela Editora Paz e Terra. Páginas 215 a 227. O texto não foi concluído por Engels.