domingo, 26 de fevereiro de 2012

SER DIFERENTE É NORMAL!

Nos últimos dias um fato inusitado foi muito comentado nas redes sociais e até mesmo na imprensa. A aprovação de um jovem, portador da Síndrome de Down, através do concurso vestibular da Universidade Federal de Goiás, para o curso de Geografia no Campus da cidade de Jataí.
Devemos tirar vários ensinamentos disso, e gostaria de, ao fazer referência a esse fato, estabelecer uma relação com a escola, com a Universidade, e com o embate travado atualmente entre projetos distintos de educação. Particularmente, à importância que possui o educador, em especial, em situações como essas. Embora não seja somente responsabilidade deste, pois a família e a sociedade no combate ao preconceito cumprem tarefa importante, de ir rompendo alguns valores incorporados das culturas e gerações passadas. Que, logicamente, permanecem nos dias de hoje.
A Síndrome de Down, que atende cientificamente pelo nome de Trissomia do Cromossoma 21, tem causa genética, e teve o nome popularizado em homenagem ao médico britânico que a descreveu.
Essa é uma das deficiências mais comuns aos nascidos. Ocorre uma vez a cada cerca de 700 nascimentos, em média, mas pode ser maior em mulheres cuja gravidez aconteça após os 35 anos de idade. Evidentemente que o acompanhamento médico pode evitar que isso ocorra, mas é a mais comum das deficiências de causas genéticas.
Algumas de suas características estão presentes na maioria das pessoas, mas não se tornam visíveis e os sintomas mais comuns estão relacionados às dificuldades de aprendizado, deficiências nas habilidades cognitivas e com possíveis retardamentos mentais, que pode ser variável de uma pessoa para outra.
Contudo, nos últimos anos uma série de comportamentos, tanto médicos e científicos, como de medidas sociais, com a criação de entidades que passaram a cumprir importante papel de socialização dessas pessoas, os portadores dessa doença têm conseguido superar barreiras antes inimagináveis. Tanto por esse exemplo citado, como pelo tempo de vida dessas pessoas, que tem se ampliado consideravelmente. Até meados do século XX, a expectativa de vida não passava de 15 anos.  No entanto, nos dias de hoje já é possível ver muitos deles superarem a idade de 50 anos, chegando até aos 70 anos..
Dito isso, quero pegar o aspecto social dessa importante questão. Estamos acostumados a ver, e até mesmo nós mesmos repetirmos isso, às vezes de forma inconsciente, motivados por alguma irritação, referências aos tempos atuais, como sendo de caos, desordem, destruição. Somos empurrados a crer que nos aproximamos do fim da humanidade. Uma série de lendas, histórias mal contadas e exageros, ditos para ampliar o medo das pessoas e forçá-las à descrença e a buscar como última alternativa o espaço pouco lúdico, mas muito assustador, dos tabernáculos, templos e igrejas.
Essas mesmas entidades que sempre viram, em tempos passados, antigos e medievais, pela ignorância de conhecimento ainda restrito, essas deformidades nas pessoas como sendo causadas por pecados, castigos divinos e outros tipos de preconceitos que as condenavam à morte lenta e a agonia de não poderem ser tratados como normais. Assim foi também com o surgimento de muitas outras doenças, entre elas a terrível peste, por muito tempo impedida de se conseguir um tratamento adequado por puro preconceito, em grande parte causado por essa estupidez que os dogmas religiosos impunham.
Mas isso não é um comportamento somente medieval. Ele se estendeu por todo o século XX e persiste ainda, mesmo que de forma mais reduzida. É comum vermos ainda nos dias atuais, jovens adolescentes referirem-se a outros, quando de situações vexatórias, como sendo “mongol”. Até o final da década de 1960 essa doença era chamada de “mongolismo”, pelas características que alguns de seus portadores passam a ter com os indivíduos originários da Mongólia, país situado no centro da Ásia. O preconceito, portanto, persiste.
Contudo, em menor escala do que em épocas passadas. E tanto o tratamento dado e ampliado com o surgimento de instituições criadas para esse fim, como pela criação de legislações que impõe à sociedade a obrigação de garantir a essas pessoas o direito à cidadania, e consequentemente ao tratamento igualitário como pessoas que merecem carinho, respeito e consideração, e acima de tudo garantias de se inserirem por todos os meios que lhes possibilitam essas leis à vida em sociedade com oportunidades de poder mostrar que são capazes de superar as diferenças.
Devemos ter sempre essa frase para alimentar nossos comportamentos: “ser diferente é normal”. Creio que isso nos ajuda a sermos mais tolerantes com as diferenças. Até porque, de várias maneiras, todos nós somos mesmos diferentes.´
E devemos também reconhecer, ao contrário do que pregam algumas seitas, que a humanidade tem avançado e melhorado suas relações no trato com essas diferenças. Algumas resistências persistem, principalmente conduzidas por setores conservadores, religiosos ou não, mas que são pouco a pouco combatidas pelo enfrentamento ideológico e pelo olhar carinhoso e tolerante de pais e mães que transmitem pela força do amor familiar, o carinho necessário para que os seus filhos, nascidos com algum tipo de distúrbio possam superar as adversidades e atingirem limites até há pouco tempo inalcançáveis.
Mas não somente de situações como as dessas doenças genéticas, mas também de outras deformidades, ocasionadas por acidentes, por tragédias que deixam as pessoas com seqüelas e com dificuldades de locomoção. São muitos ainda os desafios, e os avanços também acontecem geograficamente de maneira diferenciadas, mas as conquistas são inegáveis.
Contudo, a crítica ao comportamento das instituições religiosas no passado, deve também vir acompanhada do registro, a reafirmar essas transformações que o mundo vivenciou, que são muitas as pessoas que dedicam a sua fé religiosa a tratar e cuidar de pessoas que compõem esse universo de dificuldades. E isso feito também através de entidades filantrópicas mantidas por algumas dessas instituições.
Isso nos mostra que o mundo tem, sim, melhorado. Em que pese todos os problemas, guerras e conflitos. Que não são, ao contrário do que se pretende mostrar, características exclusivas de nosso tempo. Mas, mesmo esses, são muito mais possíveis nos dias de hoje de serem resolvidos pelas vias diplomáticas – internamente e externamente – do que em outras épocas. Só é preciso conhecê-las, aventurar-se pela história, para se perceber que o mundo já foi muito mais intolerante.
Passo, então, a tratar do outro aspecto que citei no segundo parágrafo desse texto. O papel do educador. Vivemos uma crise, sim, na educação. Mas, as crises não são necessariamente situações ruins. Melhor dizendo, as crises são situações causadas pelo acirramento de contradições, entre comportamentos e projetos antigos e ultrapassados, e idéias e propostas inovadoras. Elas sempre fazem parte de nossas vidas, assim como se dá o conflito entre a maneira dos jovens olharem o mundo, e a forma como os mais antigos o enxergam. O que em dialética chamamos de negação da negação.
Esse caso, que não é único, embora seja mais uma exceção, representa um desafio para nós, professores do ensino superior. Não bastasse as próprias diversidades existentes nas turmas, pelas características e história de vida dos nossos alunos, ainda devemos saber educar estudantes especiais, portadores de algum tipo de deficiência, mas que, pelo próprio exemplo dado, conseguem superar adversidades e ultrapassar o difícil limite que separa o ensino secundário da universidade.
Particularmente, sempre carrego comigo um ensinamento que extraí da leitura de um texto de Eric Hobsbawm, intitulado "Dentro e Fora da História", do livro “Sobre a História”(*).  Dizia ele que o desafio do professor não está em saber lidar com estudantes que tenham boas qualidades, que saibam por si próprios compreender com facilidade os ensinamentos que lhes transmitimos. Mas, sim, em conseguir transformar alunos com limitações de aprendizado, os que possuem mais dificuldades de entendimentos das questões complexas, e poder levá-los a superar suas próprias deficiências.
Claro que as dificuldades enfrentadas pelos professores, a falta de incentivo para uma profissão tão importante e imprescindível, e a própria lógica existente no sistema educacional que visa premiar os mais capazes e envolvê-los imediatamente e precocemente em projetos de pesquisa e atividades que aproveite suas potencialidades, termina por transformar aqueles alunos menos brilhantes em um incômodo na sala de aula. Eu diria que é o Bullyng institucionalizado. De forma perversa, por uma lógica sistêmica.
O desafio agora, com a perspectiva de cada vez mais esse perfil de estudante chegar à universidade, até pela própria democratização do acesso que o Enem possibilita, é de nos colocar diante de uma necessidade de descobrirmos até que ponto somos educadores, ou meros orientadores de mentes brilhantes.
Lidar com um estudante, portador da Síndrome de Down, certamente é somente uma dificuldade a mais, em uma realidade de adolescentes precocemente transformados em alunos de curso superior, com idade a cada ano mais baixa E, por esses novos processos, bem como pela possibilidade de acesso pelo sistema de cotas, onde o mérito perde relevância diante da necessidade de se resgatar seculares injustiças sociais, nós, educadores, nos vemos diante de novos desafios. Acrescidos a uma realidade de famílias divididas por casamentos desfeitos, numa sociedade onde o amor é cada vez mais volúvel, nos tornamos mais do que educadores, pedagogos, mestres e/ou psicólogos.
Sobre as nossas costas recaem as responsabilidades maiores de enfrentar essas contradições, as limitações existentes nas salas de aulas com perfis de alunos completamente diferentes, mas também lidar com essas diferenças, com um cuidado redobrado, por estar recebendo jovens que tem em suas vidas verdadeiros exemplos de superação de problemas e de batalhas homéricas contra o preconceito.
Tudo isso só reforça a necessidade de lutarmos cada vez mais por um maior reconhecimento da importância que nós, professores, sempre tivemos na sociedade. Mas que nos últimos anos, relegados a segundo plano pela perversidade de uma lógica mercadológica, nos tornamos muito mais problemas relacionados aos limites orçamentários dos governos, do que solução para situações como as que aqui acabo de abordar.
Independente disso, mas sem jamais deixar de lutar por essa valorização, compreendemos o papel que desempenhamos, e mais ainda em lidar com jovens com enormes dificuldades de aprendizado, mas não devemos trocar esse desafio pelo de tratar mais facilmente com alunos brilhantes. Esse é o papel que nos cabe.
Enquanto educador, e também como cidadão, devemos tratá-lo como igual. Igual, mas diferente. Como qualquer outro, cada um carregando suas próprias características, seus problemas, infortúnios, ou a maior das felicidades, que pode sucumbir diante de qualquer tragédia. Mas não há dúvida, que existe um diferencial, com o qual temos de saber lidar, mas que também nos faz aprender.
Estamos todos no mesmo barco.


Fonte:
Algumas informações sobre a Síndrome de Down foram obtidas no Wikipedia.


(*) O que eu quero lembrar a vocês é algo que me disseram quando comecei a lecionar em uma Universidade. "As pessoas em função das quais você está lá", disse meu próprio professor "não são estudantes brilhantes como você. São estudantes comuns com opiniões maçantes, que obtêm graus medíocres na faixa inferior das notas baixas, e cujas respostas nos exames são quase iguais. Os que obtêm notas melhores cuidarão de si mesmos, ainda que seja para eles que você gostará de lecionar. Os outros são os únicos que precisam de você". Conferência inaugural do ano acadêmico de 1993-94, Na Universidade da Europa Central, em Bucareste. (HOSBSBAWM, Eric. Dentro e Fora da História. In: Sobre a História. Companhia das Letras: São Paulo, 1998)


Imagens:
1. anacadengue.com.br
2.  metamorfosedown.zipnet
3. veronicruz.blogspot.com
4. EM FAMÍLIA: Valentina não herdou a deficiência intelectual do pai, Fábio, nem a síndrome de Down da mãe, Gabriela (Revista época – 05.09.2008 - http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI11982-15228,00-MAMAE+E+DOWN.html
5. VÍDEODOWN!.wmv (youtube)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A TITULAÇÃO REAFIRMA O MÉRITO

A educação brasileira, e em Goiás não é diferente, precisa de profundas mudanças. A primeira delas passa pela necessidade de se ampliar consideravelmente os investimentos seja em infraestrutura, para construções de melhores espaços acadêmicos, ou para garantir salários mais justos a professores e demais colaboradores, servidores que dão o suporte necessário para o bom funcionamento das escolas.
A atual crise na educação, ou parte dela, já que os conflitos nessa área se repetem todos os anos precisam ter um melhor tratamento. Espero contribuir com esta análise levantando alguns aspectos tanto das medidas adotadas pelo Governo do Estado, através da Secretaria de Educação, quanto pelo movimento dos professores, liderados pelo Sintego.
As mudanças apresentadas pelo secretário de Educação Thiago Peixoto, responsáveis pela atual revolta dos professores do Estado, são marcadas por contradições entre o discurso e a prática. Qualquer profissional que trabalha com educação sabe, perfeitamente, que o mérito jamais pode ser condicionado a exigência de uma frequência monástica na escola
O princípio da meritocracia com o qual eu concordo em alguns aspectos, não pode ser adequado à educação, da mesma forma como funciona em qualquer repartição pública, que se baseia no princípio de que a burocracia precisa ser modernizada e os que possuem melhores aptidões e são mais disciplinados tem melhores possibilidades de ascensão. Embora seja obrigatória a frequência do professor, suas ausências, se não forem justificáveis, devem implicar em punições, o que é normal, mas não pode ser critério para avaliar sua qualidade de ensino e nem sua dedicação
Confundir isso e tentar implementá-lo nas escolas tal qual funciona numa estrutura de Estado é um grave equívoco, e meio caminho para construir uma educação focada mais na escolha de seletos grupos de professores e alunos cordatos e fiéis seguidores de regras que lhes tornem eleitos para assumirem funções importantes, do que jovens com espíritos investigativos, críticos e criativos. A educação deve ir além de estabelecer metas. Deve muito mais construir novas alternativas, do que simplesmente formar meros reprodutores de ideologias cujo sentido seja criar “vencedores” numa sociedade profundamente desigual.
O mérito na escola deve estar diretamente vinculado à necessidade de os professores serem devidamente qualificados. O que os tornam merecedores de ascensão e melhorias em suas carreiras é justamente a procura por se qualificarem até atingirem graus de doutores e pós-doutores em um caminho que deve ser contínuo, independente de cargos administrativos que o mesmo possa conquistar. Mas a condição para atingir esse ápice, com base no mérito, deve ter como condição precípua a conquista de titularidades, sendo essas atingidas mediante a dedicação ao estudo e à pesquisa.
Ao Estado, cabe incentivar esses profissionais, mediante a adoção de planos de carreiras que os premiem por estarem permanentemente buscando novos horizontes, de maneira a não somente transmitirem conhecimentos adquiridos, mas também a elaborarem novas teorias, produzirem coisas novas, inéditas, e, principalmente, tornarem-se pessoas críticas, atentas às necessidades de encontrar mecanismos que ajudem a sociedade a formar jovens com perspectivas de vida diferentes, que não tenha somente como foco a preparação para encontrar uma profissão para o mercado absorvê-los. Deve ser isso, até pelas prementes necessidades, mas também para criar condição que garantam a geração atual encontrar soluções para transformações futuras que sejam positivas, e formá-los também com o sentimento de cidadania.
Não há outro caminho em uma sociedade contemporânea por onde esse incentivo caminhe, que não seja, necessariamente, pela adoção de planos de carreiras, que, pelo mérito, vá escalonando os salários de acordo com a titularidade e com o tempo de serviço desse profissional, mas de tal maneira que esse incentivo seja suficiente para torná-lo um doutor, no sentido estrito da palavra, e de mantê-lo permanentemente satisfeito, com salário justo e adequado a todo esforço feito em sua qualificação nessa busca de um mérito que é, na verdade, pura consequência de todo esse processo.
Ao adotar uma medida de redução do percentual de titularidade o Secretário da Educação vai radicalmente contra tudo isso e, ao contrário de estimular, joga um balde de água fria nas dos professores, desestimulando-os, praticamente expulsando os que têm titularidade da carreira do magistério na rede estadual. Não se garante qualidade exigindo puramente frequência absoluta do professor, no máximo o que se pode conseguir é um profissional disciplinado, que pode até ter suas qualidades, mas sem aquelas desejáveis a um bom educador.
Se no século XX era possível na educação ascender somente pelo tempo e dedicação ao serviço, isso se desfez pelas transformações exigidas por um mundo onde o conhecimento é a base de tudo, e a qualificação a condição para se galgar novos degraus em sua carreira. O Estado que não promova e incentive isso, mediante pagamentos justos, pode estar agindo contra o futuro de uma geração que, em sua maioria, é oriunda das camadas mais pobres da população. Com isso não estará promovendo o necessário equilíbrio social, reforçando assim um cruel “darwinismo social”.
Ao governador Marconi Perillo, que em seu governo anterior possibilitou a consolidação do plano de carreira recém-modificado, cabe intervir e encontrar uma solução para o impasse criado, garantindo a retomada dos percentuais anteriores que eram concedidos ao Especialista, Mestre e Doutor. Não é nenhum demérito a qualquer governo reconsiderar uma decisão tomada, até porque setores importantes da sociedade se manifestam contra as medidas, e eu cito particularmente a decisão do Conselho Estadual de Educação que já encaminhou ofício também discordando das medidas que levaram à redução dos percentuais de titularidade. Mas, ao mesmo tempo, deve-se ressaltar a importância do cumprimento do piso salarial, algo que até então não estava sendo feito, embora sendo lei.
Ao Sintego e demais líderes do movimento, deve-se saber que não é possível chegar-se ao consenso estabelecendo-se queda de braço, e, desde que haja a abertura do governo para tal, pode-se suspender sim, a greve, evitando-se maiores desgastes e prejuízos para a juventude, profundamente prejudicada.
Enfim, se é necessário mudanças profundas na Educação, ela não acontecerá em via única. O propalado pacto pela educação só poderá acontecer se houver diálogo e entendimento. Afinal, pacto se faz com concordância entre as partes, e jamais por imposições. A democracia pressupõe isso, a política se faz dessa forma, mas na educação, determinados valores são inegociáveis, e nela a titulação reafirma o mérito.


(*) Versão original do artigo publicado dia 17.02.2012 no jornal O Popular, na página de Opinião. Para publicação o jornal requer um texto limitado, em função do espaço. Embora no essencial as questões mais relevantes tenham sido mantidas. Mas eu preferi publicar no Blog o texto inicial, pois em algumas partes reforçam o meu raciocínio naquilo que é principal, a discussão sobre o modelo que se pretende adotar com as medidas que causaram mais uma crise na educação. Principalmente no tocante às discussões sobre mérito e titularidade.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O DOM DE (SE) ILUDIR

Cresceu nos últimos tempos, a partir de uma permanente campanha da mídia, uma forte aversão à política. De tal maneira isso tem sido generalizado que certamente desestimulará muitas pessoas honestas de se colocarem à disposição para uma candidatura, de forma a levar adiante lutas que são travadas no cotidiano de suas categorias e também contra as injustiças sociais. Mas, creio, esse é o objetivo de tal campanha. Criou-se, assim, um senso comum, e a política passou a ser vista como o canal por onde se esvai o dinheiro do povo, devido a inúmeros casos de corrupção
Tornou-se comum em insossos programas de humor, escolher como alvos, políticos, e os tornarem ridículos perante a sociedade. Aqueles com perfis mais conservadores, alguns cuja ascensão a política se deu mediante uma farta conta bancária, por possuir fortes doadores de campanha ou por terem se aproveitado das regalias do poder para enriquecerem escandalosamente, são os principais alvos, cuja imagem passa a ser vendida como se definisse o perfil de todos que atuam na política.
É evidente que tais personagens da política, alguns que já se tornaram folclóricos, e, como se diz popularmente, viraram “sacos de pancadas”, carregam todas essas culpas, e deveriam, se a justiça brasileira não fosse além de cega, extremamente parcimoniosa, pelo menos serem investigados e julgados pelas inúmeras suspeitas que recaem sobre eles.
Mas isso não pode ser generalizado, e muito menos servir como instrumentalização para transformar a política em um ambiente movido pela ambição onde todos, indistintamente, podem ser achincalhados e tidos, aprioristicamente, como contumazes salafrários.
Os que agem dessa forma, empunhando a espada de dâmocles prestes a ser solta sobre a cabeça de todos e todas que optam por assumir uma candidatura em algum parlamento, tornam-se instrumentos de forças conservadoras, para as quais quanto mais fragilizado for o poder legislativo melhor será ele dominado pelos poderosos interesses corporativos. A generalização torna pequenos e frágeis aqueles que movidos por questões ideológicas e preocupados com a defesa de valores humanos e comunitários, engajam-se numa luta extremamente desigual num parlamento dominado por representantes do grande capital, dos latifundiários, das corporações.
Ademais, os políticos não se constituem em uma categoria. Os parlamentos são compostos por representantes de vários setores, e tem em sua maioria empresários, advogados, médicos, engenheiros, fazendeiros, professores – em alguns casos juntam-se várias categorias em um só – e poucos, pouquíssimos, operários e camponeses. Alguns, é certo, assumem o parlamento dispostos a usarem de seu mandato em benefício próprio e/ou corporativo. Mas, nem todos, porém, podem ser condenados por desvios de caráter, mesmo os que detêm um perfil conservador que os afasta dos interesses populares. Nem essa opção os tornam marginais, ou corruptos por natureza. Assim como não faz de quem assume a posição de esquerda um santo, já que no decorrer de sua vida também pode atravessar a linha demarcatória que o difere dos chamados “políticos fisiológicos”, seduzidos pelas benesses do poder e dos dengos que lhes fazem os poderosos.
Digo isso, então, para que saibamos bem discernir o joio do trigo, como no dizer bíblico. A onda antipolítica, que segue a campanha midiática, afasta as novas gerações das atividades políticas e deixa o caminho aberto para as velhas raposas e para os seus herdeiros, que assumem a condição de sucessores de impérios construídos à custa do aproveitamento do cargo e da proximidade com o poder.
Que não se julgue muito esperto quem vive a repetir essas ladainhas, como se fosse o mais experiente eleitor da face da terra, e o indivíduo mais consciente das redes sociais. Não resistirá a um teste de ingenuidade, e se verá como um propagandista de causas conservadoras.
Isso não quer dizer que não se deva apontar as mazelas que são feitas, mas que se dê mediante a indicação que tais indivíduos servem a determinados interesses. Que se aponte quais são esses interesses e avance fundo a identificar que a democracia no capitalismo é uma ilusão, embora não se consiga encontrar um meio mais adequado à estrutura de funcionamento desse sistema e da forma de funcionamento do Estado. Sendo assim, deve-se, ao invés de campanhas negativas da política, identificar quais aquelas lideranças merecem ser consideradas honestas o suficiente para apostar em sua ascensão, e propagandear mediante a escolha de propostas que visem minimizar os problemas que causam enormes desigualdades sociais.
É possível encontrar pessoas com esses perfis. Basta observar a honestidade e o caráter, o histórico de vida, a trajetória de luta e o envolvimento em causas sociais. Alianças políticas não se incluem nessas características, pois elas fazem parte do próprio “jogo democrático” e quase uma imposição no sistema parlamentar legal. Embora nem todos estejam imunes de serem picados pela famosa “mosca azul”, não há outro mecanismo de se fortalecer as lutas populares e escolher políticos mais confiáveis.
É ingênuo também condenar somente os políticos por usufruirem de com o dinheiro do povo. Isso é feito, repetidamente, até mesmo nas redes sociais por meio de um instrumento, por exemplo, o Facebook, que recentemente aderiu ao mercado de ações e tem o seu valor bilionário que suplanta em cinco vezes o que vale uma poderosa corporação, a Ford. Essa é a incrível contradição, usamos de uma arma que facilita a luta contra as mazelas do sistema capitalista, no caso a política tal como é feita (dentre outros combates), e contribuímos para construir duas megas corporações da internet, o Google e o Facebook. Que transformam tudo isso em dinheiro... muito dinheiro. Vejam só como vivem nababescamente os criadores do site Megaupload, recentemente alvo das ações do FBI, a polícia federal dos EUA.
Celebridades e jogadores de futebol ganham fortunas. Quem paga isso tudo? Os que ficam se “divertindo”, mas pagando indiretamente esses salários milionários. Ganhos absurdos, que equivalem a centenas de vezes o que ganha um professor. E muitos dos que abrem baterias contra os políticos ficam extasiados quando se deparam com esses “ídolos”, endeusados pelo mais miserável dos indivíduos, por quem muitos dariam a vida, mas cujos parcos salários sequer é suficiente para chegar à metade do mês.
Não se deve alimentar ilusões, pagamos não somente o que os políticos ganham, mas tudo o mais que gira na sociedade capitalista. E muitos pagam, inclusive, pelas mordomias e riquezas, algumas delas ostentadas em condomínios luxuosos, de vários chefes do tráfico de droga. Que não se resume às miseráveis pedras de craks, mas, principalmente, pelas disputadas gramas de cocaínas, nas classes médias e alta burguesia. É óbvio, quem consome essas drogas, pagam esses marginais que usufruem desses luxos.
E a cultura que esse tipo de sociedade cria faz reforçar cada vez mais a alienação e a hipocrisia. Apesar da graça em piadas que “esculhambam” os políticos, elas alienam e só reforçam estigmas e preconceitos.
Sarney, por exemplo (um desses que construiu um império na política) já virou saco de pancada. Mas continua, do alto de sua experiência octogenária, a comandar o Senado da República. Um sinal de que essa campanha não atinge o objetivo que se imagina ter. Outro alvo conhecido, Jáder Barbalho, acaba de ser reentronizado no Senado, onde permanecerá por mais sete anos, apesar de ser um dos alvos da lei ficha limpa, mas que mesmo assim foi o mais votado no seu Estado.
Enquanto isso cresce o número de milionários aqui no Brasil, muito embora não representem nem mesmo 1% da população. A maioria não produz nada, explora com competência o trabalho alheio. Inclusive pastores, que acumulam enormes riquezas. Não é preciso apontar nomes. Cada um dos leitores seguramente tem um exemplo para citar e isso já foi divulgado amplamente. Mas de onde é que sai o dinheiro que tornam esses indivíduos, novos empresários, banqueiros, jogadores, todos os tipos de celebridades e negociantes da fé, milionários?
É evidente que tudo isso é pago pelo dinheiro que circula nas mãos de todos que compõem a sociedade. Não há riqueza que não tenha sido construída através da exploração, escravista, servil e capitalista, das pessoas. Elas surgem e crescem mediante negócios de várias formas, inclusive dos escusos, tráfico de drogas, contrabandos, prostituição, crimes de todo tipo, mas, principalmente sobre o trabalho alheio. O enriquecimento se dá para quem comanda esses negócios.
Recentemente criou-se uma febre de crítica sobre o BBB, nefasto programa que deveria chamar-se “zoológico humano”. Mas pouco se disse a respeito de outro desses “reality shows”, uma outra aberração que mostra o “cotidiano(?)” de ricas “peruas”: “Mulheres Ricas”. Algo que deveria agredir e indignar os que se dispõem a construir uma visão crítica. Mas porque a reação foi diferente? Porque se construiu uma cultura de que isso é normal. É aceitável. E o que torna essas pessoas ricas decorre de “trabalho duro”, dos pais e avós, etc... etc... etc... Então não incomoda. Por isso a revista Caras é uma das mais vendidas, porque vende (desculpem a redundância) as imagens de personalidades “bem sucedidas”. E que ganham dinheiro também ao se exporem. E quem paga isso?
Ora, existem políticos salafrários, que constroem riquezas às custas do poder que lhe é concedido pelo povo? É evidente que sim. Mas que não se fechem os olhos a essas outras aberrações e não transformem a política numa espécie de “Geni”. Onde a todos é permitido jogar pedras. E se esqueçam que o mal maior é a cultura criada por uma lógica sistêmica que manipula, aprisiona e aliena a todos. Os abusos gananciosos cometidos pelos grandes financistas, banqueiros e CEOs de grandes corporações, é que tem levado milhares de jovens às ruas em várias partes do mundo, ao contrário do que acontece no Brasil cujo alvo, tem sido exclusivamente, os que atuam na política.
Mesmo num momento em que acontece a maior crise no judiciário, onde o corporativismo tentava impedir as apurações de profundas irregularidades cometidas por juízes e servidores de um poder que se pretende ser inatingível. Não se viu manifestações nas ruas contra esses abusos, bem como contra muitos outros que deveriam causar indignação, mas que não geram as mesmas comoções porque são simplesmente omitidos pela mídia. Fraudes financeiras, por exemplo, que produzem rombos enormes nas finanças brasileiras.
Orgias, roubos, manipulações, ocorrem em todos os setores que formam os pilares das estruturas capitalistas. Corporações, igrejas, bancos, mídia, tem seus escândalos escondidos, mas são rotinas por todos os cantos do Brasil e de qualquer país do mundo. Recentemente um desses escândalos, envolvendo, mais uma vez, o Banco do Vaticano, sequer foi divulgado. 
Há pouco tempo o colunista da revista Carta Capital, Walter Maiorovitch,  (http://www.cartacapital.com.br/internacional/outro-escandalo-no-vaticano/), fez uma lista de crimes envolvendo pessoas que manipulavam grandes somas de dinheiro no Vaticano, inclusive assassinatos. E relata a forma como dezenas de milhões de dólares foram transferidos para bancos nos Estados Unidos e Europa, inclusive para o J. P. Morgan, muito conhecido por ser um dos centros da crise econômica de 2008 que se estende até os dias de hoje. Mas não houve repercussão, sequer foi divulgado por outros meios de comunicação. A crise, que se diz de 2008, começou a ser gestada bem antes, já tinha os sintomas claros em 2006, mas só começou a ser notícia quando o caldo entornou.
Assim, sem saber informações sobre esquemas poderosos, altos roubos e corrupção, que afetam vários outros setores, a turba revolta-se sempre contra aquilo que é massificado pela mídia. E duas razões são para mim óbvias: esconder a podridão que sustenta essas estruturas, e reforçar uma campanha contra a política, de forma a ter em mãos dos que as controlam um parlamento fraco, dócil, e submetido aos seus interesses. De boa fé, indignados levantam-se no Brasil fazendo eco com essa campanha, e não tendo a noção exata do que comanda tudo isso, agem como alienados, pois que focam numa parte, esquecendo-se que a realidade que compõem a totalidade capitalista é muito mais cruel do que aquilo pelo qual eles se mobilizam.
Não deixemos de exigir decência na política e prisão de corruptos em casos devidamente provados, mas que não se perca o foco de onde se encontram as raízes de práticas perniciosas, de como se dá a exploração da fé e da boa vontade das pessoas, e fundamentalmente, que consigamos construir uma visão crítica de mundo que permita a todos perceberem que não são somente os políticos que usufruem e enriquecem às custas do dinheiro do povo, mas todos aqueles que conseguiram de alguma maneira construir fortunas ou situar-se financeiramente acima dos outros.
Toda riqueza é construída a partir da exploração do trabalho e da fé alheios. E não há pobreza que não seja conseqüência das desigualdades surgidas como decorrência do controle dos meios de produção, do capital financeiro e das formas de conquistar e manipular o poder em benefício de uma diminuta parcela da população. A humanidade não conseguirá solucionar todos os seus problemas demonizando a política, ela é necessária para que a força não suplante a capacidade de diálogo e de permanente busca por consensos, só precisa deixar de ser um odioso instrumento para beneficiar uns poucos em detrimento da maioria das pessoas.
A luta, portanto, deve mirar também, e principalmente, nos alicerces que sustentam uma estrutura social falida. Só assim, será possível construir um outro mundo.
Foto: Meirene Souza
* A propósito, quando eu finalizava esse artigo me deparei com as notícias sobre uma ação do Ministério Público do Estado de Goiás que deflagrou, juntamente com a Polícia Civil, a Operação Biópsia. Descobriu-se o desvio de milhões de reais por alguns diretores, de uma instituição filantrópica que foi criada com o objetivo de realizar um trabalho de atendimento à pessoas que não tem recursos e precisam de tratamento no combate ao câncer. Eis um dos motivos pelo qual insisto que a questão é sistêmica e o seu combate não pode ser reduzido a apenas um setor da sociedade.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

SÍRIA: UMA BATALHA GEOPOLÍTICA NO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU


Conselho de Segurança
da ONU - (O Globo)
Escaldados pelo resultado da intervenção da OTAN na Líbia, Rússia e China resolveram endurecer suas posições e dificultar as tentativas dos EUA e demais aliados ocidentais - com uma forte propaganda midiática – de repetir a mesma estratégia na Síria. Mais uma vez, agora no começo deste mês de fevereiro, outra resolução apresentada no Conselho de Segurança foi rejeitada, por não obter unanimidade entre seus membros. Rússia e China opuseram-se novamente.
Como já abordei aqui em outras oportunidades, inclusive na 5ª parte de “Crônica de um mundo em transe”, a Síria é a última pedra de dominó, cuja queda irá possibilitar um cerco ao Irã, possibilitando aos aliados ocidentais atingirem o território daquele país pelo mediterrâneo. Claro, considerando que o Iraque garantiria passagem para tropas aliadas atingir fronteiras iranianas (o que não é certo). Há que se considerar também o fato que é através desse país que a Rússia consegue monitorar o Mediterrâneo, com a base militar de Tartur, ali instalada, a única da marinha que ele possui fora de seu território.
Tudo isso decorre também das dificuldades de se utilizar o estreito de Ormuz, em função também das seguidas ameaçadas do Irã em fechá-lo, bem como, mesmo que isso não ocorra, pela facilidade de os mísseis iranianos atingirem embarcações que tentarem utilizar aquela rota.
Tal qual ocorreu em relação ao Iraque, e mais recentemente no caso da Líbia, a mídia cria toda uma preparação, forjando uma opinião pública que seja favorável á uma nova invasão repassando informações, não comprovadas, que são obtidas de fontes não confiáveis, pois são opositores do regime sírio. Mas são nítidas as diferenças de enfoques, comparando-se as situações na Síria e no Egito.
Notícias de que o governo sírio tem atacado a população, repetidas infinitas vezes, constroem a mesma verdade, seguindo a lógica goelbesiana, que alterou o perfil de Kadafi, de aliado ocidental, a “um tirano sanguinário assassino de seu próprio povo”. Assim, seu assassinato foi recebido com naturalidade, e merecimento, em função da propaganda insidiosa, insistentemente, que o transformou em um monstro cuja morte tornou-se merecida. É assim que as multidões são preparadas para a aceitação de assassinatos seletivos e agressões aos direitos humanos.
O resultado da queda da Líbia e da maneira como internamente  tem sido perseguidos antigos aliados de Kadafi, com torturas e assassinatos seletivos, denunciados pela ONG “Médicos Sem Fronteiras”, que decidiu, por isso, abandonar o país, deixou de se tornar notícia.
Assim, a mídia prepara também a opinião pública para que o destino de Bashar al-Assad seja semelhante ao de Kadafi e ao de Sadam Hussein. Mas esconde o que está por trás da insistência, e seguramente, da ação de agentes infiltrados entre os opositores sírios, em derrubar aquele regime.
Seguramente muitas ações violentas e repressões brutais estão ocorrendo na Síria, mas fruto não tão somente de manifestações da população, mas da ação de grupos opositores armados no que podemos identificar como uma guerra civil ocorrendo naquele país. Inclusive por parte de antigos militares, desertores, que se uniram aos combatentes, seguindo-se ao que ocorreu na Líbia, quando parte dos ministros abandonaram o governo e levaram consigo muitos militares, que reforçaram a base de oposição ao Kadafi e se constituíram nos principais aliados internos da OTAN. O que terminou por levar à destruição do regime de Muamar Kadafi.
Desta feita, com interesses geopolíticos em jogo, e até porque internamente insatisfações são crescentes por conta de suspeitas de processo eleitoral fraudulento, a Rússia se recusa a aprovar resoluções que dê o pretexto para novos ataques da OTAN, como ocorreu na Líbia. E nisso é seguido pela China, demonstrando que nesse tabuleiro de xadrez já é nitidamente conhecida a posição de cada uma das peças que compõe o jogo.
Porta-aviões russo (defesanet)
Como a demonstrar as dificuldades que a Rússia criará para impedir a mesma estratégia utilizada na Líbia, dois de seus navios, liderados pelo Porta-aviões Almirante Kuznetsov, aportaram em sua base militar no Mediterrâneo, em território Sírio, desde o dia 9 de janeiro deste ano.
Se de um lado torna-se difícil emplacar uma nova resolução no Conselho de Segurança, por outro cresce a impaciência de Israel, que passa a ver dificuldades para um possível ataque ocidental ao Irã. Caso não se dê rapidamente a queda do governo Sírio, impossibilitando um cerco seguro ao Irã, a tendência é que Israel resolva atacar o país persa, acreditando que o tempo beneficia os iranianos, dando-lhes condições de aperfeiçoar sua capacidade de lidar com a energia nuclear. O receio de que o país dos Aiatollahs construa artefados atômicos, já que possui mísseis com capacidade de deslocá-los a centenas de quilômetros, tem muito mais a ver com a hegemonia geopolítica naquela região do que por um possível ato tresloucado de seus dirigentes.

Manifestações de apoio ao governo
 Enfim, é isso que está em jogo. E é absolutamente abominável, embora compreensível já que as grandes corporações da mídia tem também interesses por trás desse conflito, a forma como as notícias são passadas, repetitivas ad nausean, tentando formar no meio da opinião pública internacional, as justificativas que tornariam aceitável mais um ato de agressão militar, que não tem nada a ver com preocupações humanitárias.

Possivelmente o fim do governo sírio seja o mesmo dos demais países do Oriente Médio que não sobreviveram às revoltas populares e as ações de agentes infiltrados em grupos opositores. Mas, caso isso ocorra, somente aumentará mais ainda a instabilidade na região, somando-se mais um estado caótico, como decorrência das intervenções que se tornaram hábito neste século. Iraque, Afeganistão, Líbia, Egito, Iêmen, e agora a Síria, deixam de ter governos títeres, mantendo à força regimes de poucas liberdades políticas, e passam a conviver com instabilidades decorrentes de governos fracos que mal conseguem desarmar insurgentes que atuam dominando territórios nas fronteiras desses países.

Protestos contra Bachar al-Assad
As condições para uma nova guerra, de proporções incalculáveis seguem sendo criadas. Embora seja difícil prever se isso de fato acontecerá, não resta dúvida que as jogadas políticas caminham nessa direção, e deixam claro que esse é o objetivo das grandes potências ocidentais. A Síria não é o alvo final. Assim como a Líbia foi invadida para se dominar o petróleo daquele país, possibilitando o embargo do petróleo iraniano, a queda do regime sírio tem como objetivo conter o fortalecimento do Irã, cuja capacidade de produzir armas nucleares o tornaria praticamente inatingível no Oriente Médio e o transformaria numa potência regional com condições de controlar a região detentora das maiores reservas de petróleo do mundo.

As pedras de dominó estão caindo uma a uma, ou, olhando o mapa do oriente médio como um tabuleiro de xadrez, podemos dizer que os jogadores estão analisando os possíveis movimentos de suas peças, e prestes a algum dos lados gritar: xeque-mate.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

ZIZEK: A REVOLTA DA BURGUESIA ASSALARIADA(*)

Wikipedia
Polêmico, como sempre, mas dono de uma extraordinária capacidade de analisar criticamente as circunstâncias sociais contemporâneas, Slavoj Zizek mais do que simplesmente oferecer com um olhar crítico uma  interpretação do capitalismo nos dias atuais, constrói uma nova teoria das classes sociais e identifica algo que eu já abordei em meus artigos do Blog. Eu sempre fiz referência à maneira como a classe média se comporta e sua luta constante para garantir a permanência de seus privilégios. Mais do que isso, da ampliação do status conseguido, sempre à margem da burguesia, aceitando sua hierarquia e desdenhando sobre as camadas inferiores, os mais pobres. Minha referência sempre foi, além do que Marx já dizia da pequena burguesia (Manifesto Comunista), um dos últimos trabalhos de Milton Santos (Por uma outra globalização).
As lutas que ela abraça assume uma radicalidade que muitas vezes é vista como revolucionária, e confunde, de tal maneira que em muitos momentos envolve também aqueles que não possuem os mesmos privilégios, mas sucumbem ao seu discurso e empunham suas bandeiras. No Brasil isso tem se caracterizado nas lutas que visam criar uma aversão à política, seguindo-se o ritual apresentado por uma parte da mídia.
Nos últimos anos, decorrente da globalização, o sistema capitalista adquiriu diversas formas, sem perder a sua essência, a lógica de funcionamento. Mas trouxe, inclusive, novos modelos de economias de mercado mescladas com um forte controle e investimentos estatais. Na base disso, reforçou categorias e profissionais que passaram a assumir funções de destaques em grandes corporações, bancos, e até mesmo nas altas hierarquias em postos importantes do Estado e empresas públicas.
Ao mesmo tempo, como resultado também das novas formas adquiridas pelo capitalismo, e a importância crescente de setores que passam a ter um forte componente de negócio, quando antes era quase exclusivamente responsabilidade do Estado (por ex. a saúde), e também o fortalecimento de gerentes de negócios financeiros, aumentado com a financeirização do capitalismo (os CEOs), surgem profissionais que ele identifica como uma nova forma da burguesia.
“A categoria dos trabalhadores que recebem mais-salário não está, obviamente, limitada aos gerentes: ela se estende a todos os tipos de especialistas, administradores, funcionários públicos, médicos, advogados, jornalistas, intelectuais, artistas… O excesso que eles recebem tem duas formas: mais dinheiro (para gerentes etc.), mas também menos trabalho, isto é, mais tempo livre (para alguns intelectuais, mas também para setores da administração estatal)”.
Para ele, a busca permanente por mais salário para atender ao apetite da classe média não é econômico, mas político, com o intuito de manter sua estabilidade social. “a violência ameaça explodir não quando existe muita contingência no espaço social, mas quando se tenta eliminar esta contingência”
Assim, aceita-se a hierarquia social mediante um arranjo ideológico, de forma que a relação de superioridade não seja humilhante para os subordinados. Mas juntamente com isso, outros componentes são igualmente importantes para a manutenção dessa nova estrutura, que ele vai buscar em outro autor, Jean Pierre Dupuy, cuja função está exatamente em justificar ideologicamente a forma como se produz a hierarquização social e a sua aceitação.
Blog da Boitempo
Zizek vê de maneira polêmica  as crescentes manifestações e radicalizações das lutas sociais. Entende que elas decorrem exatamente dessa nova configuração social e não as compreende como lutas proletárias, mas, ao contrário, são lutas da classe média visando evitar uma possível proletarização.
Em suas palavras: "Lembremos da fantasia ideológica favorita de Ayn Rand (de seu Atlas Shrugged), a de “criativos” capitalistas em greve – esta fantasia não encontra sua realização perversa nas greves de hoje, que em sua maioria são greves da privilegiada “burguesia assalariada” motivada pelo medo de perder seu privilégio (o excedente sobre o salário mínimo)? Não são protestos proletários, mas protestos contra a ameaça de ser reduzido à condição proletária. Isto quer dizer: quem ousa se manifestar hoje, quando ter um emprego permanente já se tornou um privilégio? Não os trabalhadores mal pagos (no que sobrou) da indústria têxtil etc. mas o estrato de trabalhadores privilegiados com empregos garantidos (muitos da administração estatal, como a polícia e os fiscais da lei, professores, trabalhadores do transporte público etc.). Isto também vale para a nova onda de protestos estudantis: sua maior motivação é o medo de que a educação superior não mais lhes garanta um mais-salário na vida futura”.
É um texto carregado de polêmica, mas de uma análise interessante que deve ser lida e debatida, num momento em que há uma necessidade de entendermos todas as situações que estão sendo criadas como decorrência de uma crise estrutural do sistema capitalista. Vivemos um momento de transição, que vai durar décadas, mas, como dizia Marx, as transformações que ocorrerão iniciam-se nas entranhas do próprio sistema e são frutos de suas próprias contradições.
Para uma leitura completa do artigo de Zlavoj Zizek acesse o site Carta Maior (www.cartamaior.com.br) ou o Blog da Boitempo (http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/01/27/a-revolta-da-burguesia-assalariada/).
(*) O título acima é do próprio artigo de Zizek.