terça-feira, 14 de dezembro de 2010

AFINAL, PARA QUE SERVE A GEOGRAFIA?

Na primeira semana de dezembro, pudemos participar de um ótimo encontro acadêmico. O Seminário das Metrópoles, organizado pelo Programa de Pós-graduação em Geografia, da Universidade Federal de Goiás e do Programa de Pós-graduação de Geografia Humana, da Universidade de São Paulo que integram o projeto “Casadinho” MCT / CNPq, Edital 16/2008, nos deu a oportunidade de discutirmos temas bastante instigantes a partir de projetos e trabalhos intelectuais que abordam a complexidade das grandes cidades. Não somente os temas, como também as pessoas que foram convidadas possibilitou que discutíssemos questões bem atuais com reconhecido grau de competência.
Eu destacaria a palestra da Profª Ana Fani Alessandri, que soube tratar bem o tema proposto e procurou construir sua intervenção dentro de uma linha que pudesse nos fazer entender todo o processo de transformação das metrópoles, partindo de uma abordagem do espaço, numa compreensão marxista e lefebvriana, mas indo além e construindo novos caminhos interpretativos para além do economicismo e resgatando aspectos esquecidos em Marx que dizem respeito às questões sociais. Principalmente, apresentando uma conceituação mais trabalhada da categoria lugar, utilizando para isso de releituras de Marx e Lefebvre sem simplesmente repeti-los, mas criando uma nova conceituação que possa melhor equilibrar as abordagens economicistas e de análises do cotidiano, possibilitando uma ênfase maior ao social.
Mas não é propriamente sobre a palestra de Ana Fani que quero analisar neste blog. Mas sobre a conferência proferida pelo Prof. da UFRJ, Marcelo Lopes, com a temática bastante sugestiva intitulada: “Desafiando a militarização do espaço urbano: Práticas espaciais insurgentes versus espaços-prisão no capitalismo en fin de siécle". Em primeiro lugar quero elogiar o trabalho investigativo apresentado pelo Prof. Marcelo, com dados importantes que demonstram uma competência indiscutível na identificação dos problemas que hoje afetam as metrópoles com as pessoas aprisionadas a um medo generalizado que força-as a buscarem apoio na estrutura policial do Estado, fortalecendo dialeticamente os mecanismos tradicionais de controle. Ao mesmo tempo ele busca identificar as alternativas encontradas pelos movimentos sociais no sentido de se contrapor aos mecanismos adotados pelo Estado que privilegia a especulação imobiliária em detrimento dos princípios básicos, inclusive constitucionais, que garantem a cada cidadão o direito à moradia.
Da mesma forma posso dizer do artigo disponível no site “passapalavra”, A “reconquista do território”, ou: Um novo capítulo na militarização da questão urbana. Um diagnóstico muito bem feito de todo o problema que envolve a retomada do território pelo Estado, nas favelas da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.
Mas minhas divergências às concepções apresentadas pelo prof. Marcelo Lopes aparecem na medida em que seus estudos apresentam muito mais um caráter crítico, embora com um diagnóstico preciso, sem, contudo, apresentar alternativas aos problemas indicados em sua exposição. Algo, aliás, bem peculiar na Academia, onde se julga ser suficiente a abordagem investigativa crítica, cujos projetos indicam o problema, mas se abstêm de apontar soluções para os mesmos.
Ademais falta em suas exposições uma clareza mais processual de toda a complexidade que envolve a maneira como as cidades foram sendo segmentadas, separadas em territórios primeiro seguindo a natural lógica da luta de classes, e a partir daí a ocupação pela marginalidade de áreas abandonadas pelo poder público, na medida em que não atendiam aos interesses especulativos da indústria imobiliária. Nada de novo, se considerarmos a história das cidades, e principalmente se nos concentrarmos no momento em que as transformações urbanas atendem aos novos interesses capitalistas, mais especificamente do século XIX em diante.
Tenho em minhas participações nos eventos mais recentes, indagado com ênfase sobre quais seriam as alternativas que teríamos aos problemas que apresentamos naqueles trabalhos que estamos desenvolvendo. Evidentemente que nossas pesquisas buscam um diagnóstico, a confirmação de hipóteses que levantamos nos objetos das pesquisas que investigamos. Queremos saber o porquê desses problemas e, portanto, identificamos hipóteses que nos cabe no decorrer de nosso trabalho comprová-las. Ou não. Às vezes pode ocorrer de nos depararmos com algumas complexidades que tendem a redirecionar o nosso olhar e terminamos por avançar em outras direções, comprovando outros elementos que inicialmente não estavam bem clarificados.
Contudo, quando lidamos com problemas urbanos – e poderiam ser tantos outros relacionados à cidade – até mesmo pelo próprio caráter da formação do geógrafo, nos cabe muito mais do que o mero estudo e a identificação do problema. Na medida em que analisamos situações que envolvem populações, no caso específico historicamente situadas em condições periféricas (e aqui não importa se as favelas do Rio estão situadas entre bairros nobres centrais, o sentido de periférico diz respeito à marginalização a que sempre foram submetidas pelo poder público), é fundamental que não nos prendamos no discurso fácil, da crítica pela crítica, da arrogância intelectual para o qual determinados problemas terminam por constituir-se em ótimas oportunidades de desfilarmos nossa empáfia acadêmica.
É nesse laboratório sobre o qual nos debruçamos e produzimos uma infinidade de textos e livros. Mas sem sequer apresentar uma única alternativa aos projetos e programas do Estado que estão sendo criticados. Satisfaz-se, assim, com os tradicionais aplausos e a orgulho envaidecido e esquerdista de haver sido contundente na crítica ao Estado, algo que faz muito sucesso na academia. Mas, o que fazer?
Assim se comportou o professor Marcelo Lopes, quando levantei alguns pontos falhos em sua exposição e o questionei sobre qual alternativa ele apontaria às UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), visto por ele como mera ação militar, o que é apenas parte da verdade. Sua resposta à minha intervenção demonstrou uma incapacidade em lidar com o contraditório, em aceitar a crítica, bem como o seu despreparo em apontar outros caminhos que possam ser utilizados pelo aparelho estatal, de forma a evitar os desatinos, comuns quando se trata de reprimir populações. O que é comum não significa dizer que seja aceitável, mas representa a lógica sistêmica de estrutura que existem para tal fim.
Por essa razão quis incluir na estrutura do raciocínio do professor, um pouco de dialética, que embora citada por ele não fora implementada em seu discurso. Bem como a necessidade de se buscar na história o sentido de tudo aquilo que está por trás de ações dos aparelhos militares. O que eu pretendia era reforçar a necessidade de sempre compreendermos que existe uma lógica sistêmica que responde pelo nome de capitalismo. E que, apesar de no título de sua conferência constar a expressão “capitalismo fin-de-siècle” faltou a ele explicar com clareza que nada disso é novidade, salvo as novas estratégias adotadas para reocupar ou retomar territórios urbanos dominados seja por gangs de traficantes, de grupos étnicos imigrantes, de prostituições, ou simplesmente por pobres que “enfeiam” a paisagem das cidades, principalmente em zonas centrais ou próximos à áreas de interesses turísticos. O que impedem a valorização e especulação imobiliária.
O capitalismo de fim de século (muito embora já estejamos no início do século XXI) pode ser reportado à maneira como na segunda metade do século XIX as metrópoles se redefiniam, de forma a ficarem mais funcionais dentro do interesse do capitalismo. E o interesse, naturalmente, era porque o novo sistema se realiza exatamente nas cidades, palco de consumo e de consolidação de enormes feiras e praças comerciais cada vez mais sofisticadas.
A esse respeito o próprio Marx (livro I, Vol 2 de O Capital) já se referia, no capítulo XXIII, intitulado “A Lei geral da Acumulação Capitalista” (pág. 764:1980 – Ed. Civilização Brasileira), quando ele faz referência ao processo de desocupação de áreas centrais das cidades, onde haviam se instalados os operários, por necessidade de muitas vezes habitarem próximos aos lugares onde trabalhavam. Como uma necessidade de transformar a paisagem urbana, dentro dos interesses de fazer das cidades o lugar dos grandes negócios, do comércio sofisticado e da bancocracia. Às vezes pela força os operários eram desajolados desses bairros, mas o era também por uma própria ação do poder público que ao instituir melhorias e infraestruturas mais adequadas, tornavam o solo urbano mais valorizado, fazendo com que a propriedade privada das terras dentro das cidades passasse por um processo acelerado de especulação imobiliária.
Com os impostos acrescidos não restavam aos pobres outra alternativa a não ser mudarem-se para bairros mais afastados do centro comercial e bancário. Até que novas intervenções chegassem, muitas vezes solicitadas por eles próprios, e tudo se repetia, com os mais pobres sendo deslocados para periferias cada vez mais distantes. Até constituírem-se o que passa a se chamar de conglomerado urbano, envolvendo várias cidades dormitórios nas periferias das metrópoles. Isso se repetiu ao longo dos séculos até os dias atuais, e seguem a lógica determinada pela transformação urbana dentro dos interesses do sistema que a molda.
As UPPs nada mais são do que uma nova estratégia para retomar um território ocupado por traficantes, e assim atender a inúmeras questões postas pelo domínio que era, e ainda é em outros casos, de marginais que se apoderaram de parte da cidade a fim de constituírem ali fortalezas de onde comandam toda a bandidagem, principalmente aquela vinculada ao comércio de uma mercadoria disputada por toda parte, principalmente nos condomínios de luxo e bairros sofisticados: as drogas de todos os tipos.
Esse território agora retomado já era militarizado, por outra força que não estatal, mas de grupos que tinham o domínio territorial de complexos de favelas e detinham o controle das ações da população, envolvendo, inclusive, muitos jovens filhos daqueles que praticamente eram, e ainda são, mantidos como reféns dessa bandidagem. Seus armamentos, em alguns casos, são mais sofisticados do que das polícias militares e civis, dificultando quaisquer ações que não sejam coordenadas com as forças militares federais que possuem armamentos mais pesados, em condições de se contrapor ao poderio bélico existentes nessas fortalezas.
Há que também denunciar que esses grupos não têm o menor respeito à vida humana, cometem crimes bárbaros, torturam, assassinam friamente e desdenham de qualquer força repressiva. Além de cooptarem as crianças e constituírem um exército juvenil à semelhança das gangs que dominam regiões conflituosas da África e transformarem jovens garotas adolescentes em objetos sexuais, engravidando-as irresponsavelmente deixando desprotegida uma legião de crianças, “filhas do tráfico”
Ora essa era uma realidade do Complexo do Alemão, da Vila Cruzeiro, naqueles bairros já “pacificados” pelas UPPs, e em tantos outros, centenas, que ainda encontram-se sob o domínio de grupos marginais. A minha crítica reside exatamente no fato de as abordagens analisarem as “reconquistas” desses territórios, como se a história daqueles bairros começassem a partir do momento que o Estado retoma o seu controle.
Não há dúvidas que os abusos policiais devam ser combatidos e denunciados, permanentemente, não somente nesses casos específicos. Contudo há que conscientizar as pessoas que tal situação decorre da própria essência do Estado no capitalismo, qual seja, assegurar o controle efetivo da propriedade privada, dos meios de produção e garantir a reprodução do capital seguindo a lógica da busca permanente do lucro e, naquilo que nos cabe aqui analisar com a reterritorialização em curso, possibilitar que a valorização da propriedade atenda aos interesses da acumulação capitalista, que também decorre da renda do solo urbano.
Não se pode, simplesmente, alardear a injustiça que ocorre como decorrência da busca pela justiça. Não é chavão, nem muito menos, redundância. Ao libertar esses territórios do jugo da bandidagem, seguindo a uma efetiva ação do Estado na remodelação daqueles espaços urbanos, a tendência natural na cidade do capital, para usar uma expressão lefebvriana, é a valorização daquelas propriedades e a conseqüente especulação imobiliária. Ato contínuo, alguns novos empreendimentos tendem a ampliar essa nova característica desses bairros e, seja para atender uma necessidade imediata, ou para fugir do aumento dos impostos que certamente advirá, boa parcela das pessoas dessas comunidades tendem a vender seus imóveis, deslocando-se para lugares mais longínquos onde possam pagar por aluguéis e serviços mais baratos.
Tal qual Marx já identificava no século XIX. Diga-se de passagem, que, tanto a ação militar, quanto a melhoria em suas estruturas, são medidas louvadas pela comunidade e esperada com ansiedade pela maioria. São contradições que permeiam o sistema capitalista e devem ser repetidas ad nausean, para que as pessoas saibam que não há alternativas igualitárias nos marcos de um sistema que transforma tudo em lucro, até mesmo as piores misérias criadas por ele próprio.
Em sua justifica ao meu questionamento, o Prof. Marcelo Lopes tratou como se a crítica ao capitalismo fosse algo simplório, que transforma sua repetição em lugar comum. Fugindo, assim, à origem e essência de todos os problemas que hoje caracterizam as grandes metrópoles. Então, na medida em que critiquei o capitalismo e questionei a maneira como se condenavam as ações do Estado no combate aos traficantes e as instalações de UPPs, sua atitude foi considerar aqui uma contradição de minha parte. Refuto esse seu diversionismo, dito com o claro objetivo de fugir ao que era central em meu questionamento, cobrar de nossas competências acadêmicas não somente a crítica – algo fácil de fazer.
Também isso, como bem exigiu Yves Lacoste num movimento que resgatou a geografia crítica e a necessidade de fazer com que a política voltasse ao centro das caracterizações geográficas. Mas, como ele frisou para estabelecer um novo caminho para a Geografia, é necessário mais do que tentar compreender esses fenômenos em todas as suas dimensões dialéticas, sendo também preciso o engajamento dos geógrafos para contribuir com as transformações sociais.
Disso se depreende haver a necessidade de, ao nos colocarmos criticamente sobre a maneira como o Estado age, sempre de forma a beneficiar os detentores do capital e na defesa da propriedade dos meios de produção, possamos também indicar os instrumentos possíveis de se contrapor às injustiças sociais e apontar os caminhos alternativos que levem às mudanças estruturais na sociedade capitalista. Não há outro caminho se queremos nos insurgir contra a maneira como o povo pobre é tratado.
Mas é preciso que não se crie nenhuma ilusão em relação às conquistas. Elas são fruto da luta organizada, e assim tem sido historicamente, portanto, não são concessões da classe dominante, contudo representam verniz na aparência do sistema capitalista. Segue uma lógica permanente, de sempre buscar a partir dessas conquistas a cooptação de lideranças, o apoio vicioso no processo eleitoral e a difusão de idéias que tudo se resolverá na medida em que as ações do Estado possibilitem o surgimento de novas territorialidades.
A “modernização” do lugar passa a ser perseguida por todos os moradores, que almejam ter suas propriedades valorizadas, muito embora isso tenda a significar uma contradição em seus meios de vida. Mas também não há como negar que repetindo a cultura da sociedade de consumo, todos se sentirão satisfeitos com isso e imaginam também lucrar com os novos negócios que aparecerem.
Ora, se essa é a aspiração dos moradores, indicada já em algumas pesquisas e citadas na própria explanação do professor Marcelo Lopes (registrando-se, inclusive, que o medo da maioria é do retorno do tráfico), que alternativa se pode apresentar aos que criticam as UPPs? A esse questionamento o professor respondeu simplesmente que não cabia a ele indicar isso, pois não era especialista em segurança pública.
Estupefato, fiquei a escutar sem ter a possibilidade de retrucar tamanha aberração. Daí me veio imediatamente a expressão, parafraseada de Yves Lacoste: AFINAL, PARA QUE SERVE A GEOGRAFIA?
Não têm também a função de planejador urbano os geógrafos bacharéis? Não devemos, para sermos honestos intelectualmente, e moralmente éticos, apontar sempre alternativas às nossas críticas? Senão corremos o risco de nos transformarmos em charlatões letrados, aptos a apontar o dedo a toda e qualquer ato que consideremos errados, mas a agir como um velho vira-lata a correr atrás das rodas dos automóveis, sem saber o que fazer quando os mesmos param à sua frente.
É claro que uso isso como retórica, sem nenhum caráter comparativo ou desmerecedor. Mas surge como uma metáfora a reforçar uma crítica que sempre faço, sem receio de ser excessivamente polêmico, pois acredito que é no embate de idéias dentro da universidade que poderemos tirar essa instituição centenária (no caso brasileiro) da hibernação em que ela está metida desde as duas últimas décadas do século XX. Decretou-se, para fins de consolidação do modelo neoliberal, a morte do socialismo e o fim da História, que se realizaria definitivamente com o capitalismo.
A partir de então, para ser politicamente correto na universidade, deve-se evitar apontar caminhos alternativos ao capitalismo. Muito embora eu tenha sido taxado de conservador pelo conferencista, por mais paradoxal que isso possa parecer, insisto em responsabilizar o capitalismo e na necessidade de sempre indicar as causas das contradições crescentes nas sociedades atuais, buscando sempre compreender todo o processo histórico, principalmente do desenvolvimento das cidades.
Mais paradoxal, no entanto, é minha postura antagônica à dele. Embora reconhecendo essa contradição não vejo outra alternativa no momento, senão exigir que o Estado, aja com ênfase com o intuito de libertar comunidades dominadas por marginais, por mais que identifiquemos também na estrutura policial elementos que não se diferenciem daqueles. A isso, devemos combater com rigor. O que acho inadmissível é a crítica pela crítica à ação do Estado, quando estamos cansados de ouvir outras críticas ao próprio Estado pela omissão ao longo de décadas passadas, que permitiram aos traficantes tomarem o controle daqueles e de outros territórios.
As pessoas pobres podem reivindicar melhorias em seus espaços de moradias, mesmo que isso signifique a reprodução do capital. E não somente as camadas médias e altas da sociedade têm direito a seus condomínios seguros (e inclusive militarizados privativamente). As comunidades que vivem na periferia também devem lutar por paz, segurança e melhoria na qualidade de vida e exigir do Estado a garantia de tudo isso como uma construção da cidadania.
Considero plausível, no entanto, a organização da comunidade e o seu fortalecimento através da união de esforços para buscar ela mesma o domínio de seu território. Isso não eliminará as contradições, todas elas citadas acima, mas possibilitará à população simplesmente não trocar um jugo pelo outro, a dependência do traficante pela do policial. O que não significa simplesmente retirar o Estado e a aspiração por segurança, caso contrário, pela própria lógica que acabei de analisar, sejam milícias paramilitares ou empresas de seguranças adentrarão naqueles espaços e assumirão o controle na busca do lucro, reterritorializando-o. Afinal, o medo tem sido um dos fortes componentes de dominação no Brasil e no mundo.
Aos geógrafos críticos, para os quais não é o bastante saber interpretar o mundo, e sim transformá-lo (parafraseando Marx), fica a minha expectativa de que saibam discernir bem os equívocos contidos nas críticas fáceis. Vendem bem, mas não ajudam efetivamente a transformar a sociedade e reduzir as desigualdades sociais.
Lista de referências das fotos:

Upps.1 – odia.terra.com.br
Upps.2 – 2.bp.blogspot.com
Upps depois – 4.bp.blogspot.com
Traficantes.1– epocaestadobrasil.wordpress.com
Traficantes.2 – pspnation.com.br
Complexo do Alemão – ultimosegundo.ig.com.br
Complexo do Alemão.2 – exame.com.abril
Teleférico do Complexo do Alemão – noticias.r7.com
Bairro Popular de Londres no Séc. XIX – cafehistoria.ning.com
Bairro Operario de Londres no séc. xix – sociologiaurbana.blogspot.com
Karl Marx.1 – filosofiaemvalores.blogspot.com

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A FALTA QUE VOCÊ ME FAZ

(*) Como faço sempre todos os anos, e em certas datas, escrevo um texto que me lembre minha filha que partiu em 2007, eternizando-se aos dez anos de idade. Resolvi fazer uma carta, como se ela pudesse ler estando apenas a passar alguns dias longe de nós. Aos meus amigos e seguidores do blog, peço paciência, pois uma das razões de tê-lo criado foi justamente dar vazão às minhas angústias de não encontrar respostas para tamanha perda. 

Minha querida Carol,
No dia 13 de dezembro, completam-se seis anos que você partiu, e nos deixou profundamente tristes e com um enorme vazio em nossas vidas. Não sei por quanto tempo sentirei esse enorme aperto em meu coração e essa saudade implacável que me faz chorar de vez em quando. Já não sei mais quantas vezes verti rios de lágrimas lembrando-me de você, de sua feição meiga, alegre, e da sua curiosidade juvenil que tanto nos alegrava.
Uma coisa minha filha eu aprendi, dentre tantas outras que ao longo desta carta eu estarei listando. Chorar tornou-se em minha vida quase que um hábito, forçado por essa circunstância da sua triste partida. Mas fui descobrindo com o tempo que era uma conseqüência dessa enorme relação afetuosa que o coração estabelece com o cérebro, pela qual nossos sentimentos nos conduzem, e das angústias deles vêem uma explosão de sensações que nos fazem derramar em lágrimas. É irrefreável, não nos cabe impedir, nem sufocar isso. Por isso choro sempre, e tanto quanto me lembro de você. E são muitas as vezes em que isso acontece. Como no momento em que escrevi esta carta um ano atrás, e até mesmo em dezembro de 2012, quando a atualizei. E ainda hoje, quando convivemos com as lembranças e tristezas que essa data nos traz.
Mas seu pai é ateu, e nunca escondeu isso de você, por isso não importa onde eu estiver, o que sempre acredito é que carregarei sempre você em meu coração e em minha memória. Portanto, você sempre estará perto de mim. Mas mesmo não tendo essas crenças, das quais você já se aproximava indo à igreja com sua avó, faço questão que todo ano nessa época, como você fazia substituindo seu avô, seja montada a árvore de natal. A sua árvore de natal, a mesma que você tão caprichosamente montou algumas semanas antes de começar a sentir-se mal e ser internada para nunca mais voltar a vê-la. Aquela árvore de natal, com suas luzes coloridas piscando, é um símbolo a mais a nos fazer chorar e nos lembrar de você.
Também desse hábito que adquiri, de sempre chorar, aprendi que somente uma coisa eu perco nesse gesto, as lágrimas. Mas não me importo, porque descobri também que tal qual a água, elas seguem em um ciclo eterno (eterno enquanto durar minha vida). Por mais que eu chore, as lágrimas sempre voltarão. Quando você estava entre nós, fisicamente, fiquei sabendo pelo oftalmologista que eu tinha um problema causado pelo uso constante do computador. Pela fixação permanente à tela os meus olhos haviam perdido parte da capacidade de “marejar”, como se diz usualmente. No dizer dele, eles não eram lubrificados como naturalmente deve acontecer, sendo necessário o uso de colírio, “lágrimas artificiais”. Pois bem, minha querida, não tenho mais esse problema. Mas eu preferiria ter de volta meus olhos secos, desde que você estivesse presente entre nós. Mas não é algo que eu possa escolher. Portanto, continuarei a lubrificá-lo com minhas lágrimas por toda a minha eternidade.
Nesse tempo “depois que você partiu”, (ah, minha filha, esse foi o título de um livro que escrevi e publiquei um ano depois da sua partida) muitas coisas mudaram em nossas vidas. Claro, a maior dessas mudanças foi não poder contar mais com a sua doce companhia, o que naturalmente esvaziou de alegria nossa casa. Até as birras entre você e o Iago é algo que sentimos muita falta, e que às vezes até nos divertia, eu até ria de algumas delas. Outras vezes eu ficava nervoso, eram coisas bobas, disputas infantis, que às vezes nós, adultos, nos impacientamos e nos irritamos com isso. Sinto uma enorme falta disso, minha filha, tanto que aprendi a ser muito mais tolerante com crianças. Nenhuma delas, nem um bando delas, é capaz de me impacientar. O que me deixa nervoso é ver alguém tratar alguma criança com brutalidade. Isso, minha filha, representa uma mudança em mim que eu devo a você.
Sei o quanto você gostava do Iago, e tinha orgulho dele. Pois você ficaria mais orgulhosa se estivesse aqui agora ao lado dele. Além de um rapaz inteligente, bonito, alegre e de uma enorme sensibilidade, tornou-se também escritor, blogueiro, quase historiador e uma destacada liderança estudantil, estando à frente do Diretório Central dos Estudantes da UFG. E também se tornou um tocador de violão. Acho que a solidão da sua partida influenciou nisso. Nunca conversei com ele sobre isso, mas quando ele ler o que estou escrevendo vai saber o que eu pensava. Por isso gosto de ouvi-lo tocar violão. Imagino que se você estivesse aqui poderia estar seguindo na mesma direção, mas a certeza mesmo que tenho é que vocês estariam disputando o computador com muito mais intensidade. Eis outro conflito que eu teria enorme prazer de voltar a ver, minha filha.
Minha querida, sempre fico a observar as meninas com 16 anos de idade. Tento ver em algumas delas características que você teria, pois seria essa a sua idade hoje. Pelo que lhe conhecemos nos 10 anos em que estivestes conosco, posso assegurar a quem me perguntar que você seria uma líder. Um pouco disso que digo é o velho sentimento paterno, ou como popularmente chamamos, “corujice”, mas é também por ver no Iago um pouco das características que víamos em você.
Carol, quisemos deixar marcada essa sua passagem por essa “dimensão”, como certamente diria alguns que acreditam que você ressurgirá em outra vida. Mas procuramos também uma maneira de poder ter sua imagem sempre presente, refletida em algo que trouxesse alento aos nossos sofrimentos, e que contribuísse para aglutinar pessoas em objetivos nobres, altruístas. Talvez ao ouvir essa palavra você perguntasse o que significa, como muitas vezes fazia. É como nós aprendemos a compartilhar nossas experiências, nossos esforços, com outras pessoas, possibilitando a elas, e a nós mesmos, sobrevivermos diante das dificuldades: Solidariedade.
Para isso, minha filha, criamos um Instituto que leva o seu nome: Instituto Ana Carol (IAC) e uma Cooperativa de Bordadeiras e Artesanato chamada BORDANA.
São homenagens a você, minha querida, que tem o objetivo de contribuir com outras pessoas, para retirarmos delas o que elas possam ter de melhor. Em prol de um bem comum. Sua mãe é a presidente do Instituto e da Cooperativa, e se dedica com afinco a transformar os seus sonhos através dessas instituições. Pois foram os seus desenhos, que você fazia e os coloriam com tanto esmero, e o seu desejo de ser estilista, que serviram de inspiração para esses projetos.
Muitos amigos tem nos ajudado. Os amigos que já tínhamos, e que sempre estiveram ao nosso lado nesses anos e foram importantíssimos em nossas vidas, para superarmos todas as adversidades e o enorme sofrimento causado por sua partida. Mas também outros amigos, que surgiram solidariamente a partir desses projetos e que hoje são além de amigos, colaboradores, e responsáveis pelo sucesso que o IAC e a BORDANA estão alcançando. Mas só estamos começando filhinha, são quatro longos anos sem você, uma eternidade, mas poucos anos para transformarmos seus sonhos em alicerces que possam sustentar vidas que ficaram por aqui e precisam de apoio e solidariedade. Do pouco que podemos oferecer para tantos que precisam.
Agora que o Instituto Ana Carol já está devidamente registrado, sua mãe iniciou um novo desafio, atrair os jovens do nosso setor para participar de projetos que os envolvam e possam se distrair e se preparar para os desafios e complexidades dessa sociedade que você deixou por aqui. O Iago sempre que pode participa. 
Da mesma forma ela se envolveu, ao lado do seu professor de Badminton, Saulo, na criação da Federação Goiana de Badminton. Ele já coordena um projeto de inclusão de jovens, incentivando-os a participar de um esporte que você tanto amava. O IAC já participa da Federação, e a sua mãe é a vice-presidente. O objetivo, minha filha, é também evitar que mais jovens se deixem levar pelo consumo de drogas e caiam nas mãos de traficantes, algo que está tomando proporções assustadoras. 
São muitos, querida Carol, os garotos que atraídos por essa armadilha, alguns da sua idade, cujas vidas já estão praticamente perdidas pelo uso de drogas pesadas, como o crack. Uma droga que destrói rapidamente a pessoa e transforma jovens em “trapos”, sem passado, sem presente, e, obviamente, sem futuro. Estão mortos, sem terem morridos, vivem, sem terem uma vida, são mortos-vivos a perambularem pelas cidades. Para a maioria deles, só resta a solidariedade de alguns para amenizar seus sofrimentos. São poucos os que conseguem escapar do inferno em que foram metidos.
Desculpe, minha filha, falar desse jeito. Mas uso a palavra “inferno” como uma metáfora, para demonstrar com força que não pode haver algo pior do que definhar nas ruas, consumidos por uma droga tão terrível. Só a morte. Sabemos como é ver uma filha partir, nos deixar, consumida pela leucemia, uma doença perversa contra a qual não tivemos tempo de lutar. Sentimos ainda, e seguiremos sentindo por muito tempo, a dor de não tê-la em nossos braços, de beijá-la como sempre fizemos, de ver seu rosto abrir-se em um sorriso meigo ou nas risadas gostosas que até hoje ressoam em nossos ouvidos. Ouço-as sempre, principalmente quando olho para uma foto que tirei de você na praia de Itapoã, em Salvador sobre as pedras molhadas pelas águas do mar. E é inevitável, vejo-a todos os dias. Ela enfeita a parede de nossa sala, transformei em um enorme quadro que transborda dialeticamente, nostalgia e alegria. Saudades. Essa é a palavra que significa quando temos o prazer de lembrarmos-nos de alguém, ficamos alegres por isso, e sentimos tristeza por não tê-la ao nosso lado.
Assim, minha filha, esse sentimento nosso é praticamente o mesmo daquelas mães e pais que perdem seus filhos para o submundo das drogas, que se dissipam em névoas e desaparecem da vida, tornando-se zumbis, sem nomes, sem casas, sem almas. Sentimos dor em nossos corações diante dessas situações, e diante disso, motivados por sua imagem, pelo que você significou para nós, tentamos fazer alguma coisa, em seu nome e pelo que determina nossas consciências, senão para resgatarmos aqueles, pelo menos para evitar que outros possam seguir em direção aos mesmos abismos. Isso é o que queremos filha. Contribuir para amenizar, pelo menos um pouco, desse dilema que vivem os jovens neste sistema injusto.
Você sabia minha querida Carol, que nossas vidas sempre foram dedicadas a uma luta para conquistar outro tipo de sociedade, mais justa, mais solidária, de comum união. Em algumas atividades que participamos, enquanto viveste, você nos acompanhou, e até mesmo gostava de se entrosar em meio aos nossos amigos de luta, camaradas e companheiros, do PCdoB, alguns que já haviam se afastado da militância partidária – como eu me encontro neste momento, muito pelo impacto da sua partida – outros que já estão em outros partidos, mas com os quais mantemos a mesma amizade; da Adufg, quando seu pai era presidente, pouco antes de você partir; do Centro Popular da Mulher, que sua mãe participa, inclusive como diretora; e da Associação de Moradores da qual ela também já foi presidente.
Portanto, minha filha, você já carregava em suas veias essa genética solidária, mas nessas mesmas veias se formava também essa trágica doença. Quando você foi tirada de nossas vidas pela leucemia, por um tempo fiquei desnorteado. Vou me reencontrando aos pouco, mas tento, lentamente, me recompor. Mas seguramente não sou mais o mesmo, embora aos poucos tenha recuperado a alegria de viver - mesmo com a tristeza de não tê-la ao nosso lado - por compreender que viver é a única maneira de poder me lembrar de você.
Esse projeto, no entanto, foi como uma vela içada em um barco sem rumo. Nessa vela sua imagem foi projetada e alguns ventos soprados nos davam a impressão de que você ajudava a empurrar-nos nesse barco, como a nos dizer que sua vida estava em cada um de nós, como uma parte que se fragmentou, transformou-se em cristais coloridos a disputar o espaço com alguns arco-íris que de vez em quando aparecem. Vieram soprados pelo vento e nos dão ânimo para enfrentar o soçobrar das águas, em ondas que vão e vêm, e que já não me alegram mais como aquelas de Itapoã, mas que suas lembranças me ajudam a encarar como um desafio. Sua mãe é a timoneira deste barco, é a grande responsável pela consolidação desse projeto, e suas forças advêm da crença que você está ao lado dela permanentemente. Com o tempo, aprendi também a sentir sempre a tua presença ao meu lado.
Minha linda Carol, eu não conversava com você, em função de sua idade, tanto quanto converso hoje com o Iago sobre esses assuntos, que dizem respeito às injustiças de um mundo movido por ganância, violência e intolerância. O lucro e o “sucesso” a ser obtido a qualquer preço tem tornado as pessoas insensíveis. Não que a maioria delas tenha perdido por completo a sensibilidade. Mas porque a sociedade tornou-as assim nos cabe tentar fazer um pouco de sacrifício para não somente criticar o mundo, mas nos esforçar para que as pessoas retomem seus sentimentos solidários e assim acreditemos ser possível mudá-lo. Fico feliz ao ver as idéias de Iago expressadas no blog que ele criou e denominou “universo ao seu redor”, e o sentimento de justiça e solidariedade que ele já carrega, embora o tempo da universidade impeça ele de escrever com mais frequência.
Vou terminar minha filha, porque já me estendi bastante, e já se passam uma semana desde quando comecei a escrevê-la e a sempre reeditá-la. Por várias vezes parei interrompido pelas saudades e as lágrimas que me impediam de prosseguir. Afinal, foram por quinze dias como esses em que redigi as primeiras linhas dessa carta, cinco anos atrás, desde quando uma pneumonia mal diagnosticada nos fez correr por vários consultórios, até que entre os dias 10 e 13 de dezembro daquele ano de 2007, começamos a perdê-la. Em parte pela inépcia de médicos que só são capazes de diagnosticar o que está restrito a sua formação. É o preço que pagamos, filha, pelo caminho da especialização, e da falta de conhecimento da totalidade do mundo e dos problemas que nos cercam. Até porque neste sistema em que vivemos é mesmo impossível isso, mas seguimos lutando contra essa lógica absurda.
Em seu nome, minha filha, e por nossos valores, nos dedicaremos o quanto pudermos a esses objetivos, tendo o Instituto Ana Carol, como a corporificação de seus sentimentos, de sua inocência, de sua imagem, e como um instrumento que procuraremos fortalecê-lo a somar com tantos outros surgidos também de sofrimentos semelhantes, como a recompor sua vida em cada um de nós e, pouco a pouco, prepararmos nossos caminhos para nos reencontrarmos em alguma outra dimensão.
Você, minha querida Carol, estará conosco para sempre, e seus dez anos de idade multiplicaremos pelo tanto de tempo que nos restam e os viveremos com toda a intensidade que nos for permitido, e do que conseguirmos transgredir além das nossas forças. Para que possamos sempre nos mirar na sua memória e dizer: Minha filha valeu a pena você ter vivido.
Beijos de seu pai. 

(*) Essa "carta" foi escrita em 2010. Algumas partes foram atualizadas  para prosseguir divulgando-a em 2011, quando se completaram cinco anos de quando nossa Carol partiu e agora, em 2013, no dia 5 de março, quando ela completaria 16 anos de idade. Pouca coisa mudou nesse tempo, mas quase tudo desse pouco que mudou, tem a ver com o avanço da Bordana, e do Instituto Ana Carol. Embora com todas as dificuldades, e o esforço dedicado de Celma, suas parceiras e colaboradores, esses dois projetos se consolidaram. Mas ainda faltam recursos suficientes para garantir uma estrutura que atenda suas demandas. Mas seguimos lutando. E vamos conseguir. Em memória da pequena Carol. Goiânia, 13 de dezembro de 2013.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

CORRENDO ATRÁS DA PRÓPRIA SOMBRA!

O que eu acho interessante nessas várias análises que vão surgindo sobre "o problema do Rio", sociológicas ou geopolíticas (e sobre esta ótica pretendo analisar brevemente), é simplesmente a absoluta ausência de abordagem sobre a forte demanda existente hoje no mercado de drogas. Não se vê uma vírgula, por exemplo, sobre para quem serve todo esse aparato industrial. Pois vou aqui ter a coragem de falar claro e botar o dedo na ferida.
É evidente que esse é um comércio, ele enriquece o traficante e o chefe do tráfico, mas quem é o consumidor desse produto? Para onde vão as drogas que transformam, por exemplo, o México em um verdadeiro inferno? O maior mercado é ali ao lado. Quem usufrui dessa droga? E no Brasil, nos grandes centros urbanos, São Paulo, Rio de Janeiro... Goiânia, etc.
É a mesma lógica do sistema capitalista, existe uma mercadoria disputadíssima porque há um mercado consumidor fortíssimo. E quem consome, por exemplo, cocaína de primeiríssima qualidade? Não tenho dúvidas de que no meio de muitas manifestações contra os crimes do tráfico existe um enorme contingente de pessoas, de todas as camadas (no uso de drogas baratas) e das classes médias e da elite (no uso de cocaína pura, refinada) que se dedicam em seus horários de "lazer", e até nos intervalos do trabalho, a usar e abusar do consumo dessas drogas que são uma das causas principais do crime organizado. Incluindo as chamadas drogas “sintéticas”.
Nas baladas e nas festinhas "haves", ou em qualquer uma dessas festas, organizadas inclusive por setores engajados, nas torcidas organizadas de futebol, permeia o uso descontrolado de todo o tipo de drogas, contrabandeadas por essas quadrilhas que infernizam a sociedade. Aí se dá a iniciação. Inclusive em festinhas dentro das universidades.

Enfim, a quem serve essas drogas? Quem se beneficia delas? Quem consome esse produto do crime? Acho que seria mais honesto se começássemos a colocar o dedo nessa ferida e parar com hipocrisia de somente atacar o Estado.
Numa paráfrase maldosa, possível de ser criticado por isso, repito o Coronel Nascimento, de Tropa de Elite: O Sistema é f...!
Mas aqui eu me refiro ao outro sistema, em sua totalidade. Contudo, os viciados, mesmo culpando o sistema, são em última medida os consumidores desse produto. Onde eles estão, enfim?

Desculpem-se a acidez da crítica, mas é muito fácil fazer análise sociológica de tal problema e ver o inferno por todos os lados, diabos e demônios. O Estado, a polícia, os políticos. Chega de achar que o viciado é somente vítima. Ele é um agente ativo de uma lógica sistêmica que se fundamenta em drogar e prostituir a juventude, e de uma sociedade hipócrita que faz um discurso e esconde-se em outra prática, onde tudo é permitido porque se faz em nome da liberdade.
O sistema é f...! Ou você serve a ele ou se opõe a ele. Se drogar e ser revolucionário é incompatível. Combater o traficante e santificar o viciado também não dá. É certo que depois de viciado o indivíduo torna-se "doente", mas DOENTE É O SISTEMA!
É possível que um colega ao lado possa ser viciado. Lamento muito, mas ele financia o tráfico, é tão responsável quanto o Estado que não o combate. Não vai deixar de ser meu amigo, terá meu apoio e ajuda se precisar, mas vai continuar sendo culpado até se livrar do vício e sabemos que isso não é fácil. E na medida em que se tornou viciado ele é culpado e vítima ao mesmo tempo.

É uma roda viva. Como romper isso?
Então, deduz-se que, somente combater o traficante não é suficiente. O tráfico jamais vai acabar enquanto houver demanda. Como dentro da lógica capitalista o que acontece depois de uma mega-operação desta feita pelas forças de segurança é que o preço desses produtos será alterado, por tornarem-se mais escassos, e terem a quantidade posta no mercado reduzida. A cocaína, pura e de “qualidade” terá o seu preço elevado.
É uma mercadoria disputada por um público ávido de sensação de prazer e de liberdade que não consegue obter no seu cotidiano estressante. Que mantêm e bancam esse mercado ilícito, como assim ocorre na prostituição e no contrabando de armas.

Não quero simplesmente culpar as pessoas, mas elas são instrumentos dessa lógica que movimenta o sistema capitalista. Nesse submundo juntam-se desde o alto executivo, a mais destacada celebridade, um indivíduo qualquer, ao narcotraficante. Cada um tem a mercadoria que o outro precisa: o dinheiro e a droga!
E assim, ficamos a correr atrás da própria sombra.

domingo, 7 de novembro de 2010

EM DEFESA DE MONTEIRO LOBATO

Li todas as obras de Monteiro Lobato. Praticamente foi com suas obras que aprendi a gostar de ler. Lembro-me bem da pequena biblioteca da escola em que estudei, na cidade de Serrinha, na Bahia. Fazia ainda o curso primário, no começo da década de 1970. Todas as semanas eu me divertia lendo as fantasias criadas por esse que considero um dos maiores escritores brasileiros.

"Reinações de Narizinho", foi o primeiro deles, e depois não parei mais. Quando saí da escola, aprovado no exame de Admissão para cursar o Ginasial (é, existia isso naquela época), continuei não somente visitando-a, como a convite da diretora e minha ex-professora me tornei responsável por organizar e cuidar de seus livros. O pagamento para isso? Continuar pegando emprestado as obras de Monteiro Lobato.

Viajei pelo mundo maravilhoso de Pedrinho, Narizinho, Emília, D. Benta, Tia Nastácia e tantos outros personagens do nosso folclore e de outras histórias fantásticas. Foi através de Monteiro Lobato que conheci a famosa obra de Miguel de Cervantes, "D. Quixote de La Mancha". Lobato adaptou essa obra para o universo de seus personagens, com o título de "D. Quixote das Crianças".

Depois, no final da década de 1970, já adolescente, me deliciava relembrando desses personagens, assistindo de vez em quando o programa "Sítio do Picapau Amarelo", em sua primeira versão, quando a TV Globo dava conta de fazer programas infantis assistíveis. Mas antes, outros emissoras já tinham de alguma forma adptado uma ou outra obra de Lobato.

Na semana que passou, quando tomei conhecimento de uma "censura" imposta a uma de suas obras - "Caçadas de Pedrinho" - pelo Conselho Nacional de Educação, a pedido de um cidadão, fiquei escandalizado. Pensei numa palavra que pudesse sintetizar tal medida e achei uma que parece um palavrão: estapafúrdia.

Acusar de racismo uma obra de literatura, sem contextualizá-la é abominável. Imagine quantas obras teriam que ser reeditadas com informes sobre frases hoje tidas como "politicamente incorretas". Quantos clássicos da literatura sobreviveriam ao crivo da intolerância?

Creio que está passando dos limites determinados comportamentos que, em nome de se combater discriminações caem em outro extremo, e podem até mesmo afetar a compreensão de como historicamente se comportava a sociedade brasileira em décadas e séculos passados. O que as novas gerações precisam é conhecer a nossa história, e saber quais e como os valores culturais determinavam a maneira como se construía o comportamento das pessoas e suas relações com aquelas de origens pobres e negras.

As manifestações preconceituosas contra os nordestinos, que aconteceram recentemente, fruto da radicalização do discurso ultra-conservador que conduziu a candidatura de José Serra, tem história. Ela se origina na maneira como a sociedade brasileira foi construída escorada nesses valores. A literatura nos ajuda a entender isso. Negá-la é como apagar nossa própria História.

A seguir, acrescento um artigo do Deputado Federal Aldo Rebelo, que escreveu bela crítica a essa sandice:


Monteiro Lobato no tribunal literário

Aldo Rebelo:

O parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) de que o livro "Caçadas de Pedrinho" deve ser proibido nas escolas públicas, ou ao menos estigmatizado com o ferrão do racismo, instala no Brasil um tribunal literário.

A obra de Monteiro Lobato, publicada em 1933, virou ré por denúncia -é esta a palavra do processo legal-de um cidadão de Brasília, e a Câmara de Educação Básica do Conselho opinou por sua exclusão do Programa Nacional Biblioteca na Escola.

Na melhor das hipóteses, a editora deverá incluir uma "nota explicativa" nas passagens incriminadas de "preconceitos, estereótipos ou doutrinações". O Conselho recomenda que entrem no índex "todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante".

Se o disparate prosperar, nenhuma grande obra será lida por nossos estudantes, a não ser que aguilhoada pela restrição da "nota explicativa" -a começar da Bíblia, com suas numerosas passagens acerca da "submissão da mulher", e dos livros de José de Alencar, Machado de Assis e Graciliano Ramos; dos de Nelson Rodrigues, nem se fale. Em todos cintilam trechos politicamente incorretos.

Incapaz de perceber a camada imaginária que se interpõe entre autor e personagem, o Conselho vê em "Caçadas de Pedrinho" preconceito de cor na passagem em que Tia Nastácia, construída por Lobato como topo da bondade humana e da sabedoria popular, é supostamente discriminada pela desbocada boneca Emília, "torneirinha de asneiras", nas palavras do próprio autor: "É guerra, e guerra das boas".

Não vai escapar ninguém -nem Tia Nastácia, que tem carne negra". Escapou aos censores que, ao final do livro, exatamente no fecho de ouro, Tia Nastácia se adianta e impede Dona Benta de se alojar no carrinho puxado pelo rinoceronte: "Tenha paciência -dizia a boa criatura. Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...".

Não seria difícil a um intérprete minimamente atento observar que a personagem projeta a igualdade do ser humano a partir da consciência de sua cor. A maior extravagância literária de Monteiro Lobato foi o Jeca Tatu, pincelado no livro "Urupês", de 1918, como infamante retrato do brasileiro. Mereceria uma "nota explicativa"?

Disso encarregou-se, já em 1919, o jurista Rui Barbosa, na plataforma eleitoral "A Questão Social e Política no Brasil", ao interpretar o Jeca de Lobato, "símbolo de preguiça e fatalismo", como a visão que a oligarquia tinha do povo, "a síntese da concepção que têm, da nossa nacionalidade, os homens que a exploram".

Ou seja, é assim que se faz uma "nota explicativa": iluminando o texto com estudo, reflexão, debate, confronto de ideias, não com censuras de rodapé.

O caráter pernicioso dessas iniciativas não se esgota no campo literário. Decorre do erro do multiculturalismo, que reivindica a intervenção do Estado para autonomizar culturas, como se fossem minorias oprimidas em pé de guerra com a sociedade nacional.

Não tem sequer a graça da originalidade, pois é imitação servil dos Estados Unidos, país por séculos institucionalmente racista que hoje procura maquiar sua bipolaridade étnica com ações ditas afirmativas.

A distorção vem de lá, onde a obra de Mark Twain, abolicionista e anti-imperialista, é vítima dessas revisões ditas politicamente corretas. País mestiço por excelência, o Brasil dispensa a patacoada a que recorrem os que renunciam às lutas transformadoras da sociedade para tomar atalhos retóricos.

Com conselheiros desse nível, não admira que a educação esteja em situação tão difícil. Ressalvado o heroísmo dos professores, a escola pública se degrada e corre o risco de se tornar uma fonte de obscurantismo sob a orientação desses "guardiões" da cultura.


Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=140984&id_secao=11

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Até o papa apoiou Serra

Esta semana abro o espaço do Gramática do Mundo para um artigo do jornalista Mino Carta. Faço isso porque ele sintetizou com brilhantismo uma análise que eu gostaria de ter escrito.

Até o papa apoiou Serra

por Mino Carta, da Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br/index.php/author/Mino%20Carta)

Dilma Rousseff, a eleita, teve de enfrentar a campanha mais feroz contra um candidato à Presidência na história do Brasil

Temos uma mulher na Presidência da República, primeira na história do Brasil. E que uma mulher chegue a tanto já é notícia extraordinária. Levo em conta a preocupação do Datafolha a respeito da presença feminina no tablado eleitoral: refiro-me à pergunta específica contida na sua pesquisa, sempre aguardada com ansiedade pelo Jornal Nacional e até pelo Estadão. A julgar pelo resultado do pleito, Dilma Rousseff representa entre nós a vitória contra o velho preconceito pelo qual mulher só tem serventia por certos dotes que a natureza generosamente lhe conferiu.

Para CartaCapital a eleição de Dilma Rousseff representa coisas mais.

A maioria dos eleitores moveu-se pelas razões que nos levaram a apoiar a candidata de Lula desde o começo oficial da campanha. Em primeiro lugar, a continuidade venceu porque a nação consagra os oito anos de bom governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Inevitável foi o confronto com o governo anterior de Fernando Henrique Cardoso, cujo trunfo inicial, a estabilidade, ele próprio, príncipe dos sociólogos, conseguiu pôr em risco.

Depois de Getúlio Vargas, embora manchada a memória pelo seu tempo de ditador, Lula foi o único presidente que agiu guiado por um projeto de país.

Na opinião de CartaCapital, ele poderia ter sido às vezes mais ousado em política social, mesmo assim mereceu índices de popularidade nunca dantes navegados e seu governo passou a ser fator determinante do êxito da candidata.

A comparação com FHC envolve também a personalidade de cada qual. Por exemplo: o professor de sociologia é muito menos comunicativo do que o ex-metalúrgico, sem falar em carisma. Não se trata apenas de um dom natural, e sim da postura física e da qualidade da fala, capaz de transmitir eficazmente ideias e emoções. Lembraremos inúmeros discursos de Lula, de FHC nenhum.

Outra diversidade chama em causa a mídia nativa. Fascinada, sempre esteve ao lado de FHC, inclusive para lhe esconder as mazelas.

Vigorosa intérprete do ódio de classe em exclusivo proveito do privilégio, atravessou oito anos a alvejar o presidente mais amado da história pátria. Quando, ao dar as boas-vindas aos 900 convidados da festa da premiação das empresas e dos empresários mais admirados no Brasil, ousei dizer que o mensalão, como pagamento mensal a parlamentares, não foi provado para desconforto da mídia, certo setor da plateia esboçou um começo de vaia. Calou-se quando o colega Paulo Henrique Amorim ergueu-se ao grito de “Viva Mino!” Os fiéis da tucanagem não primam pela bravura.

Pois Dilma Rousseff teve de enfrentar esta mídia atucanada, a reeditar o udenismo de antanho em sintonia fina com seus heróis. Deram até para evocar o passado da jovem Dilma, “guerrilheira” e “terrorista”. Como de hábito, apelaram para a má-fé para explorar a ignorância de um povo que, infelizmente, ainda não conhece a sua história, e que não a conhece por obra e graça sinistra de uma minoria a sonhar com um país de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem demos.

Nos porões do regime dos gendarmes da chamada elite, Dilma Rousseff­ foi encarcerada e brutalmente torturada. Poderia ter sofrido o mesmo fim de Vlado Herzog, que os jornalistas não se esquecem de recordar todo ano.

Mas a hipocrisia da mídia não tem limites, com a contribuição da ferocidade que imperou na internet ao sabor da campanha de ódio nunca tão capilar e agressiva. E na moldura cabe à perfeição a questão do aborto, praticado à vontade pelas privilegiadas e, ao que se diz, pela própria esposa de José Serra, e negado às desvalidas.

Até o papa alemão a presidente recém-eleita teve de enfrentar. Ao se encontrar já nos momentos finais da campanha com um grupo de bispos nordestinos, Ratzinger convidou-os a orientar os cidadãos contra quem não respeita a vida, clara referência à questão que, lamentavelmente, invadiu as primeiras páginas, as capas, os noticiários da tevê. Parece até que Bento XVI não sabe que o Vaticano fica na Itália, onde o aborto foi descriminalizado há 40 anos.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O VÍRUS DA FÉ – O VELHO FUNDAMENTALISMO

No momento em que escrevi este texto estava um pouco distante do meu lugar. Paradoxalmente, estava no norte do Tocantins, em Xambioá, mais uma vez participando do Grupo de Trabalho que busca vestígios dos corpos dos guerrilheiros mortos, para que suas famílias, por suas crenças e fé, possam dar sepultura digna aos que lutaram contra a ditadura militar na Guerrilha do Araguaia.

Mas não estava longe o bastante que me tirasse do mundo real, daquele em que as teias que nos envolvem nos mantém permanentemente atentos e sempre dispostos a procurar intervir de alguma maneira. Devemos ser, na medida em que adquirimos a capacidade de entender as contradições e ver a vida sempre criticamente, agentes ativos que não só compreendem, mas que tornam-se partícipes em momentos cruciais a determinarem transformações radicais no ambiente em que vivemos. Neste mundo real.

E é dele que quero falar e o que direi será impactante, porque não é usual. E certamente desta vez eu irei de encontro a valores tradicionais, motivado pelo embuste que se tornou o processo eleitoral brasileiro. Pela onda de hipocrisia, comportamentos medievais e pela reação de uma multidão de mentes anestesiadas por aquilo que Richard Dawkins denomina de “o vírus da fé”, que “infecta geração após geração e torna-se uma arma mortal de intolerância em todo o mundo” (http://www.youtube.com/watch?v=LzXAaY9TWek).

No meu texto anterior, a que eu denominei de “o novo fundamentalismo” eu abordei em parte esta questão. Foi interessante perceber como no decorrer da semana o assunto entrou de vez em discussão tanto pelos meios de comunicação tradicionais, como pela internet, via emails e blogs.

Fico feliz em ter me antecipado e perceber que a leitura que faço, através daquilo que denominei Gramática do Mundo, se demonstra correta. Não é suficiente olhar o mundo tal como ele nos é mostrado, seja pelas belezas que ele possui ou pelas desgraças que acontecem. É preciso descer ao limite de suas contradições para entender quais os mecanismos que o movem e de que são feitos as emoções, atitudes e escolhas do ser humano.

Não quero desrespeitar os que têm suas crenças, fé e seguem uma religião. Apenas manifesto uma outra posição, dos que não crêem em divindades e não professam nenhuma religião.

Já de há muito tempo venho me batendo contra o crescente domínio das visões fantasmagóricas de mundo, e abertamente me escandalizado com o aumento do número de pessoas que se submetem cotidianamente a uma absurda lavagem cerebral. Nunca o mundo foi tão dominado pelo medo. Este passou a se constituir o principal mecanismo de controle e de determinação de modos e estilos de vida das pessoas.

Os anos 90 foram responsáveis por trazer à tona, juntamente com as novas idéias (neo)liberais dois elementos que definiram a maneira como dali em diante faríamos uma leitura dos nossos comportamentos. O crescente individualismo, em contraposição a uma derrota que se propunha coletivista, e a isso se completava o crescimento de uma enorme quantidade de lixo literário denominado de “auto-ajuda” (que vem a ser a maneira mais idiota de se acreditar que se está superando algo sozinho quando se está lendo sugestões de um indivíduo e sendo acompanhado por milhares de outros pobres solitários a enriquecer alguns experts em dar conselhos para desesperados cidadãos consumistas, estressados ou sem-dinheiro).

O outro, vem na esteira deste, porque está fundamentado no individualismo, e numa auto-ajuda fortemente inspirada em uma mãozinha que deva ser dada por deus. Você irá vencer por si próprio, mas se você não acreditar em deus, de nada lhe adiantará. Devo assim dizer que é uma auto-ajuda divina. Segue-se assim a velha lógica protestante, calvinista, segundo a qual você não deve se preocupar se enriquecer mais do que os outros. Deus definiu o seu futuro assim, não se envergonhe. A não ser que você não “creia”. É de bom grado não se esquecer de se esforçar para ser merecedor de tamanha confiança. Tu, porque o outro, ao seu lado (a maioria, aliás), não foi merecedor e “só deus sabe porque”. Tal qual aquele jogador que faz um gol e ergue os braços aos céus admitindo: “sou um abençoado, obrigado, meu deus”. Ora, e os demais, porque não foram também?

Tudo isso são perguntas tolas para crenças fantásticas e absurdas, em nome das quais se praticam todos os tipos de crimes e guerras, desde que um indivíduo mais esperto do que os demais percebeu o quanto seria importante e lhe garantiria poder controlar as pessoas por suas consciências. Fazê-las temerosas de fatos e coisas difíceis de serem compreendidas e, acima de tudo, temerosas da morte.

Se contabilizados, os genocídios e guerras na história da humanidade se deram em sua ampla maioria em nome de crenças, criadas, tanto quanto seus deuses, por indivíduos obcecados por riqueza e poder, não necessariamente nesta ordem. E assim, manipulando os indivíduos pela consciência e os paralisando pelo medo, principalmente pelo medo das punições a serem dadas ironicamente por seus deuses, o ser humano tornou-se extremamente vulnerável e facilmente sujeito a manipulações, principalmente quando este recurso é utilizado com o objetivo de conduzir, induzir e controlar multidões.

No final da Idade Média uma revolução opôs o domínio das mentes perpetrado pela Igreja e prometeu um mundo onde o centro do universo não seria mais deus, e sim o ser humano. O iluminismo foi esse movimento que resgatou da antiguidade o discurso da materialidade e do valor do ser humano, opondo às crenças fantásticas o conhecimento, o saber e a cientificidade do mundo.

Contudo, a elevação do ser humano à condição de centro de tudo, alterou no limite a capacidade do “homo sapiens-sapiens” de produzir deuses e os tornarem seus servos no objetivo de concentrar poder e riqueza. Invertendo-se a lógica, o homem se externalizou à natureza em si e pôde com autoridade continuar a criar seus deuses. E o pior de tudo, suas religiões.

Ora, como pode o ser humano ser causa e conseqüência de um mundo conduzido por idéias absurdas e governado pelo fundamentalismo religioso? Sendo ele o criador e a criatura. O homem fez de deus um instrumento de seus mais perversos desejos, da ambição, da ganância e da usura. E transformou o mundo em um espetáculo de beleza e maldade, de imagens odientas e bondades, de valores invertidos pretensamente explicados por uma predestinação divina. E assim manteve sob controle uma multidão de incautos, conformados com a miséria e esperançosos de se verem atendidos pelos céus em algum momento. Senão, será deles esse reino para além da morte. Pois que não seja aqui, será em outras improváveis vidas.

Mas hipocritamente, enquanto muitos morrem segundo a lógica construída a partir desse raciocínio que move o mundo, a gritaria se dá em torno de fetos, alçados à condição de seres vivos. São tanto quanto as milhões de células que habitam nosso corpo.

Enquanto isso, nas ruas, favelas, morros, nos campos de batalhas, nos miseráveis casebres infestados de ratos e baratas, nas aldeias abandonadas pelos deuses na África de tantos deuses, crianças mal ultrapassam os cinco anos de idade e sucumbem diante dessas desgraças. Muitas que sobrevivem a essas idades tornam-se reféns das drogas, ou são seqüestradas para tornarem-se escravos e escravas do sexo, a infestar o submundo do crime e a satisfazer os gozos de crentes e descrentes. E morrem aos milhares a cada dia.

Do alto de seus pedestais bem sucedidos executivos, filhos(as) de “boas famílias”, enriquecidos em um sistema cuja lógica consiste em assaltar o futuro dos mais pobres, clamam em nome de deus contra a morte de “criancinhas”, adjetivo dado a um óvulo que mal recebeu um espermatozóide e em pouco tempo de fecundação já tem seu futuro garantido por esses obsequiosos reverendos da moral hipócrita.

Forçados ou não, feitos com intenção ou decorrente de situações mal-resolvidas, o fato é que as igrejas, todas elas, são ocupadas por várias mulheres que já se viram nesta situação. Isso não as fazem diferentes, ou sequer criminosas. Mas correm elas os mesmos riscos de serem apedrejadas, tal qual se diz de Maria Madalena, aquela mesma riscada da história do cristianismo, seguramente para retirar da mulher qualquer papel decisivo na formulação de valores e da vida, elementos que ela por natureza carrega com muito mais autoridade do que o homem. E, por isso, naturalmente, deveria ser a primeira a definir o que fazer com o seu próprio corpo, e a condição que ela teria de garantir ou não a existência de um novo ser a preservar sua espécie, e se está devidamente apta para tal.

E seguimos nossa bela cultura ocidental, a mirar nossos dedos sujos em direção ao oriente, acusando de fanatismo os islâmicos que defendem a submissão do Estado aos interesses de seu livro sagrado,o Alcorão. E nos vemos diante do que? Como a seguir a velha e hipócrita democracia, elegem-se os crentes e carismáticos, a representarem o “povo de deus” e a escrever na constituição brasileira os valores que são passados por outro livro sagrado, a Biblia, escrito há milênios em um mundo completamente diferente do que se vive atualmente, mas cujas frases são repetidas ad nausean, a guiar o Estado em seus costumes e tradições eternamente. Como a confirmar as palavras de Engels, que dizia: “a tradição é uma força freadora do progresso”.

Isso difere apenas na forma, daquilo implementado por países teocráticos. Na essência é o mesmo mecanismo de impor através das leis do Estado valores que são criados seguindo dogmas que dizem respeito apenas a uma parcela da população. E ao tornarem-se leis, elas impõem que a parcela restante respeite o que passa a ser constitucional como um dever, desrespeitando-se o direito de escolha de se ter ou não ter religião.

Diante do vendaval de moralismos e de comportamentos hipócritas que tomou a sociedade brasileira como resultado do oportunismo eleitoral me coloco diante do tribunal inquisitório e me declaro ateu. E afirmo, que não é necessário professar nenhuma religião, ou acreditar em deuses, santos, budas, gnomos, duendes, bruxas, elfos, saci-pererê ou o que quer que seja, para adotar uma vida honesta, baseada em virtudes que aprendemos também com algumas religiões, mas que podem ser professadas independentes delas.

Basta abstrair o ódio, o rancor, o desejo de se impor perante o outro, a usura, a ganância, o individualismo, e simplesmente acreditar que “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” (Legião Urbana).