quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A SERVIDÃO HUMANA MODERNA

“A desgraça deste mundo reside no fato de ser muito mais fácil abandonar os bons hábitos do que os maus”.
William Maugham

O livro “A Servidão Humana”, um clássico da literatura mundial, foi lançado há quase exatos cem anos, em 1915, e o seu autor Wiliam Somerset Maugham, vivia também, pessoalmente, frente a dilemas que ainda nos dias de hoje são corriqueiros. Assumir a sua homossexualidade. Mas o conteúdo dessa obra-prima não está centrada nisso, mas em um forte questionamento sobre as escolhas feitas pelo indivíduo, diante dos problemas que a vida lhe apresenta. O amor, a família, o destino, a riqueza, a morte, as deficiências físicas e morais. E os desejos e angústias que permeiam as nossas decisões, fundamentais para definir nossos destinos. Era o retrato do ser humano em uma época marcada por transformações cruciais. O início da segunda guerra mundial impunha ao mundo novas realidades, marcadas pela brutalidade da guerra, e pelo embate ideológico que redefiniria o mundo. Mas, ainda se discutia sentimentos como bondade, paixão e amor, com sensibilidade, muito embora a hipocrisia, traço de caráter coletivo da sociedade, já se manifestasse em atos e comportamentos.
Cem anos depois, o que me proponho aqui é discutir outro tipo de servidão, que tem definido comportamentos, hábitos e vícios, gerados por uma impressionante dependência tecnológica em um novo tipo de sociedade, onde nos tornamos consumistas compulsivos, e nos consumimos pelo grau de escravidão que nos impõem os objetos cada vez mais sofisticados que nos cercam.
Servidão e escravidão podem carregar elementos conceituais diferentes, quando analisamos as estruturas sociais ao longo de séculos de transformações da história humana. Mas, são palavras que podem tornar-se sinônimas quando procuramos estabelecer as relações construídas pelo sistema capitalista e o grau de dependência criada entre os indivíduos e as mercadorias.
Esse fenômeno foi estudado e identificado por Karl Marx já no século XIX. Segundo ele, nas relações sociais que são estabelecidas na sociedade capitalista o indivíduo ao consumir uma mercadoria desconhece, em absoluto, todo o processo de produção, no qual está embutida a exploração da força de trabalho, principal elemento a acarretar a acumulação de riquezas nas mãos dos poucos que controlam os meios de produção.
As mercadorias foram adquirindo, ao longo da consolidação do sistema capitalista, por sua lógica entranhada, de garantir por ela os lucros aos comerciantes e à burguesia, o caráter de um fetiche. Por um lado, à medida em que cada vez mais ela cria uma vida própria, deixando de ser adquirida simplesmente porque advinda de uma necessidade, tornando-se um objeto de desejo irrefreável pelo qual os indivíduos se tornam dependentes; e por outro lado porque nesse processo perde-se a percepção de que ela é fruto da exploração do trabalho alheio, e por ele se garante o lucro, e o seu valor passa a extrapolar sua significância real, adquirindo um valor artificial ao sabor das manipulações criadas pelo mercado, deixando de ser vista como algo criado pelo trabalho humano e pelo qual devesse ser medido.
Por esse processo, a vontade do ser humano sucumbe ao que Marx denominou como o “fetichismo da mercadoria”, invertendo-se a ordem natural das coisas, com as pessoas sendo subsumidas nessa lógica sistêmica e aceitando serem dominadas pelos objetos. Perde-se, pela dependência criada em relação às coisas, a capacidade de refletir criticamente sobre o processo de exploração na produção da mercadoria e substitui a necessidade real, pelo desejo de consumir, afetando duramente a capacidade do ser humano de controlar de forma consciente a maneira como se dá o processo da produção.
Dessa forma o dilema se nos apresenta como no enigma da esfinge: “decifra-me ou devoro-te”[1]. Na incapacidade do ser humano decifrar todo o processo produtivo, responsável pela ampliação desmedida de mercadorias, e a consequente destruição da natureza, torna-se impossível realizar seus desejos objetivado na frase que já se tornou muito mais o foco de marketing do que de realizações efetivas para sua concretização: o desenvolvimento sustentável.
Essa dependência, contudo, assume nos dias atuais (muito embora perpassando isso por épocas passadas desde o surgimento do capitalismo) um estágio preocupante, porque se aproxima do limite possível de ser tolerado pela natureza, e porque culturalmente consome a juventude, principalmente, transformando-a em zumbis modernos, espécie de seres inanimados cuja capacidade de comunicar-se por vias de tecnologias sofisticadas afasta-a do contato e do convívio natural.
Paradoxalmente, essa escravização aos objetos, notadamente os de forte atração tecnológica, distanciam as pessoas, quando essas estão próximas, e as aproximam quando estão distantes. A proximidade passa a ser um empecilho porque impede de usufruir dos desejos doentios de se comunicar pelos aparelhos sofisticados. Isso pode fazer com que a capacidade de dialogar presentemente torne as novas gerações frias no convívio social e insensíveis aos contatos humanos, que tendem a tornar-se fúteis e passageiros.
Não há dúvidas que a tecnologia facilita a vida humana, reduz as distâncias e coloca as pessoas mais próximas. Mas o preço a pagar por isso tem sido bastante elevado quando se fala das relações humanas. O mesmo objeto de deslumbre que nos lança no mercado em busca de novidades, não necessárias, mas desejáveis, torna-se também alvo da marginalidade, quase sempre oriunda de camadas sociais mais baixa. Cada vez mais aparelhos celulares e tabletes são visados em assaltos e roubos. Repassados e vendidos no mercado paralelo o baixo preço dessas mercadorias faz com que ela seja disputada também por pessoas pobres. Com isso, não somente a classe média e os mais ricos ficam reféns dessas tecnologias, e de mercadorias que não deveriam ser as mais importantes em suas vidas, cujas necessidades mais prementes são relegadas a planos inferiores. Some-se a isso as facilidades de créditos que garantem acesso fácil às mercadorias e instigam o consumo. A alienação gerada por essa lógica consumista e os vícios que dela advém, passam a se fazer presente também entre os mais pobres, que se veem em um mundo distante daquilo que é a realidade vivida.
Por todas as classes sociais a dependência tecnológica assume ares de uma epidemia. E aquilo que deveria ser algo facilitador das relações sociais, torna-se um enorme impedimento para que se tenha a clara noção dos mecanismos reais de produção e do processo de manipulação da realidade a fim de tornar cada jovem um consumista em potencial.
Podemos argumentar que tais tecnologias, e as redes sociais que elas criam, tem ultimamente contribuído para aglutinar milhares de jovens em manifestações que tem azucrinado a vida de governantes. Mas nessas redes sociais vê-se também o lado selvagem, estúpido e odiento de muitas pessoas, que passam a frequentar um ambiente onde podem tudo, ou pensam que podem, e o desrespeito passar a se constituir em uma regra que se dissemina numa velocidade impressionante.
Alimentada pela mídia, estamos construindo via esses mecanismos uma geração marcada pelo ódio. Mas nesse sentimento não há, infelizmente, uma capacidade crítica suficiente para distinguir a origem de suas frustrações. O fetichismo, embutido na mercadoria, espalha-se pela sociedade, e a coragem de se manifestar via redes sociais, bem como a virulência em que essa rebeldia se transforma em alguns casos, não tem objetividade. Esses jovens, em sua maioria, não se disporiam a enfrentar os seus piores demônios, pois são eles que produzem seus objetos de desejos. São alienados e, com esses comportamentos, não causam nenhum medo naqueles que controlam toda a riqueza, os meios de produção e a cada um deles, por intermédio das mercadorias que desejam.
Não defendo nenhum manifesto Ludista, anti-tecnologia. Mas me preocupa o caminho que estamos trilhando em direção ao futuro. Como sempre digo, o futuro não existe. Ele é uma construção idealizada. Quando imaginamos, contudo, aquele tempo que ainda virá, e no qual nos imaginamos nele, a menos que a morte nos tolha a vida, devemos olhar para o presente. Ele é que dirá que tipo de mundo estamos construindo.
Faltando um ano para o prazo estabelecido a fim de se resolver os principais problemas da humanidade, porque é tão difícil se atingir os “objetivos do milênio”?[2] Porque tudo isso depende do rompimento com as estruturas vigentes no sistema capitalista, cuja prioridade é produzir a uma meta lunar (ou lunática), sem limites, cada vez mais mercadorias.
Somos arrastados por um turbilhão midiático, de propaganda, que invade cada casa, indistintamente, a martelar em nossos desejos e a nos impor uma vontade. Sucumbimos a esse fetichismo, agora ampliado pelo marketing, e deixamos para depois a preocupação com os destinos da humanidade. Eles deixam de ser nossos quando atingimos essa capacidade consumista e passamos a querer resolver um problema somente quando ele nos incomoda particularmente. Somente a crítica, a capacidade de identificar as origens desses males, e rompendo com o fetichismo (o que não significa abrir mãos dos desejos, mas ter a consciência crítica de seus limites), pode-se corrigir o rumo que tem nos encaminhado em direção a um abismo.
Certamente essas poucas palavras não surtirão efeito, porque tem alcance limitadíssimo. E muitos daqueles que lerem isso que escrevo, já possuem essa consciência crítica formada, e sentem a mesma impotência diante desses problemas. Mas consigo assim me aliviar das culpas, visto ser um indivíduo do meu tempo, e também algumas vezes cego pelos desejos consumistas.
Exprimo dessa forma um sentimento que demonstra o quão contraditório é o mundo em que vivemos. Contudo, tenho a consciência da necessidade de mudar o mundo não pela cultura, pelos hábitos, mas rompendo com as relações sociais de produção que nos escraviza e limita nossa capacidade de construirmos um mundo mais solidário e menos egoísta. Somente assim, e destruindo essa tradição que está enraizada em nossas entranhas e acompanha a cada nova geração, poderemos criar outros valores que nos levem a consumir aquilo que é estritamente necessário para vivermos bem e com dignidade, com o olhar voltado para o passado, os pés firmes no presente e nossos sonhos utópicos realizáveis a desenhar nossos destinos.
Quem sabe a partir daí possa ser possível falar em desenvolvimento sustentável?
Vejam este vídeo. Fala sobre a maneira como estamos substituindo nossa maneira de interagir, nos submetendo à dominação dos objetos e da tecnologia. 




[1] “Diz uma antiga lenda grega que a deusa Hera enviou a Esfinge (uma besta com cabeça de mulher, asas e corpo de animal) para atormentar os moradores da cidade de Tebas. A Esfinge cruzava o caminho de todos os que se aproximavam da cidade e formulava um enigma para o viajante. Quem errava o enigma era devorado pelo monstro. Um dia, Édipo cruzou com a Esfinge, que lhe propôs o seguinte enigma: “O que durante a manhã tem quatro pernas, ao meio-dia tem duas e à noite tem três”. Édipo respondeu corretamente* e a Esfinge ficou tão furiosa que se lançou num precipício. Graças à façanha de derrotar a Esfinge, Édipo tornou-se rei de Tebas e ganhou a mão da rainha enviuvada, sua própria mãe.”.
(*) Resposta ao enigma: O ser humano. Representado em suas fases de recém-nascido, adulto e na velhice, quando necessita ser apoiado em uma bengala ou cajado.
[2] Em 2000, a ONU – Organização das Nações Unidas, ao analisar os maiores problemas mundiais, estabeleceu 8 Objetivos do Milênio – ODM, que no Brasil são chamados de 8 Jeitos de Mudar o Mundo – que devem (deveriam) ser atingidos por todos os países até 2015. 1. Acabar com a fome; 2. Educação básica de qualidade para todos; 3. Igualdade entre os sexos e valorização da mulher; 4. Reduzir a mortalidade infantil; 5. Melhorar a saúde das gestantes; 6. Combaer a Aids, a malária e outras doenças; 7. Qualidade de vida e respeito ao meio-ambiente; 8. Todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento. (http://www.objetivosdomilenio.org.br/)

(*) Originalmente publicado em 2014, este artigo foi reeditado para correção do link. Mas, pela própria temática, ele mantém a sua atualidade. E por essa razão não foi modificado.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

O CAPITALISMO E UMA CRISE DE LONGA DURAÇÃO - DO BREVE SÉCULO XX À ACELERAÇÃO DO SÉCULO XXI

Nunca, em nenhuma época, vivemos acontecimentos de forma tão acelerada e intensa. Milton Santos, que morreu há 15 anos, afirmava em sua obra que analisa o processo da globalização, que vivemos um tempo de transição, que se prolongaria tanto mais quanto se tornasse mais difícil encontrar-se alternativas para superar e substituir um sistema em crise crônica.
Há alguns meses escrevi no Blog um texto, apresentando uma série de artigos em que analisava a atual conjuntura política, e no último parágrafo sintetizei essa situação, de uma transição em lenta agonia, já que as perspectivas de novos caminhos se apresentam numa absoluta incógnita.
“Estamos em meio a uma luta de classes encarniçada, a uma grave crise econômica e, também, em meio a uma transição de um sistema que atingiu seu auge, e consequentemente os limites de suas contradições. Mas, para onde vamos, ainda é uma incógnita, o que só torna a transição mais complexa e mais suscetível a conflitos, enfrentamentos políticos, religiosos e guerras de proporções mundiais. Quando o velho insiste em sobreviver e o novo demora a surgir, em se tratando de formações sociais, temos diante de cada um que vive esses momentos, uma longa, violenta e perigosa transição. Resta-nos a resistência para que dentre os caminhos propostos não nos deparemos com retrocessos, nem nos encaminhemos para um abismo”.
Crise: década de 1970
O século XXI já começou embalado por fatos que deixou a todos inseguros sobre o que aconteceria nos anos seguintes. Percebido que o “bug do milênio” não passava de um temor carregado de tolices, e espetacularizado por uma mídia que se especializou em criar o medo do imponderável de forma estúpida, pior do que as crenças nas divindades vingativas, os atos de 11 de setembro de 2001 demonstrou que algo pior estaria por vir. O que ruiu naquele dia não foi somente duas torres, e a trágica perda de milhares de vidas humana, vítimas do ódio alimentado pela irracionalidade de podres poderes. Ali se sentiu estremecer a estrutura econômica de um sistema que já estava claudicante desde os anos 1980, ainda como consequência de uma crise gestada na recomposição dos preços do petróleo, no bojo da criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP).
Se o século XX foi intitulado pelo brilhante historiador Eric Hobsbawm, como o breve século, e um dos mais violentos da história, este tem tudo para ser um longo século, porque será arrastado por uma crise de duração prolongada, e quiçá não seja entremeado também por conflitos de dimensão mundial. Registre-se que outro intelectual, um economista, Giovanni Arrighi, já se referira ao século XX, como um longo século, porque foi buscar no entendimento de como a formação dos impérios foi essencial para a consolidação do sistema capitalista, efetivado exatamente no século anterior. O longo, ou o breve século XX, pela abordagem do historiador ou do economista, ambos marxistas, representam uma análise da formação histórica do capitalismo e dos sobressaltos de uma complexa economia, que só vai tornar esse sistema eficaz e vitorioso na segunda metade daquele século.
Mas há um forte diferencial, a tornar longa essa transição. No começo do século XX, uma parte considerável da humanidade acreditava ter ao seu alcance uma alternativa para substituir o sistema capitalista, embora este só tivesse se espalhado por todo o mundo naquele momento, efeito da expansão imperialista. Mas já era visível, principalmente com a grande depressão, que o capitalismo sobrevivia às custas de contorcionismos cada vez mais mirabolantes, salvo em seu extremo, na década de 1930, por uma teoria que tomou emprestado do socialismo, o planejamento e a forte ação estatal, e por uma guerra que destruiu e fez se tornar necessário a reconstrução de uma Europa devastada, que se tornou o laboratório para o keynesianismo e a sobrevida do capitalismo. Mais do que uma sobrevida, o capitalismo foi turbinado pelas novas possibilidades encontradas com as teorias que garantiram o “welfare state” e transformou os EUA no maior credor do mundo.
No entanto, os anos dourados que impulsionaram a economia mundial até a década de 1970 baseava-se fundamentalmente em princípios liberais tradicionais, cujo foco principal era a produção e a circulação de mercadorias, a curta e longa distância. Muito embora seus fundamentos inspirarem-se no livre mercado, todo o seu impulso contou sempre com a intervenção do estado. Isso se intensificou com o keynesianismo, e, por outro lado, com os movimentos nacionalistas nos processos de lutas anticolonialistas. A existência de uma forte corrente pró-socialismo manteve esse comportamento nas medidas econômicas que vigoraram até o final dos anos 1970. Os anos 80 puseram em xeque a tendência natural do capitalismo: seu caráter marcadamente expansionista.
Com as economias esgotadas, naquela que ficou conhecida como “a década perdida”, restou aos estados hegemônicos apressar a derrubada dos países socialistas, envolvidos internamente com o esgotamento de um modelo que não conseguiu se expandir para garantir condições de vida que se aproximasse das melhorias conquistadas pelas populações dos países europeus, cujas economias foram injetadas pelo Plano Marshall no pós-guerra.
No fim da década, a queda do socialismo e, principalmente, após a dissolução da União Soviética, o caminho abriu-se para uma reestruturação no capitalismo. Seja mediante uma expansão em direção ao leste europeu, e até mesmo penetrando nas fronteiras caucasianas e na Rússia, ou disseminando pelo restante do mundo a necessidade de desregulamentação da economia, reduzindo a intervenção do Estado na economia e derrotando as políticas nacionalistas protecionistas naqueles países periféricos, ou então vistos como subdesenvolvidos. Pela nova lógica que se disseminava, o nacionalismo e o excesso de intervenção do Estado eram fatores para manterem essas economias fragilizadas.
Esse processo tem sido analisado com mais intensidade na última década. No entanto, muito embora as vozes críticas da globalização, e das políticas neoliberais, fossem sistematicamente desqualificadas, desde o início desse processo já se analisavam as terríveis consequências de políticas econômicas cujo foco era tão somente atender os interesses dos que controlavam o dinheiro, e buscavam novas formas de garantir a acumulação, mediante medidas que facilitassem a circulação do capital e sua aplicação ao redor do mundo.
A partir de então, e numa rapidez estonteante, escorados em novas tecnologias, o dinheiro circulou o mundo com mais liberdades, e se multiplicaram as aquisições e fusões de grandes empresas, levando à concentração da riqueza de forma ainda mais visível. Proporcionalmente reduziu-se o percentual daqueles que concentravam a maior parte dessa riqueza. Ou seja, um número cada vez menor de pessoas, passava a controlar uma quantidade cada vez maior de dinheiro. O oligopólio passou a caracterizar essa nova etapa, e o poder das grandes corporações assumiu uma dimensão espantosa.
A ganância atingiu todos os recantos do planeta numa força impressionante. Ideologicamente houve uma mudança na maneira de entender o liberalismo, mas isso foi facilmente disseminado com um marketing violento, por meio da imprensa, do cinema, das propagandas. Tornou-se uma verdade absoluta render homenagem ao sucesso da globalização. Praticamente não se falava mais de outras alternativas ao capitalismo, e os que ousavam enfrentar o “pensamento único” eram vistos como vozes que pregavam teorias ultrapassadas, e, aproveitando o sucesso dos “blackbusters” de Spielberg, apelidados de “jurássicos” e afrontados ironicamente.
Mas os protagonistas do sistema tomaram um rumo semelhante ao jogador viciado que não consegue abandonar a banca de jogo, presos pela cobiça. Tão rápido quanto os avanços tecnológicos, foram os mecanismos inovadores nas formas de se ganhar dinheiro fácil, através das oportunidades com que se podia investir em empresas por meio de bolsas de valores 24 horas por dia, em todos os cantos do planeta. Principalmente naqueles países mais frágeis, cujas pressões das organizações globais encarregadas de padronizar as políticas econômicas, se davam mais facilmente, como decorrência dos comportamentos submissos das elites locais. Os juros extremamente elevados criaram portos seguros para investidores usuráveis, e eram garantidos pelas pressões exercidas pelas governanças globais, que impediam qualquer tipo de controle sobre os recursos investidos e dificultavam a adoção de medidas que taxassem seus investimentos no mercado especulativo, sem nenhuma preocupação com as condições econômicas desses países. O “rentismo” passou a se constituir na mais nova forma de se acumular dinheiro, uma nova característica do capitalismo, e criou um novo tipo de burguesia, mais preocupada com as oscilações das bolsas de valores do que com a capacidade de consumo para investimentos produtivos.
No entanto, o sistema não se recuperara por completo da crise iniciada na década de 1970. Muito embora a globalização se apresentasse como a consolidação definitiva do capitalismo, o rumo que o mundo tomou, com o crescimento da ganância e a redução do controle sobre a economia, abriu rombos que deixou incertezas e muitas dúvidas sobre a capacidade de recuperação. Mas isso só era visto por um grupo pequeno de economistas, ou de ativistas políticos ideologicamente avesso ao capitalismo, suas credibilidades eram postas em xeques e suas críticas não eram repercutidas pela grande imprensa.
Tudo se tornou visível, após esse período de inebriamento e crescente ganância, quando em 2008, rendendo-se aos fatos a grande mídia noticiou ao mundo o que alguns economistas já alertavam, sem serem ouvidos: o sistema financeiro estava à beira do “crash”. A quebradeira acontecia e arrastava a economia em meio a escombros de um tsunami econômico e social, de proporções imprevisíveis.
O ponto fora da curva teria sido as especulações feitas por meio de hipotecas no mercado imobiliário estadunidense. Mas esse foi apenas um fator, outros já vinham causando fissuras na estrutura do capitalismo. Desde os ataques ao World Trade Center, aos gastos milionários com as invasões do Iraque e Afeganistão, e a desastrosa “guerra ao terror”, além dos vai-e-vem no preço dos barris de petróleo, tudo isso e mais outros motivos, se juntaram a absoluta falta de controle de um sistema que perdeu a capacidade de  se contentar com os lucros obtidos a partir de investimentos produtivos, e se transformou em um verdadeiro cassino global, e, como em todas situações que envolvem jogo, somente os donos das bancas lucram, ou um ou outro afortunado que aposta quantias elevadas e conhecem os mecanismos de burlar o sistema.
Segue-se a esse absoluto descontrole da forma de funcionamento do sistema capitalista, toda uma série de acontecimentos que acompanha um novo modelo posto em prática nas últimas décadas, de maior intensidade nos mecanismos perversos de gerar desigualdades. O vale tudo, causado pela intensidade de um comportamento individualista, gerado pela onda da oportunidade e da competência, consolidada na meritocracia, tornou a sociedade adepta de um comportamento mais frio, pragmático e focada no sucesso a qualquer preço. Os exemplos pinçados numa realidade absolutamente diferente, são apresentados como sinônimo de dedicação e esforço do trabalho e da inteligência.
Antecedeu-se a toda uma nova formulação de comportamentos um receituário ideológico, adredemente vinculado ao caminho para o bem-estar individual e familiar, que se disseminou via ideologia neoliberal, cujos discursos se fundamentava nas questões postas no parágrafo anterior, e se espalhou pela grande mídia e nas igrejas neopentecostais. Nestas, a “teologia da prosperidade” procurou inculcar nos indivíduos a crença secular, pregada por alguns setores do protestantismo, notadamente os de origem estadunidenses, de que pela dedicação à fé e aceitação da ordem, se atingiria o sucesso, sendo este a recompensa da fidelidade como uma resposta divina, a prova de ser Deus fiel a quem lhe é fiel. O oposto às pregações do cristianismo primitivo, surgido como questionador das injustiças, da cobiça e da usura.
Por todos esses anos, deste novo século, escandalosamente acontecia o contrário do que se propagandeava com a globalização. A concentração de riqueza atingiu um patamar escandaloso diante de uma realidade desigual e ampliou-se o fosso entre ricos e pobres. E a pobreza, em larga escala, que se concentrava nos países pobres, espalhou-se pelos países mais desenvolvidos, como consequência do deslocamento de fábricas, a extinção de empregos e o aumento do número de moradores de ruas, ou da favelização.
Embora tenha havido uma pequena recuperação, nos dois últimos anos, ela está longe de representar uma saída para a crise, e em muitos casos, a retomada do nível de empregos está relacionado à busca de novas alternativas individuais, formal ou informal, ou a reabsorção de muitos desempregados em um mercado de trabalho cujo valor da mão de obra decaiu consideravelmente. Boa parte dos que retornaram à atividade laboral, o fizeram em outras funções, sendo forçados a aceitarem salários bem inferiores aos que possuíam anteriormente.
Mas, com a financeirização do sistema capitalista, e uma nova classe de novos ricos decorrente do deslocamento do centro gerador de lucros, já não tanto no setor produtivo, mas principalmente em negócios especulativos do mercado de ações, as condições econômicas acentuaram a concentração de rendas, e quanto mais lucravam, mais essa nova burguesia se tornava insensível e mais gananciosa.
Os Estados tornaram-se, então, reféns de um número cada vez menor de empresas, concentradas em processos inexplicáveis de fusões, consolidando um novo ciclo econômico, baseado nos oligopólios, no poder concentrado de grandes corporações e de poucas famílias de bilionários.
No entanto, isso não seria possível, apesar da violência como essas transformações se deram, principalmente passando por cima das soberanias dos países mais pobres, e agressivamente controlando suas economias, se não houvesse um processo de verdadeira lavagem cerebral nas pessoas, de convencimento sobre o final definitivo da humanidade nas hordas do capitalismo. Todas as armas foram utilizadas para isso, e naqueles países onde as políticas não atendiam a esses interesses houve uma verdadeira guerrilha midiática, a desacreditar outras alternativas que estivessem sendo construídas, fora da ordem estabelecida pelas governanças globais e pelo Consenso de Washington.
Desestabilizar governos que contraditavam essas verdades absolutas neoliberais, passou a ser uma estratégia a substituir as velhas intervenções militares. Os golpes de estado tornaram-se legitimados pela multidão cega, posta nas ruas pelas propagandas das corporações midiáticas, e, absolutamente alienadas quanto à realidade de uma crise sistêmica e mundial. A cegueira ideológica e o efeito manada constituiu-se em uma nova arma, para impedir que, mesmo em crise, a hegemonia do poder central neoliberal fosse ameaçada. Muito embora esteja em franca decadência, este centro, os EUA, mantém-se ainda como uma forte economia e, principalmente, com um poder bélico inatacável, a não ser por tresloucados militantes sectários a buscarem o paraíso para seus atos de “coragem” explosivas.
Mas, como na expectativa de Marx, considerando-se uma realidade em crise e a ampliação de suas contradições, não pode ser menosprezada a possibilidade de que elas ocorram internamente. Isso já é possível de se verificar no caos em que vivem algumas dessas sociedades, seja pelo constante medo de ações terroristas, ou pelas próprias loucuras gestadas internamente em ações que podem transformar alguns desses países, em especial os EUA, em ambientes de permanente terror, decorrente de confrontos alimentados pela luta de classes e pelo grau crescente de intolerância étnica, de cor, às escolhas sexuais e aos estrangeiros.
Contudo, se essa é uma possibilidade a estremecer os alicerces de alguns desses países, por outro lado a crise desperta antigas rixas, na disputa por espaços que garantam a hegemonia em um tempo fragmentado e de poderes cambaleantes. O temor histórico do avanço do urso em direção à Europa, algo já temido desde o começo dos séculos XX e assim alertado por um dos proeminentes geopolíticos britânicos, Sir Halford Mackinder, reacende agora com uma força ameaçadora, diante das estrepolias estratégicas de um ex integrante do serviço secreto soviético, a temida KGB onde chegou até o posto de coronel: Vladimir Putin.
Como a reportar os períodos que antecederam as duas grandes guerras mundiais, e, sintomaticamente, esses períodos foram marcados por crises econômicas estruturais (1905-1914 e 1930-1937). A primeira de característica expansionista, uma crise gerada pelo crescimento do capitalismo e pela disputa dos grandes impérios pelo mercado mundial. A segunda, de caráter recessivo, que irrompeu numa terrível depressão que afetou quase de morte o sistema capitalista.
Desta feita, diante de uma crise que já se prolonga há mais de uma década, velhas rivalidades retornam, mas o significado dessas estratégias é o mesmo, despertar o caráter destrutivo do sistema, identificado pela economista Naomi Klein, como de “Capitalismo de desastre”, pelo qual as guerras e as catástrofes são colocadas na conta de ótimas oportunidades para reconstruir um mundo devastado e recuperar economias centrais.
Enquanto isso se dissemina pela sociedade os sintomas de um ambiente criado ao sabor dessas grandes disputas, dos podres poderes, das formas de desenvolvimento que definem as relações sociais. Momentos de crises são oportunos para o surgimento de comportamentos radicalizados, a defender ou a defenestrar os governos que comandam os estados. Porque, tal qual argumenta a historiadora estadunidense, Ellen Wood, a burguesia conseguiu gerar uma cultura em meio ao povo que a torna onipresente nos momentos de crises. O povo, em sua revolta contra as condições que o mantém refém de economias recessivas, ou diante de situações em que lhe é negado a mínima dignidade de sobrevivência, com desemprego crescente, ataca de forma violenta os que governam, e o Estado, mas não se volta com a mesma virulência contra a classe que detém o controle da riqueza, dos meios de produção. Falta-lhe consciência para transformar um sentimento de ódio pelas injustiças, em razões que transforme as estruturas sociais.
Violência em larga escala, comportamentos intolerantes contra as liberdades individuais, tentativa de controle dos desejos, criminalidade tratada somente como desvio de caráter e não como uma patologia social, disrupção familiar, ódio étnico e preconceito contra as diferenças, de sexo, cor e formas do corpo, definido por valores e padrões estabelecidos pela classe dominante, tudo isso se choca e explode em tempos de crise.
Sem enxergar alternativas para um sistema cambaleante o sintoma invisível é o de uma longa transição, em que o novo demora a despontar, e o velho, já desgastado, joga as últimas cartadas num jogo viciado, enxergando no caos as poucas possibilidades de reestruturação. Como há milênios, nas longas guerras em que os que morrem são os que não possuem as riquezas, constroem-se impasses a fim de preservar privilégios, ou de ampliá-los, ao fim de destruições perversas.
Mas seja pela guerra, ou pela própria forma injusta de concentrar riquezas e distribuir miséria, a morte é uma frequentadora contumaz nos territórios pobres e periféricos. E, no entanto, como a cegar os que são induzidos ideologicamente a acreditar na crença da fatalidade capitalista, o próprio povo anseia por se ver protegido pela segurança armada a serviço da classe que lhe oprime. E este mesmo povo se distingue esculhambando-se enquanto pobres, e entronizando por meio de deslumbramentos doentios, os que despontam e enriquecem, pelos mecanismos ditos “meritocráticos”. É como concordar com um veredito decidido antes de qualquer crime, pois que senão pela recusa da própria existência, negada como real, e pela aceitação virtual de uma improvável ascensão de uma pirâmide cujo topo se limita pela riqueza, mas, principalmente, pela origem de classe.
Este mundo maravilhoso, assim cantado na magnífica voz de Louis Armstrong, “com o brilho abençoado do dia, e a escuridão sagrada da noite”, só garantirá a efetiva liberdade quando a opressão de classe desaparecer, e as desigualdades abissais não sirvam para definir critérios de caráter entre as pessoas. Só assim podemos acreditar que os bebês que vão nascer, “irão aprender muito mais do que eu jamais vou saber”. E esse algo mais, talvez seja a velha capacidade de poder dividir o que produzimos, mediante o velho altruísmo, qualidade que nos fez sobreviver em nosso processo de adaptação à ambientes inóspitos, e garantiu a sobrevivência, até aqui, da raça humana. Assim, una, etnicamente diversa, somente vista como várias pela capacidade adquirida em sistemas perversos, que impõe a poucos o controle da vida de muitos, tornando-os diferentes embora iguais.
Quando superarmos os milênios que nos separaram da nossa capacidade altruística, voltaremos a ser humanos, e a vivermos no mundo cantado por Armstrong. Aí poderemos dizer: “What a wonderful world”.
Isto é possível!


REFERÊNCIAS:
ARMSTRONG, Louis. What a wonderful world. https://www.youtube.com/watch?v=oGmRKWJdwBc
ARRIGUI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2012
HOBSBAWM, Eric. O breve século XX. São Paulo: Cia. das Letras, 2008
MACKINDER, Halford. O Pivô geográfico da história. São Paulo: Geousp, Espaço e tempo, nº 29, pág. 87-100, 2011.
SANTOS, Milton Santos. Por uma Outra Globalização. Rio de Janeiro: Record, 2011.
PIKETTI, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014
WOOD, Ellen Meiksins. O Império do Capital. São Paulo: Boitempo Edtorial, 2014.
http://www.defesanet.com.br/otan/noticia/22863/OTAN-determina-reforco-militar-no-leste/
http://informacionaldesnudo.com/mapa-cuales-son-los-paises-mas-endeudados-del-mundo/

* Este artigo foi publicado em julho de 2016 com o título: "Cronicas de um mundo em transe - Atingimos o auge das contradições?"

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

MINHA VIDA SE COMPLETA NA UFG. SIGO POR AQUI, AINDA EM BUSCA DA UTOPIA

Eduardo Galeano, historiador-poeta, referência para muitos de minha época de estudante, principalmente devido ao livro “As Veias Abertas da América Latina”, gostava de citar essa frase: “A utopia está lá no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se afasta dez passos. Quanto mais eu buscá-la, menos eu a encontrarei, porque ela vai se afastando à medida em que me aproximo. Então para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso, para nos fazer caminhar”.
Resolvi escrever esse texto como uma forma de repensar o meu passado, minha trajetória na Universidade, como um instrumento a introduzir para boa parte daqueles que o lerem, o que desejo encarar para os anos que virão. O que convencionamos chamar de futuro. E, assim, seguirei caminhando, olhando a utopia no horizonte. Luto para não perdê-la de vista. Não perderei. Não a perdi, mesmo nos momentos mais difíceis de minha vida, quando tive que lidar com a morte de minha querida filha.
Já escrevi neste Blog, e também nas páginas do livro “Depois que você partiu”, o quanto a UFG foi importante para mim naqueles momentos. Mas também em muitos outros. Aqui construí meus sonhos, forjei minha ideologia, construí um caminho de luta e esperança e finquei meus pés com firmeza, consciente de que minha história estava escrita nas páginas dessa universidade. Aqui percorri meus anos de estudante de graduação, pós-graduação, de professor, de militância estudantil, sindical e de representação da comunidade científica. Somando-se cada um desses períodos que dediquei à Universidade me deparo com um tempo considerável: 34 anos. Somente por dois anos, desde 1980, não estive presente nesses espaços que me fez ser o que sou. Em 1989 fui para Araguaína, onde por quase dois anos lecionei na Faculdade de Ciências Humanas e Letras (FACILA), um dos embriões da atual Universidade Federal do Tocantins. Mas em 1990 retornei, para fazer um mestrado, que concluí em 1994, com defesa em março de 1995. No mesmo ano entrei como professor substituto no curso de Geografia, no antigo IQG, e fui efetivado no ano seguinte.

MINHA INICIALIZAÇÃO. AS PORTAS SE ABRIRAM, E EU ENTREI.

Mas o que se conta dessa história, se inicia bem antes, no final dos anos 1970, mais precisamente em 1979. Ano em que, politicamente, o nosso país dava um passo significativo para a redemocratização, com o retorno ao país de dezenas de militantes políticos que estavam exilados pelo enfrentamento com a ditadura militar, outros libertados da condição de presos políticos, além daqueles que saíam das sombras, pois tinham seus nomes nas listas de procurados pelos agentes do sistema de informação e repressão. 1979 foi o ano da anistia. Mas foi também o ano em que fui aprovado no vestibular de história da UFG.
Depois de tentar acesso ao curso de Jornalismo, uma paixão que me acompanhava pela facilidade com que sempre lidei com a escrita e pela leitura, terminei por sucumbir a outra paixão, a história. As dificuldades eram grandes para quem não frequentava a escola por três anos, devido à necessidade de trabalhar. O que me ajudou nessa passagem foi justamente a redação, que passou a ser exigida no vestibular exatamente naquele ano. Em 1980, portanto, eu entrava na História. Naturalmente não aquela reivindicada por Getúlio Vargas, mas sim, no curso de História, e me credenciava como o primeiro da família a ter acesso ao ensino superior. Minha história na Universidade Federal de Goiás, começa, assim, no ano de 1980, precisamente no mês de março, quando assisti orgulhosamente a minha primeira aula. Bem se vê, eu teria um longo caminho pela frente, numa ligação endógena com essa instituição que passou a completar a minha vida.
Manifestação pela Anistia
Eu vivia numa quase absoluta alienação sobre o que acontecia no país, e me lembro de somente ter feito uma ação que me ligou àquele momento tenso da política brasileira, a qual eu desconhecia. Foi o fato de ter posto o meu nome num abaixo assinado que era colhido da população que transitava pela praça Bandeirantes. Passando por ali, fui convencido da importância daquele ato. Mas o conhecimento do que por aqui acontecia naqueles tempos só fui saber depois dos primeiros meses como estudante de História. Meu engajamento foi imediato, e logo me envolvi com o Centro Acadêmico, sendo eleito no segundo semestre daquele ano como diretor de Imprensa e Divulgação.
Mas nem tudo era desconhecido para mim, em termos de realidade social. Eu já carregava comigo nas veias a herança de ser filho de um ex-vereador, que se elegeu por quatro vezes na cidade de Alagoinhas, na Bahia e foi preso com o golpe militar de 1964, abandonando a partir daí a política. Havia, contudo, algo mais, que vai ser definidor de minhas escolhas ideológicas na universidade. Meu engajamento com a igreja, por meio das comunidades eclesiais de base e do trabalho com a juventude católica, me deu a possibilidade de adquirir uma sensibilidade diante das desigualdades sociais e de conhecer, por meio da Teologia da Libertação, a força das ideias revolucionárias. Assim tive minha iniciação nas ideias marxistas, mas com uma forte convicção idealista. “O Caminhar da Igreja com os Oprimidos”, livro de Leonardo Boff, foi, por assim dizer, o meu catecismo, e pelo qual adquiri o entendimento necessário para um engajamento nas lutas contra as injustiças e no conhecimento da complexidade da sociedade, com o conhecimento de que esta se estrutura por meio de classes sociais que se antagonizam e que dá à uma minoria a condição de governar o mundo e se impor sobre os pobres. Daí para meu envolvimento com o marxismo foi um tempo bem curto, e aconteceu naquele mesmo ano de 1980.
Manifestação e prisões em
07/09/1981 em meio a uma
greve nacional dos estudantes.
Comecei, portanto, a minha história no movimento estudantil nesse ano, e no ano seguinte organizamos na UFG, em sintonia com a UNE (União Nacional dos Estudantes), um movimento que irrompeu por todo o país, culminando na maior greve geral da história das lutas estudantis. Todas as universidades brasileiras aderiram à greve, e a UFG, após dezenas de assembleias por cursos e unidades, e uma longa e profunda discussão, deflagrou a paralisação em uma assembleia de forma avassaladora, com mais de dois mil estudantes, quase unanimemente apoiando. Por mais de cem dias sacudimos o país no segundo semestre daquele ano. No dia sete de setembro, quando decidimos realizar um ato ao final do desfile do sete de setembro e no momento da agitação por meio de palavras de ordem para sensibilizar a população que estava presente, fui detido juntamente com outros colegas e jogado no fundo de um camburão, uma daquelas velhas Veraneios pretas de tristes lembranças. Levado para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) fui fichado e em seguida encaminhado à Polícia Federal, para ser indiciado por atos “subversivos” e enquadrado na famigerada Lei de Segurança Nacional. Embora em seus últimos suspiros, a ditadura militar mantinha sua prática costumeira repressora, aliada aqui a um governo biônico, sem representatividade popular, posto que ainda não tínhamos retomado o direito livre ao voto. O governo de Goiás era comandado por Ary Valadão, do PDS, partido que sucedeu a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), da base de sustentação da ditadura militar.
Os anos 80 foram de intensas mobilizações sociais, estudantis, operárias, dos professores, e de diversos segmentos que voltaram a se organizar e fortalecer suas lutas. Após as eleições de 1982, dando início ao processo de redemocratização brasileira, mas ainda sob a tutela dos militares e sem o direito de escolher o presidente, deu-se início a uma grande mobilização popular que culminaria em 1984 nos grandiosos comícios em defesa das eleições diretas para presidente da República.
Paralelo a isso a organização estudantil se fortalecia a partir de suas bases, os centros acadêmicos, os DCE, as UEE sendo reconstruídas, e a UNE que voltou com força em 1979. Depois de entrar no movimento estudantil, com o batismo feito no Congresso da UNE na cidade de Piracicaba em 1980, e nesse mesmo ano ter me tornado diretor do Centro Acadêmico, continuei por mais dois anos me destacando no curso de História, até me tornar presidente nos anos de 1982/1983.
Estudantes pulam catraca de ônibus,
num movimento que durou meses
Nessa mesma época pudemos participar de um dos maiores movimentos da história dos estudantes goianos. Por cerca de três meses levamos adiante um movimento conhecido por “pula catraca”, quando nos rebelamos contra o aumento das passagens dos ônibus coletivos, ao mesmo tempo em que protestávamos contra as péssimas qualidades do serviço. Como de imediato conseguimos um forte apoio dos estudantes, em um momento que as entidades estavam bem fortalecidas, juntamos essas reivindicações com outra maior. Passamos a exigir o meio-passe estudantil. Foi uma luta espetacular, com mobilizações impressionantes, e com grande impacto na sociedade. Embora a ditadura militar ainda não tivesse sido derrotada, aqui em Goiás o governo que resistia ao diálogo conosco e evitava ceder na concessão da meia passagem era o governo eleito na primeira eleição direta para governadores. Íris Rezende, eleito pelo PMDB, demorou a aceitar nossas reivindicações, além de reprimir nossa luta de forma implacável. Mas nosso movimento tornou-se cada vez mais forte, até que após uma grande manifestação onde mais de uma centena de ônibus foi depredada depois que fechamos todo o entorno da praça Cívica, conseguimos abrir os canais de negociações e firmar um pacto com o governo, até que fossem feitos os estudos sobre os impactos que seriam causados pela concessão dos descontos. Pouco tempo depois foi anunciado um desconto nas passagens para os estudantes, ainda não era o meio-passe, mas um terço do valor normal. As entidades aceitaram a proposta, mas continuaram exigindo o meio-passe. Alguns anos depois isso foi concretizado, a partir de um projeto de lei apresentado pela vereadora Denise Carvalho, que havia sido presidente do DCE, um projeto para a concessão do meio-passe.
Luta pelo meio passe na década de 1980.
Manifestação no Campus II
Depois desse movimento fui incorporar a diretoria do DCE. Não foi um processo eleitoral, meu nome foi indicado pelo Conselho de Entidades de Base, porque uma parte da diretoria renunciou, por discordar da pressão que fazíamos sobre o governo do Estado no movimento pelo meio-passe. Depois do DCE, onde fui diretor de Imprensa e Divulgação, assumi um cargo na diretoria da União Estadual dos Estudantes, nessa mesma função. Logo em seguida, no ano de 1984, fui indicado para a diretoria da União Nacional dos Estudantes, e me tornei vice-presidente da região Centro-Oeste entre os anos de 1984 a 1986. Naquela época a gestão da UNE era de um ano, mas como decorrência das mobilizações para aprovar a emenda das eleições diretas, foi aprovada no conselho da entidade a prorrogação do mandato. Com isso, pude participar como diretor da UNE de dois momentos históricos: a campanha pelas eleições diretas, para aprovar a emenda Dante de Oliveira e, logo em seguida, com a derrota dessa votação no Congresso Nacional, a campanha para eleição de Tancredo Neves, com o intuito de derrotar o candidato da ditadura militar, Paulo Maluf. Uma tragédia no meio do caminho, para demonstrar o quanto é difícil conquistar a democracia no Brasil, levou à morte o presidente eleito Tancredo Neves, e quis o destino que em seu lugar fosse empossado José Sarney, que formara uma dissidência no partido do governo, inclusive criando outra legenda (Partido da Frente Liberal), e que assim se tornara vice-presidente.
Membros da diretoria da UNE
Gestões 1983/1984 e 1984/1986
O governo Sarney nascia sob um manto enorme de desconfiança. Mas exatamente por isso ele precisava transitar entre todos os setores que apoiaram a frente criada para derrotar a ditadura militar. Por essa razão, seu governo foi forçado a abrir concessões, de forma a atender às pressões que se faziam de todos os lados. Em 1985 a UNE conseguiu a sua legalização, depois de uma campanha intensa e da aprovação de projeto de lei na Câmara Federal, de autoria do deputado goiano, Aldo Arantes, ele também ex-presidente da UNE na década de 1960. Eu acompanhei toda a tramitação do projeto, como vice-presidente da UNE, assim como participei da sanção do projeto no Palácio do Planalto, em um momento histórico das lutas estudantis. Uma assembleia constituinte foi aprovada e sua eleição e realização tornaram-se fundamental para a definição dos novos rumos da democracia brasileira. Muito embora não fosse a Constituição desejada, os avanços foram significativos, e em 1988 ela foi promulgada, depois de intensos debates e embates, explicitados pelo acirramento da luta de classes, principalmente devido às discussões sobre a Reforma Agrária.

COMO MESTRE: O PRAZER, A SATISFAÇÃO E OS DISSABORES DA VIDA

Em 1988 passei a me dedicar a finalizar o meu curso. Já estava por quase uma década envolvido com o movimento estudantil e por esse tempo pude participar de diversos momentos importantes na história da UFG, como o retorno à democracia com a escolha de reitor feita com a participação da comunidade universitária, e não mais indicada pelo ministro da Educação, com a reconstrução das entidades representativas de estudantes, técnicos e professores, e com a estatuinte universitária, que nos levou a realizar diversas discussões sobre a necessidade de transformações estruturais e acadêmicas em nossa universidade.
Logo após minha formatura decidi que iria ser docente de ensino superior. A oportunidade apareceu bem distante, na longínqua Araguaína, ainda então como parte do estado de Goiás, mas logo viraria município do novo estado do Tocantins. E isso aconteceu quase que ao mesmo tempo da minha chegada para ser professor na Faculdade daquela cidade. A separação do estado de Goiás, e a criação do novo estado, ocorreu junto com a promulgação da Constituição de 1988. Em 1989 me tornei professor na FACILA, mas não por muito tempo, questões políticas me impediram de continuar. Fui solidário com duas colegas que estavam sendo perseguidas pela direção da Faculdade.
Após ter me desligado da Faculdade, resolvi retornar à Goiânia. Mas desta vez não retornei sozinho. Quis o destino que aparecesse uma forte atração entre mim e uma aluna, e isso se transformou em namoro e em maio de 1990 em casamento. Essa relação dura há 26 anos, surgindo dois filhos para completar nossas vidas: Iago, nascido em maio de 1993, quando eu estava fazendo o meu mestrado; e Ana Carolina, nascida em 1997, um ano depois que me tornei professor efetivo da UFG. Meu filho seguiu os meus passos, tornou-se estudante de História e logo em seguida foi eleito diretor do DCE e depois da UNE, assumindo atualmente a diretoria de Assuntos Institucionais. Mas o destino foi cruel conosco. Ana Carolina faleceu em 2007, aos dez anos de idade, e sua morte trouxe não somente um vazio em nossas vidas, como também nos jogou em uma profunda depressão, vencida com muito esforço e superação, apoiado em solidariedade de amigos e parentes, mas que me deixou afastado por um tempo. Por alguns anos lutei contra a dor mais terrível que pode nos atingir, a de perder uma filha.
Em 2007 eu havia também saído da direção da Adufg. Tinha alguns planos, e um projeto de doutorado preparado. Foi impossível pensar em qualquer outra coisa, minha luta era comigo mesmo, suportar um sofrimento imensurável. Escrever se tornou para mim uma catarse, constituiu-se também em uma terapia. Escrevi diversas crônicas e nelas procurei expressar todo o meu sentimento, além de relembrar de momentos e fatos marcantes com minha filha. Essas crônicas estão no livro que publiquei, “Depois que você partiu”. Dessa forma também surgiu o Blog Gramática do Mundo, e por ele continuei a expressar meus sentimentos em diversos outras crônicas, acrescentadas no livro em sua segunda edição. E o blog seguiu em frente, abordando além de conteúdos intimistas, também textos sobre geopolítica, política e fatos do cotidiano. Aos poucos, assim, fui me reencontrando com meu passado e acumulando forças para encarar o presente, agora sem minha filha. Mas ela seguia sempre ao meu lado, e continua a seguir.
Primeira edição, do livro sobre
a Guerrilha do Araguaia,
publicada pela editora da UFG
O ano do nascimento da Carol, foi também do lançamento de meu primeiro livro sobre a Guerrilha do Araguaia. Em 1995 eu defendi minha dissertação de mestrado, obtendo nota máxima, numa época em que ainda éramos avaliados por nota na pós-graduação. Logo a encaminhei para a editora da UFG, por recomendação da própria banca, e acrescentei um posfácio complementando o trabalho, pois ainda retornei à região da minha pesquisa quando o livro já estava no prelo e já tinha sido aprovado para publicação. “Guerrilha do Araguaia: A esquerda em armas – 1972-1975” se constituiu no primeiro livro originado de uma pesquisa acadêmica, sobre um fato por muito tempo omitido da história. Tornei-me, assim, referencia no assunto. Quando me senti em condições de retomar minhas atividades acadêmicas, em toda a sua integridade, e com o apoio de muitos colegas de minha unidade na UFG, resolvi fazer meu doutorado. Embora inicialmente tivesse mantido o mesmo projeto, já preparado anteriormente à morte de minha filha, o envolvimento com a temática da Guerrilha do Araguaia me forçou a substituí-lo e a prosseguir na pesquisa daquele fato que já ganhava uma enorme dimensão, inclusive com a busca dos corpos dos guerrilheiros que haviam sido presos, assassinados e seus corpos escondidos. Minha presença nas expedições que buscavam esses vestígios me envolviam e isso me fez apresentar um outro projeto. Assim, pude estudar as consequências da guerrilha, na região em que o conflito aconteceu, e definir minha tese de doutorado que consegui defender em dezembro de 2013. No ano seguinte foi publicado o segundo livro sobre a guerrilha, agora como resultado da defesa da minha tese de doutorado: “Araguaia: Depois da guerrilha, outra guerra – 1975-2000. A luta pela terra no Sul do Pará, impregnada pela Ideologia da Segurança Nacional”.
Executiva Nacional dos Grupos PET
em reunião com o ministro
 Cristovam Buarque
Mas meu envolvimento, anterior à esse período, não se limitou à atuação sindical, em que por duas vezes fui presidente da Adufg. Depois de minha primeira passagem pela Adufg, e também tendo sido coordenador de curso, assumi a Tutoria do Grupo PET da Geografia. Mesmo ainda na condição de Co-Tutor, conduzi o grupo na substituição da Tutora, que assumira a direção da nossa unidade. Meu envolvimento, como sempre, foi marcado por uma dedicação a esse programa para além de nossa realidade local. Logo me tornei um dos tutores mais presentes nas lutas para evitar que esse programa fosse extinto, como se pretendia na época. Entrei para a Executiva Nacional dos Grupos PET e, com muita luta, conseguimos barrar um retrocesso que estava quase iminente e, como resultado, o programa saiu fortalecido, embora ainda precise de muito aprimoramento e de uma política de expansão, difícil de ser executada nesse momento com as mudanças conservadoras em curso e a redução dos investimentos.

A LUTA EM DEFESA DA C&T: A SBPC E A EXPERIÊNCIA NO ESTADO

Por essa mesma época (2002) assumi a Secretaria Regional da SBPC pela primeira vez, em evento realizado na UFG. Naquele momento já estava em curso uma campanha liderada pela ADUFG, que visava pressionar o governo do Estado a criar a Fundação de Amparo a Pesquisa de Goiás, e essa se tornou também uma bandeira que incorporamos no período em que estivemos à frente da Regional da SBPC.
Como consequência dessa atuação, pelo destaque também conseguido com a visibilidade de todo o movimento em prol de uma instituição estatal que fomentasse a pesquisa, fui convidado pela então Secretária de Ciência e Tecnologia, Denise Carvalho, para assumir a Superintendência de Apoio e Fomento à Pesquisa, uma das mais importantes superintendências daquela pasta, responsável por definir uma política para a área, no tocante aos investimentos em pesquisa e inovação. Mas fomos mais além, e nos debruçamos sobre a necessidade de compreender as potencialidades do Estado em arranjos produtivos locais, e demos outra dimensão ao trabalho de identificar e fortalecer as cadeias produtivas, envolvendo nesse trabalho outras secretarias do Estado. Um dos resultados mais importante de nosso esforço foi a criação da cadeia produtiva do leite, “Arranjo lácteo da microrregião de São Luís de Montes Belos”, dentro do “programa 1088 de fomento e apoio à pesquisa e aos projetos de desenvolvimento em Arranjos Produtivos Locais, Plataformas Tecnológicas e Agropolo”. Isso gerou também, por meio da Universidade Estadual de Goiás, a criação de um curso de graduação de Técnicos em Laticínios, tornando essa região referencia na produção leiteira.
Na Superintendência da SecTec-GO, prosseguimos na luta pela criação da Fundação de Amparo à Pesquisa, colocada também como uma das principais bandeiras da Secretaria, em seu planejamento. Apesar de ficar pouco tempo, e a minha saída se deu por uma escolha pessoal, essa experiência foi fundamental para compreendermos nossa potencialidade, e a necessidade de ocuparmos espaços institucionais a fim de vermos nossos melhores projetos na defesa da educação, da ciência e tecnologia, serem implantados.
Retornei à Universidade, mas me mantive presente nas lutas, principalmente na defesa da Fapeg. Até porque, enquanto superintendente, eu cumpri uma função que deveria ser atribuída à uma fundação de amparo à pesquisa, como já existia na maioria dos Estados. Tanto que, quando enfim a Fundação foi criada, após cerca de cinco anos de lutas, a superintendência de fomento e apoio à pesquisa deixou de existir no organograma da Secretaria. Mas houve um certo maquiavelismo na denominação encontrada para ela. Muito embora feita por um governo do qual eu havia participado, no segundo mandato do governador Marconi Perilo, e já na gestão da professora Raquel Teixeira, com quem sempre estabeleci boas relações e a quem respeito, entendo que a alteração do nome pelo qual tanto lutamos, embora não fosse a questão principal, terminou por diminuir uma luta que durou meia década, no esforço para que Goiás saísse da condição de um dos poucos estados que não possuíam uma fundação de amparo á pesquisa.
FAPEGO: era esse o nome que criamos em nossos abaixo-assinados, apoiados pela Adufg e pela SBPC-GO. Mas, ao ter seu projeto de criação aprovado, virou FAPEG. Tudo bem que foi criada, e isso é o mais relevante, mas todos os demais órgãos estaduais sempre contiveram a sigla GO em seu final, não se entende, portanto, a mudança. Isso, sem dúvida deu a impressão de ser outra entidade e não aquela pela qual tanto lutamos. Mas é inegável, aos que não negam a história, o papel que tivemos nessa conquista, e, modestamente, me incluo nesse esforço que significou um enorme avanço para novos investimentos em ciência, pesquisa e inovação em nosso estado. Torna-se, contudo, imprescindível lutar para aumentar o percentual orçamentário que lhe é destinado, e, o mais importante, que esses recursos sejam repassados em forma de duodécimos, automaticamente a cada mês, a fim de impedir que esses sofram contingenciamentos sempre que as dificuldades financeiras afetarem os gastos do Estado.

O RETORNO À ADUFG: DAS LUTAS SINDICAIS À DOR DE PERDER UMA FILHA

Caravana à Brasília - luta pela aprovação
de projeto que reajustava salários 2006
Em 2005, mesmo ano da criação da Fundação, retornei à direção do Sindicato. E, mais uma vez como presidente da Adufg pudemos ampliar a influência dessa entidade. Realizamos grandes mobilizações e as mais importantes, que ocorriam anualmente, foram dentro da Mostra Multicultural Milton Santos, criada em gestões anteriores. Mantivemos essas atividades, porque representavam uma forte mobilização na universidade, saindo do perfil dos eventos tradicionalmente realizados em nosso ambiente. Foi também um período de intensas discussões sobre o processo de ampliação do ensino superior, consolidado em abril de 2007, conhecido como REUNI. Participamos ativamente dessas discussões, e nos debates que diziam respeito aos interesses dos professores, num processo de discussão de uma reforma universitária que pudesse acompanhar a expansão do ensino superior. Nossa preocupação era que os professores não ficassem prejudicados com sobrecargas de trabalhos, e essa foi nossa luta por todo o processo de discussão. Não fomos contra a reforma nem a expansão, mas adotamos uma posição crítica, por entendermos que sobrecarregaria, de alguma forma, os professores. Mas conseguimos também avanços substanciais nas melhorias salariais, embora não as desejadas, que, nos anos seguinte foram sendo consolidadas com alguns avanços. Algo que nos tempos atuais e vindouros se apresenta como de arrocho e retrocessos, o que imporá a necessidade de retomada de muitas discussões e pressões para garantirmos nossas conquistas.
Como já citei anteriormente, minha saída da Adufg veio acompanhada de uma tragédia pessoal. Já no mês de junho daquele fatídico ano, 2007, nos vimos apreensivos com uma internação às pressas de minha filha, Ana Carolina, de dez anos de idade. Por dez dias de internação estivemos sob tensão, sem que um diagnóstico preciso tivesse identificado sua doença, embora, mal preparados, alguns médicos nos faziam acreditar em virose ou pneumonia. Sua recuperação foi lenta e cercada de preocupação e acompanhamento médico. Sua fragilidade, embora não fosse visível aparecia em situações estranhas e nos fazia às vezes pensar em alguma coisa pior. Quando um abatimento tomou conta de seu corpo, no mês de dezembro daquele ano, e tivemos que correr atrás de algum especialista que identificasse o problema, o tempo encurtou para sua vida. Rapidamente foi necessário interná-la, e três dias depois ela entrou numa UTI para não mais sair com vida. Foi o tempo em que o diagnóstico identificou uma leucemia, de tipo raro para criança, e por isso agiu de forma fulminante.
Foto tirada na sede da Adufg
2007.
Não há força positiva no mundo capaz de manter em pé um pai ou mãe que perde um filho ou filha. Reagimos de forma diferente, pela característica de cada um, mas o baque é muito grande, e a depressão um caminho quase que natural. Senti o golpe muito fortemente, como se uma parte de mim tivesse sido extraída, e recompor a vida demandou tempo, psicanálise, solidariedade e muita amizade. Demorei a me reerguer e praticamente por cinco anos me afastei de outras atividades que não fosse a sala de aula, que me confortava, além das viagens que me distraía. Aos poucos, depois de escrever um livro para ela e criar um Blog pra me aliviar das tensões, fui me reencontrando. Fortaleci-me com o doutorado, a publicação de outro livro e a sensação de que a vida, em sua dinâmica natural, nos coloca em desafios permanentes, e no confronto com a morte nos permite compreender que há algo que nos move para frente: ela própria, a vida. Para continuá-la devemos ter forças para superar tais adversidades e seguir em frente. Por meio de uma psicanalista compreendi que o luto não demora somente um ano, como tradicionalmente e culturalmente aprendemos desde cedo, mas que eu precisaria lidar com a perda de minha filha de tal maneira que eu pudesse sentir não mais sua ausência, mas sempre a sua presença permanentemente comigo. O período em que me abstive de participar de quaisquer atividades e isso quebrou de certa forma uma característica de minha presença na universidade, seguia essa compreensão da psicanálise, e se confirmou com o tempo. A dor, o sentimento de tristeza por perder uma filha, as saudades, isso sempre nos acompanha, intermitentemente. Mas aprendemos a conviver com uma realidade, que é insofismável, já não a tínhamos em vida. Passamos a tê-la sempre, em nossas lembranças, e a suportar e superar tamanho infortúnio.
Ao mesmo tempo, meu filho seguia um rumo parecido com o meu, como a alimentar meu orgulho de pai e a vontade de viver e de me ver nele. Tendo estudado por todo o tempo no Cepae-UFG no primeiro processo seletivo entrou na UFG, no curso de História. Logo se destacou como um jovem aguerrido e dedicado à leitura, e entrou no Centro Acadêmico e em seguida no Diretório Central dos Estudantes. Em pouco tempo chegou à União Nacional dos Estudantes, e atualmente é diretor de Assuntos Institucionais da entidade e está matriculado na Universidade de Brasília. Isso aconteceu porque eu jamais o sufoquei por todo esse tempo de sofrimento intenso, sempre mantendo mais do que uma relação de pai e filho, mas de amigos. Isso me fortalecia. Por outro lado, minha esposa, que também passou por todo esse processo, buscou na criação do Instituto Ana Carol, e depois da Cooperativa de Bordadeiras – Bordana, o aconchego por onde suportava as saudades e superava a dor. Duas instituições que surgiram nesse processo e que hoje tem nela o exemplo de superação.
É difícil fazer um relato da minha trajetória, e aqui isso acontece para um fim específico, sem deixar de falar desses momentos, porque eles foram impactantes em minha vida. Mas não me fizeram ficar prostrados, senão por um período em que procurei me refazer de um golpe tão duro. E as decisões que tomo hoje são sempre reforçadas pela crença de que seria isso, certamente, o desejo de minha filha, e, obviamente, a opinião de meu filho também me é absolutamente relevante.
Superei esse intervalo e busquei me recolocar na Universidade, porque essa era também uma necessidade, pois a vida sempre exige de nós um olhar para adiante. E, pela dor, como pela história, o passado nos alimenta, estimula e nos ensina, podendo nos tornar mais fortes, diante de determinadas circunstâncias.

O RETORNO À SECRETARIA REGIONAL DA SBPC E O DOUTORADO

Em 2010 reassumi a Secretaria Regional da SBPC, Goiás, e voltei a me envolver naquilo que sempre marcou a minha trajetória por esses anos, a defesa da Universidade e da Ciência e Tecnologia. Conseguimos realizar atividades importantes, com destaque para o Fórum de Ciência e Tecnologia no Cerrado, em sua 5ª edição, na cidade de Anápolis, numa parceria com a Secretaria Municipal de C&T; e também a publicação de um livro “Cerrados: Perspectivas e olhares”, dentro do Projeto Ciência explicando Ciência.
A decisão de retomar o projeto de Doutorado, e a efetivação desse desafio se concretizou no ano de 2010. Essa era uma necessidade em uma universidade que tornava imperativo o doutoramento. As circunstâncias e as escolhas me fizeram atrasar por esse caminho, mas não a ponto de me fazer desistir. Seria também uma oportunidade de me desafiar e demonstrar cabalmente que meu enfrentamento com a realidade me fortalecera. Dediquei-me por três anos a esse objetivo e consegui atingi-lo reafirmando meu processo de superação e me reforçando para novos desafios. Menos de um ano depois consegui a publicação desse esforço e o livro com a tese que eu defendera foi publicado, numa sequência da história que eu pesquiso desde o meu mestrado.
Em 2014 fui convidado para ser coordenador dos grupos PET da UFG, função ligada à Pró-Reitoria de Graduação. O convite foi um reconhecimento dos tutores dos diversos grupos, do trabalho que desempenhei à frente da Executiva Nacional dos Grupos PET nos tempos mais difíceis desse programa. Aceitei essa responsabilidade, e como sempre faço em tudo que assumo, me dediquei para ir além dos objetivos que a função exigia por aqui. Busquei contatar outros interlocutores das demais universidades onde o programa estava implantado, com o intuito de constituirmos um Fórum dos Interlocutores dos Grupos PET. Mas meu objetivo, e isso eu não havia escondido em nenhum momento, era me tornar mais uma vez, agora em uma nova realidade, tutor do PET da Geografia. Quando isso se vislumbrou e antes que outros projetos pudessem ser concluídos, optei por me afastar da coordenação para concorrer à tutoria.
Homenagem recebida na Câmara
Municipal de Goiânia (entre o reitor
Edward Madureira e o vereador
Fábio Tokarski) *
Mas, particularmente eu não esperava que a disputa despertasse tanto interesse. E isso se demonstrou com uma quantidade inédita de candidatos à tutoria. A partir deste momento me deparei com uma realidade até então não testada. As novas exigências curriculares impunha certos pré-requisitos que desconstrói todo o seu passado, resumindo-o a cinco anos ou menos de existência produtivista. Para quem atingiu o doutoramento tardiamente, isso era fatal. Pouco valia, em meu currículo, toda a experiência que adquiri à frente de uma luta que salvou este programa e já ter composto a executiva nacional dos tutores PET. Importava, fundamentalmente, o que eu produzira nos últimos três anos. Isso não foi suficiente para me qualificar, muito embora, de forma intempestiva e marcado pela insatisfação em ter todo um esforço esquecido, questionei trechos do edital num primeiro momento o que levou ao seu cancelamento. Desisti, no entanto, quando percebi que eu estava diante de uma realidade dura, para quem se dedicou por tantos anos a defender melhorias, avanços e defesa da nossa instituição. O seu tempo, sua experiência, é relegada às calendas gregas, pouco importa dentro de critérios puramente produtivistas. Uma perversão de um modelo de universidade que, embora deva ser absolutamente criteriosa na identificação do esforço do nosso trabalho, renega a importância de se lutar permanentemente pelo seu fortalecimento, e que isso possibilita uma inegável experiência aos que assim se dedicam. E sem esse esforço jamais alcançaríamos nossas conquistas.
Talvez essa seja uma das razões pelas quais muitos dos nossos colegas, mesmo estando no auge de sua capacidade intelectual e com experiência que é essencial para transmitir conhecimentos e influenciar seus alunos, optam por se aposentarem. As pressões que recaem sobre nós cotidianamente, e nos empurram para situações de estresses, terminam fazendo com que percamos competências, numa desvalorização precoce. É preciso que saibamos definir os critérios que identifiquem a nossa capacidade em se envolver naquilo que nos é exigido, do ensino, da pesquisa e da extensão, e que aquilo que fazemos seja devidamente registrado, publicado e publicizado. Mas não devemos descartar competências que acumulam experiências de décadas de contribuição à nossa universidade e na formação de uma geração, inclusive de futuros colegas que ou já estão ao nosso lado, ou nos substituirão. A Universidade deve aprender a valorizar essas experiências, pelo que possuem de capacidade, pelo que já dedicaram à instituição. Aprender a lidar com uma transição entre o velho e o novo é fundamental para reforçarmos naqueles que nos sucedem, valores que incorporam também o sentimento de pertencimento a uma instituição que não é nossa, é da sociedade, mas à qual dedicamos uma vida inteira, e por isso, pelo que construímos aqui, devemos aprender a dar o necessário valor. E o respeito àqueles que lhes legaram conhecimento e princípios fundados na ética e na valorização do saber.
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* A homenagem que recebi, juntamente com outras personalidades, ocorreu, por coincidência, na data em que se completava mais um ano do falecimento de minha filha. Daí a expressão de emoção pelo momento ainda de muita angústia e de saudades.