segunda-feira, 15 de outubro de 2018

DIA DO/A PROFESSOR/A: O QUE TEMOS PRA COMEMORAR? EU VEJO O FUTURO (AMEAÇANDO) REPETIR O PASSADO...


É que vocês não sabem, não o podem saber,
o que é ter olhos num mundo de cegos”.
(José Saramago – Ensaio sobre a cegueira)

1981 - 7 de setembro - greve nacional
dos estudantes
Nesta segunda-feira, dia 15 de outubro,  se comemora o "Dia do/a Professor/a". Não tenho muito o que comemorar. Nos últimos dias tenho vivido tenso, preocupado. Lutei contra a ditadura militar, estive nas ruas e por diversas vezes fui preso, por ousar levantar a voz contra o arbítrio e defender os nossos direitos, inclusive dos professores, em greve históricas que fizemos. Quase sempre éramos reprimidos brutalmente. Fui levado ao DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social) e à Polícia Federal, fichado e ameaçado de ser processado com base na Lei de Segurança Nacional.
Não sei como um vírus foi inoculado nas mentes incautas, a ponto de corrermos o risco de estarmos prestes a revivermos os piores momentos de ataques à liberdade e à democracia, como naqueles terríveis tempos das décadas de 1960, 1970 até meados da década de 1980. Creiam, os estudantes e os professores eram os mais visados. Muitos foram presso, torturados e desapareceram nos porões dos órgãos repressores. A censura era brutal, e quase ninguém sabia o que acontecia no país. Os moradores de ruas eram exterminados, e muitos jogados no oceano.
Como historiador, professor de geopolítica, tento compreender o que pode acontecer a um povo que esquece sua história. Ao ver ex-colegas que comigo militaram naqueles tempos sombrios defender a candidatura de alguém que defende a tortura, e diz que mais de trinta mil deveriam ter sido exterminados, me assusto. Sempre falei sobre como isso aconteceu na Alemanha nazista, na Itália fascista, na Espanha franquista, na ditadura no Chile de Pinochet, no Japão militarista, nas ditaduras que aterrorizaram os que se opunham às suas idéias. É verdade que isso também aconteceu no Camboja de Pol Pot, que se tornou também uma ditadura perversa, embora tivesse surgido com projeto de esquerda. E assim também na Iugoslávia socialista, cujo povo ao se rebelar contra o regime, logo após a morte de Josip Broz Tito, levou aquele país a uma guerra fratricida, que terminou com genocídios e o país dividido em seis partes, hoje seis países (Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Sérvia) e duas províncias autônomas (Kosovo e Vojvodina). A história de Ruanda, e o genocídio de quase um milhão de pessoas da etnia tutsis, eliminados por seus compatriotas hutus, é outro exemplo de como a intolerância e o discurso do ódio jogam uns contra os outros sem que haja alguma razão plausível, a não ser a estupidez e o veneno do ódio.
Sempre falei sobre isso em minhas aulas de Geopolítica. Ver ex-alunos/as, embora poucos, ficar do outro lado da história, e se deixar levar por discursos perversos, racistas, machistas, homofóbicos e antidemocráticos, me faz refletir sobre como temos ao longo dos anos lidado com nossa história. Com a história do mundo. Ao ver amigos e amigas, que por longo tempo marchamos do mesmo lado, combatendo o inimigo perverso que nos tolhia a liberdade e ceifava a nossa  democracia, e que neste momento fecham os olhos e a mente, cedem a pressões de dogmas religiosos e apoiam propostas abjetas, me faz refletir sobre o quanto é tênue a linha entre o que a vida pode nos ensinar e o quão um discurso neofascista pode alienar a ponto de fechar os olhos diante das perversidades e desumanidades que são ditas abertamente.
O Dia do/a professor/a será para mim um momento de reflexão. Talvez um momento para relembrar (e para parafrasear) as palavras de José Saramago, em seu livro “Ensaio sobre a cegueira”. Refletir sobre como foi que essas pessoas cegaram. Não sabemos, mas talvez um dia possamos descobrir a razão. E, se queres que eu diga o que penso, penso que não são cegos. São cegos que vêem. Cegos que, vendo, não veem. Claro que Saramago se refere não à cegueira física, mas a incapacidade de enxergar a realidade em função da alienação e do fundamentalismo religioso.
Não vou me deixar me abater pela cegueira de alguns. Não depois de quase quarenta anos lutando pela democracia. E, neste dia, direi aos meus alunos e alunas que me assistem na disciplina de Geopolítica: se você lê Yves Lacoste, “A geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”; Milton Santos, “Por uma outra globalização”; e Moniz Banderia, “A desordem mundial”, e não compreende o que está em jogo no Brasil e no mundo, então você não entendeu nada do que acontece à sua volta. E, talvez, tenhamos errado na forma de procurar mostrar o que esses livros dizem, como o mundo é de fato, de que ele é muito mais complexo do que nos querem fazer crer (Yves Lacoste).
Como professor, historiador  (mestre), geógrafo (doutor), e com quase 30 anos lidando com contradições para entender as transformações sociais não posso me surpreender com o que está em curso no país. Cabe-me, no entanto, tentar entender como o discurso do ódio se dissemina tão celeremente, e o quão certas pessoas estão contaminadas com um vírus que consome a razão.
Neste dia, o que posso dizer como professor, é que hoje eu transmito o que aprendi e compreendi ao longo de décadas de formação. As ruas me ensinaram quando, como militante, não tive medo de encarar uma ditadura militar. Portanto, não será o neofascismo, nem o medo de um militarismo que pretende degradar a democracia, que me intimidará depois de tudo que aprendi e no que me tornei defendendo a democracia e a liberdade.
Como professor, lhe direi, caso reproduza ou apoie o discurso do ódio, da intolerância, da discriminação e do neofascismo: eu estou do lado certo da história! O tempo dirá isso, como já aconteceu no passado. E não haverá repetição da história. Se acontecer deste projeto nefasto se consolidar, será uma farsa, ou uma tragédia. Certamente, professores como eu, que lutam por uma sociedade onde o saber seja a principal ferramenta a definir nosso futuro, seremos considerados doutrinadores, por trânsfugas ou sectários fundamentalistas, que se consideram modeladores iluminados do jeito das pessoas se comportarem. Seguiremos trabalhando sempre, com a verdade, e essa verdade nos garantirá a liberdade, nem que tenhamos que oferecer nossas vidas, como tantos fizeram no passado para fazer desse país um ambiente de respeito às diversidades e às diferenças.
Seguirei firme, procurando transmitir um saber que possa ser compreendido como necessário à transformação social, ao respeito pelo outro, à aceitação da diversidade, às escolhas individuais, à democracia e à liberdade. Agradeço aos meus melhores alunos e alunas (e são muitos, maioria) que sempre me garantem um feedback, que possibilita meu aprimoramento. E, juntos, podemos cada vez mais tentar entender o que há por trás dos comportamentos humanos, a complexidade da humanidade e aprender sobre qual a melhor atitude e o caminho adequado para atingirmos nossos objetivos comuns. Só não conseguimos, pois não é atribuição nossa, enquanto professor, mudar o caráter das pessoas. Seria bom que fosse, pois “o caráter de um individuo, é o seu destino”.
Um brinde aos que lutam pela liberdade! Um brinde a todos professores e professoras! Um brinde ao professor Haddad! A luta não pode parar! 



terça-feira, 9 de outubro de 2018

O OVO DA SERPENTE – DÉJÀ VU!* - Crônica sobre um Brasil à beira do abismo

Para um historiador nada do que está acontecendo pode surpreender. E não me refiro somente a situação política e social que vive o nosso país. O que acontece no mundo também parece ser incompreensível. Mas para o estudioso da história, da geopolítica ou das ciências sociais, uma análise pelas transformações que ocorreram no passado, em diversas partes, nos dá a indicação de que tudo é possível. Os avanços, as transformações sociais, a intolerância, os retrocessos, as ditaduras, o fascismo, o nazismo. Tudo muda, permanentemente, e em muitos casos, essas mudanças carregam traços do passado, ainda latente e de muitas feridas não cicatrizadas.
Mas quero me ater ao Brasil, nesse momento tenso em que estamos passando. Sempre tivemos como característica uma sociedade muito conservadora. Nos costumes, nos valores, na maneira de encarar as mudanças de comportamentos e na dificuldade de aceitar as transformações que se contrapõem a dogmas seculares, e até mesmo milenares. Por certo tempo avançamos em direção a ideias progressistas, e certamente isso se deveu porque as pessoas sentiram que o rumo que o país estava tomando, no final do século passado, era terrivelmente prejudicial para si e também para a imensa maioria da população desse país. Assim, apostaram em um novo projeto político, bem na contramão desses valores.
De lá pra cá muita coisa mudou. E não foi somente devido aos erros que teriam sido cometidos pelos governos de esquerda. Isso, como a insistência tanto reverberada pela mídia, tem alimentado o discurso fascista. Mas o que mudou é consequência de uma crise que é muito maior. Estamos num processo de transição de um sistema falido, que joga milhões de pessoas no desespero e na miséria, enquanto concentra uma riqueza absurda com 1% da população. A crise econômica de 2008 deixou os Estados em grande parte falidos, porque precisaram salvar os bancos e o sistema financeiro. Mas com poucos recursos no tesouro os Estados não podem adotar políticas sociais e isso acentua as crises, porque se perde um forte agente indutor de investimentos e, por extensão, gerador de empregos. Já os bancos... vão muito bem, e nem sequer se preocupam em salvar os estados. Estes só servem para atender aos seus objetivos. Só não se admite, pela elite, que as políticas do Estado ajudem a população pobre a sair das condições de crise. É claro que isso vai transformar a sociedade num inferno. O problema é que as pessoas olham para o lado errado, e se submetem as informações falsas e deturpadas sobre como deve ser a saída para esses dilemas.
O golpe dado aqui no Brasil, em meio à ambição tresloucada dos derrotados nas eleições de 2014, afundou o país no caos. Três anos de uma perversa recessão, e a ilusão transmitida pela grande mídia que estávamos saindo do buraco, quando na verdade nos afundávamos cada vez mais, deixou os brasileiros baratinados. O que se via, ouvia e se acompanhava pela mídia e redes sociais, era a repetição de acusações e indicações de culpas contra as políticas de governos que ousaram fazer do Estado um estimulador de políticas sociais em benefício dos mais pobres. Bem como inseri-los na fila de ingresso nas universidades públicas.
Paradoxalmente essas camadas beneficiadas por tais ações e políticas passam a combater esses projetos e a defender, de forma inusual, um indivíduo que se contrapõe por essência, e por questões ideológicas, aos mecanismos que foram criados para beneficiá-los. Isso parece loucura, mas não é. As circunstâncias surgidas no contexto da crise, a maneira como a mídia criou um ambiente nefasto, de pessimismo, como condição para desconstruir tudo que havia sido construído de positivo no Brasil desde 2002, a insistente desmoralização dos dirigentes políticos, em especial da presidenta, e a forma como se iniciou um processo de investigação das corrupções dentro da estrutura do Estado como elemento construtor das campanhas eleitorais foi gradativamente criando uma aversão pela política, inicialmente, e pelas principais lideranças de esquerda, algumas envolvidas nas denúncias do uso da máquina pública para manter um projeto de poder. Não importava se esse projeto de Poder visava combater as desigualdades sociais, muito embora não se combatesse a concentração da riqueza. Outro paradoxo.
Mas talvez o elemento mais histriônico, pelo qual se construiu uma chocadeira eletrônica, de onde proliferou uma infinidade de filhotes de fascismo, foram as pautas hipócritas de defesa da família, dos valores tradicionais, se contrapondo às lutas de minorias contra o machismo, a opressão e a intolerância a que sempre foram submetidos. Daí despontou as vozes perversas do fascismo, irritantemente estúpidas e mentirosas, que desvalorizam as pessoas pelas suas opções e escolhas de vida, apregoando para justificar essas posturas bizarras versículos bíblicos e exaltando o nome de Jesus como condutor dessas mais abjetas perversidades humanas. Há uma terrível inversão de valores nesse comportamento, que destrói os melhores valores apregoados pelo cristianismo primitivo.
Mas, nada de novo nisso, é um dejá vu, aconteceu também em 1964, com a famigerada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Não visava liberdade coisa nenhuma. Simplesmente as submissas senhorinhas da classe média alta e da burguesia foram para as ruas com as mesmas pautas intolerantes de hoje, em um contexto diferente, naturalmente. Ali por um golpe militar, agora se vê militares tentando assumir o poder com o mesmo discurso mediante um processo eleitoral, cujo objetivo, se se sagrar vitorioso é a destruição da democracia e das liberdades a muito custo e sacrifício conquistadas, e assim mesmo de forma limitada. Pois é justamente contra a ampliação dessas liberdades que o fascismo se remexeu no  cio.
Qual a diferença nos fatos e estratégias adotadas nesses dois momentos? Primeiro, em 1964, a base da religião que possibilitou esses movimentos foi a igreja católica, naquele momento de forte envolvimento conservador. O que estamos vivendo neste momento, 54 anos depois, é uma estratégia adotada para que se tivesse um movimento favorável, e que não seria um partido político – tanto que para isso usou-se um bastante inexpressivo – foi a conversão de um candidato de extrema-direita, com discurso ditatorial, intolerante, preconceituoso, machista e racista, ao evangelismo neopentecostal, de feição nitidamente ultraconservadora, e isso bem recentemente, em 2016. Em um caso e outro o discurso de intolerância dá também um tom anticristão, e o mesmo caráter reacionário. Mas, naturalmente, há cristãos que resistem a esse engodo. Os que não são alienados e não se submetem à lavagens cerebrais.
Não há cérebros sãos por trás de tudo isso, e se transmite pelo ar um clima insuportável, que se espalha perigosamente e deixa o ambiente cinzento. Há uma frase do poeta Bertold Brecht, forte, mas que sintetiza bem o que significa esse movimento: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. É o que parece nesse momento. Haveremos de combatê-lo, mas conhecemos pela história que isso se dissemina perigosamente, em meio à ignorância, alienação e desespero de uma população que porventura tenha perdido as esperanças. O discurso do ódio, da violência para combater a violência gerada por problemas sociais, a absoluta ausência de preocupação com a harmonia da sociedade, pois desejam eliminar os diferentes, a hipocrisia e as mentiras, encontram nesses ambientes um solo fértil para germinar e crescer. Miremo-nos na história, aprendamos com o passado, ainda é tempo de impedir que entremos na loucura em que se transformaram outras sociedades, em alguns casos gerando genocídios de multidões inocentes. Acreditem que isso possa a vir novamente acontecer, mas tenha uma crença maior, de que é preciso impedir essa possibilidade. A humanidade já extirpou em outros momentos essas serpentes. Elas foram chocadas, estão se reproduzindo, mas serão mais uma vez derrotadas. Esperamos que somente pela via eleitoral.
Por fim, não se trata de querer aplicar esse rótulo de fascista a todos que porventura sejam conservadores. Não pode ser isso. Até porque nem mesmo esses liberais mais moderados escapam desse ódio visceral fascista, e vimos também isso quando se instalou uma ditadura militar aqui no Brasil, e de como funcionou o nazi fascismo na Alemanha e na Itália. Os arrependidos foram perseguidos e também se tornaram vítimas dessas ditaduras. Para isso é fundamental diferenciar quem propaga o discurso do ódio, da intolerância, da violência, daqueles que na ânsia de propor uma mudança terminam seduzidos por esses comportamentos abjetos. Trata-se de utilizarmos estratégias de convencimento, a fim de impedirmos que aqueles que são bem intencionados sejam atraídos pelo canto da serpente. Devemos trazê-los para o lado da democracia, da tolerância, do respeito às diferenças, e da liberdade.


(*) Déjà Vu – “A expressão francesa, que significa “já visto”, é usada para indicar um fenômeno que acontece no cérebro da maior parte da população mundial. O termo foi aplicado pela primeira vez por Emile Boirac (1851-1917), um estudioso interessado em fenômenos psicológicos. Déjà vu é quando nós vemos ou sentimos algo pela primeira vez e temos a sensação de já ter visto ou experimentado aquela sensação anteriormente”. Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/deja-vu.htm


(**) Em 2012 publiquei outro artigo com o mesmo título: O Ovo da Serpente. E ali eu já abordava as fake news e os comportamentos intolerantes. Acesse o link e leia: https://gramaticadomundo.blogspot.com/search?q=O+ovo+da+serpente