quinta-feira, 28 de abril de 2011

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO

Sempre fui fã de Vinicius de Moraes, desde adolescente. Seus poemas musicados por Toquinho, e sua parceria com outros cantores e compositores, responsáveis por projetar a Bossa Nova, como Tom Jobim, Carlinhos Lyra, Francis Hime, Chico Buarque, Baden Powell animaram por muito tempo a minha boemia. Atualmente, mais comportado (o tempo nos impõe limites), continuo a ouvir sua coletânea em meus dias de maiores angústias e necessidade de relaxar do stress cotidiano e dos momentos em que as lembranças tristes me atormentam.

Em minha sala de trabalho tenho fixada já há mais de dez anos uma frase que carrega uma certa dubiedade (principalmente por quem conhece a vida de Vinicius), mas que eu a vejo dentro da minha concepção de mundo, socialista: “A essência do homem é a liberdade”.

A proximidade de 1º de Maio, dia do trabalho, me fez lembrar de um poema que eu recitava por inteiro, sem necessidade de lê-lo. “O operário em construção”. Em homenagem a esse dia resolvi reproduzi-lo no blog. Ao procurar na internet achei no site “Vermelho” a cópia do poema e uma introdução nos moldes que eu pensava fazer. Para não repetir, resolvi fazer uma introdução e acrescentar o texto que se segue abaixo do jornalista José Carlos Ruy.

Os versos engajados de O Operário em Construção

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=147886

Por José Carlos Ruy

O poema do “Poetinha” que registra, em nível elevado, a mais grave contradição do capitalismo – a que opõe o operário e seu patrão – foi escrito em 1956 e completa, assim, 55 anos. O poema celebra o desabrochar da consciência de classe em versos que seguem, quase literalmente, o argumento de Karl Marx quando, em O capital, descreve a relação entre o trabalho, o trabalhador, e todos os bens úteis e necessários à vida.

Vinicius de Mores ficou conhecido principalmente como o poeta da bossa nova, autor – com Tom Jobim – desde a “certidão de nascimento” daquele movimento revolucionário (a canção “Chega de Saudade”) até ícones do movimento internacionalmente conhecidos, como “Garota de Ipanema”, com o mesmo, parceiro célebre.

Mas a sensibilidade de Vinícius – poeta, diplomata, jornalista, homem de teatro e de cinema – foi muito além disso e O Operário em Construção é a melhor demonstração desta sua capacidade de perceber graves contradições sociais e dar a elas uma forma artística superior. Confiram!

O Operário Em Construção

Por Vinicius de Moraes

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:

– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar

As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação

E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência

Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

UM CHORO CHORADO, ISOLADO!

- Resolvi postar neste dia (celebrado pelos católicos como sexta-feira santa) um poema. Dos poucos que escrevo de vez em quando.

Em uma época onde as pessoas se dedicam a sentir compaixão por um sacrifício ocorrido há mais de dois milênios, creio ser importante um olhar para o presente. Talvez estejamos aprendendo pouco com o passado.

Embora ateu, mas ciente que a expressão significa desejar ao outro melhores dias, e compaixão, rendo-me aos sentimentos católicos, (cristãos e também judaicos) e desejo a todos(as) uma BOA PÁSCOA. Mas que os sentimentos de “boa vontade” não se restrinjam somente aos dias comemorativos, que seja uma prática cotidiana. Olhar o outro com bons olhos e com coração aberto, sem preconceitos, certamente nos ajudará a construir um mundo melhor.

UM CHORO CHORADO, ISOLADO!

Ontem, eu chorei.
Não me pergunte por que,
Eu não sei.
Só sei que chorei.

Vi. Maltrapilho,
Sujo,
Um garoto que passou correndo.
Uma multidão vinha atrás.

Lincha!
Pivete!
Safado!
Dois chutes,
Um sopapo.
Já era o moleque.
Se queres saber,
Não sei se foi por isso
Que chorei.
Só sei que chorei.

Mais adiante
Uma mulher é espancada.
As portas ao lado são fechadas.
Um grito de horror denuncia
Num canto um covarde agressor
No outro um cúmplice, silencia.

Não sei por que chorei.
E se perguntas
Por quê?
Não sei.
Só sei que chorei.

“Velho idiota”!
Ouço a expressão com espanto.
Um jovem,
Que por certo, velho será,
Impaciente resmunga num canto.
Após chocar-se com um pobre indigente,
Pobre, velho, doente.
Mas não será gente?

Se viram lágrimas a rolar
É porque chorei.
Isso basta para chorar?
Não sei.
Não disse que foi por isso
Que chorei.
Só sei que chorei.

Liguei a TV para distrair,
Mas não pude sorrir.
Logo vejo imagens de explosões.
O povo a correr...
Mãos, pernas, sangue
A se espalhar pelo chão.
De quem seriam?
De alguém.
Na multidão
Ninguém.

Por isso chorei?
Não sei.
Só sei que me vi chorando.
Os motivos são muitos
São tantos
Que não sei por que chorei.

Talvez tenha chorado
Pelo moleque.
Pela mulher,
Covardemente espancada.
Pelo velho sofrido
Que jovem já fora
Algum dia.

Ou pela imagem
Pungente
De um mundo doente.
De belas imagens,
Fugazes.
De toscas atitudes
Dementes.

Não!
Eu não choraria.
Ninguém mais chora
Lágrimas solidárias.
Somente solitárias.
Chorei por um ente perdido.
Ainda choramos por isso.

Um choro forte.
Soluça a razão.
Choramos
Pelo medo da solidão,
Da morte.
Aperta a angústia do ser.
Ente sozinho
Indivíduo
Impotente
Solitário.
Em meio à multidão.

Do outro
Não sabemos.
Está ao meu lado,
Mas muito distante.
E o que está ao longe
É meu inimigo.
Nunca o vi.

E assim, seguimos adiante.
Tanta gente no mundo,
Tão solitários vivemos.
Sozinhos na multidão,
Idiotizados,
Individualizados,
Espertos na ingenuidade,
Robotizados.

Reproduzimos o código:
Elegantes, brancos, bonitos,
Inteligentes...
Nem tanto.
Máquinas,
Engrenagem de um sistema
Em... fé... ruge!

terça-feira, 12 de abril de 2011

GUERRILHA DO ARAGUAIA: 12 DE ABRIL DE 1972 - UMA FAGULHA INCENDIOU A MATA

Em 1995, ao concluir a dissertação de mestrado, sobre a Guerrilha do Araguaia, eu tinha plena convicção que havia me envolvido em uma pesquisa, cuja história demoraria a ser concluída. Muito embora eu carregue a satisfação de ver o primeiro livro publicado sobre o tema, a partir de uma pesquisa acadêmica, era visível o fato que pelos anos seguintes, principalmente com o país consolidando a democracia, novos estudos, pesquisas e livros publicados viessem a ampliar o volume de informações que estavam sendo sonegadas à sociedade e a nós, pesquisadores.
Quando comecei minha pesquisa, - e em minha primeira viagem à região contei com a companhia de um amigo e também pesquisador da guerrilha, Gilvane Felipe, que defendeu sua dissertação de mestrado na França, na Université de La Sorbonne Nouvelle (Paris III), em 1993 - tínhamos grandes dificuldades em ter acesso aos documentos sigilosos, das Forças Armadas, que nos ajudassem a compreender, pela ótica dos militares, aquele conflito. Ou que servissem para identificar as mortes daqueles guerrilheiros cujos corpos não foram jamais encontrados.

Por isso o meu trabalho buscou outro foco. Compreender a Guerrilha do Araguaia pelo olhar dos habitantes daquela região, abrangendo desde Marabá, no Pará, até o outro lado do Rio Araguaia, então Estado de Goiás (hoje Tocantins), em Xambioá e chegando até Araguanã. Subindo até a confluência dos Estados do Maranhão e atual Tocantins, de um lado, Porto Franco, do outro Tocantinópolis.
Viajamos àquela região de Chevette (rebaixado, uma verdadeira aventura. Atolamos três vezes, pois o período era de chuvas) subindo pela Belém-Brasília até a cidade de Araguatins, onde alcançamos a Transamazônica após atravessarmos o Rio Araguaia. Dali, rumamos para Marabá, onde, obtendo o apoio da prefeitura daquela cidade (na época encontramos na secretaria de Comunicação um antigo colega de lutas no Movimento Estudantil em Goiás, o atual deputado estadual pelo Pará, João Salame Neto) pudemos fazer um ótimo trabalho de campo, com entrevistas importantes em um momento ainda de profundo silêncio, em decorrência do temor que se tinha de falar do tema.
O medo era sustentado pela presença de militares, mas também pelo trauma que ficou, criando no inconsciente das pessoas, às vezes, uma falsa convicção que estavam sendo sempre vigiados pelo “pessoal do Curió”, os “secretas” (Sebastião Moura, o Curió, foi um personagem central no combate à guerrilha. Na época era capitão, infiltrou-se na região no período anterior à terceira campanha e tornou-se responsável pela ordem e execução de muitos prisioneiros. Recentemente foi preso em Brasília, pela Polícia Federal, acusado de esconder documentos importantes sobre a Guerrilha).
Fizemos várias entrevistas, começando por Marabá, seguindo em direção à São Domingos do Araguaia (na época da Guerrilha São Domingos das Latas), Brejo Grande, Palestina, Bacaba (uma antiga base militar e também local de prisão e tortura), São Geraldo e Xambioá.
Coincidentemente nos hospedamos, a partir do apoio da prefeitura, em uma casa no conjunto habitacional do antigo Incra. Aquele local, na época da guerrilha, havia se tornado uma espécie de quartel-general no combate ao movimento guerrilheiro. Bem em frente, ficava a antiga sede do DNER, que passou a ser conhecida como “Casa Azul”, local onde se definiam as operações antiguerrilha - portanto comando de ações das Forças Armadas -, e depois outro local para onde guerrilheiros e moradores da região eram presos e submetidos à tortura. Mas isso só viríamos saber depois, com o andamento de nossas investigações.
Descobrimos, pelos depoimentos colhidos, que as pessoas detidas eram levadas para a Bacaba e para Xambioá. Nesses dois lugares haviam dois buracos, cobertos por uma grade cada um, onde os prisioneiros eram literalmente jogados. Um deles, os soldados apelidaram de Vietnã. Água suja, ratos, cobras, eram jogados para assustar e intimidar os presos. Dali, alguns eram levados para a “Casa Azul”, onde eram submetidos a novos tipos de torturas. Alguns voltavam para Bacaba, quando não ficavam comprovados maiores envolvimentos. Permaneciam mais algum tempo presos e depois eram libertados. Já a partir da terceira campanha, final de 1973 em diante, os prisioneiros mais diretamente envolvidos no movimento eram levados de volta à mata e sumariamente executados.

Quanto mais avançávamos em direção aos municípios onde os conflitos se deram com maior intensidade, mais compreendíamos a dimensão de um movimento que ainda tinha muito a nos revelar. A cada entrevista, a cada contato com um morador, a cada depoimento de camponeses agredidos e obrigados a tornarem-se guias dos pelotões militares, mais sentíamos que tínhamos em mãos um fato histórico que escondia feridas não cicatrizadas, protegidas a ferro e fogo por quem extrapolou nos limites estabelecidos em acordos internacionais, principalmente no que diz respeito à proteção da população civil e aos combatentes aprisionados com vida. Aos poucos comprovávamos que aconteceram muitas execuções. Guerrilheiros, e até mesmo moradores da região, após serem torturados eram assassinados friamente.
Gradativamente íamos descobrindo segredos guardados pelas Forças Armadas, cujo objetivo era impedir que os abusos que foram praticados no combate à guerrilha fossem apontados e submetidos às sanções como crimes de guerras. Além da tentativa desesperada de omitir para a história os erros que foram cometidos pelas forças militares institucionais. Estratégias e táticas equivocadas que levaram a três operações, sendo que duas delas foram mal sucedidas, fracassadas em seus intentos de eliminarem rapidamente um conflito do qual não se tinham ainda maiores informações.
Erros de inteligência, na identificação do grau de capacidade de reação dos insurgentes, foram cruciais para derrotar as forças armadas nas duas primeiras ofensivas. Soldados mal preparados, e desconhecendo o real objetivo de suas presenças na região do Araguaia, completavam o festival de equívocos cometidos pelos comandantes militares, do Exército, principal força presente na área, mas também em menor medida, da Aeronáutica e da Marinha. No apoio, polícias militares (mais despreparadas ainda) dos Estados de Goiás, Maranhão, Pará e Mato Grosso, completavam o cerco. E alguns agentes da Polícia Federal e do Serviço de Segurança (SNI).
Incapazes de derrotar os guerrilheiros militarmente nas duas primeiras campanhas, os comandantes militares mudaram de tática, recuaram suas forças e elaboraram um plano de preparação anti-guerrilha, com um contingente menor e mais preparado para esse tipo de confronto e com soldados adaptados para a guerra nas selvas. Um trabalho de inteligência infiltrou agentes por cerca de um ano, mapeou toda a região, identificou possíveis pontos de apoio dos guerrilheiros e nominou todos aqueles moradores da região que, de uma forma ou de outra, tinham contato com os inimigos.
No início da terceira campanha, em outubro de 1973, uma nova guerra também começava, desta vez os militares não estavam pensando em prender guerrilheiros. Pela dimensão do movimento, inclusive com repercussões internacionais, pela capacidade de formar rebeldes altamente capacitados para novos eventuais movimentos guerrilheiros, a ordem dada era eliminar todos os que ainda estavam vivos. De qualquer maneira.

Não foi uma ordem de generais de comando do combate ao movimento. Ela foi determinada pelos altos postos de direção do Estado Militar Brasileiro, a partir de seu presidente, na época o General Emílio Médici. E apoiada por todos que compunham o escalão maior das Forças Armadas Brasileiras. A determinação foi cumprida a contento do ódio nutrido por três anos à ousadia de um pequeno grupo de se preparar para uma guerra de guerrilha no Brasil rural. Ódio potencializado pelas derrotas iniciais e, claro, pelo embate que se travava internacionalmente, no âmbito da guerra fria, entre os que se alinhavam aos interesses dos Estados Unidos, e defendiam com firmeza o capitalismo, e os que se alinhavam ao bloco socialista, diferenciado em regimes com perfis diferentes: China, Cuba e URSS.

MERGULHANDO NO ARAGUAIA
Em um encontro com blogueiros no começo de 2011, em um evento em Natal – RN, o neurocientista braisleiro, reconhecido internacionalmente, Miguel Nicolelis afirmou que é uma “balela” essa história de imparcialidade, tanto no jornalismo, como na ciência. “Como neurocientistas, estamos cansados de saber que não existe isso de imparcialidade, como pretendem os jornalistas. Não existe imparcialidade nem jornalística nem científica”, disse ele.(*)
Aproveito para dizer aqui o mesmo em relação à História. Em um evento que participei no final do ano de 2010, o “Simpósio Internacional sobre o Direito à Informação”, afirmei em palestra que proferi sobre o tema, “O Direito às Informações Pessoais – História e Verdade”, que como historiador não tenho medo de assumir, em absoluto, que o meu olhar é guiado pelos elementos que me conduziram ao longo de anos de intensa atividade política. Abdiquei, faz pouco tempo, de uma ativa militância partidária de três décadas, por uma necessidade premente de formação acadêmica. Mas não abdiquei dos paradigmas que foram responsáveis por construir a minha visão de mundo, porque ela é fundamentada em valores de respeito à vida humana e à defesa de uma sociedade em que as pessoas sejam respeitadas não pelo que possuem em termos de riqueza material, porém pela sua condição de indivíduos que merecem igualitariamente ser tratados com dignidade.
Por isso, não me preocupo em ser julgado por falta de isenção, desde que dentro do meu critério de verdade, eu esteja me guiando por esses valores e, fundamentalmente, pela honestidade da análise dos fatos. Afirmo que não pode haver história isenta do olhar ideológico, e desconfio daquele historiador que vive a reafirmar a sua isenção enquanto pesquisador, pois isso é impossível. Sua vida está impregnada de valores culturais que conduzem a sua investigação e influenciam suas conclusões.

Quando escrevi o meu trabalho, sob uma orientação precisa da Profª Janaína Passos Amado, então do curso de História da Universidade Federal de Goiás, passei por um crivo importante, com o intuito de me conduzir pela honestidade, por uma linguagem que fosse acadêmica e que minha postura não fosse confundida com a de um militante. Difícil tarefa pelo grau de envolvimento ideológico que eu possuía naquele momento, mas acredito ter cumprido á risca, e os resultados podem ser vistos no que está escrito em meu livro (Guerrilha do Araguaia – A esquerda em armas, Ed. da UFG, 1997) e no que vem sendo divulgado na imprensa e em outras publicações desde então (veja bibliografia ao final) .
Isso, contudo, não foi o suficiente para evitar críticas, inclusive de historiadores conhecidos que me acusavam de ser um historiador oficial do PCdoB. Muito embora, muitos desses críticos, jamais se dispuseram a ouvir sequer um único depoimento de pessoas que foram presas e torturadas e viveram de perto todo o desespero gerado pela brutalidade com que foram tratados. Tornaram-se críticos ao longe, simplesmente para fundamentarem suas críticas à guerrilha e, assim, julgarem-se capazes de se incluir como historiadores isentos, porque opositores do regime, mas confiáveis à tarefa de atacarem o movimento guerrilheiro. Tentavam, assim, intimidar aqueles que se dispunham a olhar a guerrilha com outros olhos, e não enxergar simplesmente uma aventura de colegiais irresponsáveis, conduzidos por dirigentes incompetentes, como esses vorazes críticos se dispunham a retratar a Guerrilha do Araguaia.
Os embates surgidos da avaliação da guerrilha, que dividiu o próprio partido que conduziu o movimento guerrilheiro, terminou por atrapalhar uma ação mais coordenada e ampla, no sentido de se encontrar respostas para os segredos que as Forças Armadas tentavam a todo o custo esconder. Enfraqueceu a luta dos familiares que lutavam para encontrarem as informações sobre dezenas de combatentes, presos com vida, e dos quais não se teve mais notícias. E, acima de tudo, esses críticos deixaram de lado um aspecto essencial a ser compreendido na análise do movimento: tratou-se de uma escolha, entre as poucas que existiam naquele momento de absoluta falta de liberdade e ausência de democracia.

Por assim ser, cometeram um dos males imperdoáveis ao historiador, tornaram-se anacrônicos, e quanto mais o tempo passava mais se distanciavam da realidade que impôs à esquerda reagir às brutalidades cometidas por aqueles que perpetraram o golpe militar e silenciaram a política brasileira. Caracterizavam os guerrilheiros aos olhos do presente e, por um olhar parcial e evidentemente ideológico, julgavam-nos como aventureiros a insistirem numa prática isolacionista denominada de foquismo.
Aqui retorno aos fatos, e analiso-os com um viés claramente ideológico. Na análise da conjuntura política do país e na identificação do significado das políticas postas em prática pelos governos militares que instalaram uma ditadura aqui no Brasil, não receio em deixar bem claro a visão crítica e o engajamento político que sempre me colocou ao lado das bandeiras defendidas pelos guerrilheiros do Araguaia. Seria impossível que eu me despisse de tudo isso a fim de me colocar como um “historiador isento”. Se assim eu o fizesse repetiria alguns que modificam seus pontos de vistas com o objetivo de tornarem-se confiáveis ao sistema e poder obter o sucesso como intelectual “respeitado”.
A mim, repugnava as atrocidades praticadas por indivíduos que se julgaram no direito de impor ao povo brasileiro o caminho que deveriam seguir. Afrontaram os valores democráticos e cometeram crimes abomináveis de torturas e assassinatos em nome da democracia; cercearam o direito de os indivíduos se manifestarem livremente, silenciaram a imprensa (alguns jornais sucumbiram aos delírios ditatoriais), fecharam o parlamento, impediram a organização sindical e fecharam as entidades estudantis, e, pela força, tentaram convencer o povo que tudo isso era feito em nome da liberdade.
Alguns desses militares, cujos depoimentos ainda hoje os aproximam de verdadeiros psicopatas, justificam os abusos com o argumento de que os comunistas pretendiam instalar aqui no Brasil o comunismo. Então, pela intenção e pela escolha política diferente do outro, tudo se tornava permitido, inclusive torturar e assassinar. Mesmo se tal regime que esses militantes quisessem instalar ainda se encontrasse na condição de utopia. Mas sonhar também não era permitido.

A Guerrilha do Araguaia não pode ser desconectada desse contexto, e as conseqüências dessa e de outras poucas escolhas que existiam naquele momento, devem ser analisadas à luz do tempo em que tudo isso aconteceu. Mas não se pode negar a existência de uma brutal repressão que transformavam em marginal todo aquele cidadão que se indignasse com o regime pérfido e ditatorial que se instalara pela força das armas. As outras escolhas poderiam ser fugir do país (e aqui não há nenhum juízo de valor por trás do verbo); manter-se na clandestinidade sem a opção pela luta armada (isso não impediu a prisão, tortura e assassinato de dezenas de militantes que não pegaram em armas); e tornar-se guerrilheiro, seja na cidade ou no interior. Qualquer uma delas, pelo alto grau de ferocidade do regime, principalmente a partir do final da década de 1960, implicava em riscos de vida. Inclusive o auto-exílio, haja vista a famigerada “Operação Condor”, que perseguiu militantes de esquerda por todos os países do Cone Sul.


O QUE QUERIAM OS GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA?
Os moradores da região do Araguaia são testemunhas e também protagonistas do movimento que eclodiu naquele rincão do Brasil. Abandonados pelos governos e de frente para uma densa floresta, que era aberta para ali se instalarem pequenos roçados, os moradores daquele pedaço esquecido do Brasil começaram a ter como vizinhos jovens, idealistas e sonhadores, alguns poucos experientes e até cinqüentenários. Fugindo da perseguição nas cidades grandes, os comunistas em sua maioria militantes do movimento estudantil, aceitaram construir às margens do rio Araguaia e na entrada da Floresta Amazônica, uma resistência guerrilheira ao movimento militar que instaurou no Brasil em 1964 uma ditadura.

Traziam na bagagem pouca experiência de guerrilha, algum treinamento feito em outros países, principalmente na China, muita determinação e alguns problemas de adaptação, que terminou por criar alguns conflitos no grupo. A estratégia assemelhava-se ao que tinha servido de prólogo à grande transformação levada a cabo por Mao Tsetung, na China: o cerco das cidades por um exército guerrilheiro a partir do avanço de colunas de combatentes vindo da área rural, do interior do país.
Mas a tática a ser adotada, pode-se também mudá-la com o tempo e as condições analisadas, depende obviamente do movimento que o inimigo fizer. A reação, se inesperada ou maior do que as forças guerrilheiras podem resistir, força a mudanças táticas. Desse jogo de xadrez, que caracteriza a guerra, é que sairá a definição de quem primeiro gritará “xeque-mate”.
Se nas duas primeiras investidas dos militares seus erros impediram que suas táticas fossem vitoriosas, na terceira campanha deu-se o inverso. Cercados e submetidos à uma nova postura tática e com objetivos estratégicos redefinidos pelos militares, os guerrilheiros não resistiram a uma bem montada operação de inteligência e ao uso de grupamentos melhor preparados para a guerra na selva. Assim, essa terceira ofensiva, muito embora com um prazo de tempo que deu aos guerrilheiros certa mobilidade para fazer um trabalho político, transformou-se, na verdade em uma verdadeira caçada. Incapazes de resistirem à força e determinação com que se deu a organização de novos pelotões, agora não mais fardados e preparados para combater até o final, os guerrilheiros foram sendo abatidos e presos um a um.

O que se escondeu por tanto tempo, mas já não mais se constitui em segredo, não somente pelos documentos que já apareceram, mas pelos inúmeros depoimentos de moradores daquela região, muitos submetidos à humilhação, prisão e torturas, é que dezenas de militantes foram presos com vida e depois eliminados, seguindo a ordem de “não deixar nenhum vestígio da existência da guerrilha”.
Osvaldão, Dinaelza, Dinalva, Juca, Joca, Mário, Joaquim, Fátima, Cristina... São nomes de guerra, de quem vivia na clandestinidade, mas que representavam junto com tantos outros que lutavam nas cidades, corajosos e valorosos militantes comunistas. Pouco mais de 70 bravos guerrilheiros. Lutadores abnegados de uma causa pela qual hoje todos nós, cidadãos brasileiros, julgamos ser responsável por estar levando o Brasil em direção à liderança mundial. Lutavam contra a ditadura, pela democracia e pela liberdade. Não eram marginais, constituíram-se em valorosos brasileiros que não se entregaram à covardia daqueles que se curvavam aos interesses imperialistas. Pagaram o valor mais caro à cada um de nós: a própria vida. Por isso merecem todo o nosso respeito e o engajamento na luta para garantir-lhes o devido reconhecimento e o enterro digno de seus corpos, segundo as crenças de suas famílias.

A “verdade” pode ter muitas faces, servir a muitos interesses, mas os fatos históricos falam por si sós. Só precisamos relatá-los com honestidade. E assim, o tempo se encarregará de fazer justiça àqueles que deram suas vidas para alterar o rumo de nosso país. Ao governo brasileiro resta cumprir a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, e dar respostas às famílias dos guerrilheiros sobre como se deram as condições de suas mortes e onde se encontram seus corpos.
Que isso não impeça, contudo, de compreendermos que vivemos outra realidade. A luta que travamos pela verdade não implica em condenar instituições, mas identificar aqueles que extrapolaram na condução de seus poderes. O Brasil vive um novo tempo e as Forças Armadas fazem parte das transformações que consolidam a importância e autoridade que o país exerce internacionalmente, bem como dão suporte às mudanças que possibilitam ao nosso povo atingir outro patamar de desenvolvimento. Isso não significa, no entanto, esquecer o passado. É preciso encarar nossos fantasmas, para que não nos encontremos no futuro com o repetir de farsas que se escondem por trás da história.



NOTAS:
(*) Sobre a citação de Miguel Nicolelis, ver: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=8&id_noticia=146526
DVD – Camponeses do Araguaia, a guerrilha vista por dentro. Documentário. Diretor: Vandré Fernandes.
Pequena bibliografia de referência:
Cabral, Pedro Correa. Xambioá, guerrilha no Araguaia. São Paulo: Ed. Record, 1993. http://xambioaguerrilha.blogspot.com/2008/10/xambio-guerrilha-no-araguaia-nota_24.html
Campos Filho, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia - a esquerda em armas. Goiãnia-GO, Editora da UFG, 1997
Felipe, Gilvane. A Guerrilha do Araguaia (Brasil, 1966 – 1975). Paris: Université de la Sorbounne Nouvelle (Paris III), Institute des Hautes Études de L’Amérique Latine, 1993. (http://www.esnips.com/doc/450d1797-d21e-49f9-ba2f-35d1f9ed94bf/Hist%C3%B3ria-da-Guerrilha-do-Araguaia)
Gaspari, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Cia. das Letras, 2002
Maklouf, Luis. O coronel rompe o silêncio. São Paulo: Editora objetiva, 2004
Monteiro, Adalberto (org.). Guerrilha do Araguaia – uma epopéia pela liberdade. São Paulo: Editora Anita, 2002.
Morais, Tais e Silva, Eumano. Operação Araguaia – Os arquivos secretos da guerrilha. São Paulo: Geração Editorial, 1995
Studart, Hugo. A lei das Selvas. São Paulo: Geração Editorial, 1997

sexta-feira, 8 de abril de 2011

DE COLUMBINE A REALENGO – MASSACRE E ASSASSINATO EM MASSA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Sempre recebo com profunda tristeza, revolta e indignação as notícias sobre violências e crimes contra crianças. Tendo perdido uma filha em seus dez inocentes anos, para uma terrível doença, a leucemia, fico sempre emocionado com fatos que envolvem crianças em idades próximas a que minha filha tinha quando se foi. Eu estava preparando um texto sobre a crise na África, quando fui tomado de incontida emoção ao presenciar cenas terríveis, que martelam nossa consciência na repetição interminável da mídia. Até que outro fato catastrófico desvie a atenção para uma nova tragédia.

Ontem, quinta-feira, 7 de abril de 2011, pudemos assistir, impotentes, a notícias que falavam do massacre ocorrido no Rio de Janeiro, em uma escola no bairro de Realengo, quando um jovem de 24 anos, sem antecedentes criminais, executou mais de uma dezena de crianças. Friamente, e sendo seletivo na escolha de quem ele queria dar tiros fatais, as meninas, repetiu o mesmo comportamento de jovens assassinos em outros países, principalmente nos Estados Unidos.

O caso mais conhecido é o de Columbine, naquele país, por ter gerado um documentário, dirigido por Michael Moore (Tiros em Columbine), e ser transformado em roteiro de um filme do diretor Gus Van Sant (Elefánt). Mas existem outros casos com a mesma gravidade, nos EUA, na Alemanha e em outros países.

De imediato, a repulsa, indignação e perplexidade fazem com que muitos repitam uma palavra que expressa a incapacidade das pessoas de compreenderem atos de tamanha brutalidade: inexplicável!

É absurdo, nos revolta, mas não é inexplicável. Não há nada que aconteça em nossa vida que não tenha explicações. E não são somente biológicas, quando tentamos identificar algum grau de loucura naqueles que praticam tais atos. Quando alguns sobrevivem, seus advogados alegam insanidade, para livrá-los de penas adequadas. Mas, creio que as explicações para tamanha barbaridade podem, e devem ser buscadas no comportamento social que tem sido adotado pelas pessoas nas sociedades contemporâneas.

Ou, para melhor situar a lógica na compreensão de que somos sujeitos sociais, e, portanto, nosso comportamento está vinculado ao estilo de vida que construímos, as pessoas é que estão sendo forçadas a se enquadrarem na maneira como culturalmente a sociedade de consumo é organizada.

A sociopatia, já desponta como uma nova nomenclatura no ramo da psicologia, que vem a ser o “Transtorno de personalidade antissocial”. São vários os elementos que definem os indivíduos que possuem esse comportamento, e todos eles estão relacionados à maneira como um potencial sociopata se situa na sociedade. Principalmente, como decorrência de desajustes familiares e infâncias marcadas por traumas e dificuldades de entrosamento em algum grupo social. Levando essas pessoas ao isolamento, ao sentimento de fracasso, e ao acumulo de ressentimentos e revoltas que com o passar dos tempos transformam-se em desejos de vingança.

Esses comportamentos, embora tenham acompanhado a humanidade em seu processo de socialização, tem nos últimos anos se tornado mais comum, como decorrência da forma como nos estruturamos e pela maneira como vivemos nas cidades.

É na adolescência que todas esses problemas irão surgir, pela própria natureza desse período de vida em que vivemos, quando nossas emoções se intensificam e, principalmente, quando encontramos dificuldades em lidar com elas. Para superá-las, muito embora não consigamos controlá-las, temos necessidade de nos relacionarmos com o outro, e buscamos nesse momento o convívio com um grupo. Isso nos anima, nos liberta, e, às vezes, faz com que extrapolemos nessa condição. Esse é o momento em que um indivíduo se julga protegido e adota comportamentos muitas vezes opostos àqueles aos quais sua família está acostumada a verificar em seu cotidiano. A transgressão social torna-se muitas vezes uma prática “libertadora”, e corre o risco de transformar alguns atos em comportamentos criminosos, e a partir daí definir o caráter da pessoa.

Por outro lado, a ausência de um grupo que possa dar abrigo a um indivíduo, pode levá-lo ao isolamento, tornando-o presa fácil de atitudes intolerantes e preconceituosas de outros que precisam se destacar perante o grupo. Passamos então a conviver com uma realidade em que o outro, por não se adequar à maneira como os demais se organizam, torna-se alvo de atos agressivos e de menosprezo, quase sempre potencializando revoltas que podem explodir em momentos inesperados. Atualmente isso se denomina, em mais um anglicanismo: Bullying.

As vítimas principais desses comportamentos são pessoas que não se enquadram no perfil determinado pela cultura dominante. Tanto no aspecto visual, como também na capacidade de se afirmar como vitorioso, em uma sociedade que não aceita o fracasso.

Gordos, feios, magros, negros, pobres, homossexuais, pessoas com dificuldade de comunicação, tornam-se objetos de escárnios, porque não correspondem ao padrão que é exigido na sociedade moderna, globalizada, glamourizada pela mídia e retratada com toda crueza e realismo – dessa lógica – nas telenovelas que invadem os lares. Elas são mostradas como se expressassem uma realidade, mas não passam de realidades construídas dentro de uma lógica perversa que desmoraliza o outro, se este outro não atende ao perfil desejado.

Por outro lado, o radicalismo se incrusta em outro sentido, e vai ser encontrado no comportamento abjeto e intolerante daqueles que defendem valores religiosos extremistas, e que forçam a imposição de condições de vida retratadas em séculos, e até mesmo, em milênios passados. Impõem o seguimento de ensinamentos “sagrados” e transforma em “pecados”, ou indica como “infiéis” todos aqueles que não seguem os credos tidos como referenciais do estilo casto de vida. Os “impuros”, como dito na carta do criminoso sociopata de Realengo, não merecem viver.

E, como sempre, seguindo historicamente o que encontramos desde tempos mais remotos, passando pela antiguidade, agravando-se na Idade Média, e mantendo-se na modernidade, as mulheres tornam-se os alvos principais, juntamente com aqueles que adotam comportamentos alheios ao que se prega nos livros sagrados. São os fundamentalismos religiosos, que se espalham pelo mundo e justificam atos de barbaridades, em nome de Deus.

Por essa razão, as meninas tornaram-se os principais alvos do criminoso. Os tiros foram nitidamente seletivos, procurando-as dentro da lógica que o empurrou à cometer aquela barbárie, premeditada e devidamente documentada em sua carta, confusa e psicótica, mas reflexo de uma realidade na qual ele seguramente vivia.

O extremismo, a intolerância, o desrespeito ao outro, torna-se cada vez mais elementos que constroem nas sociedades modernas indivíduos que adotam comportamentos psicóticos. E explodem em sentimentos de revoltas aleatórios, quase sempre buscando reparar injustiças e humilhações cometidas em tempos passados, e que tenham gerado traumas e sensação reprimida de vingança não focada em determinado indivíduo, mas em grupos de indivíduos que representem uma espécie de retrato de sua condição passada.

O que assistimos com o massacre de Realengo, como de Columbine e tantos outros, é cruel, nos indigna e revolta, mas deveria nos alertar para o tipo de sociedade que o ser humano construiu. Num momento em que se discutem mais a degradação ambiental do que a degradação do ser humano, é fundamental rever determinados conceitos e partir imediatamente para reflexões mais profundas sobre o grau de intolerância que nos move indistintamente.

Quando provocados demonstramos afetos e carinho. A maioria das pessoas, seguramente, apesar de todas as angústias que caracterizam a vida moderna, são marcadas por sentimentos de bondade e solidariedade. Mas estão deixando de ser atos cotidianos e se manifestam quase sempre quando acontecem tragédias que impactam muitas vidas.

Contudo, o dia a dia das grandes cidades, em sua rotina estressante, tem sido marcado por um verdadeiro festival de intolerância, de rabugices, de intransigências e antipatias gratuitas. “Nunca te vi, sempre te odiei”, parece ser o lema que traça nossos caminhos nas vias urbanas das grandes cidades. Mas há uma lógica por trás de tudo isso, há a construção de um estilo de vida que serve a determinados interesses, consumistas, egoístas, gananciosos.

A religião pode ser um caminho para aliviar essas tensões e muitas vezes cumpre esse objetivo. Mas tem sido controlada pelos segmentos mais radicais, que pregam o caminho da intolerância e do desrespeito às escolhas dos outros. Ao invés de contribuir para amenizar os conflitos, os potencializam, e transformam alguns em implacáveis soldados de Deus, os que se julgam predestinados a limpar o mundo dos “impuros”.

Creio ser importante se fazer uma análise criteriosa, por parte dos especialistas em transtornos sociais, na carta deixada por esse criminoso. Ela não pode ser vista como palavras desconexas de um débil mental, mas pode, e deve ser um instrumento que possa ajudar a identificar como e porque um indivíduo comum pode ser capaz de praticar tamanha atrocidade.

Por fim, fica a indignação e a revolta pessoal. Tais fatos lamentáveis sempre têm como alvos crianças e adolescentes. Não bastasse toda a carga de tensão que impõem aos jovens a necessidade de tornarem-se vitoriosos numa sociedade altamente competitiva, sobre eles recaem também todas as frustrações de um mundo confuso, injusto e desigual. São mais frágeis e por isso tornam-se vítimas potenciais, tanto no cotidiano familiar, como em ambientes escolares. E são alvos dessas neuroses individuais ou coletivas.

Por todo o mundo o que se vê é parecido. Seja em caso de situações de guerras nos países mais pobres, quando as próprias crianças são forçadas a tornarem-se desde cedo combatentes, quando não se tornam marginais ou são traficados para saciar a volúpia sexual nos países ricos; como também nos países mais desenvolvidos, onde nesses o determinante são as neuroses que os obrigam a uma ferrenha disputa social, onde o fracasso torna-se um sentimento de frustração que destrói o indivíduo moralmente, e muitas vezes o transforma psicologicamente.

É preciso ter coragem de criticar o estilo de vida do mundo atual, e dizer que o sistema capitalista, tido como vitorioso no embate com o socialismo (eu diria, uma vitória de Pirro*), é o grande responsável por todas as mazelas que assistimos e vivemos. E há um enorme passivo em relação ao que de bom esse sistema construiu.

E, como já disse em outro texto neste blog, quando fiz uma crítica ao fundamentalismo ambiental (por não ver também naquele discurso uma crítica ao capitalismo) repito aqui a mesma frase: Se quisermos salvar o mundo, é preciso primeiro começar por salvar as pessoas.


(*) Pirro (318 a.C.-272 a.C.), rei de Épiro, antiga região da Grécia (atual Albânia) à beira do mar Jônio, tornou-se famoso por ter sido um dos principais opositores à Roma. Obteve vitórias importantes contra os romanos, mas ao ser cumprimentado por uma delas, a Batalha de Áusculo em 279 a.C., teria dito: "Mais uma vitória como esta, e estou perdido”. Assim a expressão passou para a história como exemplo de vitória cujo resultado pode trazer conseqüências danosas, enfraquecendo suas forças. Pirro foi derrotado na batalha seguinte.