sexta-feira, 24 de junho de 2011

PARA SEMPRE NA MEMÓRIA (II)

 24 de junho de 2013. Completaram-se 12 anos da morte de meu pai (2001). Foi em seu velório, entre meio à dor que eu sentia, que fiquei sabendo da morte de outro baiano ilustre, na mesma data. Este um conhecido cidadão do mundo: Milton Santos. Com esse artigo homenageio Milton Santos, por sua dimensão histórica-geográfica mundial, e por extensão, meu pai, cujo papel político se restringiu ao seu Estado e a sua sempre querida cidade natal, Alagoinhas, onde foi vereador por quatro mandatos(*).

MILTON SANTOS: DA BAHIA PARA O MUNDO

CIDADÃO DO MUNDO


Conheci Milton Santos, em 1996 no Simpósio realizado na USP em sua homenagem: “O mundo do cidadão - cidadão do mundo”. Tempo suficiente para aprender a respeitá-lo e admirá-lo, e a me tornar leitor ardoroso de seus textos e livros.
Também baiano, como ele, formado em História, com pós-graduação nessa mesma área, entrei na Universidade Federal de Goiás em um concurso realizado no curso de Geografia, em 1995 para ministrar aulas de Formação Econômica e Social, também dentro da minha área de formação. Ao final do primeiro ano eu tinha uma firme convicção da importância dessa disciplina, por ser ela fundamental para o entendimento da relação tempo-espaço. Afinal, nada se dá fora do tempo, nem ocorre no vazio, senão num determinado espaço. Além da fundamental compreensão de que nada acontece isoladamente, somente este ou aquele fato podendo ser explicado dentro de um processo que aponte as causas e nos dê a dimensão de um presente que nada mais é do que a somatória de tempos passados. A junção e conjunção de espaços que se transformam num acumulo incessante de novos objetos, gerados por outros, que, outrora novos, foram envelhecidos pelo tempo.
Milton Santos passou a ser um referencial para um redirecionamento das minhas dimensões intelectuais. Primeiro, por uma iniciativa própria, senti a necessidade de buscar nas leituras da Geografia a condição necessária para me dar a compreensão de que eu estava ali para ajudar na formação de Geógrafos. Nada mais justo, e coerente, que procurasse aliar os meus conhecimentos historiográficos, à noção e dimensão do pensar geográfico. Senão me perderia num emaranhado de conceitos e categorias, vendo-os de maneira formal, como se vê habitualmente no senso comum, e banalizando a importância do conhecimento geográfico para o entendimento das relações humanas. É preciso bem mais do que uma mera análise da superfície terrestre; dos cursos dos rios; dos afluentes das margens esquerdas e das margens direitas; da localização cartográfica; das capitais e de seus estados; dos tipos de solo e da qualidade da água. Questões importantíssimas para entender o todo que abrange o nosso planeta, mas insuficientes se desconsiderarmos o principal elemento de ligação: o ser humano, razão primeira e última da existência de todo conhecimento, pois é por ele que todo o saber é gerado.
GEOGRAFANDO O HUMANO
O viés humano da Geografia transportava-a, do sentido estrategicamente imposto por séculos, desde os seus primórdios, que visava facilitar (e guardar) a localização de fronteiras dos nascentes Estados absolutistas, ou desde já o desenvolvimento cartográfico para tal fim, objetivando encontrar mercadorias e mercados, para uma visão mais ampla e racional, no entendimento de que era preciso inseri-la como uma ciência humana.
O lugar, o território, o espaço, a paisagem, as cidades, o urbano e o rural; a cultura, as tradições, enfim a busca de conhecimentos não mecanicamente estabelecidos, mas numa interação dialética que aponta claramente as relações entre o planeta e a sociedade, visualizando as “heranças sociais materiais e o presente social”[1]. Sem se limitar, contudo, à simples constatação de uma determinada realidade, mas procurando soluções que dêem conta de resolver os problemas da imensa maioria da população.
A Geografia mudou, num percurso oposto àquele tomado pela História. Enquanto aquela buscava abranger o todo numa abordagem dialética, encontrando no marxismo os elementos basilares para o entendimento da racionalidade e das contradições que moviam as sociedades humanas, o conhecimento histórico tomava outro rumo, caracterizando-se pela fragmentação. A História fragmentara-se e aprofundara-se no localismo, no cotidiano e nas mentalidades, e à medida que aprofundava-se em suas especificidades, afastava-se do presente e da noção de totalidade, mesmo procurando evitar os riscos do anacronismo.
Apesar de Braudel, que soube trabalhar brilhantemente as noções de espaço e espacialidade, e via tempo-espaço como inseparável, o enfoque dialético que ligará os restos do passado à inexorabilidade das explicações do presente, transfere-se para a Geografia, aproximando-a cada vez mais da sociologia, da filosofia, da economia e da própria história.
E ninguém melhor do que Milton Santos soube compreender o momento da Geografia, direcionando seus olhares para o fazer, na maneira como o homem no presente constrói o seu futuro sobre os restos do passado. Vendo nas técnicas, e em seus usos, as respostas para o entendimento das complexas relações sociais, como “um dado fundamental da explicação histórica, já que a técnica invadiu todos os aspectos da vida humana, em todos os lugares”.[2] Mas, mesmo com tais considerações, ele via a vida “não como um produto da técnica, mas da política, a ação que dá sentido à materialidade”[3]
Surpreendentemente, se considerarmos os direcionamentos dos fatos históricos das duas últimas décadas do Século XX, a produção intelectual do professor Milton Santos avançou na contramão de idéias hegemônicas que procuravam colocar-se como esclarecedoras e definidoras de um fatalismo, que nos impunha a crença em um fim do qual não poderíamos escapar. A “globalização” colocava-se como inevitável, e a sociedade futura como um deslumbramento da vitória do “livre-mercado” sobre o “leviatã”, inoperante máquina do Estado a entravar o progresso. Não somente o neoliberalismo despontava como o ápice das liberdades, como o pós-modernismo surgia para por fim à uma época que se caracterizou pela consolidação dos Estados-Nações e que alcançou seu auge, e também os limites de suas contradições, com o Welfare-State. A crise do socialismo dava um ar de déjà-vu, de estancamento de uma utopia cujo “fracasso” só confirmava a convicção de ser o capitalismo e a economia de livre-mercado o futuro incontestável da humanidade.
Não foi essa a análise que fez Milton Santos em 1993, momento máximo da euforia neoliberal, no 3° Simpósio Nacional de Geografia Urbana, realizada no Rio de Janeiro, quando apontava as principais tendências dos anos 90:
“Na hora atual, e para a maior parte da humanidade a globalização é sobretudo fábula e perversidade: fábula porque os gigantescos recursos de uma informação globalizada são utilizados mais para confundir do que para esclarecer: a transferência não passa de uma promessa. (...) Perversidade, porque as formas concretas dominantes de realização da globalidade são o vício, a violência, o empobrecimento material, cultural e moral, possibilitados pelo discurso e pela prática da competitividade em todos os níveis. O que se tem buscado não é a união, mas antes a unificação”.[4]
Contudo, apesar da acidez das suas críticas quanto ao processo da globalização, da destruição de valores e do encolhimento do indivíduo à superficialidade de suas relações, gerado pelo enorme poder da massificação midiática, Milton Santos apontava na contradição de ser este mundo três em um só, o elemento motivador da crença de que a globalização não passa de uma percepção enganosa onde se impõe a informação, alicerçada na produção de imagens e do imaginário. “O primeiro é o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalização”[5].
Assim, direcionou seus últimos escritos na contraposição do discurso hegemônico, caracterizado como “Consenso de Washington”, e se tornou uma das vozes mais importantes na abordagem do processo que atravessa a humanidade nas últimas duas décadas do século passado. “Ao contrário do que se disse antes, a história não acabou; ela apenas começa. Antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países. (...) O que até então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes”.[6]
Acreditando na força do pobre e do lugar, Milton Santos enfatizava, utilizando-se de uma expressão da professora Maria Adélia de Souza, que “todos os lugares são virtualmente mundiais”,[7] o próprio sentido da globalidade corresponderia a uma maior individualidade, e nessa relação unicidade-totalidade acreditava que tornava-se necessário encontrar os novos significados do mundo atual redescobrindo o lugar.
Aos pobres ele concedia a primazia de situar-se num ponto de intersecção com o futuro. Acreditava que o distanciamento ao totalitarismo da racionalidade transformava as imagens do conforto, da modernidade tecnológica, em miragens para aqueles que por não estarem inseridos nessa aceleração contemporânea, nesse mundo da profusão de sempre novos objetos, eram por ele caracterizados como “homens lentos”. E por assim ser, por escaparem dessa ventura vedada aos ricos e às classes médias, é que os pobres podem esquadrinhar as cidades e ver na diversidade a necessidade de transformação.
FILOSÓFO DA GEOGRAFIA
“Trata-se, para eles, da busca do futuro sonhado com carência a satisfazer - carência de todos os tipos de consumo, consumo material e imaterial, também carência do consumo político, carência de participação e de cidadania. Esse futuro é imaginado ou entrevisto na abundância do outro e entrevisto, como contrapartida, nas possibilidades apresentadas pelo Mundo e percebidas no lugar”.[8]
Como afirmou o geógrafo e ex-presidente da SBPC, Aziz  Ab’Saber, Milton Santos foi um filósofo da Geografia. Procurou incorporar a crítica aos seus estudos geográficos num crescente resgate da concepção humanista, fundamentada na dialética marxista e no existencialismo sartriano. E assim, ele se impôs perante a Geografia mundial, e no Brasil se tornou um dos mais citados intelectuais das três últimas décadas. Para confirmar a exceção, numa regra caracterizada pela formação cultural dominada por uma elite branca e “estrangeirizada”, a sua cor negra não foi barreira para que se consolidasse como uma das vozes altissonantes da universidade brasileira, e de nossa cultura de uma maneira geral. Autoridade que lhe permitia, inclusive, cobrar coerência de seus colegas de Academia, e a ser duro nas críticas à apatia em que vivia a universidade.
No seu último escrito, um artigo publicado pelo jornal Correio Braziliense, afirma que “por definição, vida intelectual e recusa a assumir idéias não combinam. Esse, aliás, é um traço distintivo entre os verdadeiros intelectuais e aqueles letrados que não precisam, não podem ou não querem mostrar, à luz do dia, o que pensam. (...) A apatia ainda está presente na maior parte do corpo professoral e estudantil, o que é sinal nada animador do estado de saúde cívico dessa camada social cuja primeira obrigação é constituir, como porta-voz, a vanguarda de uma atitude de inconformismo com os rumos atuais da vida pública”[9].
Milton Santos faleceu no mesmo dia que meu pai, Romualdo Pessoa Campos, também baiano, vereador por 16 anos pelo PTB, na cidade de Alagoinhas, e por várias vezes secretário  da mesa diretora do legislativo daquela cidade, até ser preso em 1964 e ter desistido da política, tornando-se funcionário público do DNER até se aposentar. A altivez e o orgulho pelo seu trabalho alimentavam uma esperança de que o nosso país desse certo pelo esforço de cada um, como ele fazia.
24 de junho, dia de São João, tão lembrado pelos nordestinos. Um dia para ficar para sempre guardado na minha memória.
Um, cidadão do lugar, incorporado na força dos lentos, baiano do interior, embora quase anônimo me alimentou o orgulho de ser seu homônimo. O outro, também baiano, cidadão do mundo (embora ele não gostasse dessa expressão), esgrimindo na força de seus argumentos, de suas criações e elaborações intelectuais a esperança de um outro mundo, de uma outra globalização. E a morte, a igualá-los na eternidade do meu pensamento, na afinidade dos meus sonhos, na consolidação das minhas crenças, e na afirmação das certezas de que embora curta a nossa vida nessa imensidão de tempo que gesta e desenvolve a humanidade, vale a pena lutar, mesmo sendo ela, a morte, a única certeza do porvir. Mas ela não deve nos desanimar, e sim nos reconfortar, na medida em que escapemos da nossa individualidade e possamos transferir nossos sentimentos humanistas para a construção de uma utopia, sem a qual a nossa existência não teria sentido.
***
Quando escrevi esse artigo minha filha ainda estava viva. Em 2007 ela também se foi, para ficar para sempre na memória. Certamente a palavra que usei no parágrafo anterior – reconfortar - passou a ter um peso maior com a morte dela. Sigo tentando, mas é muito difícil, afinal, embora seja mais fácil nos conformarmos com a morte de nossos pais, pela ordem natural quando chegada a velhice - assim imaginamos – é diferente quando perdemos um filho ou uma filha. Mas, sim, a morte não pode desanimar aqueles que ainda não sucumbiram a ela e que carregam consigo a utopia de um outro mundo, mais justo e solidário. Apesar das evidências apontarem para o contrário, no coração da maioria prevalece esse sentimento que embalou a vida dos que aqui homenageamos. Inclusive minha filha, que como canta Gonzaguinha, carregava essa certeza na pureza de ser criança. A vida, ela segue, a não ser para aqueles que já passaram por ela e nos esperam em algum lugar.



(*) Este artigo foi escrito no mês de junho de 2001, duas semanas após a morte de meu pai e de Milton Santos, um ano de perdas pessoais e de abalos geopolíticos mundiais com o ataque terrorista ao World Trade Center. Foi publicado nesse mesmo ano no Jornal Opção, de Goiânia, no Jornal A Tarde, de Salvador em um suplemento cultural especial sobre Milton Santos. Depois inseri o texto, com alguns reparos no Boletim Goiano de Geografia, Vol. 21, n. 1. Em 2010 postei um resumo dele neste Blog. Agora resolvi publicá-lo na íntegra para lembrar os 10 anos da morte desses dois baianos que de maneiras diferentes foram personagens importantes em minha vida. Um me fez gente como sou, o outro me aproximou da Geografia para sempre.
(**) 24 de junho de 2013. Volto a publicar este artigo, doze anos depois da morte de meu pai, e de Milton Santos. O que está dito  aí não pode ser apagado. Eu relembrarei sempre nesta data.


[1] Santos, Milton. Território e Sociedade. São Paulo: Ed. Fund. Perseu Abramo, 2000. Pág. 26
[2] Santos, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994. Pág. 67
[3] Idem, Pág. 39
[4] Idem, Pág. 56
[5] Santos, Milton. Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2000. Pág. 18
[6] Idem, Pág. 172
[7] Santos, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. Pág. 252
[8] Idem, Pág. 261
[9] Correio Braziliense, 03 de junho de 2001

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segunda-feira, 20 de junho de 2011

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ – A EUROPA GRITA CONTRA O FMI, E NO BRASIL OS MOVIMENTOS RECLAMAM DIREITOS CIVIS


Estive, pela semana que passou, a observar com um olhar curioso as inversões sociais trazidas pelo século XXI. Lembro-me de quando passei a me envolver com o movimento social, através das entidades estudantis, no começo dos anos 1980. Por todas as duas décadas seguintes, quando mantive minha militância ativamente o Brasil e América Latina se encontravam em um momento de transição. Tanto por aqui, quanto em outros países a luta contra os regimes ditatoriais se dirigia para um desfecho favorável às pressões populares.
 As condições sociais nesses países eram as piores possíveis, talvez só possam ser comparadas à da maioria dos países africanos. Dívidas internas e externas absurdamente altas, desemprego elevado, inflação galopante, aumento crescente nas condições de miséria da população, repressão violenta aos opositores, e na contraposição à tudo isso, partidos de esquerda e movimentos sociais, quase todos eles dirigidos por uma militância ativa, envolvida diretamente com esses partidos.
O anti-imperialismo era uma marca em comum e o grito de guerra “Fora FMI” era entoado por praticamente todos os que se opunham à estrutura econômica que estrangulava a vida das pessoas e encurtavam os salários, que mal chegavam à metade do mês. Muito embora a guerra fria tivesse sido congelada a partir do final dos anos 80, como conseqüência da crise que afetou o bloco soviético e os antigos países socialistas, isso prevaleceu ainda pela última década do século passado com a ascensão do neoliberalismo.
A indignação tomou outro rumo, e o embate passou a se dar contra a globalização e o furacão liberal que forçou a abertura das fronteiras para o capital, reforçando o poder das grandes corporações em praticamente todo o mundo. Inclusive naquele outro mundo, outrora objeto de admiração da esquerda, que passou a se constituir em um ambiente extremamente disputado pelas empresas multinacionais. A chamada economia de mercado se impunha sobre a economia estatal e apresentava como sendo definitivo o admirável mundo capitalista. Tentavam vender a idéia de que o capitalismo seria a última etapa de desenvolvimento da humanidade.
No Brasil, em relação às liberdades democráticas a situação foi mudando mais lentamente do que a abertura das fronteiras para as mercadorias. Num primeiro momento toda uma luta de milhões de pessoas foi barrada por um poder parlamentar ainda conservador e suporte político do antigo regime militar. Mas as divisões existentes, conseqüência da própria crise que afetou o antigo regime possibilitou a mudança conservadora, embora importante historicamente, com a eleição de Tancredo Neves.
Mas as lutas sociais não diminuíram, muito pelo contrário, elas se intensificaram agora com mais liberdades e a legalização de várias entidades e partidos até então proibidos de funcionarem legalmente. Vivemos assim um final de século onde se manifestava intensamente a luta de classes e a ampliação na representação popular de parlamentares vinculados a esses movimentos e àqueles partidos de esquerda que estiveram à frente dessas organizações.
Isso tanto vale para o movimento estudantil, como para as lutas operárias e camponesas. Os estudantes puderam ter as suas representações legalizadas, os sindicatos se reproduziram rapidamente e criaram as Centrais Sindicais, e no campo a luta se intensificou agora com a entrada de mais uma entidade que amplificou as reivindicações dos trabalhadores, já fortalecidas com a CONTAG. Foi a vez de se destacar e crescer o Movimento dos Sem-Terra, entidade que passou a ter uma força que extrapolava as fronteiras e repercutia internacionalmente.
O final do século XX refletia, de certa maneira, os fracassos das políticas imperialistas para os países latino-americanos, e o século XXI se iniciou com um fato marcante de conseqüências econômicas e geopolíticas que viria a trazer mudanças significativas na nova ordem mundial. O atentado às torres gêmeas, o World Trade Center, na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, alterou por completo o panorama político internacional. A partir desse acontecimento a política externa da maior potência econômica e militar do mundo focou suas atenções para a Ásia Central e Oriente Médio. Isso num momento em que na América Latina novos governos assumiam em oposição às políticas neoliberais.
Enquanto a Europa e Estados Unidos investiam grandes somas de dinheiro em sucessivas guerras contra um inimigo invisível, o terrorismo, a América Latina se recompunha com uma virada democrática e a ascensão de dirigentes vinculados aos partidos de esquerda, alguns com forte componente ideológico e batendo de frente com as políticas imperialistas.
Na somatória disso, prevaleceu o fortalecimento de políticas de Estados que buscavam descolar esses países das antigas influências estadunidenses. Ao mesmo tempo, eram incorporados às novas elites políticas antigos líderes e militantes dos partidos de esquerdas. Assim como lideranças populares e antigos sindicalistas assumiam ou a condição de dirigentes do Estado, como ministros, por exemplo, ou elegiam-se ao parlamento, seja como deputados ou senadores. Por todo o país isso se repetiu, invertendo a lógica do poder existente até então. As antigas esquerdas assumiam no começo do século XX a condução das políticas na maioria dos países latino-americanos.
No Brasil isso se deu com uma maior força e repercussão internacional, como conseqüência da eleição de um operário, antigo líder sindicalista e com um forte carisma no Brasil e fora dele: Luís Inácio Lula da Silva. O sucesso dos governos na aplicação de políticas públicas fortemente escoradas em investimentos do Estado coincidiu com uma crise econômica iniciada nos Estados Unidos e que afetou praticamente todos os países desenvolvidos.
A partir daí foi marcante a pujança do crescimento e desenvolvimento, na contramão do que acontecia com os países mais ricos. Altos investimentos em obras públicas, crédito disseminado para todas as camadas, principalmente para os mais pobres, desemprego em queda, auto-estima em elevação, e uma nova realidade que elevou o país a condição de novo emergente e de forte atrativo para o capital financeiro internacional.
Nessas condições, tendo as antigas lideranças agora a comanda o Estado, o movimento popular foi passando por transformações em sua forma de agir e reivindicar. Já não viam mais quem estava no governo como inimigo, mas vislumbravam o caminho da conciliação para verem atendidas antigas reivindicações. A maioria das centrais, embora mantendo suas bandeiras, comportavam-se de forma menos agressivas e buscando as negociações. E assim viam também suas principais reivindicações sendo atendidas e, consequentemente, arrefeciam o ímpeto da luta, que já não se dava mais pelo confronto, mas pela demonstração de força e mobilização para poder extrair do governo as conquistas necessárias.
Enfraquecidas, já que as principais reivindicações eram ou atendidas ou passavam por um processo de negociação, muitas vezes lentas e atendendo a estratégias para desmobilizar o movimento, as entidades estudantis foram gradativamente mudando de comportamento, e algumas de suas lideranças destacavam-se mais com o intuito de tornarem fortes candidatos no processo eleitoral. O parlamento passa a se constituir no palco principal dos embates, ou isso acontecia no âmbito das próprias disputas internas dos governos, seja municipal, estadual ou federal.
Paralelo  a isso, multiplicava-se por todo o país Organizações Não-Governamentais. Organizações sociais de direitos civis, chamadas de Terceiro Setor, porque completavam o papel que faziam o Estado e a iniciativa privada. Nessas organizações vários antigos militantes de esquerda e profissionais oriundos da Universidade, passaram a atuar seja com objetivo financeiro ou de desenvolver atividades de cunho social junto ás camadas mais pobres por todas as cidades brasileiras.
Essas organizações passaram não somente a se preocupar com questões sociais focadas na inclusão dessas pessoas, garantindo-lhes emprego e cidadania. Era também e principalmente isso inicialmente, mas na medida em que enfraquecia o movimento social, e os canais de negociação abriam-se mais facilmente, elas passaram praticamente a substituir as entidades e a disseminarem agora outras formas de lutas, extremamente diversificadas e que até a última década do século XX se concentravam mais nos países europeus e nos Estados Unidos. 
Lutas por direitos civis, pelas questões ambientais, contra os diversos tipos de preconceitos, pela emancipação das mulheres e inúmeros outros, passaram a ser prioridades na agenda desses movimentos, ao ponto de tanto alguns partidos de esquerda aderirem como prioridade, por exemplo à luta por moradia, e de organizações como CUT e MST abraçarem a causa ambientalista e a passar a identificar líderes sindicalistas rurais como ícones da luta ambiental.
Os movimentos que passam a ocupar as ruas são diversificados e alguns alegóricos, embora trazendo em seu bojo questões sociais sérias e complexas. 
A marcha da maconha, marcha das vadias, parada gay, movimentos religiosos contra aborto, movimento das mulheres pelo direito de decidir sobre seus corpos, Movimento dos atingidos por barragens, manifestações ecologistas e tantos outros movimentos potencializados agora pela difusão das redes sociais, transformaram por completo a maneira de se rebelar, se indignar e reivindicar direitos sociais e civis. 
Os demais, que viessem a repetir as tradicionais manifestações da década de 80 do século passado, não conseguem as mesmas mobilizações e, esvaziadas, perdem forças e poder de negociação.
Mudam-se as reivindicações, os objetivos e os agentes que se destacam como mobilizadores sociais. Assim como perdem os movimentos sociais o elã que os vinculavam de maneira mais efetiva aos trabalhadores e as camadas baixas da população, constituindo-se em entidades mais focadas em reivindicações voltadas para o atendimento dos interesses da classe média, e praticamente constituídas por pessoas oriundas dessa camada. Os mais pobres não deixam escapar as oportunidades abertas com a nova modalidade de organização, mas limitam-se a fazer parte de ONGs com atividades direcionadas ao atendimento de questões preocupadas com inclusão social, e de qualificarem-se ao mercado de trabalho.
Enquanto isso, ainda seguindo-se o rastro da crise econômica que estourou em 2008 nos Estados Unidos, tanto este país, quanto a Europa, passam a conviver com manifestações populares massivas, onde milhares de trabalhadores agora enfrentam o fantasma do desemprego e dos baixos salários. E, o que parecia improvável até a década passada, passam a levantar a bandeira de “Fora FMI”, algo comum por nossas bandas outrora. Isso porque a quebradeira nesses países força seus governos a buscar empréstimos no Fundo Monetário Internacional. Para concretizar esses empréstimos, a exemplo de como fazia por aqui, o FMI exige que os governos arrochem os trabalhadores, seja com desemprego ou com aumento de impostos, ampliando mais ainda a crise porque a situação deixa a população insegura e sem perspectiva futura.
Explodem em países como a Espanha, Grécia, Portugal, França, Irlanda, e outros, greves e manifestações que são reprimidas violentamente, ao estilo dos governos ditatoriais latinoamericanos. E por mais impossível que isso pudesse parecer há algum tempo atrás, o Brasil se inclui naqueles países que passam a dispor de dinheiro para emprestar a esses países via FMI.
Não bastasse isso, torna-se recorrente a disseminação de doenças que espalham-se em epidemias que acentuam os problemas sociais e geram um medo coletivo, afetando sobremaneira todo um comportamento altivo que sempre marcou a população européia, principalmente no pós segunda guerra mundial. Embora esse ainda seja também um dos problemas cruciais a ser enfrentado pelos países latino-americanos.
Invertem-se, assim, as características das lutas que atingem os países latinoamericanos e europeus, bem como as reivindicações. E, assim, nos encaminhamos para uma realidade que se aproxima mais daquilo que vigorou na Europa no final da década de XX, e que, embora enfraquecido na caracterização ideológica dos partidos, terminou por se constituir na construção das políticas que se implementaram aqui no Brasil, um misto de social-democracia e neoliberalismo.
Não há dúvidas que isso afetou os movimentos sociais, muito embora certamente esse tipo de afirmação venha a ser repelida com veemência por aqueles que ainda continuam erguendo suas bandeiras trabalhistas. Mas certamente o mais forte elemento a definir a maneira como se constitui a nossa sociedade, as classes sociais, e o embate travado entre elas pelo controle do poder, deixou de ser o motor a embalar a grande maioria das entidades e partidos.
Prevalece o pragmatismo,a busca por colocação nas estruturas do Estado, e o desfraldar de bandeiras fragmentárias e vinculadas a este ou aquele setor, isoladamente, quando muito por trás de seus discursos abrangendo a inclusão social, mas com poucos colocando em xeque as estruturas capitalistas, ou buscando identificar na origem de suas reivindicações, e que se constituem como problemas sociais, as contradições criadas e fomentadas pelo capitalismo.

terça-feira, 14 de junho de 2011

A BLOGUEIRA LÉSBICA SÍRIA

Dubitando ad veritatem parvenimus
(Cícero, pensador romano, 106-43 a.C.)
O caso da “blogueira lésbica síria” deve ser um motivo para refletirmos sobre essa ferramenta importante que temos em mãos. A internet e as redes sociais tornaram-se nos dias de hoje um fenômeno irresistível e instrumento de mobilização, principalmente da juventude, em defesa de várias causas. Sem dúvida uma arma moderna a facilitar contatos e comunicações.
Mas, como diz o ditado, é uma arma de dois gumes. Sabe-se perfeitamente que pela internet cometem-se vários crimes, e tanto mais ela se popularize e alcance um número maior de pessoas, maior o número de ocorrência dos chamados “crimes cibernéticos”. E aí é extremamente diversificado, como na vida real, o tipo de delito que vai sendo inventado. O objetivo, claro, é iludir, enganar, se aproveitar da boa vontade das pessoas.
As novas gerações são praticamente dependentes dessas novas tecnologias. Mas são tão importantes para elas hoje, como foi no século XIX para aquelas outras o surgimento do telégrafo e do telefone. São instrumentos que contribuem para aproximar as pessoas, e as rápidas transformações tecnológicas aceleram as mudanças e possibilitam um incremento espetacular nas novidades, modificando e atualizando essas ferramentas, de tal forma que passam a ser praticamente imprescindíveis.
Mas pode ser uma arma para aquelas pessoas que se aproveitam das ingenuidades comuns à juventude, ou mesmo da desinformação que, paradoxalmente, atinge a maioria das pessoas, não só nessa fase da vida. Como gostava de dizer o geógrafo Milton Santos, vivemos uma época marcada pelas transformações técnico-científico-informacional, mas a mesma mídia que nos traz a notícia é ela mesma uma central de boatos e desinformações. São tanto manipulações propositadas, como falsas verdades, ditas muitas vezes no afã de se conseguir um furo jornalístico que possa elevar o “ibope” de um determinado meio de comunicação.
Mas, no caso de uma guerra, ou de disputa de interesses poderosíssimos, como vemos atualmente nos levantes que ocorrem no Oriente Médio, a internet e as redes sociais servem a esse jogo de contradições. Possibilita uma monumental mobilização popular, mas torna-se também um elemento a mais a criar confusões entre as pessoas mediante a exploração de informações falsas. Notícias retumbantes, imediatamente transportadas pelas redes sociais de forma célere, tornam-se verdades inquestionáveis, muito embora jamais sejam comprovadas, até porque em alguns casos são falsas.
Isso acontece porque nos dias de hoje a versão tornou-se mais importante do que o fato. Não há nenhuma preocupação em se averiguar se aquilo que está sendo dito, e até mesmo reproduzido, passado adiante, é real ou não. O que implica em dizer que tal prática está se constituindo em crimes com muitos inocentes cúmplices (ou inocentes úteis).
Muitas vezes as repercussões disso causam estragos nas vidas de algumas pessoas, direta ou indiretamente atingidas, sem que se possa corrigir depois, deixando traumas para o resto da vida.
Além, claro, de nos casos específicos de disputas de grandes interesses geopolíticos, servir às canalhices institucionalizadas pelas máquinas de guerras e pelas disputas rapaces por recursos minerais.
Assim é o caso da “blogueira lésbica síria”, uma espécie de heroína virtual, aclamada por dezenas de milhares de seguidores e que tinha nome e família: Amina Abdallah Arraf al Omari! 
O blog, “A Gay Girl in Damascus”, relatava as agruras de uma mulher lésbica na Síria, e passou a se constituir em um símbolo contra a ditadura naquele país, envolto em um levante popular, assim como ocorre em outros países árabes. No começo deste mês, uma prima, também virtual, relatou o seqüestro de Amina, com detalhes típicos de um roteiro holywoodiano. A propósito, Amina não passou de uma criação de um cidadão estadunidense, por nome Tom MacMaster. Pode-se acessar o link seguinte, para mais informações: http://exame.abril.com.br/tecnologia/facebook/noticias/14-000-pessoas-curtiram-falsa-blogueira-siria-no-facebook.
Os seguidores do blog no facebook, claro, foram tomados de uma profunda indignação. E contam-se às dezenas de milhares. Não se sabe se a ira decorre da ilusão por uma heroína ter-se esfumaçado, ou pelo papel de tolos a que foram submetidos. D. Quixote de La Mancha certamente estará tendo convulsões de risos em seu túmulo. Afinal, que diferença há em se acreditar que moinhos de ventos são cavaleiros gigantes?
Bem certo estava Tomé, tido como um dos apóstolos de Jesus Cristo. Duvidando da ressureião de seu mestre ele preferiu ver para crer. Segundo reza a lenda, Tomé pôde se encontrar com o Cristo ressurgido após a crucificação. Mas só acreditou depois de vê-lo e tocar nas feridas em suas mãos.
Eu sigo duvidando...
"Dubium sapientiae initium”

segunda-feira, 13 de junho de 2011

REVOLTA POPULAR NOS PAÍSES ÁRABES – SÍRIA, IÊMEM, BAHREIN: O QUE OS DISTINGUEM DA SITUAÇÃO NA LÍBIA?

A questão é, antes de qualquer coisa, porque nesse triângulo (Síria-Iêmen-Bahrein) o tratamento dado pelos países imperialistas, através de seu braço armado, a OTAN, é diferente do que acontece em relação à Líbia?
É claro que a maioria dos leitores saberá a resposta, já tratei inclusive aqui mesmo no Blog quais os interesses que estariam por trás dos ataques da OTAN. O petróleo, em primeiro lugar, e os fundos financeiros vultosos, fazem da Líbia um alvo a ser disputado.
Mas quero partir dessas indagações para reforçar um sentimento que espero se estenda rapidamente por todos aqueles que são amantes da paz e se indignam com as injustiças patrocinadas pelas grandes potências.
Quando mergulhamos nos bastidores da grande política e fazemos uma leitura geopolítica, vamos desvendando “mistérios” que só podem ser vistos assim se ficarmos presos às informações transmitidas pelos grandes meios de comunicação. Enfim, não há mistérios. O que existem são interesses estratégicos que tornam um determinado país objeto de disputa por todos os meios possíveis. A guerra é o último deles, o definitivo, principalmente quando analisamos as forças militares no conflito.
Os ataques da OTAN na Líbia, escorado em uma resolução da ONU (embora indo bem além do que determina a resolução), extrapolam qualquer justificativa dada em nome de uma pretensa defesa da população civil. Os ataques têm sistematicamente atingido civis, bem como alguns alvos atacados estão completamente longe da principal área do conflito, demonstrando que os objetivos vão muito além daquilo propagado pelas grandes potências. A real intenção tornou-se destituir, e se possível, assassinar Muammar Kadhafi.
Como no caso do Iraque, quando centenas de milhares de civis foram mortos desde o começo da guerra, também na Líbia a hipócrita defesa de combater crimes contra a humanidade, esconde o massacre de pessoas situadas no meio do fogo cruzado. Ou até mesmo usadas como escudos humanos. Nessa situação, os ataques da OTAN, não se diferenciam das ações dos comandados por Kadhafi, nem também dos atos violentos dos rebeldes, que também se voltam contra aqueles que defendem o regime do ditador Líbio.
Conforme analisamos no começo do conflito, a Líbia caminha para uma divisão em seu território. Consolidam-se, assim, os interesses ocidentais, na medida em que a parte do país rica em petróleo ficará sob o comando dos rebeldes, com o controle da região conhecida como Cyneraica, tutelados pela OTAN, e tendo como centro mais importante a cidade de Benghazi. Por trás disso, logicamente, os Estados Unidos, buscando assim compensar a parcial perda do controle do Egito.
A região tripolitânia, provavelmente continuará sob o comando de Kadhafi, mas sem nenhuma riqueza que a torne expressiva, embora com a maior parte da população. Um novo emirado petrolífero de um lado, e uma “Somália árabe” do outro, e a multiplicação dos problemas, principalmente ligados aos grandes deslocamentos de população para a Europa. E, provavelmente, com o governo líbio dando apoio aos grupos terroristas, para se vingar do Ocidente, a menos que Kadhafi seja assassinado, como já tentou várias vezes os bombardeios da OTAN.

A SÍRIA

De todos esses países talvez o caso mais emblemático seja o da Síria. Com uma revolta sufocada pela força, não muito diferente do que tentou fazer Kadhafi, sua situação é mais pela localização geográfica, estratégica, já que não possui petróleo como a Líbia. Aliada do Irã, do Hesbollah e do Hamas, e com um conflito fronteiriço com Israel desde 1967 quando perdeu as Colinas de Golâ, a Síria tem adotado uma política contraditória, aliando-se à Turquia, mas estabelecendo relações com Israel mais confiável do que os demais países. Pelo menos até o início dessas revoltas.
Talvez por isso, claro e também pela ausência de recursos minerais estratégicos em seu território, os EUA se mantenha aparentemente eqüidistante. O receio é que a mudança que venha a ocorrer ali seja para pior.
Contudo, são grandes também as probabilidades de agentes estadunidenses e israelenses estarem fomentando a revolta, aí com outra estratégia que é a de logo em seguida impor um nome para comandar o país que se mantenha fiel aos interesses ocidentais e de parceria com Israel, para suprir a perda de um governo aliado, com a queda do ditador egípcio.
No começo deste mês, quando se completaram 44 anos da guerra entre Israel e os países árabes, que terminou com a ocupação das Colinas de Golâ, a faixa de Gaza e a península do Sinai, manifestações na fronteira com Israel terminou com um conflito violento e a morte de 14 palestinos e outras dezenas de feridos. Israel acusou o governo sírio de tentar forçar uma invasão das fronteiras com o objetivo de desviar a atenção das manifestações que se intensificam em seu território. Mas na verdade a anexação das Colinas de Golã constitui-se em uma agressão condenada pela ONU e jamais destituída por Israel.
Em 1981, quando uma lei aprovada no Parlamento israelense tornou as Colinas de Golâ parte do território israelense, o primeiro ministro Menahen Begin afirmou que jamais Israel cederia aquele território, considerado um elemento vital para a segurança do país. As resoluções da ONU tornaram-se letras mortas, e jamais foram respeitadas por Israel. Embora até hoje a ONU não reconheça essa anexação nenhuma medida prática foi tomada para punir o Estado israelense, diferente das ações sempre imediatas que recaem sobre os Estados Árabes que porventura contrariem os interesses imperialistas, principalmente dos EUA.
A fronteira Israel-Síria, certamente é o elemento a ser destacado no embate que está sendo travado internamente na Síria. Até então, mesmo sem recuperar parte de seu território, o presidente sírio Bashar Al Assad, tem estabelecido uma relação diplomática com Israel. Mas quanto maior for a pressão sobre o seu governo, e caso confirme-se a presença de agentes israelenses a fomentar as revoltas, seguramente as Colinas de Golâ irão se tornar alvo estratégico para acirrar os sentimentos nacionalistas.
Talvez essa seja a razão principal para os EUA, através da OTAN, adotar um comportamento diferenciado em relação à Síria, apesar da crescente repressão sobre os movimentos sociais naquele país. Tudo isso pode mudar, no entanto, se o governo sírio começar a perder o controle da situação. Então para evitar uma guerra civil que afete Israel a tendência será da extensão dos bombardeios. Mas essa iniciativa certamente será bloqueada no Conselho de Segurança da ONU, já que dificilmente a China e a Rússia apoiariam resoluções que autorizem a OTAN a atacar alvos sírios.

O IÊMEN

Mais do que no caso da Síria, talvez o Iêmen seja o melhor exemplo das hipocrisias que comandam as grandes políticas internacionais ditadas pela ONU, mas desavergonhadamente manipuladas pelos Estados Unidos.
Desde o começo das manifestações naquele país que a resposta do governo foi violenta. Há mais de trinta anos no poder, o presidente Ali Abdullah Saleh, em nenhum momento manifestou a vontade de ceder à pressão das ruas. Diferente do Egito, quando a população ocupou a praça Tahrir, o ditador iemenista reagiu com truculência e expulsou à força os manifestantes das ruas negando-se a estabelecer qualquer diálogo.
Um dos países mais pobres daquela região, o Iêmen também tem uma posição estratégica por sua localização na entrada do Golfo de Adén, que dá acesso ao Mar Vermelho. Outrora também aliado dos Estados Unidos no combate aos suspeitos de pertencerem à Al Qaeda, o governo dificilmente conseguirá sustentar-se sem a ajuda dos parceiros ocidentais. Embora reagindo com ferocidade às manifestações, nada indica que a atitude das potências ocidentais serão as mesmas que as tomada contra a Líbia. Seguindo-se a lógica hipócrita dos discursos humanitários, os olhos que se voltam para o Iêmen não cintilam a cor do petróleo.
Nos últimos dias ampliou-se consideravelmente o conflito, tomando o rumo de uma guerra civil. Grupos tribais acirraram seus descontentamentos com a postura de Ali Abdullah Saleh e partiram para o confronto armado. Na tentativa de ocupação do Palácio do Governo, o ditador iemenista foi ferido e teve 40% de seu corpo queimado, deixando momentaneamente o país sem rumo, indo tratar-se na Arábia Saudita.
Informações dão conta que rebeldes ligados a Al Qaeda já teriam tomado o controle da cidade de Zinjibar, na região sul do país. Esses últimos acontecimentos mostram a dimensão do problema que está se constituindo como consequência da absoluta ausência de alternativa confiável para substituir o ditador. Por essa razão a OTAN não age da mesma maneira que em relação à Líbia, dando uma clara demonstração que os interesses verdadeiros não têm nenhuma relação com preservação de população civil ou com preocupação humanitária. Os interesses são nitidamente oportunistas e a defesa da “democracia”, cumpre tão somente o objetivo de resguardar o controle ocidental sobre um ponto estratégico importante.

O BAHREIN

O Bahrein é um pequeno ponto no Golfo Pérsico. Uma monarquia, como tantas que existem na região e esbanjam prazerosamente o ambicioso líquido fóssil. O petróleo comanda a riqueza e a abundancia do reino, aliado aos elevados investimentos na indústria do turismo, forte componente para a circulação de boa parte do dinheiro sujo do ocidente. No jargão do noticiário policial, um pequeno país, mas uma grande lavanderia. Como de resto outros emirados e até principados, como o de Mônaco na Europa, cumprem esses objetivos.
Esses interesses, aliados à posição estratégica do Bahrein, também faz com que o tratamento dado ao Ocidente seja diferente do que acontece em relação à Líbia. Afinal, essa minúscula ilha abriga uma base militar dos Estados Unidos, e onde se concentra a 5ª Frota, com a presença de mais de 2.000 soldados estadunidenses que vivem no complexo militar quase no centro de Manama, capital do país.
Seguindo-se à sequência das revoltas árabes, a população xiita ocupou as ruas, manifestando-se contra o estilo truculento e antidemocrático da monarquia de origem sunita. Ocorre que a maioria da população é xiita, e como acontece na maioria desses países islâmicos, onde o componente religioso é fortíssimo, há sempre uma diferenciação no tratamento dado àquelas correntes religiosas que não compõem as estruturas do poder do Estado.
As repressões às manifestações foram violentas provocando a morte de um número incalculável de pessoas que dormiam em barracas na Praça Pérola, na verdade uma rotatória onde existia um monumento que terminou por se tornar um símbolo da rebelião. Existia, porque após a expulsão truculenta dos manifestantes, o governo do Bahrein ordenou a demolição do monumento. O local se constituiu num espaço simbólico, semelhante à Praça Tahrir no Egito, com a diferença de a repressão ter se dado de maneira muito mais brutal.
Esse comportamento ditatorial, não somente não levou à mesma reação como ocorreu na Líbia, como bem ao contrário, fez com que a Arábia Saudita deslocasse um contingente militar para ajudar a monarquia a reprimir sua população. Em seguida, o Conselho de Cooperação do Golfo, entidade que concentra os produtores de petróleo daquela região responsável por praticamente metade das reservas mundiais de petróleo existente no subsolo, manifestou seu apoio ao governo do Bahrein.

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS?

Absolutamente, as atitudes são coerentes com os objetivos e os interesses em jogo. Não há defesa de “democracia”, nem muito menos preocupação humanista, o que está em jogo é a manutenção do poder nas mãos de setores que sejam subservientes às potências imperialistas ocidentais.
O nome do jogo é o petróleo, além da riqueza financeira daqueles países. Mas principalmente a  necessidade de controlar aqueles que possuem uma localização estratégica imprescindível para os objetivos geopolíticos nessa região, que por muito tempo ainda será uma das mais importantes para garantir o domínio de reservas minerais fundamentais aos interesses dos países imperialistas e pelo controle da hegemonia militar e econômica nas mãos dos Estados Unidos.
A defesa humanitária, justificativa para a resolução de intervenção militar na Líbia, ou que eventualmente possa vir a acontecer, caso a situação fuja do controle em alguns desses países, não passa de discurso hipócrita a esconder as verdadeiras intenções.
As revoltas árabes permanecem ainda uma incógnita. Dificilmente levará aqueles países à almejada democracia, talvez a exceção seja o Egito, possivelmente, mas indecifrável como o enigma das pirâmides, já que partidos islâmicos podem obter maioria nas eleições.
Mas poderemos estar nos deparando com uma nova forma de dominação imperialista em uma região historicamente sempre disputada e colonizada pelo Ocidente. Eu diria que um novo colonialismo poderá se corporificar com a ascensão de novas formas de governo, ou, em alguns casos, com países esfacelados e dominados por forças tribais incontroláveis, a exemplo do Afeganistão e Iraque.
Agora, precisamos estudar e analisar os próximos passos a serem dados pelo Governo israelense, e a possibilidade dessas revoltas forçarem as fronteiras complexas que cercam aquele país. Se essas preocupações se concretizarem, possivelmente o conflito poderá entrar em uma nova fase, não excluindo a possibilidade de mais uma guerra entre Israel e alguns desses países envolvidos em conflitos, incluindo-se aí os palestinos. Certamente Israel está se preparando para isso.
Por fim, como sempre gosto de fazer, indico um filme que pode ajudar a entender os interesses que existem por trás do jogo geopolítico e a absoluta falta de ética e decência na condução dessas disputas pelo poder e pelas riquezas minerais: Syriana – A indústria do Petróleo, filme em que George Clooney ganhou Oscar de ator coadjuvante. Preste atenção no discurso de um dos personagens que representa uma espécie de elegia à corrupção, essência dos objetivos em disputa. Não se admire com os exageros que possam existir no filme, na verdade eles são mais amenos do que na realidade.