domingo, 30 de junho de 2019

É A GEOPOLÍTICA, ESTÚPIDO!

Chefes de Estado do G20.
Difícil é encontrar o brasileiro.
Este artigo foi sendo escrito ao final do encontro da “Cúpula do G20”, em Osaka no Japão. Evento que reúne as maiores economias do mundo. Para além de todas as polêmicas que envolveram as discussões nesse encontro de repercussões mundiais, e não poderia ser diferente, há um substrato, para mim importante, que gostaria de destacar. É o que envolve a importância da geopolítica, cada vez sendo mais referenciada nas discussões, acordos e análises sobre as transformações que acontecem no mundo.
O comunicado oficial, final, do G20 se refere explicitamente a “intensificação de tensões comerciais e geopolíticas” no mundo. Consequência de uma situação de crise internacional, que afeta a economia mundial, coloca muitos países em condição de recessão, espalha medo e temor por todo o mundo em função de atritos gerados por políticas protecionistas e unilaterais de alguns países, em especial os EUA, além dos potenciais conflitos que envolvem nações que situam-se em posições estratégicas, particularmente no Oriente Médio, mas, principalmente aquelas que possuem grandes reservas petrolíferas. Além de outros fatores, como os problemas ambientais, o deslocamento de populações, o aumento da pobreza, até mesmo nos países desenvolvidos, e as trasnformações geradas pelo crescimento do gigante chinês, seja nos avanços tecnológicos e na ousada constituição da nova Rota da Seda.
Uso aqui, no título, uma expressão muito conhecida internacionalmente, transformada quase em um mantra, proferida por um assessor de Bill Clinton, num período eleitoral, quando ele dizia que a economia é o elemento principal a definir a política, e, no caso específico, uma eleição presidencial. Procura, assim, dizer que as questões mais sensíveis de um estado-nação estão ligadas à situação econômica, e que isso implica num embate eleitoral, naturalmente.
Faço um paralelo aqui com a geopolítica. Desde que a economia se tornou globalizada, mas não somente depois disso, as questões geopolíticas tornaram-se determinantes nas relações internacionais. Isso se compreendemos, como é natural que façamos, que a geopolítica é o olhar estratégico, tanto analítico, como do ponto de vista das ações governamentais e até mesmo do cotidiano e da vida de qualquer pessoa que deseje focar em seus objetivos e poder alcançá-los definindo os caminhos que a levará a atingir seus desejos e planos adredemente definidos.
No entanto, o que desejo aqui neste artigo é provocar uma discussão, ou prolongar uma discussão que tenho feito ao longo desses anos, que pode ser comprovado aqui em artigos já escritos neste blog. Porque a Geografia não valoriza a Geopolítica, mesmo diante da importância que ela tem tomado desde o final do século XX? Por um lado compreendo, assim como o faz Yves Lacoste, e é nele que me espelho, que a Geopolítica e a Geografia são a mesma coisa. Deixou de ser a partir do momento em que, após a segunda guerra mundial a geopolítica foi estigmatizada, não somente porque ela foi sabidamente utilizada no aparato belicista da ascensão nazista (embora fosse também utilizada por todos os demais países envolvidos naquele e em todos os outros conflitos). Mas houve outro elemento determinante nessa separação da Geopolítica da Geografia. Os embates entre duas escolas acadêmicas na área da Geografia, a lablacheana, francesa; e a ratzeliana, alemã. Os franceses, vitoriosos na segunda guerra, ao lado dos aliados, impulsionou uma desavença bem anterior, fomentada por historiadores que buscavam uma “revisão” historiográfica, e fizeram surgir a “história dos annales”. Assim, buscaram desacreditar essa vertente importante da geografia, de forma a evitar que viesse se sobrepor à história, e, ao mesmo tempo, seguir por um caminho que pudesse reduzir a abordagem política das interpretações geográficas, focadas a partir de então, prioritariamente no cotidiano das relações sociais.
Essa armadilha feita para a Geografia funcionou perfeitamente, e, paradoxalmente, constituiu-se em uma estratégia vitoriosa nessa construção historiográfica. Espalhou-se pelo mundo uma compreensão de Geografia focada naquilo que os franceses compreendiam como elementar para projetar o estado-nação, os estudos regionais. E o planejamento, muito embora devesse necessariamente partir de uma visão estratégica, se constituiu no olhar essencial a partir de divisões regionais que acompanhavam a constituição física e geomorfológica, definindo a partir daí os estudos que orientavam as administrações estatais os tipos de investimentos que devem ser feitos, constituídos a partir dessas características locais e regionais.
Isso é algo absolutamente correto, não há o que negar nesses aspectos, que se constituem nos dias de hoje elementos essenciais para planejamentos urbanos, regionais e ambientais. No entanto, o elemento crucial, e a essência da geografia, deixou de ser observado. Sua importância estratégica, o olhar político que possibilita a ampliação da capacidade crítica e o equilíbrio na identificação dos interesses que estão por trás de qualquer decisão que envolva as questões de Estado. Enfim, a Geopolítica, como elemento fundamental para que possamos ter a compreenssão macro e micro que circunda a própria Geografia como aquilo que muitos chamam de “a ciência dos lugares”, o que nos possibilita compreender tudo aquilo que está à nossa volta, a ligação inevitável que existe entre todos os lugares, nossas vidas e o ecúmeno.Somos movidos pela política, a capacidade de nos entendermos em sociedades cada vez mais complexas (embora se tente desconstruir a política nos dias atuais, mas isso é também um objetivo político). Portanto, é impossível pensar a Geografia sem a política, pois é ela, essa ciência, ou esse saber como desejam alguns, que explica a nossa existência em toda essa dimensão compreendida por milhões de quilômetros quadrados em um planeta esférico, embora a alienação e estupidez de alguns a vejam como plana. Mas os que pensam assim, somente refletem também a forma de seus cérebros.
A Geografia sem a política, é nula de entendimento da realidade. Abstrai-se nas especificidades, e somente serve às vaidades de quem foca seus conhecimentos de maneira limitada, desconsiderando a necessidade de junção de todas as partes que compõem o conhecimento geográfico. Prender-se somente a essas especificidades é reduzir a importância da Geografia, na verdade negá-la, e assumir-se enquanto condutor de uma parte que desconexa-se de um eixo. Os caminhos trilhados pela pós-graduação, seguindo a força imposta pelo globalismo neoliberal, consolidou esse viés, difícil de ser desfeito, principalmente por vivermos um tempo de negação da política.Contudo, isso não impede de reconhecer na Geografia, e na Geopolítica, aqueles elementos que nos dão a possibilidade de conhecer, em toda a essência de uma dialética que é real, como se dão as transformações que ocorrem no mundo, seja econômica, ambiental, da escasse hídrica, de alimentos, portanto não somente no que se convencionou imaginar como sendo o único elemento a se entender pela geopolítica: a guerra. Algo já há décadas desmistificado por um movimento de resgate da geopolítica, melhor dizendo, de retomada da política na Geografia, liderado por Lacoste. Mas o que veio depois, a onda neoliberal globalizante, em pouco tempo levou ao esquecimento desse resgate e prevaleceu a fragmentação e, se não a negação, a quase absoluta indiferença em relação a inserção da política como parte essencial e necessária da compreensão geográfica.,
Isso não muda somente com a referência permanente à Geopolítica na mídia ou nesses encontros de chefes de Estados, depende de novas compreensões, de reorientação e reconstrução de uma Geografia que retome a visão de totalidade e compreenda que nesses novos tempos de negação de conhecimentos elementares transmitidos pela universidade, a força desse saber está exatamente em poder dar resposta concretas aos dilemas que angustiam o mundo. Não sozinha, porque também vivemos no tempo de uma necessária multidisciplinaridade, mas jamais conseguirá ser forte como é preciso se se mantiver fragmentada e negligenciando a sua essência fundamental, a política. Que as novas gerações de geógrafos consigam romper com esse viés que acompanha boa parte das gerações que lhes orientam, formadas numa era neoliberal e fragmentária, e resgate para a geografia a importância do saber estratégico que lhe deve ser inerente.



segunda-feira, 24 de junho de 2019

PARA SEMPRE NA LEMBRANÇA (RELEMBRANÇAS - 18 ANOS DEPOIS)

24 de junho de 2019. Completaram-se 18 anos da morte de meu pai (2001). Foi em seu velório, em meio à dor que eu sentia, que fiquei sabendo da morte de outro baiano ilustre, na mesma data. Este um conhecido cidadão do mundo: Milton Santos. Com esse artigo homenageio Milton Santos, por sua dimensão histórica-geográfica mundial, e por extensão, meu pai, cujo papel político se restringiu ao seu Estado e a sua sempre querida cidade natal, Alagoinhas, onde foi vereador por quatro mandatos(**).

Meu pai, Romualdo, com minha
mãe, Maura. Foto de 1991
Meu pai faleceu no mesmo dia que meu Milton Santos. Romualdo Pessoa Campos, também baiano, vereador por 16 anos pelo PTB, na cidade de Alagoinhas, e por várias vezes secretário  da mesa diretora do legislativo daquela cidade, até ser preso em 1964 e ter desistido da política, tornando-se funcionário público do DNER até se aposentar. A altivez e o orgulho pelo seu trabalho alimentavam uma esperança de que o nosso país desse certo pelo esforço de cada um, como ele fazia.
24 de junho, dia de São João, tão lembrado pelos nordestinos. Um dia para ficar para sempre guardado na minha memória.
Um, cidadão do lugar, incorporado na força dos lentos, baiano do interior, embora quase anônimo me alimentou o orgulho de ser seu homônimo. O outro, também baiano, cidadão do mundo (embora ele não gostasse dessa expressão), esgrimindo na força de seus argumentos, de suas criações e elaborações intelectuais a esperança de um outro mundo, de uma outra globalização. E a morte, a igualá-los na eternidade do meu pensamento, na afinidade dos meus sonhos, na consolidação das minhas crenças, e na afirmação das certezas de que embora curta a nossa vida nessa imensidão de tempo que gesta e desenvolve a humanidade, vale a pena lutar, mesmo sendo ela, a morte, a única certeza do porvir. Mas ela não deve nos desanimar, e sim nos reconfortar, na medida em que escapemos da nossa individualidade e possamos transferir nossos sentimentos humanistas para a construção de uma utopia, sem a qual a nossa existência não teria sentido.

MILTON SANTOS: DA BAHIA PARA O MUNDO
CIDADÃO DO MUNDO
Conheci Milton Santos, em 1996 no Simpósio realizado na USP em sua homenagem: “O mundo do cidadão - cidadão do mundo”. Tempo suficiente para aprender a respeitá-lo e admirá-lo, e a me tornar leitor ardoroso de seus textos e livros.
Também baiano, como ele, formado em História, com pós-graduação nessa mesma área, entrei na Universidade Federal de Goiás em um concurso realizado no curso de Geografia, em 1995 para ministrar aulas de Formação Econômica e Social, também dentro da minha área de formação. Ao final do primeiro ano eu tinha uma firme convicção da importância dessa disciplina, por ser ela fundamental para o entendimento da relação tempo-espaço. Afinal, nada se dá fora do tempo, nem ocorre no vazio, senão num determinado espaço. Além da fundamental compreensão de que nada acontece isoladamente, somente este ou aquele fato podendo ser explicado dentro de um processo que aponte as causas e nos dê a dimensão de um presente que nada mais é do que a somatória de tempos passados. A junção e conjunção de espaços que se transformam num acumulo incessante de novos objetos, gerados por outros, que, outrora novos, foram envelhecidos pelo tempo.
Milton Santos passou a ser um referencial para um redirecionamento das minhas dimensões intelectuais. Primeiro, por uma iniciativa própria, senti a necessidade de buscar nas leituras da Geografia a condição necessária para me dar a compreensão de que eu estava ali para ajudar na formação de Geógrafos. Nada mais justo, e coerente, que procurasse aliar os meus conhecimentos historiográficos, à noção e dimensão do pensar geográfico. Senão me perderia num emaranhado de conceitos e categorias, vendo-os de maneira formal, como se vê habitualmente no senso comum, e banalizando a importância do conhecimento geográfico para o entendimento das relações humanas. É preciso bem mais do que uma mera análise da superfície terrestre; dos cursos dos rios; dos afluentes das margens esquerdas e das margens direitas; da localização cartográfica; das capitais e de seus estados; dos tipos de solo e da qualidade da água. Questões importantíssimas para entender o todo que abrange o nosso planeta, mas insuficientes se desconsiderarmos o principal elemento de ligação: o ser humano, razão primeira e última da existência de todo conhecimento, pois é por ele que todo o saber é gerado.
GEOGRAFANDO O HUMANO
O viés humano da Geografia transportava-a, do sentido estrategicamente imposto por séculos, desde os seus primórdios, que visava facilitar (e guardar) a localização de fronteiras dos nascentes Estados absolutistas, ou desde já o desenvolvimento cartográfico para tal fim, objetivando encontrar mercadorias e mercados, para uma visão mais ampla e racional, no entendimento de que era preciso inseri-la como uma ciência humana.
O lugar, o território, o espaço, a paisagem, as cidades, o urbano e o rural; a cultura, as tradições, enfim a busca de conhecimentos não mecanicamente estabelecidos, mas numa interação dialética que aponta claramente as relações entre o planeta e a sociedade, visualizando as “heranças sociais materiais e o presente social”[1]. Sem se limitar, contudo, à simples constatação de uma determinada realidade, mas procurando soluções que dêem conta de resolver os problemas da imensa maioria da população.
A Geografia mudou, num percurso oposto àquele tomado pela História. Enquanto aquela buscava abranger o todo numa abordagem dialética, encontrando no marxismo os elementos basilares para o entendimento da racionalidade e das contradições que moviam as sociedades humanas, o conhecimento histórico tomava outro rumo, caracterizando-se pela fragmentação. A História fragmentara-se e aprofundara-se no localismo, no cotidiano e nas mentalidades, e à medida que aprofundava-se em suas especificidades, afastava-se do presente e da noção de totalidade, mesmo procurando evitar os riscos do anacronismo.
Apesar de Braudel, que soube trabalhar brilhantemente as noções de espaço e espacialidade, e via tempo-espaço como inseparável, o enfoque dialético que ligará os restos do passado à inexorabilidade das explicações do presente, transfere-se para a Geografia, aproximando-a cada vez mais da sociologia, da filosofia, da economia e da própria história.
E ninguém melhor do que Milton Santos soube compreender o momento da Geografia, direcionando seus olhares para o fazer, na maneira como o homem no presente constrói o seu futuro sobre os restos do passado. Vendo nas técnicas, e em seus usos, as respostas para o entendimento das complexas relações sociais, como “um dado fundamental da explicação histórica, já que a técnica invadiu todos os aspectos da vida humana, em todos os lugares”.[2] Mas, mesmo com tais considerações, ele via a vida “não como um produto da técnica, mas da política, a ação que dá sentido à materialidade”[3]
Surpreendentemente, se considerarmos os direcionamentos dos fatos históricos das duas últimas décadas do Século XX, a produção intelectual do professor Milton Santos avançou na contramão de idéias hegemônicas que procuravam colocar-se como esclarecedoras e definidoras de um fatalismo, que nos impunha a crença em um fim do qual não poderíamos escapar. A “globalização” colocava-se como inevitável, e a sociedade futura como um deslumbramento da vitória do “livre-mercado” sobre o “leviatã”, inoperante máquina do Estado a entravar o progresso. Não somente o neoliberalismo despontava como o ápice das liberdades, como o pós-modernismo surgia para por fim à uma época que se caracterizou pela consolidação dos Estados-Nações e que alcançou seu auge, e também os limites de suas contradições, com o Welfare-State. A crise do socialismo dava um ar de déjà-vu, de estancamento de uma utopia cujo “fracasso” só confirmava a convicção de ser o capitalismo e a economia de livre-mercado o futuro incontestável da humanidade.
Não foi essa a análise que fez Milton Santos em 1993, momento máximo da euforia neoliberal, no 3° Simpósio Nacional de Geografia Urbana, realizada no Rio de Janeiro, quando apontava as principais tendências dos anos 90:
“Na hora atual, e para a maior parte da humanidade a globalização é sobretudo fábula e perversidade: fábula porque os gigantescos recursos de uma informação globalizada são utilizados mais para confundir do que para esclarecer: a transferência não passa de uma promessa. (...) Perversidade, porque as formas concretas dominantes de realização da globalidade são o vício, a violência, o empobrecimento material, cultural e moral, possibilitados pelo discurso e pela prática da competitividade em todos os níveis. O que se tem buscado não é a união, mas antes a unificação”.[4]
Contudo, apesar da acidez das suas críticas quanto ao processo da globalização, da destruição de valores e do encolhimento do indivíduo à superficialidade de suas relações, gerado pelo enorme poder da massificação midiática, Milton Santos apontava na contradição de ser este mundo três em um só, o elemento motivador da crença de que a globalização não passa de uma percepção enganosa onde se impõe a informação, alicerçada na produção de imagens e do imaginário. “O primeiro é o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalização”[5].
Assim, direcionou seus últimos escritos na contraposição do discurso hegemônico, caracterizado como “Consenso de Washington”, e se tornou uma das vozes mais importantes na abordagem do processo que atravessa a humanidade nas últimas duas décadas do século passado. “Ao contrário do que se disse antes, a história não acabou; ela apenas começa. Antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países. (...) O que até então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes”.[6]
Acreditando na força do pobre e do lugar, Milton Santos enfatizava, utilizando-se de uma expressão da professora Maria Adélia de Souza, que “todos os lugares são virtualmente mundiais”,[7] o próprio sentido da globalidade corresponderia a uma maior individualidade, e nessa relação unicidade-totalidade acreditava que tornava-se necessário encontrar os novos significados do mundo atual redescobrindo o lugar.
Aos pobres ele concedia a primazia de situar-se num ponto de intersecção com o futuro. Acreditava que o distanciamento ao totalitarismo da racionalidade transformava as imagens do conforto, da modernidade tecnológica, em miragens para aqueles que por não estarem inseridos nessa aceleração contemporânea, nesse mundo da profusão de sempre novos objetos, eram por ele caracterizados como “homens lentos”. E por assim ser, por escaparem dessa ventura vedada aos ricos e às classes médias, é que os pobres podem esquadrinhar as cidades e ver na diversidade a necessidade de transformação.
FILOSÓFO DA GEOGRAFIA
“Trata-se, para eles, da busca do futuro sonhado com carência a satisfazer -carência de todos os tipos de consumo, consumo material e imaterial, também carência do consumo político, carência de participação e de cidadania. Esse futuro é imaginado ou entrevisto na abundância do outro e entrevisto, como contrapartida, nas possibilidades apresentadas pelo Mundo e percebidas no lugar”.[8]
Como afirmou o geógrafo e ex-presidente da SBPC, Aziz  Ab’Saber, Milton Santos foi um filósofo da Geografia. Procurou incorporar a crítica aos seus estudos geográficos num crescente resgate da concepção humanista, fundamentada na dialética marxista e no existencialismo sartriano. E assim, ele se impôs perante a Geografia mundial, e no Brasil se tornou um dos mais citados intelectuais das três últimas décadas. Para confirmar a exceção, numa regra caracterizada pela formação cultural dominada por uma elite branca e “estrangeirizada”, a sua cor negra não foi barreira para que se consolidasse como uma das vozes altissonantes da universidade brasileira, e de nossa cultura de uma maneira geral. Autoridade que lhe permitia, inclusive, cobrar coerência de seus colegas de Academia, e a ser duro nas críticas à apatia em que vivia a universidade.
No seu último escrito, um artigo publicado pelo jornal Correio Braziliense, afirma que “por definição, vida intelectual e recusa a assumir idéias não combinam. Esse, aliás, é um traço distintivo entre os verdadeiros intelectuais e aqueles letrados que não precisam, não podem ou não querem mostrar, à luz do dia, o que pensam. (...) A apatia ainda está presente na maior parte do corpo professoral e estudantil, o que é sinal nada animador do estado de saúde cívico dessa camada social cuja primeira obrigação é constituir, como porta-voz, a vanguarda de uma atitude de inconformismo com os rumos atuais da vida pública”[9].
***
Quando escrevi esse artigo minha filha ainda estava viva. Em 2007 ela também se foi, para ficar para sempre na memória. Certamente a palavra que usei no parágrafo anterior – reconfortar - passou a ter um peso maior com a morte dela. Sigo tentando, mas é muito difícil, afinal, embora seja mais fácil nos conformarmos com a morte de nossos pais, pela ordem natural quando chegada a velhice - assim imaginamos – é diferente quando perdemos um filho ou uma filha. Mas, sim, a morte não pode desanimar aqueles que ainda não sucumbiram a ela e que carregam consigo a utopia de um outro mundo, mais justo e solidário. Apesar das evidências apontarem para o contrário, no coração da maioria prevalece esse sentimento que embalou a vida dos que aqui homenageamos. Inclusive minha filha, que como canta Gonzaguinha, carregava essa certeza na pureza de ser criança. A vida, ela segue, a não ser para aqueles que já passaram por ela e nos esperam em algum lugar.

(*) Este artigo foi escrito no mês de junho de 2001, duas semanas após a morte de meu pai e de Milton Santos, um ano de perdas pessoais e de abalos geopolíticos mundiais com o ataque terrorista ao World Trade Center. Foi publicado nesse mesmo ano no Jornal Opção, de Goiânia, no Jornal A Tarde, de Salvador em um suplemento cultural especial sobre Milton Santos. Depois inseri o texto, com alguns reparos no Boletim Goiano de Geografia, Vol. 21, n. 1. Em 2010 postei um resumo dele neste Blog. Publico mais uma vez, na íntegra para lembrar, os 18 anos da morte desses dois baianos que de maneiras diferentes foram personagens importantes em minha vida. Um me fez gente como sou, o outro me aproximou da Geografia para sempre. 
(**) 24 de junho de 2019. Volto a publicar este artigo, dezoito anos depois da morte de meu pai, e de Milton Santos. O que está dito  aí não pode ser apagado. Eu relembrarei sempre nesta data.

[1] Santos, Milton. Território e Sociedade. São Paulo: Ed. Fund. Perseu Abramo, 2000. Pág. 26
[2] Santos, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994. Pág. 67
[3] Idem, Pág. 39
[4] Idem, Pág. 56
[5] Santos, Milton. Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2000. Pág. 18
[6] Idem, Pág. 172
[7] Santos, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. Pág. 252
[8] Idem, Pág. 261
[9] Correio Braziliense, 03 de junho de 2001
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