quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

QUE SEJAM FELIZES OS DIAS QUE VIRÃO. VAMOS INVENTAR UM 2017 COM SOLIDARIEDADE, PAZ, TOLERÂNCIA, AMIZADE E AMOR

Não sei o que dizer do que será. Resta-me analisar o que já não é mais. Assim, na reconstrução do passado, que me pode dar a compreensão dos erros e acertos do tempo que se foi, posso melhor inventar o meu futuro. 2017, e o que mais vier.
Repito aqui, os mesmos desejos de anos anteriores, pois eles são permanentes, apenas envelhecemos um ano a mais.
Seguramente uma das coisas boas em minha vida nesses últimos anos foi a força para criar e consolidar este Blog. Gramática do Mundo, como já disse, um nome quase emprestado do historiador francês, Fernand Braudel, que criou sua Gramática das Civilizações, representou para mim muito mais do que eu pretendia que se fosse inicialmente. Transformou-se em um fórum de debate bem provocativo, como sempre fui, e sou, em minha peculiaridade, mas sempre de maneira positiva e propositiva. Através desse estímulo pude reencontrar minhas forças. E, embora as marcas do passado não cicatrizem, aprendemos a conviver com elas, e com nossas dores. Às vezes, contraditoriamente, elas nos estimulam.
Em 2017, já completando 22 anos de UFG, pretendo alçar voos maiores, um desafio para o qual julgo estar preparado, calejado pelo tempo, marcado pelas vicissitudes da vida pessoal, profissional e política.
Dedicar-me ao blog é um alento.  Ele cumpre esse papel, e se transformou numa catarse a aliviar os meus tormentos, de fazer libertar do fundo da minha intimidade todas as angústias motivadas pela perda de minha filha, Ana Carolina. Através do Gramática do Mundo, e tentando ainda fragilmente seguir o lema da filosofia antiga, exposta inicialmente em um poema de Horácio, no século I, antes da Era Cristã, com a expressão Carpe Diem, não me preocupo em viver obcecado com o futuro, mas buscar a compreensão do presente, de forma a vivê-lo em toda a sua intensidade.
Essa máxima permanece a guiar as minhas atitudes e a maneira como concebo a vida, embora com uma concepção materialista. Sem jamais querer eliminar as minhas memórias, as lembranças, mesmo tristes, que me marcaram e me conduziram ao presente. Bloqueei por algum tempo lembranças trágicas da internação de minha filha, até o dia fatídico da sua morte. Mas, desde 2013, principalmente após a defesa de meu doutorado – talvez algo que eu ainda devesse a ela – recuperei essas imagens, mesmo que doídas, mas já conseguindo sentir a sua presença permanentemente ao meu lado, em nossos momentos de alegrias.
Por isso essa minha mensagem de transição entre dois momentos simbólicos (2016 - 2017), construídos seguindo uma lógica que interessa ao consumismo capitalista, apesar da crise econômica mundial, mas que inegavelmente também se constitui em um momento de confraternização, e de expiação de todos os nossos problemas, eu quis produzi-la aqui. Transformo, assim, todos os meus seguidores e eventuais leitores, em personagens de minha vida, com os quais estabeleço abertamente, por essa ferramenta espetacular que é a internet, momentos de franca discussão ideológica e intelectual, bem como compartilho todos os meus sentimentos pela perda irreparável que me consumiu e me consumirá pelo resto da minha vida, mas que aprendi a conviver com ela, superar a dor e encarar a realidade. Também as dores da vida social são terríveis, convivemos com elas diariamente, direta ou indiretamente, e não podemos viver eternamente numa caverna a olhar infinitamente para dentro de si próprio, senão esquecemos como são as coisas por aí afora, no mundo real que nos cerca e no qual estamos envolvidos.
Continuo recebendo, principalmente nas minhas postagens mais sofridas, nas datas que mais me lembram da Carol, mensagens de amigos, e até mesmos de pessoas anônimas para mim, que só conheço pelas redes sociais, e foram e têm sido fundamentais para a recomposição de meu caminho. São, seguramente, estímulos para a superação das adversidades e me ajudam a viver a vida como expressado na filosofia antiga, nessa loucura do mundo moderno.
Isso nos dá também a convicção de que a solidariedade só precisa ser praticada, porque muito embora tenhamos a sensação de que vivemos em um mundo cruel, as pessoas, em sua maioria, têm sim, sensibilidade e expressam ainda isso de várias formas. O velho altruísmo que salvou a espécie humana em épocas primitivas permanece, ainda que hibernado pelos tempos individualistas como resquícios do neoliberalismo, e do próprio capitalismo. Mas em certos momentos ele se manifesta e desperta o lado sensível dos indivíduos, homens e mulheres. Talvez nesses últimos anos, além dessa palavra, uma outra devesse ser mais analisada, e mais do que isso, o que ela representa devesse ser aplicado: alteridade. Em tempos marcados pela intolerância, resgatar o altruísmo e aplicar mais alteridades em nossas relações, certamente nos ajudará a construir uma força capaz de refazer nosso mundo. Não vai ser fácil.
2016 foi, mais uma vez, um ano de superação. Sempre envolto nas leituras geopolíticas, que me ajudam a interpretar o mundo, e a nossa situação específica, no caso do Brasil, segui repensando os comportamentos que me acompanharam por vários anos.  Por vezes um choque, uma tragédia, em nossas vidas, torna-se capaz de nos fazer parar para refletir. Tendo não mudar minha personalidade, diante das adversidades e das cargas negativas que nos cercam, alimentadas por uma mídia insana.  Procuro sempre seguir sendo eu mesmo, um pouco melhor da minha “ranzizesse” privada, apesar de mais velho. Todos nós temos nossos defeitos que cada um de nós possui e compõe a nossa personalidade, obviamente junto com as nossas qualidades. Mas adquiri uma capacidade maior de compreender os dramas e fragilidades da vida humana. Até pela acumulação de conhecimentos que busquei no estoicismo, somando-os à minha visão de mundo, baseada na dialética materialista e pela experiência adquirida da vida. E, pela minha pesquisa que desenvolvo desde 1992, com o contato com o povo simples, humilde e hospitaleiro do Sul do Pará e Norte do Tocantins, na região que ficou conhecida pela Guerrilha do Araguaia e pelos conflitos terríveis na luta pela terra.
Não sou partidário de princípios doutrinários, segundo os quais o sacrifício é um fator essencial para que o sentimento humano se realize. Não temos que, necessariamente, buscarmos o sofrimento a fim de termos nossos “pecados” expiados. Mas é inegável que ele nos trás um choque de uma realidade da qual não esperamos experimentar. Construímos nossos mundos (assim como nossos deuses) de acordo com o que queremos, e esquecemos que não podemos querer aquilo que é inusitado, ocasional. O inevitável pode nos trazer surpresas para as quais não nos preparamos, e da fragilidade de uma vida aparentemente perfeita, desfazem-se sonhos e ilusões de futuros construídos quase que moldados por fantasias que nos são impostas por mecanismos exteriores à nossa vontade.
Converso com minha companheira, Celma, sob óticas diferentes de ver a vida. Ela, sempre otimista, construiu toda a sua resistência à tragédia que nos abateu, buscando espiritualmente forças que traduzisse sentimentos de solidariedade e de um pensar positivo que vê ao longe, além do momento em que estamos, e constrói positivamente um futuro de esperança. Assim ela vai lidando com os projetos que o Instituto Ana Carol tem construído e, principalmente o que já se tornou uma realidade consistente, a Bordana, Cooperativa de Bordadeiras a consolidar essas certezas construídas com o olhar para adiante.
Não tento desconstruir os sonhos, mas parto de outra perspectiva. A de que o que imaginamos ser a construção de um futuro nada mais é do que a realização do presente. Dialeticamente, ele vai sendo tecido, e termina por concretizar algo que foi pensado. Mas o que seria desse “futuro” se no presente não tivéssemos construído as bases das mudanças? Ademais, não há futuro, pois o que idealizamos como sendo isso, ao imaginarmos tê-lo construído, ele já se torna presente. E, como o tempo não para, em frações de segundos já se torna passado.
Digo isso para afirmar que são as realizações do presente que possibilitam aos nossos pensamentos se concretizarem. Contudo, nada do que se constrói hoje, ou do que se imagina construir, está livre do acaso. Mas, como não podemos ficar pensando no acaso, assim como não faz sentido a obsessão pela morte, devemos pensar sempre em viver toda a intensidade do presente. Abstraindo o egoísmo e o individualismo, logicamente. Afinal, a nossa vida não se realiza isoladamente. E, principalmente, procurarmos viver cultivando a honestidade e a solidariedade.
Assim, 2017 se construirá a cada dia. Por isso, a mensagem que quero passar é a de que cada ano novo só se completa em seu final, até lá ele simplesmente é a somatória de dias, semanas e meses. E cada um de seus dias, deve ser vivido em seu tempo, na duração que lhe foi dada por essa espetacular e indecifrável condição que adjetivamos como vida. E, ao final, ele soma-se à nossa própria história.
Então, não nos basta pensar no ano de 2017. E sim na construção dele, a partir da vivência ativa e intensiva de cada dia, separadamente. Viver um dia por vez, ao invés de nos perdermos em angústias e desesperos do que fazer depois de amanhã. Isso parece óbvio, mas estranhamente não é visto dessa maneira.
Mas alguns dirão que isso é utopia. Que é ilusão se imaginar preso apenas ao que acontecerá a cada dia, na medida em que isso acarreta um efeito em sequência e, seguindo a própria lógica da vida, impõe naturalmente o pensamento no que se seguirá.
Isso também é verdade. Mas aí reside a beleza, a incógnita e o segredo da dialética. A vida em sua mais perfeita contradição. Pela qual não conseguimos jamais compreendê-la por completo, nem vivê-la a cada momento. Pois que ela nada mais é do que uma tridimensionalidade que nos cerca: vivemos o presente, a partir de coisas que construímos do passado e que seguiremos levando adiante, naquilo que se traduz como o futuro.
Que 2017 seja assim, então, para cada um de nós. Cheio de saúde, alegria, amor e fraternidade. Que a solidariedade jamais deixe de estar conosco cotidianamente, por mais que tenhamos em nossas ideologias o sentimento de que tudo que está aí deve ser mudado na construção de um mundo novo.
Tudo bem. Mas as pessoas que vivem a sofrer, por uma condição de sujeição à lógica irracional deste mundo, têm direito a superar seus sofrimentos. Não devemos esperar as pessoas morrerem na miséria para tomar isso como exemplo de que o sistema é injusto. Devemos condená-lo, mas salvando as pessoas... e não somente as matas, as árvores, os animais. Somos nós, seres humanos, que damos sentido a este mundo. Embora contraditoriamente sejamos nós também os responsáveis pela aceleração de sua destruição. Enfim, devemos lutar pela vida. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás” (Che).
Que 2017 inspire solidariedade, amizade e amor. Que construamos um novo mundo a partir de nossos próprios exemplos. Que não nos limitemos à crítica, pela crítica, mas que apresentemos alternativas concretas para realizarmos o sonho das pessoas viverem seus presentes com dignidade. E façamos isso também com nós mesmos. Que consigamos viver intensamente cada dia, cada momento, e nos coloquemos um desafio: de a cada dia que conseguirmos superar, aumentar o número de amigos e amigas que nos cercam. E os entendamos em suas peculiaridades, sem necessariamente compactuar com comportamentos agressivos, intolerantes, preconceituosos. Isso desfaz amizades, são inaceitáveis, ignora a alteridade, destrói-se o altruísmo e brutaliza as relações humanas. São comportamentos que devem ser combatidos, a fim de construirmos um mundo novo. Sim, acredito que um outro mundo é possível.
Certamente os desafios que temos pela frente não são fáceis. O novo ano não será fruto do que do que imaginávamos construir positivamente em 2016 e no ano anterior. Algumas coisas, necessárias para muda-los, fogem, ao nosso alcance. Mas devemos lutar, sempre, acreditando que a vida pode ser vivida de forma plena, sem esquecer que não vivemos sós e que os muros não nos protegem, simplesmente escondem uma realidade que nos oprime, que precisa mudar, mas da qual é impossível fugir.
Essa vontade de lutar, que, particularmente, pude recompor nesses últimos anos, deve estar imbuída do sentimento de que a transformação deve ser coletiva. Pensar somente em mim, não vai ajudar a construir o mundo melhor e mais solidário. Meu tempo de vida não é longo, o de nenhum de nós é, comparando-se ao tempo da história humana, e mais do que isso, se compararmos ao tempo de existência da terra. Portanto, se temos que lutar por algo que valha a pena, que isso se traduza em uma conquista que seja plena para a humanidade. Ao contrário do que se possa pensar, e é assim que vejo, isso não se contradiz com o lema que sugeri lá atrás. Carpe Diem! Significa que devemos aproveitar o momento, confiar o mínimo possível no amanhã, mas o que proponho na junção desses dois desejos é, ao mesmo tempo em que lutamos por um mundo melhor, viver a vida com serenidade, desprendimento, vivacidade e compreensão. Se queremos aproveitar cada momento, podemos também plantar sementes daquilo que imaginamos ser o melhor, para cada um de nós, individualmente, e para todos e todas coletivamente.
Quem sabe assim atingiremos nosso objetivo de inventar um 2017 que corresponda ao que desejamos. Mas, além disso, construir um futuro que possa refletir o presente que idealizamos.
E o façamos tornar-se realidade.
Feliz 2017!! Um brinde à construção de um mundo novo. “Sonhos, acredite neles, com a condição de realizar escrupulosamente a nossa fantasia” (Lenin).
Carpe Diem!

“Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati. seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam, quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida aetas: carpe diem quam minimum credula postero”.
“Tu não procures - não é lícito saber - qual sorte a mim qual a ti os deuses tenham dado, Leuconoe, e as cabalas babiloneses não investigues. Quão melhor é viver aquilo que será, sejam muitos os invernos que Júpiter te atribuiu, ou seja o último este, que contra a rocha extenua o Tirreno: sê sábia, filtra o vinho e encurta a esperança, pois a vida é breve. Enquanto falamos, terá fugido ávido o tempo: Colhe o instante, sem confiar no amanhã”.
 "Odes" (I,, 11.8) do poeta romano Horácio (65 - 8 AC) 



(*) A idéia central desse texto eu construí no final de 2011. Adaptei-o já por diversas vezes em algumas partes, e o faço mais uma vez para torná-lo atual a mais um momento de transição em nossas vidas. Um feliz ano novo aos leitores e leitoras do blog Gramática do Mundo e aos meus amigos e amigas do Facebook. Que possamos continuar lutando pela construção de um mundo melhor.  E que em 2017 possamos avançar muito nessa direção. Um forte abraço.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

GUERRA TOTAL – ENTRE ALEPPO E MOSUL, A VERDADE DISSIPA-SE EM MEIO ÀS FUMAÇAS DOS BOMBARDEIOS

Allepo, Síria - Numa guerra fomentada pelo Ocidente (leia-se EUA), a grande mídia mostra a destruição e imagens de crianças e mulheres atingidas pelos bombardeios. A guerra é cruel, perversa. Mas a manipulação da informação que circula pelo mundo é revoltante para quem acompanha essas histórias. Os que reagem ao cerco quase final, e fatal, à cidade são chamados de “Rebeldes”, em luta contra o “ditador” Bashar Al-Assad. Mas nada se diz da euforia que tomou conta de muitos moradores com a ocupação da cidade pelas tropas sírias, apoiadas pela Rússia e pelo Irã.
Mosul, Iraque - Em outra guerra (ou quase que a mesma), consequência da insanidade ocidental (leia-se EUA e aliados), o que vemos são imagens de combates, a partir da ação de soldados iraquianos e curdos, com apoio dos Estados Unidos. Aqui, os que reagem ao cerco, também quase fatal, e final, são chamados de “Terroristas”, e a retomada da cidade significa uma vitória da liberdade. Neste caso, as notícias são de que as pessoas que vivem na cidade são transformadas em escudos humanos.
Aleppo, antes e depois da
guerra.1
Ésquilo, dramaturno grego que viveu no seculo V, antes da guerra cristã, tem uma frase que lhe é atribuída, repetida sempre que eclode uma guerra: “Numa guerra a primeira vítima é a verdade”. Isso se aplica hoje não só à guerra, por uma mídia que desinforma e faz da mentira um instrumento de controle e de manipulação permanente.
Em Aleppo ou em Mosul a realidade é fruto da disputa política. Da grande política, do controle pelo poder hegemônico em regiões estratégicas do mundo. São guerras fomentadas por Estados-Nação e corporações que disputam riquezas e territórios, e as vidas humanas não são objetos de preocupação quando elas são estimuladas e financiadas, instigando grupos radicais para desestabilizar governos. Ao final, para direcionar a opinião pública, imagens são distorcidas e a verdade omitida ou alterada, escondendo-se as reais razões da destruição de países e das centenas de milhares de mortes que se espalham em meios aos escombros e afetam, numa característica da guerra moderna, principalmente a população civil.
Militantes do Estado Islâmico
preparam-se para o cerco em Mosul
Um combate travado nas cidades inevitavelmente leva a destruição. A guerra de guerrilhas, rua por rua, torna absolutamente sangrento o combate, onde os grupos que resistem e controlam territórios tomados do poder do Estado, usam de artifícios táticos e protegem-se em meio a casas ocupadas, fazendo da população espécie de escudos de proteção. A ausência de acordo para cessar os combates, visto que a parte fragilizada na refrega não se entrega, leva a que isso chegue ao limite da violência, de maneira implacável. A população que não consegue sair da zona de guerra, ou porque apoia os combatentes, ou porque são reféns e a condição da própria segurança desses, é atingida de forma bárbara, notadamente as crianças.
Pessoas comemoram a retomada de
Aleppo
As imagens do conflito são utilizadas como arma de propaganda, e as crianças passam a fazer parte de um jogo de desinformação visando desgastar o lado que momentaneamente está saindo-se vitorioso.
Em Mosul ou em Aleppo a crueldade faz parte da radicalidade gerada pelo conflito. Representa a derrota da política, chegada a um ponto extremo, onde as forças antagônicas desejam assumir controle com objetivo de controlar o poder. Por um lado a manutenção desse poder nas mãos de um mesmo grupo por muitas décadas, de outro uma insurgência insuflada por interesses ocidentais, visando o domínio de uma região estratégica e, ao mesmo tempo, impor derrota à Rússia, há décadas aliada do governo sírio, onde existe a única base militar que esse país detém com acesso ao mar Mediterrâneo.
Fila de ônibus aguardam para retirar
civis de Aleppo
A existência de interesses por trás de quem controla a informação, os oligopólios que transmitem suas “verdades”, através de notícias e imagens manipuladas, termina por consolidar versões que não representam, necessariamente, a origem dos fatos, nem mesmo a própria realidade deles. Até porque, se for à origem, ver-se-á que toda a situação de caos existente no Oriente Médio, com a destruição de diversos países (Líbia, Síria, Iraque, Iêmen...), praticamente com alguns entregues ao domínio de milícias que receberam o apoio para destituir governos, e que atualmente são caracterizadas como terroristas, são decorrentes de ações inescrupulosas que desdenham de resultados perversos para as pessoas que ficam em meio a essas disputas, pagando com suas vidas a obsessão de governos ocidentais que visam controlar esses países e suas riquezas petrolíferas. O resultado dessa perversão é o caos, a fragmentação de estados, a migração massiva e o genocídio de populações.
Atentado em 2012 ao consulado dos EUA
A guerra é consequência da incapacidade de se resolver problemas políticos por meio de acordos e tratados ou porque não há interesses nisso, já que os objetivos são geopolíticos e incompatíveis entre os Estados em disputa. Nas situações em curso, que se estendem por mais de uma década, desde que os EUA iniciaram sua “guerra ao terror”, a tentativa claramente analisada em obras portentosas que devem ser lidas com atenção, escritas por Moniz Bandeira e Jeremy Scahill,[1] dentre tantos, visava destruir governos incômodos a esses país e seus aliados. As consequências tem sido funestas, absolutamente marcadas pela insensatez, que, aliás, levou à queda da ex-Secretária de Estado do governo estadunidense, Hilary Clinton, responsabilizada por boa parte dessas ações desastrosas, bem como da morte do embaixador daquele país na Líbia (retratado com os formatos tradicionais de Hollywood, no filme “13 horas: os soldados secretos de Benghazi”). Seguramente isso foi também determinante para sua derrota nas últimas eleições, superada por um falastrão, sem nenhuma presença na política até então, o ultraconservador Donald Trump.
Soldados iraquianos no cerco à Mosul
Não há o que defender numa guerra. A própria tensão que ela cria brutaliza seus participantes, e os transformam em máquinas de matar. Poucos conseguem agir de forma racional, mas depende muito do tempo em que permanecerá no front de batalha. Em um caso e no outro, certamente ações irracionais, crimes de guerras e descontrole, ocorrem frequentemente. Seguramente alguns atos heroicos podem ser destacados. Mas é preciso conhecer primeiro o que está por trás dessa guerra, depois as dificuldades em se estabelecer acordos de paz quando há interesses muito grandes a insuflar o conflito. E não se pode jamais esquecer quais foram as verdadeiras razões e em que condições muitas dessas guerras tiveram início. Isso é uma condição sine qua non, para entendermos porque se tornam tão difícil os acertos finais para botar fim aos combates.
Tropas Sírias avançando sobre Aleppo
Por fim, todo o desequilíbrio que têm afetado o Oriente Médio decorre de uma estratégia definida para derrubar os governos de diversos países na região. A política de regime change, implementada pelos EUA, com o intuito de desestabilizar econômica ou politicamente esses países, cujos governantes já não atendiam mais a seus interesses hegemônicos, cujos resultados levaram equivocadamente a ser denominada “primavera árabe”, representou uma tentativa de alteração da forma de agir, não mais com intervenções militares, mas desestabilizando os países, financiando e armando grupos oponentes, não se importando com as consequências disso. Al Qaeda, Al Shaabab, Al Nusra, ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante), Boko Haram, surgiram direta ou indiretamente como consequência desse tipo de estratégia, ou de erros graves cometidos por tropas ocidentais ao tentarem agir unilateralmente sobre conflitos locais.
Rebeldes sírios se protegem dos ataques
em Aleppo
A guerra da Síria tornou-se bastante emblemática, porque desde o início o governo de Bashar Al-Assad contou com o apoio da Rússia. Agindo em duas frentes que lhe contrapunha, o presidente Putin desfechou golpes diretos e ousados, na Ucrânia e na Síria. Em uma, intervindo por meio de grupos pró-Rússia e assumindo controle da Criméia, bloqueando os objetivos da OTAN/EUA de assumirem o controle total daquele país e isolarem a Rússia. Em outra, no caso mais emblemático que era a Síria, assumindo com força o papel de protagonista no combate mais eficaz contra o Estado Islâmico, chegando à beira de um conflito com a Turquia, cujo governo de Erdogan fazia jogo duplo, inclusive comprando petróleo desse grupo.
Tropas iraquianas preparam o cerco
à Mosul
Na impossibilidade de acordo, tentado por diversas vezes por iniciativa do presidente russo, prevaleceu, como sempre nesses casos, a guerra total. Primeiramente os alvos foram os combatentes do Estado Islâmico. Atacados pelo alto com bombardeios russos e por terra pela ação de tropas iranianas, do Hesbolah e dos curdos. Depois, os rebeldes, aliados do ocidente foram encurralados na cidade de Allepo, dispostos a resistirem rua por rua, da mesma foram que o ISIS jurou também fazer na cidade de Mosul, cujo desfecho final ainda não aconteceu.
O resultado não poderia ser pior para a população civil. A cidade de Aleppo, completamente destruída, neste momento em que escrevo, está praticamente tomada pelas tropas pró-Síria, que retoma assim o controle. Os acordos finais são para garantir a retirada dos combatentes rebeldes e de parte da população que desejar lhes acompanhar. De uma cidade com um dos maiores índices de desenvolvimento humano na região, assim como acontecia em parte da Líbia, e de uma população de mais de dois milhões de habitantes, hoje o que restam são escombros por toda a parte. A insanidade da guerra, os sujos interesses que a movem, resulta em destruição e mortes. A cidade será reconstruída, e beneficiará os lados vencedores, cujas corporações estarão incorporadas no objetivo de a reconstruírem, e lucrarem com isso. Já as vidas perdidas, essas não retornarão, assim como boa parte daqueles que optaram por sair da cidade e atravessarem o mediterrâneo em direção à Europa, por enquanto segura.
Assassinato do embaixador russo
na Turquia
Enfim, houve intencionalidade em toda essa loucura. Ao fim, para completar a gravidade do conflito, que, apesar do cerco à Mosul e da tomada de Aleppo pelo governo Sírio, não significa que está acabando, chega a notícia, quando finalizo este artigo, do assassinato do embaixador russo, Andrei Karlov, na Turquia. Tudo indica que em vingança á ação em Aleppo. O atentado teria sido praticado por um membro da polícia turca, que foi morto logo em seguida. São situações que não tem fim, foram criadas com objetivos geopolíticos, e tornarão ainda o mundo bastante inseguro. As reações a mais esse atentado sinalizam para a radicalização e o espectro de guerra total tende a se espalhar por diversas direções.




[1] BANDEIRA, Luiz Alberto. A Segunda Guerra Fria. Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013
BANDEIRA, Luiz Alberto. A Desordem mundial. O espectro da total dominação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
SCAHILL, Jeremy. As Guerras sujas. O mundo é um campo de batalha. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

ONZE ANOS SEM CAROL. O QUE MUDOU EM MIM. O QUE MUDOU NO MUNDO

13 de dezembro de 2007. Há onze anos vivíamos o pior momento de nossas vidas. A pequena Carol falecia aos dez anos de idade. Tudo mudou para nós, e por muito tempo passamos a conviver com a necessidade de lidar com uma situação absolutamente cruel. Ver a morte de uma filha, ou de um filho, nos empurrar para o fundo de um poço. A depressão é praticamente inevitável, e evitá-la é muito difícil, só possível se buscarmos nos envolver em alguma atividade que tenha relação com aquele ente falecido, para que a lembrança de sua presença fique latente desde os momentos iniciais de sua morte. O sentimento da ausência, porquanto durar, somente nos faz despencar cada vez mais no abismo de um vazio que se transforma em doença.
É muito difícil equacionar essa perda. Tive muitas dificuldades em sentir a presença de minha filha em sua ausência. É uma dialética perversa, o limite de uma contradição presente sempre por todo o tempo em que vivemos. Podemos conviver com a ideia da morte, sabendo que ela naturalmente nos atinge, dentro de uma lógica inevitável. Mas nossas forças não são suficientes para suportar a perda de uma filha, ou de um filho. É uma sensação de fracionamento de seu corpo, de tal forma que somos acometidos de uma enfermidade denominada no ambiente da medicina como “síndrome do coração partido”.
Uma das formas de suportar essa dor foi me dedicar a escrever. Neste blog, e, antes dele na edição de um livro de crônicas dedicadas a minha filha e que intitulei, “Depois que você partiu”. Assim o fiz por um ano, logo depois da morte dela. E, nos anos seguintes, sempre que a angústia me tomava conta, ou naqueles dias cujas datas são marcantes, porque elevam a saudade a patamares insuportáveis. A proximidade do dia em que, fatidicamente perdemos nossa pequena Carol, sempre nos deixa reflexivos, tristes. Isso ter acontecido no final do ano torna as festas deste período menos alegres do que antes, quando ela vivia entre nós.
O tempo ameniza a dor, aprendemos sempre isso. É verdade. Porque também precisamos encontrar formas de continuar vivendo. Sempre digo que a melhor maneira de ter minha filha ao meu lado continuamente, em boas lembranças de sua presença em vida, é estar vivo e saudável. Acostumei-me aos sábados, sempre para mim o pior dos dias depois de sua morte, a ir para uma roda de samba, num lugar aconchegante, onde encontro amigos e amigas, o Quintal do Jorjão. E, mesmo ali, silenciosamente em meio a algumas músicas cantadas, já chorei de saudades de minha filha. As músicas de Gonzaguinha são as que mais fazem eu me lembrar dela. Mas aprendi a sair das tristezas que os sábados me traziam. E, aos poucos fui reforçando cada vez mais a sensação de tê-la comigo, em meu coração, em minhas lembranças, ao meu lado. Aprendi que tristeza e alegria convivem mutuamente, e que felicidade é um conceito muito relativo, que se adéqua somente a momentos precisos, nunca a felicidade pode ser algo permanente em nossas vidas. Como posso ser feliz, sem minha filha? Não sou. Tenho alegrias e tristezas, e aprendi a viver dessa maneira, porque minha vida segue ao lado das pessoas que eu amo. E minha filha segue comigo, bem apegada ao meu peito, do lado esquerdo, e a sinto nas pulsações do meu coração.
Depois que minha filha partiu muita coisa mudou em minha vida, se já não somos os mesmos à medida que envelhecemos, deixamos de ser muito mais, quando perdemos uma filha. Nos tornamos mais sensíveis com a realidade que nos cerca, a presença dos familiares e amigos, em gestos solidários a nos confortar, desperta uma sensação altruística, um sentimento que sempre nos acompanhou enquanto humanos, apesar de esquecido em algum canto nos dias atuais. Nessas horas ele se torna bem presente, e nos afeta sobremaneira. Pelo menos me afetou e me fez refletir profundamente sobre minha relação com o meu ambiente de trabalho, com minha casa, com a sociedade, com as pessoas.
Afastei-me por um tempo de diversas atividades, profissionais e políticas. A condição depressiva me desestimulava. Somente a sala de aula, onde por diversas vezes me emocionei em frente a meus alunos e alunas, me dava algum alento. O prazer de dar aulas me aliviava das angústias, paradoxalmente tratando nelas as contradições de um mundo em transe.
São onze anos que parecem uma eternidade, mas, contraditoriamente, parece que foi ontem que nos debruçamos pela última vez sobre o corpo de nossa filha, já sem vida, numa imagem que ficará retida em nossas mentes até o último dia de nossas vidas. Cada momento, cada segundo, daqueles infortúnios desde quando soubemos de sua morte, em que o chão se abriu para nós, e, que alguns crêem, os céus se abriram para ela, se repetem como flashes em nossa memória, ou, como no linguajar das novas tecnologias das redes sociais, como ‘gif”. Imagens em movimento que se repetem. Somente no cotidiano de nossas atividades, a nos ocupar pelo que necessariamente precisamos fazer, encontramos lapsos de tempo, que nos distraem, e seguimos o curso de nossas vidas. Mas, jamais, como antes. Perdemos um pouco de nosso corpo e de nosso jeito de ser. Como diz Antoine de Saint-Exupéry: “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós, deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”.
Mas, parafraseando Chico Buarque, em uma das tantas músicas que nos lembram da Carol, o tempo passou na janela, e ela não mais estava aqui para ver as transformações aceleradas de um mundo e um tempo que deveria ser seu.
Quando a Carol faleceu o nosso país vivia momentos de expectativas positivas. As esperanças deixavam as pessoas animadas com as possibilidades de adentrarmos em um outro mundo, de desenvolvimento e de redução de desigualdades sociais. Apesar de já naquele momento, escândalos de corrupção também ser a tônica dos noticiários, era nítido uma mudança no país, que crescia em termos de aumentos de empregos, de sensação de melhorias nas condições de vida das pessoas, de perspectivas positivas. Em 2007 já se estremeciam por todo o mundo os alicerces de um sistema econômico que avançou o sinal, e onde a ganância expôs as debilidades de uma estrutura que era tênue, porque escorada numa especulação financeira desenfreada. Por todo aquele ano alertei em minhas aulas para o desastre que se apresentava como eminente, apesar de escondido pela grande mídia. Mas isso já era abordado por especialistas e publicado inclusive em livros. O ano em que minha filha morreu, pode-se dizer, foi o último ano tranquilo do resto de nossas vidas. E isso não é uma análise amarga causada pela perda que tivemos com sua morte. O ano de 2008, que nos levou a uma imensa escuridão, por ser o primeiro ano sem a presença dela entre nós, foi também o momento de uma grande virada na conjuntura econômica e geopolítica mundial. Tudo seria diferente a partir de então.
Como a acompanhar nosso calvário, naquele sentimento de dor, que ainda nos acomete, mas sufocado pelo tempo e superado por nossas forças de viver, também nossas expectativas de um mundo melhor, de um país diferente, começou gradativamente a se desvanecer. Diferente de nosso infortúnio, repentino e aos poucos restrito a parentes próximos, mas fundamentalmente a mim, como pai, e a minha esposa, como mãe, as desgraças que afetaram o mundo e o país foi, pouco a pouco ampliando e atingindo um número cada vez maior de pessoas. E, ao passo em que fui me transformando pela minha dor e sensibilizado pelo número grande de pessoas amigas que demonstravam sempre o afeto e a solidariedade com nosso sofrimento, percebendo cada vez mais a importância de entendermos o sentido de alteridade por todos os momentos de nossas vidas, o mundo e o nosso país caminhava num sentido oposto, marcado pela disseminação do ódio, do preconceito, da rivalidade política extremamente agressiva (antessala do fascismo), pelo aumento perigoso da intolerância e na incapacidade de entender, compreender e escutar o outro. A crise econômica, num ambiente de consumismo exacerbado e de disputa cada vez mais individualista, arduamente e duramente competitiva, jogou a sociedade humana num enorme poço de dimensões profundas e cada vez mais impossível de se enxergar a luz.
Procurei por esse período ser compreensivo com as diferentes opiniões e formas das pessoas se manifestarem e escolherem suas maneiras de viver e se comportar. Até porque, imerso em minha dor, pouco ânimo eu tive nos primeiros anos depois que perdemos a Carol, de me envolver com qualquer tipo de embates e polêmicas que pudesse significar um confronto com alguém por simples divergências quanto às suas escolhas de vida, política e ideológica.
Mas, aos poucos fui me reencontrando com o meu passado, tristemente sem a minha filha, mas que, sem resgatá-lo eu me afundaria mais e mais na depressão. A sensação de tê-la presente, conforme muito me orientou a psicanálise, foi aos poucos me tirando da letargia e me trazendo de volta para a realidade e para resgatar a minha impulsividade que me marcou por toda a minha militância política, estudantil e sindical. Ainda assim, muito mais compreensivo no entendimento das diferenças, e tendo aprendido muito com as manifestações de solidariedade e carinho de amigos, amigas e até mesmo pessoas distantes que passaram a conhecer nossas histórias, pelo livro que escrevi e pelo projeto criado por minha esposa, concretizado hoje na existência do Instituto Ana Carol, e, através dele, mas que se tornou maior, a Cooperativa de Bordadeiras – Bordana. Assim como pelo despontar para a luta, e com uma formação política inteligente que nos orgulha, de nosso filho Iago, atualmente diretor da União Nacional dos Estudantes, entidade da qual participei em meus tempos de estudante. Embora orgulhosos com isso, o que certamente nos motiva vê-lo seguindo nossos passos e se destacando, mesclamos esse sentimento com outro, a preocupação com a situação de indefinição que ronda o nosso país e a necessidade dele precisar se enquadrar em um mercado de trabalho que se tornará cada vez mais competitivo e excludente pelo ambiente de crise e desemprego crescente. São sentimentos naturais, de pais que se preocupam com o futuro de seu filho, agora único, mas, como já disse em outras oportunidades, que carrega duas vidas pela consequência do acaso e do destino.
Vivemos, portanto, nos últimos nove anos uma luta intensa contra a dor de perder uma filha. Superar tornou-se o verbo que passou a ser por nós expressado intensamente, e superação o substantivo que nos impedia de chegar ao limbo. Isso é algo permanente, que nos acompanhará para sempre. Mas, tendo conseguido nos reencontrarmos com a intensidade que a vida nos impõe em realidade, e sendo uma característica que sempre me acompanhou, percebi que mais do que viver essa realidade eu deveria lutar para melhorá-la, mesmo que como uma gota d’água em um oceano de problemas que nos afetam em nossas vidas particulares, no país e no mundo. Assim, juntamos nossas lutas, sem por nenhum momento nos esquecermos de nossa pequena Carol, uma estrela que nos ilumina, um raio de sol que aponta os nossos caminhos. Iago com sua luta estudantil, essencial para levantar a parcela da população que mais grita e impõe medo aos governos; Celma com seus projetos de economia solidária e cooperativismo; e eu, imerso em um mundo que representa um microcosmo da sociedade, mas que exerce uma enorme importância sobre ela: a universidade.
Mais de uma década depois, (desde do dia 14 de dezembro de 2006, onze anos do sepultamento da nossa pequena, em que entramos na contagem de onze anos sem ela), certamente não somos mais os mesmos. Tornamo-nos diferentes, embora sejamos os mesmos. Eu me sinto muito mais tolerante no tratamento de situações em que o nosso julgamento só pode atingir apenas uma superficialidade do acontecimento. Porque no mais, ir além da superficialidade, impõe que eu conheça a realidade do outro, sua forma de pensar e de viver, suas crenças e escolhas de caminhos por vezes diferentes do meu. O que digo nessas últimas frases representa o sentido de alteridade, aquela necessidade que temos, ou que deveríamos ter sempre, de nos vermos no outro, para que isso facilite cada vez mais a nossa condição de vivermos em sociedade aceitando o jeito diferente de cada um ser, sem preconceitos e mais tolerantes.
Mas isso não tem sido fácil nos tempos atuais. A crise econômica, que afeta as estruturas do sistema capitalista, esse que se impôs hegemonicamente de forma unipolar a partir da última década do século passado, acentuou embates terríveis dentro da sociedade, seja na disputa pelo poder, seja na necessidade de se conquistar um lugar a fim de adentrar o universo do consumismo. Se qualificar e ganhar muito bem, tornou-se uma obsessão, que se descortinou como uma onda, principalmente pela maneira como a burguesia mundial, por meio de seus mecanismos ideológicos de imposição dos valores, via globalização e políticas neoliberais, consolidou na maior parte do mundo. Isso foi bem e criou uma fantasia de um mundo deslumbrante mediado pela concorrência e pelo mercado, mas por pouco tempo. Só que o tempo suficiente para o despontar de uma época marcada por esses valores de forma tão intensa, em função dos meios tecnológicos que se desenvolveram nesse período, que disseminou entre as pessoas um valor das coisas de forma absolutamente fútil, e uma inversão daquilo que antes importava mais. Os sentimentos se diluíram muito mais do que antes, embora já existisse, como uma tendência que só era controlada devido à existência de um mundo socialista que se apresentava como alternativa ao capitalismo egoísta e usurário. Quando aquele mundo ruiu soterrou boa parte das esperanças, enquanto que despertou neste a ganância, a usura e o individualismo. Tudo isso em meio a uma crise imensurável.
Karl Marx, ao escrever o “Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte”, assegurou, numa frase emblemática, que a “história se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa”. Assim, ele procurava dizer que não há repetição da história, e a tentativa de assim querer fazer, não passa de um arremedo do que já havia acontecido. Mas ele possui frases que, mesmo destacadas do contexto em que ele abordou, são emblemáticas porque se aplicam, filosoficamente compreendendo-as, a diversas épocas. E a que eu destaquei consta do Manifesto do Partido Comunista: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.
Iago em manifestação na cidade de
Curitiba, durante greve na educação
O mundo sem minha filha é esse em que, diante uma crise crônica, sistêmica, somos obrigados a compreender as condições sociais em que estamos e como as relações estão sendo destruídas em ambientes onde se fortalece o egoísmo, a ganância e a intolerância. Contudo, e tenho procurado repetir isso sempre que me questionam como superei tamanha dor e de como desejo encarar as dificuldades que estou desafiando, percebi que depois de tantos anos me debatendo contra as injustiças sociais, estudando-as e participando ativamente de lutas para combatê-las, isso é um alimento que me fortalece e me dá ânimo para encarar tempos tão difíceis, mas diante dos quais não podemos nos entregar.
Neste dia 13 vou ao cemitério mais uma vez, como faço todos os anos, e, silenciosamente estabelecerei um monólogo com suas lembranças, reforçando nossas saudades, e refletirei sobre como ela se situaria neste mundo. Se seus desejos, enquanto criança poderiam ter se concretizado, se meus sentimentos seriam diferentes caso não tivesse passado por tamanha dor, se seus beijos e afagos por tantas vezes repetidos manteriam a mesma singeleza num tempo de tantas incertezas, se suas vontades se encontrariam com os verdugos da liberdade, se bateriam contra os arautos da intolerância e encontrariam forças para gritar, como seu irmão, contra as injustiças sociais. Cremos, com toda convicção, que ela carregaria nesses tempos as mesmas indignações e desejos de transformações que correm em nosso sangue, e no sangue do Iago, pois esses valores sempre estiveram presentes em nosso cotidiano, na realidade que vivíamos no passado e no presente.
E, dentre tantas músicas que nos fazem sentir tanta falta dela, quando as escutamos, “Você é linda”; “Jardim da Fantasia”; “Carolina”; “Gostava tanto de você”; “Com a perna no mundo”; “Velha Infância”... uma recitarei de forma especial, porque como tantas sempre nos emociona, e às vezes nos faz chorar, “Pedaço de Mim”: “Oh, pedaço de mim/ Oh, metade adorada de mim/ Lava os olhos meus/ Que a saudade é o pior castigo/ E eu não quero levar comigo/ A mortalha do amor/ Adeus”.
E assim, me dirigirei à minha filha...
Celma e Carol
“Onze anos depois sem você, Carol, em seus vinte e um anos construídos em nossas fantasias, nosso amor se mantém como nos dez anos em que a tivemos ao nosso lado, presencialmente, com afeto, com carinho e com alegria. Nossa vida terá sempre você ao nosso lado, a nos dar forças para encarar os infortúnios, as incertezas e o tempo que nos encaminha para a velhice. E você está sempre presente quando olhamos seu irmão, porque ali estão juntos também seus traços, suas vontades, seus desejos de justiça, seus clamores por um mundo mais justo e solidário e o coração repleto de bondades.
E assim, a cada ano em que passamos mais tempo sem você, nos leva a estarmos mais próximos do dia em que, quem sabe, possamos estar para sempre ao seu lado. Beijos. Seu pai”.
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(*) Este artigo foi escrito em dezembro de 2016. Atualizei-o, porque, em essência, continua a representar o pensamento que me acompanha neste momento em que se completam onze anos da morte de Ana Carolina Oliveira Campos, nossa eterna Ana Carol.



sexta-feira, 18 de novembro de 2016

APESAR DE TERMOS FEITO TUDO, TUDO O QUE FIZEMOS, AINDA SOMOS OS MESMOS E VIVEMOS COMO NOSSOS PAIS

“Eu não vivo do passado. O passado vive em mim”
Paulinho da Viola
Lembro-me de ter ouvido muito de meu pai uma frase que é lapidar, porque ela mostra o quanto vivemos no passado, presos a situações que se passaram em épocas diferentes, mas que insistimos em analisar com o olhar do presente. Ele costumava sempre fazer referência às minhas lutas, ou seja, à minha participação política, iniciando-se com a expressão, “no meu tempo...”.
Meu pai foi vereador na cidade de Alagoinhas (BA), teve uma participação política destacada naquela cidade. Antes de ser parlamentar era atuante no sindicato dos trabalhadores em curtumes. E, em abril de 1964, foi detido em nossa casa por soldados fortemente armados, preso e levado para uma prisão em Salvador onde ficou por cerca de 30 dias. Ele pouco nos falou sobre esse tempo em que ficou preso. Depois de solto, retornou à Alagoinhas, cassado, e abandonou a política. Embora acusado de “comunista”, ele passou ao largo dessa ideologia, e fazia parte do mesmo partido de João Goulart, o PTB de outrora, não esse de hoje.
Evidente que ele tinha uma experiência histórica, que nos orgulhava ao ouvi-lo falar a respeito. Mas que não guardava similaridade com a situação em que eu me encontrava, na década de 1980. Quase vinte anos e muita mudança na conjuntura nacional e internacional, além de alterações no comportamento da sociedade, indicava que os tempos eram diferentes. E de fato era. Vivíamos um período de intensa rebeldia, principalmente entre a juventude, e uma situação de fragilidade da ditadura militar. Era um período de exceção e de dificuldade para a atuação política e o ambiente era de crescimento das forças de esquerda e dos comunistas, embora em meio a uma divisão crescente dessas forças. O movimento estudantil reorganizava-se com muita força e participação, assim como as demais entidades sindicais e sociais de uma maneira geral. Não nos parecíamos em nada com a juventude da década de 1960, embora carregasse parte de insatisfações ainda comuns. Havia uma forte luta pelas liberdades individuais que se espalhara pelo mundo, em decorrência da reação à guerra do Vietnã e às ditaduras militares que cerceavam a liberdade em boa parte do continente americano e também na África. Vivíamos intensamente os tempos da guerra fria.
Outra diferença entre nós era do posicionamento político. Enquanto meu pai enveredou por um pensamento conservador, eu entrei e não saí do espectro da esquerda, e me mantive por todo esse tempo ligado à ideologia marxista, que se tornou base da construção de minhas ideias e formulações políticas.
Mais de vinte anos depois, me deparo com uma situação inversa, eu agora na condição de pai. Permanentemente sentido, pela perda de uma filha, logo aos dez anos de idade, e com um único filho que me restou. Ao contrário de meu pai que conviveu com seis, sendo cinco homens e uma mulher.
Mas que não se imagine isso ser suficiente para que a frase lapidar usada por meu pai, tivesse sido abandonada ou esquecida por mim. Eis que mesmo trilhando um caminho diferente de meu pai, de mentalidade mais progressista, me deparo cometendo o mesmo erro do anacronismo que sempre critiquei nele. Como tive uma atuação intensa no movimento estudantil, imagino sempre poder passar para o meu filho um pouco da minha experiência. Ora, mas já se passaram mais de 30 anos, e de um tempo acelerado e com transformações impressionantes na forma de se organizar e de viver em sociedade, principalmente devido ao forte aparato tecnológico que se desenvolveu de lá para os dias de hoje. Claro que isso não significa necessariamente que os tempos atuais sejam melhores, mas que inegavelmente é profundamente diferente.
“No meu tempo...”! Essa frase nos acompanha. Talvez porque nos espelhemos naquilo que fomos no passado, e porque desejamos que nossos filhos também nos vejam como referências. Quando temos boas referências a lhes passar. Ou porque, como diz Belchior em uma belíssima e clássica música que me aproprio aqui de uma frase que uso como título, “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
Mas, tudo bem que de minha história de luta progressista eu pouco tenha pelo que me arrepender. E meu filho trilha um caminho, parecido com o meu, mas em uma situação bem distinta, quase que completamente diferente, pelo aspecto conjuntural. Não pode caber, nesse caso, a comparação nos exemplos com os fatos presentes. Porque o mundo mudou, e muda sempre. A juventude, que carrega fortemente esse sentimento de rebeldia e de mudança, guia-se por outros valores e comportamentos. E, portanto, suas lutas diferem substancialmente da nossa, principalmente na forma, embora nem tanto no conteúdo. Contudo, insistimos em olhar o presente com as experiências do passado.
Alto lá! Não se trata de negar o passado, nem a experiência vivida, o que é uma condição para evitarmos erros e nos mirar nos acertos. Mas, se a conjuntura é completamente diferente, se os valores da sociedade são outros, se a juventude age com um comportamento bem distinto daquele do passado, provavelmente nossa forma de agir há décadas não se enquadre na maneira como eles veem o mundo e com as influências que direcionam suas ações atualmente.
Foi preciso dias, ruminando entre conflitos internos e interpretações das lutas em curso que se chocam com a radicalidade com que essa juventude está agindo, para que meus olhos se abrissem: embora com mentalidade progressista, me prendo ainda, conforme a música do Belchior, em formas conservadoras que me moldaram no passado. Um passado progressista, mas ao trazê-lo para o presente, ele se torna conservador, pois eu pretendo negar a própria realidade atual.
Travo, portanto, uma desgastante luta intestina, angustiantemente dialética, em meu próprio âmago, para me desvencilhar do olhar do passado. Isso não é fácil. Porque a vida, naturalmente, vai nos tornando conservadores. Envelhecemos, e quanto mais perto do limite de nossas vidas, mais racionalizamos nossas atitudes e nos batemos de frente com comportamentos impulsivos. Ou seja, queremos sugerir racionalidade no presente, em atos e atitudes semelhantes às que nos formaram no passado. Alguns, não. Permanecem ainda com impulsos juvenis, mas creio que muitos desses não passaram pelo processo intensivo da luta estudantil, como eu passei por seis anos. E agem na meia idade como se fossem recompor tempos não vividos. Demoram a amadurecer.
Posto isso, no entanto, não posso abdicar de tecer considerações e formular uma análise sobre esse tempo, e não sobre o comportamento radicalizado de uma juventude em luta. Porque, nesse caso, carrego um acumulo de experiência do passado que me permite uma análise do presente pelas formas de movimento com que as estratégias são estabelecidas. Além do olhar da história, do historiador.
Não vou me escandalizar com a intolerância como se ela fosse fruto apenas deste tempo. Não, ela sempre esteve presente nas sociedades, e mesmo desde os tempos iniciais das civilizações, fundadas em valores religiosos que eram impostos por quem exercia o controle do poder político. Pelos grupos, ou classes que por seu tempo, tornavam-se dominantes.
Mas não há como negar, que na medida em que uma crise de proporções mundiais se acentua, e quando há um evidente declínio do modo de produção absolutamente hegemônico mundialmente, os valores construídos a partir dele, e que constrói toda uma superestrutura fundamentada nos valores por ele disseminados, e portanto determina a cultura de uma maneira geral, se chocam com contradições saídas de seu próprio interior. De uma crise sistêmica, que abala as estruturas da sociedade, passamos a crises de valores, e, principalmente, da aceitação dos valores dominantes incapazes de justificar a degradação da sociedade construída sobre eles. Logicamente os setores dominantes, e as camadas que se situam no topo da pirâmide social, tendem nessas crises a lutarem desesperadamente para assegurarem não perder o que construíram. E passam a exigir mais ações repressivas contra possíveis medidas que lhes causem temores.
Isso foge ao controle. A radicalização no combate ao que se possa sugerir de novidade para confrontar esses valores arcaicos e em crise é combatida ferrenhamente, e os que defendem ardorosamente seus privilégios construídos e tentado ser mantidos em meio aos escombros dessa sociedade, passam a agir com comportamentos intolerantes, que somente espalham mais ódio e destempero a uma situação de crise intensa.
Como lidar com esse tempo, de uma transição que não aponta em direção a nenhum novo sistema que possa substituir o capitalismo? Como entender as novas formas de atuação e manifestação da juventude, em alguns casos absolutamente refratária aos mecanismos tradicionais de organização política?
Como combater a intolerância que se dissemina aceleradamente e não somente destrói relações de amizades, como também implode as famílias a ponto de gerar tragédias de ódio inominável, carnal, um filicídio? O que faz o pai matar seu único filho e se suicidar em seguida, por alimentar um rancor de anos, mas explodido numa confrontação de escolhas de caminhos, de liberdade, de necessidade de se romper o cordão umbilical, algo comum a qualquer adolescente? E, neste caso, uma escolha que se choca com o estilo de vida usual permitido pelos valores do sistema. Um comportamento anarquista que deseja confrontar toda e qualquer autoridade e ser livre das amarras institucionais que nos obrigam a viver em “ordem”, e mirando no “progresso”.
A estupidez e a idiotização das pessoas é absolutamente visível em seus comportamentos, nas opiniões que compartilham por redes sociais que se tornaram propagadores de um ódio insano. Os ataques pessoais, ofensas, injúrias, racismos, homofobia, todos os tipos de preconceitos são destilados raivosamente, temendo a nós, historiadores, que algo semelhante aconteça como nos exemplos perversos do monstruoso genocídio de Ruanda e da guerra cruenta e intolerante ocorrida na região dos Balcãs, que fragmentou a antiga Iugoslávia.
Mas, finalizo me dirigindo aos que defendem outro mundo, marcado pela tolerância e o respeito à diversidade, às crenças e às opiniões. Um mundo onde as desigualdades sociais sejam reduzidas a um limite aceitável. Combater a intolerância, com um comportamento igualmente intolerante, trará pouco sucesso à causa de construção desse novo mundo. A radicalização usada por determinados grupos que se dispõe a ir à luta, mas desconhece os limites dos desejos dos outros, mesmo que esses outros possam vir a ser convencidos da importância de suas lutas, representa igualmente uma estupidez radical estéril. Não soma, não agrega pelo convencimento, e afasta pela rispidez das formas adotadas inconsequentemente. Se o que desejamos é justiça, ela jamais se fará com irracionalidade, pois a base para que a justiça prevaleça é a razão.
Por outro lado, a forma radical expressa na intolerância da aceitação do outro, desperta o outro extremo, que ao reagir com semelhante intolerância transforma a luta geral, numa luta específica, entre extremos, que só pode despertar comportamentos fascistas, ao se fechar em suas verdades, na defesa veemente de suas opiniões como definitivas, e na violência como forma de se impor e de se sagrar vencedor nessa luta. Mas essa pode ser muitas vezes uma vitória de Pirro, e aí não há como não olhar para o passado, pois tem sido sempre assim na história.
Mas, para além das elucubrações políticas e ideológicas que eu possa fazer, existe uma realidade que se consolida, não só no Brasil, como em boa parte do mundo desde que se iniciou este século. 1. A constituição de uma diversidade de movimentos que aglutinam seus componentes organizando-se horizontalmente; 2. a negação da política;  e, 3. a aversão aos partidos políticos e a quaisquer formas de organização que represente a luta pela tomada do poder.
O primeiro item advém de concepções do século XIX, pelo anarquismo, e mais recentemente tomando a forma de movimentos autogestionários, mas que combatem os mecanismos de controle do Estado e se opõem a todas formas repressivas. Combatem, portanto, as formas tradicionais, muito embora ajam também com comportamentos intolerantes, ao não definir objetivamente seu alvo principal e rejeitar outros pensamentos que possam somar no processo de desconstrução do tipo de sociedade por eles criticada. Temem ser engolidos na sequencia de construção de outras alternativas, que para eles não devem seguir nenhum modelo e se organizar horizontalmente. Mas a questão que fica é, como chegar a isso em meio a força de um Estado e de formas de controle consolidadas e difíceis de serem desestruturadas?
Os outros dois não são novidades, mas as formas geradas pelas situações causadas por essas orientações, em circunstâncias diversas, embora parecidas, culminaram nas primeiras décadas do século XX, em regimes totalitários, expressas principalmente no fortalecimento do fascismo, e de sua face mais cruel, o nazismo. O que significa que temos em pleno século XXI, e depois de terem sido combatidos por muitas décadas, pelos dois lados da guerra fria, numa situação de intensificação de uma grave crise econômica mundial, a volta daqueles elementos que jogaram a humanidade em uma guerra estúpida, movida pelo preconceito e intolerância.
Não tenho dúvidas que a maneira de lidar com uma crise que se dissemina por todos os poros da sociedade, e radicaliza todas as formas de luta e de combate, em meio a uma intolerância crescente, é usar de formas radicais de enfrentamento, mas procurando, de todas as formas, atrair para o lado da racionalidade, com a construção de um movimento que se oponha ardentemente à perversão dessa sociedade capitalista, aqueles que nos últimos anos foram seduzidos pela deformação da notícia, pela dissimulação política e pela inversão dos valores que sempre foram defendidos pelos setores progressistas da sociedade. É inadimissível que a radicalidade se volte na forma de “fogo amigo”, e o foco do combate seja desviado, acentuando uma divisão que, lamentavelmente, sempre esteve presente nesses setores.
A juventude tem suas lutas, radicais pela forma, mas também consciente pelos objetivos a serem atingidos. Mas há uma diversidade de atuações movidas por questões ideológicas sectárias, que muitas vezes levam a embates entre si, ao invés de concentrar forças no inimigo maior e mais forte, aqueles que usurparam o poder, disseminam ódio e alimentam as forças de um setor egoísta socialmente, que se aproxima dos jovens como nunca aconteceu.
Saber lidar com essa situação, podendo cada um defender suas posições, mas visando o objetivo comum, é condição sine qua non, para que um novo tipo de democracia possa ser construído, impedindo que a intolerância se dissemine mais do que já está acontecendo. 
Por meios ainda que indefinidos, a juventude de hoje estará construindo no presente o que será o seu momento de amadurecimento pelas décadas que virão. E quiçá isso se dê, futuramente, em uma sociedade menos desigual, mais racional e tolerante do que esta em que estamos vivendo. Mas, certamente, estará convivendo com o mesmo dilema que hoje vive a minha geração, e quem sabe ainda ouvindo a canção de Belchior. Se isso for certo, que cada um e cada uma saibam lidar com seus filhos, compreendendo o tempo deles, e não o seu.