domingo, 28 de maio de 2017

A DEMOCRACIA, A REPRESSÃO E O ESTADO MILITARIZADO

A Nota da Associação da Polícia Militar[1], em reação à reportagem sobre a agressão ao estudante da UFG, Mateus Ferreira, apresentada num programa deste domingo (28/05), é absolutamente irracional. Mostra bem que aqueles princípios norteadores da militarização das polícias, construídos durante a ditadura militar, com a criação do SISNI (Sistema Nacional de Informação), cujo objetivo, seguindo bem a orientação estadunidense incorporada nas elaborações teóricas do estrategista Nicholas Spykman, visava no âmbito da guerra fria identificar os inimigos externos e os inimigos internos.
Assim, todos aqueles que ousavam questionar os valores conservadores estabelecidos pelas políticas dos governos aliados dos EUA, e aqui no Brasil dominado pelos militares, eram considerados subversivos, perseguidos, presos, torturados e assassinados. Não se analisavam o caráter das pessoas, e a justeza de suas causas, mas identificavam naqueles que não concordavam com o regime desajustados criminosos, que eram inapelavelmente eliminados. Invertiam-se os valores, e os crimes de tortura e morte eram justificados como cumprimento aos valores patrióticos. Uma aberração, que causou mortes de gente inocente, que lutavam por uma causa justa, por democracia e justiça social.
Passados tantos anos, mesmo décadas depois do fim da ditadura militar, mantêm-se nas corporações militares aqueles mesmos valores, pelos quais se identificam nas rebeldias de jovens inquietos e inconformados com uma sociedade absolutamente desigual e injusta, como perigosos subversivos e criminosos.
Não estou pregando o comportamento agressivo e de enfrentamento com forças repressivas, até pelo caráter desigual do confronto, e por entender que as lutas em curso devem primar pelo equilíbrio e construção de outra forma de democracia, embora saiba tratar-se de uma tarefa difícil, pelas reações violentas às lutas democráticas. Também deploro a destruição do patrimônio público, porque é um patrimônio do povo e construído por meio de impostos  extraídos do suor da maioria que não sonega. Mas é indefensável usar um argumento de proteção do patrimônio quando se coloca em risco vidas de jovens, quando se adota uma forma repressiva nitidamente letal. E percebe-se que no caso em discussão, isso absolutamente não estava acontecendo, muito menos se identifica Mateus Ferreira em algum ato de depredação, conforme já mostrado por diversos ângulos no momento da agressão por ele sofrida.
O papel da polícia militar é de segurança, de garantias de defesa da segurança da população, primordialmente. Não pode ser de atentar contra a vida. Embora seja inegável que nas circunstâncias de uma atividade de risco muitos policiais perdem suas vidas. Evidente que também é lamentável ver isso ocorrer e deve-se louvar o trabalho daqueles que se dedicam com afinco a uma profissão que é de proteger o cidadão. Contudo, na medida em que se confunde um comportamento criminoso, com uma atitude de rebeldia e insatisfação social, percebe-se uma mudança nos objetivos dessa instituição, e um retorno à maneira como se procedia nos períodos mais violentos e antidemocráticos de nosso país, na ditadura militar. Não pode a democracia ser pior do que uma ditadura, mas no tocante à ação da Polícia Militar, isso está acontecendo. Por isso podemos questionar: que democracia?
A insistência na defesa desse comportamento agressivo em ações individuais e coletivas da polícia aponta em um sério e grave desvio de conduta  dessa corporação, que a afastará cada vez mais do cidadão, que já não tem mais respeito e sim medo, pela forma como se dá essa relação. E, ao se sentir protegido nas reações de seus comandos e de suas entidades de classe, individualmente as atitudes serão desproporcionais, agressivas, violentas e até mesmo com ações letais que atentam contra a vida das pessoas. Nessa direção, já não se faz mais distinção no trato entre o criminoso e o cidadão comum, mesmo que este eventualmente tenha se desviado de sua conduta pacífica. Perigosamente, marchamos para um modelo de sociedade moldada pelo medo e pelo militarismo exacerbado.
Urge, portanto, haver uma reflexão profunda nessa relação, estabelecer formas de treinamento que incorpore valores humanistas e compreensão sobre a importância dos direitos humanos. A segurança pública é essencial em uma sociedade fortemente urbanizada, em ambientes que congregam milhões de pessoas e diante de comportamentos egoístas, gananciosos e consumistas. Essa relação tem que ser estabelecida a partir de valores solidários e comunitários, o que não significa deixar de agir com rigor contra a criminalidade. Mas o que não se pode é identificar em todos ou todas que porventura sejam críticos das estruturas de poder como marginais ou bandidos.
Por essa razão, muito embora vivamos nos espaços da universidade diariamente com uma insegurança crescente, é que nos opomos à presença da Polícia Militar dentro de nossos Campi e regionais. Sabemos que precisamos de segurança, mas por esses comportamentos a presença militarizada da segurança incorreria em outras inseguranças, e certamente em algum momento isso poderia implicar em conflitos, por essa concepção formativa dos quadros policiais. Mas entendemos ser necessário encontrar um meio termo. Naturalmente, no entendimento de compreensão que a juventude é, por essência, rebelde, inquieta e contestadora, e isso é algo insofismável.
A crítica que fazemos aqui deve ser absorvida pelos que comandam o Estado e por consequência estabelecem a política de segurança pública. Para que o foco nos treinamentos dessas corporações seja o respeito às pessoas e a garantia de segurança para a sociedade. Mesmo que não se descuide da segurança patrimonial. Mas quando se estabelece como foco primeiro defender patrimônio, mesmo que à custa de agressões mortíferas contra as pessoas, isso representa uma decadência de valores e nos encaminha perigosamente para um tipo de sociedade fria, inconsequente, onde será impossível distinguir qual tipo de caráter importa defender.
Essas críticas também não podem ser recebidas de forma rancorosa, como se estivéssemos identificando em cada policial um inimigo. Não, essa lógica é o alvo de minha crítica de como se dá no sentido oposto. O que é preciso é assimilar a crítica como uma necessidade premente de se mudar a forma de tratar a juventude, de como atuar em meio à multidão, e de como proceder a uma tática defensiva nessas situações, como é prática em muitos países europeus. Não pode ser jamais uma instituição que existe para cuidar da segurança das pessoas, a primeira a exacerbar a violência. Ela deve, primeiramente, conter qualquer tipo de violência. É plenamente possível fazer isso, sem recorrer a atos que beiram a insensatez e o sadismo no confronto com os movimentos sociais. E considere-se o fato de que a forma como parte dessa juventude se prepara para a guerra, ao ir a esses atos, é consequência do histórico de repressão e de agressividade como a Polícia se comporta. E quanto mais se radicaliza nessa repressão, mais se amplia o número daqueles que assim se preparam para o confronto. Isso não interessa aos que organizam essas manifestações, não contribui para a democracia e aumenta perigosamente o risco de estarmos diante do estabelecimento de um estado policial.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

REPENSAR A RELAÇÃO UNIVERSIDADE-SOCIEDADE

A Universidade Federal de Goiás, como todas as universidades públicas, e até mesmo algumas (poucas) boas instituições privadas, cumprem um importante papel na relação com a Sociedade. Não somente por gerarem, a partir de seus preceitos básicos a que servem, a formação de jovens aptos a se tornarem profissionais competentes, essencial para que possam ter boas condições de vida, como também contribuindo com o desenvolvimento econômico e social nas regiões onde estão instaladas. A formação profissional e a pesquisa são essenciais para impulsionarem transformações socioeconômicas regionais, bem como reforçarem a competência nacional em áreas que são estratégicas para o país.
No entanto, outros elementos nessa relação são necessários, inclusive a formação humanista. É essencial que o conhecimento gerado na universidade, por meio do ensino e da pesquisa, seja levado à sociedade, envolvendo a comunidade de seu entorno, mas que vá bem além disso, ampliando o máximo possível os saberes acadêmicos produzidos.
Mas essa relação não pode ser burocrática, elitista, ou visando tão somente projetos que se adequem meramente dentro das exigências academicistas. Devemos compreender essas ações como objetivos precípuos, essenciais à universidade. Não se limitando, no entanto, a ser tão somente uma relação em que a Universidade apresente sua competência, exteriorizando sua produção e capacidade no âmbito da ciência e da produção do conhecimento. Isso é absolutamente relevante e necessário. Mas é preciso ir muito além disso.
É essencial criar uma sinergia com a sociedade em todos os sentidos, estabelecendo parcerias com organizações sociais, associações de moradores, instituições públicas e privadas, de forma a fazer com que o que produzimos seja não somente mostrado, mas usufruído pela população. E isso deve se dar em todas as áreas do conhecimento. Temos bons exemplos em algumas unidades que atuam em áreas de saúde, no Planetário etc. Mas podemos fazer mais, e melhor, também num sentido reverso, trazendo para dentro da universidade uma competência estabelecida fora dela, na experimentação da vida cotidiana dos saberes tradicionais.
Boaventura de Souza Santos
Creio que a Universidade Federal de Goiás não conseguiu nos últimos anos promover adequadamente esse vínculo, prendendo-se a uma aproximação mediante apresentação de editais com projetos que exigem o estabelecimento dessa relação. Não há crítica sobre esse caminho, embora haja em relação à quantidade de editais, que poderiam ser em maior número, mas tem sido reduzido em função dos cortes de verbas. Mas a universidade não pode buscar uma interação com a sociedade tão somente mediante esse mecanismo. É preciso criar programas que envolvam projetos de pesquisas e até mesmo as disciplinas da graduação. E também atividades que levem o que de melhor produzimos na Universidade à população de maneira geral, em especial às periferias.
Uma experiência recente pode nos servir como exemplo, embora as circunstâncias sejam diferentes, porque é uma universidade que começou recentemente do nada, com uma nova proposta. É o que tem sido feito na Universidade Federal Sul da Bahia, por iniciativa do Reitor Naomar Oliveira. Partindo de elaborações teóricas expostas por Boaventura de Souza Santos, a experiência consiste em reconhecer competências externas à universidade, de saberes tradicionais, identificadas como “epistemologia de conhecimentos ausentes”. Propõe assim uma revolução epistemológica, que passa a ser considerada como uma extensão reversa, de fora da universidade para dentro. O objetivo é consolidar uma relação que fuja de qualquer subordinação da universidade para com a sociedade, mas compreendendo uma relação de troca de saberes, de pesquisa ação. “Compreende, enfim, a promoção de diálogos entre saberes científicos ou humanísticos, que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses, das favelas, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem africana, oriental etc.) que circulam na sociedade e igualmente a compõem.” [1]
Não temos aqui seguido o exemplo de outras universidades, principalmente as do Nordeste, que se envolvem fortemente com as culturas locais. Uma simples olhada nos sites dessas universidades, comparando-as com o que temos feito na UFG já é possível perceber a diferença de foco.
Propomos reverter essa situação. Entendemos que podemos fazer mais e melhor, promovendo nossas competências, mas valorizando a cultura local e regional. Produzindo ações que permitam o conhecimento do que é produzido para além dos muros da universidade e que podem ser representado em nossos espaços: música, folclore, cinema e artes.
O que é produzido de forma competente na Universidade deve ser mais conhecido e reproduzido na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, devemos também abrir as portas da Universidade para o que é produzido de forma profissional ou até mesmo por meio de iniciativas populares em cidades onde certas festividades e folclores já se tornaram tradicionais. Propomos realizar festivais de música, teatro e folclore, transformando o ambiente acadêmico e fazendo pulsar em nossos campi e unidades regionais um pouco do que representa a arte e a cultura goiana.



sexta-feira, 5 de maio de 2017

UM TEMPO DE DESESPERANÇA. COMO ENFRENTAR ISSO?

Tenho insistido há algum tempo sobre o quadro político e social que tem nos afetado, e à toda sociedade. Minhas inquietudes ultimamente se concentraram na situação de acomodação da universidade, ambiente que deveria ser, por excelência, o oposto disso. Mas o que vemos na universidade é reflexo do que se passa na sociedade.
Nessa circunstância os arautos do caos despontam por todos os lados, mas carregam consigo uma espécie de maldade, decorrente de uma visão catastrófica do mundo e da realidade em si. Nesse ambiente de crise econômica, política e social, as pessoas ficam fragilizadas, porque, majoritariamente, não conseguem compreender todas as teias que são responsáveis por construir o tecido social no qual cada um de nós está envolvido. Muitos veem sua própria realidade como a dimensão do geral, e não a dimensão do que ocorre no geral influenciando em sua realidade.
Mas essa situação de acomodação não é fácil de ser revertida. Porque a rotina incrustrada no cotidiano de cada um impede que percebam que vivemos nossa vida de forma absolutamente repetitiva. Muitos dos que vivem nessa situação, porque a própria condição de suas atividades exige, não tem essa percepção e julgam estar dando o melhor de si para cumprir o que é exigido. Segue-se também a essa forma de se comportar alguns valores religiosos que lhes movem, pelos quais cada um deve dedicar-se a uma vida cordata, fazendo sua parte, e assim contribuirá positivamente para tornar o mundo melhor.
Essa é uma visão absolutamente individualista e nega peremptoriamente a condição do que seja viver em comunidade. E talvez essa seja uma das principais condições para a acomodação. E que poderíamos, em qualquer circunstância, também chamar de alienação social, pela qual o indivíduo perde a capacidade de perceber que ele, por sua ação, qualquer que seja, mesmo a imobilização, é fundamental para a formação da sociedade e até mesmo para a definição da política. Nessa circunstância ele, o indivíduo, ou ela, a pessoa, passa a aceitar tudo como normal, ou natural ou divino. A sua imobilidade, ou o fazer individual, conforma, e mantém as coisas numa direção retilínea e daí podemos falar de um comportamento conservador, porque passa a ver qualquer mudança como ameaçadora.
É claro que na política, no âmbito de relações democráticas, isso é aproveitado por quem disputa algum cargo ou função, cuja decisão esteja atribuída aos que serão dirigidos. Em situações de crise, como a que vivemos, há sempre uma dúvida atroz entre apostar em algo novo, o que sempre é visto com indisfarçável desconfiança, ou se definir (de forma conservadora), pela manutenção de quem possa representar a continuidade rotineira de sua situação. A acomodação leva ao medo de mudar.
Mas, por outro lado, há também parcelas significativas da sociedade que assumem postura oposta. E sentem-se seduzidas por discursos radicais, em muitos casos vazios de conteúdos que apontem em efetivas mudanças, mas que tocam fundo em revoltas incrustradas, seja por condições pessoais ou até mesmo por decepções políticas. A aceitação de tais discursos aleatoriamente, movida por sentimentos muitas vezes egoístas ou marcado por revanchismos ou mágoas, quase sempre resulta em apostas arriscadas, porque não se considera que tais decisões são podem ser movidas por olhares individualizados, com focos específicos em seus interesses particulares, mas necessariamente deve-se ver como os resultados de tais escolhas representarão positivamente no conjunto da sociedade ou da comunidade.
Ou seja, a manutenção de uma situação de normalidade, pelo medo da mudança, pode resultar na impossibilidade de se verificar erros que são cruciais para corrigir os rumos que tendem a levar às crises. Até porque isso significa, quase sempre, a concentração de mais poder naqueles grupos que se mantém à frente de instituições e do Estado. Isso pode não acontecer se a mudança significar o rompimento com práticas democráticas e o desvirtuamento de ações em prol do bem coletivo. Porque resultante em benefícios que sejam direcionados para a solução de desvios que impedem a justiça social.
A aposta cegamente no discurso sectário, moralista somente no sentido de se aproveitar das circunstâncias da insatisfação com denúncias em curso, e não como uma necessidade de mudança sistêmica nas estruturas que garantem essas práticas, e o objetivo elitista de atender a uma camada mais instruída, detentora da capacidade de formar a opinião pública, tende a resvalar para a intolerância, o preconceito, a xenofobia e a desconfiança com o ouro. Passamos assim a viver em um ambiente de absoluta fragilidade no âmbito das relações sociais. O tecido social rompe-se, o individualismo se acentua, a perda da autoridade se amplia e a violência assume um patamar de difícil controle. Alimentar esse discurso é irresponsável, e pode levar a sociedade ao caos, e a conflitos que destroem as relações e nos empurra por caminhos tortuosos.
Mas, nessa situação, em que a sociedade ou uma comunidade, já esteja submetida a uma situação como a descrita na maior parte desse artigo, que numa situação de crise ou dificuldade também é marcada pela desesperança, ou seja, quando a normalidade já assume ares de patologia, de normose, fazer com que as decisões sejam racionais torna-se bem mais difícil. A insegurança e a desesperança terminam por conduzir as decisões, e a capacidade crítica submete-se aos temores e aos medos condicionados pelo receio da mudança.
Urge sermos persistentes. Essa é uma situação semelhante à de um indivíduo que entra em um processo depressivo crônico. Somente com muita dedicação, insistência, convencimento e busca pela superação, seremos capazes de realizar mudanças que altere os rumos de situação que nos leva em direção ao abismo. E, se vivemos em estruturas democráticas, a não alternância pode ser um dos fatores que nos deixam com a sensação de que nada é possível mudar. Ou, que se mude, mantendo-se os mesmos, para que tudo continue como está.
Apostar na mudança, no novo, na novidade, não necessariamente deve ser uma aposta no desconhecido. Mas acreditando na capacidade de transformações efetivas em direções que nos levem adiante, de forma segura e que nos inspire confiança. Não podemos ficar presos ao passado, submetidos a condições em que vivemos em determinadas conjunturas, na ilusão de que se possam adotar as mesmas práticas em circunstâncias diferentes. Muito menos pode significar retrocessos, em escolhas por algo ou alguma proposta que já tenha sido experimentada no passado e que pode representar retrocesso ou grave anacronismo que pode também exacerbar crises e reduzir as possibilidades de transformações.
Como diz o saudoso Belchior: “No presente a mente, o corpo é diferente. E o passado é uma roupa que não nos serve mais”.