terça-feira, 24 de outubro de 2017

OUTUBRO! EM 1917, HÁ 100 ANOS, TREZE DIAS ABALARAM O MUNDO

Outubro! Mais do que um mês, esse nome simboliza uma virada na história. Embora pelo calendário antigo (Juliano) – são treze dias de diferenças do atual (Gregoriano) –, neste mês ficou marcado um dos mais importantes acontecimentos do Século XX, que alterou pelas décadas seguintes a configuração geopolítica do mundo. De 26 de Outubro a 7 de novembro de 1917. São treze dias de um calendário para outro. Treze dias que abalaram o mundo (claro que estou fazendo uma leitura temporal livre).
Impressionado com esse importante fato histórico, e já envolvido com uma militância política no movimento estudantil, eu não tive dúvidas na hora de escolher o nome da chapa com a qual eu concorreria à presidência do Centro Acadêmico de História da UFG. O ano era 1982, e ainda vivíamos a ditadura militar, mas já com uma tênue abertura política em função dos desgastes que enfraqueceram o governo dos militares. Naquele ano aconteceram as primeiras eleições para governadores após o golpe militar de 1964.
Mas independente desse enfraquecimento, nós que estávamos na universidade, não temíamos assumir nossas posições ideológicas. E no curso de História respirávamos rebeldias. Quase unanimemente as lideranças do movimento estudantil se posicionavam à esquerda no espectro geopolítico da guerra fria. E aqui no Brasil a ditadura, por sua própria característica cerceadora das liberdades individuais, tornava essa escolha óbvia para boa parte da juventude universitária. Principalmente nos cursos de Ciências Humanas, embora não somente nestes.
Por isso a Revolução Russa era impactante. Ela representava um anseio de liberdade, que vinha acompanhado da crítica ao capitalismo, pelo seu caráter opressor e fomentador de perversas desigualdades sociais.
Enfim, a paixão por esse fato histórico impactante ocorrido em 1917, mas no mesmo mês em que ocorreriam as eleições para o Centro Acadêmico, naquele momento 65 anos depois, nos levou a escolha do nome da chapa: OUTUBRO! Não houve divergência, e também não teve concorrência. A eleição ocorreu com chapa única, e o slogan, igualmente ousado, mais do que nos inspirar refletia o nosso sentimento: “Outros Outubros virão!”
No entanto, tínhamos opiniões diferentes quanto aos rumos das transformações geradas por aquela revolução, que transformou a Rússia na União Soviética e colocava em prática as ideias e teorias do socialismo, apresentadas pelas formulações de Marx, Engels e outros que se destacaram na crítica ao capitalismo no século XIX.
A Revolução Russa nos unia enquanto instrumento de transformação social, era a nossa inspiração, juntamente com a Revolução Cubana, mas nos dividia quanto aos rumos e métodos adotados na consolidação do estado socialista e de como ele influenciaria nos rumos da revolução mundial. As divisões que viriam a ocorrer nos períodos que se seguiram no processo de consolidação do governo revolucionário, se mantiveram como uma chaga na esquerda, e se refletem nos dias atuais.
Era natural que acontecessem as cisões. Somente mergulhando no entendimento do que era a complexidade da Rússia naquela época para compreender por que. Não bastassem as dificuldades naturais de um país com as dimensões russa se recompor de um processo de deposição de governo por meio violento, de uma ação revolucionária; de estar em meio a uma guerra mundial (1914-1918); e de logo em seguida enfrentar uma guerra civil que durou cinco anos, a saúde de Vladimir Ilitch Lênin não permitiu que ele liderasse por mais tempo o governo bolchevique soviético. Com sua morte prematura (1924) diante da construção de um poder socialista do qual foi o principal arquiteto, fez com que acentuasse as divergências internas, antecipando uma disputa pelo controle da direção do partido e do Poder na URSS.
As diferenças que foram explicitadas a partir daí acompanharam o movimento marxista internacional de forma indelével, e representam as principais razões porque é tão difícil uma unificação dos grupos, organizações e partidos que se dizem herdeiros do espólio leninista.
Mas não desejo aqui fazer análise dessas divisões. Particularmente me situo em um desses lados ideologicamente, mas compreendo que a radicalidade desse desentendimento e a conjuntura política mundial dominada pela guerra fria, nos fez adotar um comportamento refratário às críticas que se faziam ao burocratismo e excesso de centralidade nas decisões, funcionando na lógica de que as direções não erram, acentuando vaidades e enxergando inimigos em qualquer um que ousasse emitir opiniões críticas ou contrárias àquelas encaminhadas pelos dirigentes. A bipolaridade mundial no âmbito da geopolítica refletia-se internamente nos partidos, que sofriam de outro tipo de bipolaridade e, mais grave, de uma esquizofrenia crônica, que levou à perseguições e prisões de muitos daqueles que estiveram à frente da revolução.
Embora eu considere compreensível que o poder soviético devesse exigir bastante disciplina, em função da realidade vivida, de extrema dificuldade de lidar com a transição para o socialismo e tendo que enfrentar um cerco dos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, então potência em ascensão, seguramente houve excesso no tratamento de questões muito sensíveis a uma população miserável como a russa daquele momento. É bem verdade que não haveria tratamento mais ameno, caso houvesse sido consagrado o grupo que fazia oposição àquele liderado por Stálin. A começar pelo comportamento mais agressivo de Trotski na relação com o campesinato. A bem da verdade, o grupo estalinista era considerado à direita de Lênin, principalmente por tomar atitudes mais diplomáticas em determinadas situações. O exemplo claro disso é toda a polêmica em torno do tratado de Brest-litovsk, cujo comportamento de Trotski levou a um acordo em piores situações do que o inicialmente proposto e definido por Lênin. Enquanto Stálin era mais pragmático, embora duro em suas decisões, Trotski adotava uma postura mais sectária e refratária à determinadas alianças que pudessem ser vistas como ideologicamente nocivas à consolidação das transformações socialistas. Ademais, e esse era um aspecto crucial das divergências que despontavam e que se seguiram, Stálin considerava a necessidade de fortalecer a revolução e construir o socialismo na União Soviética, para só depois se buscar ampliá-la para outros países. Trotsky, e os trotskystas, desejavam que a revolução se espalhasse imediatamente, já que não acreditavam que fosse possível construir o socialismo em um país isoladamente, e pregavam a revolução mundial.
Essas divergências se acentuariam com a morte de Trotski, no México, para onde foi exilado após os chamados expurgos dos processos de Moscou, onde por determinação do Comitê Central do PCUS, foram analisados casos em que certos comportamentos e ações, inclusive de dirigentes, foram considerados traições. Seu assassinato foi atribuído a um agente disfarçado a serviço da URSS. Embora outras versões indiquem que se tratou de um crime passional, devido a Trotsky ter se tornado amante da companheira do assassino. São versões que servem ideologicamente para justificar o maniqueísmo, mas há evidências da radicalidade que tomou as divergências existentes entre os dois grupos, e de que isso incomodava os dirigentes soviéticos.
De certo é que isso se espalhou por todos os cantos do mundo, e paralelo à guerra fria que opunha os dois mundos, capitalismo x socialismo, acentuavam-se as divergências entre as duas principais correntes que existiu no processo da revolução soviética dentro do PCUS. Mas isso já vinha desde as divisões entre mencheviques e bolcheviques no antigo Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), afinal, Trotsky era uma liderança menchevique que aderiu aos bolcheviques ainda antes do eclodir da revolução. Essas divergências nunca foram sanadas, mas enquanto se deu o processo revolucionário estiveram juntas na destruição da Rússia czarista e ambas foram responsáveis, portanto, por um momento ímpar na história mundial, quando de forma organizada um ideal de sociedade foi implantado, seguindo-se as teorizações feitas desde a elaboração do Manifesto do Partido Comunista e da constituição da Associação Internacional dos Trabalhadores, que foi o embrião da Internacional Comunista, e que teve como protagonistas principais Karl Marx e Friederich Engels.
É absolutamente impossível tentar entender a Revolução Russa, bem como todas as divergência que se seguiram na construção do socialismo e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sem o entendimento da conjuntura política daquele momento, e das transformações que aconteceram após esse fato e o fim da segunda guerra mundial. Mas, inegavelmente, coube a Vladimir Ilyich Ulyanov, conhecido como Lênin, não somente apontar o momento preciso do golpe fatal que derrubou o governo dos Romanov, como também, logo depois de seu retorno à Rússia e seu desembarque na Estação Finlândia, comandar e liderar a reação dos operários, trabalhadores, soldados, camponeses na tomada dos poderes, ocupação das fábricas e das terras. E foi exatamente na relação com os camponeses, e na definição do cooperativismo e coletivismo, que a radicalidade levou a um extremo que significou um confronto sangrento que se seguiu ao final da guerra civil. Boa parte dessas dificuldades foram enfrentadas por Lênin, mas sua morte prematura certamente influenciou na forma como os confrontos seguintes aconteceram, bem como no tratamento com as divergências internas no PCUS.
A ascensão de Stálin ao poder foi certamente polêmica. Suas características divergiam da forma de agir de Leon Trotyski. Mas a ascensão do nazismo o transformou numa liderança forte, numa condição necessária para conter os avanços da Alemanha e, ao mesmo tempo, realizar todo um processo de transformação interna que colocasse a URSS em condições de impedir que Hitler conseguisse o objetivo de ocupar o território soviético. E isso aconteceu, fazendo com que os soviéticos, muito embora registrassem as maiores perdas durante a guerra, em especial no cerco à Stalingrado, fossem fundamentais na derrota do nazismo e na ocupação de Berlim, pondo fim a segunda guerra mundial.
Pode-se dizer então que o que tornou Stálin um dirigente forte, foi não tão somente seu estilo e a rígida disciplina imposta, como também o medo da URSS sucumbir aos avanços nazistas. O resultado desse embate, seguramente, fortaleceu o poder de Joseph Stálin, como também elevou a União Soviética a segunda maior potência do planeta, e iniciando um processo de rivalidade com os Estados Unidos, conhecido como Guerra Fria, que durou do final da segunda guerra mundial até 1991, momento em que a crise no países socialistas atingiu em cheio a potência comunista, fragmentando o que foi um grande império, que exportava sua revolução a outras partes do mundo, embora não tenha conseguido firmar para todo o mundo o ideal do socialismo.
Após cem anos, o legado da revolução soviética continua forte. Foi experimentado quase que em circunstâncias parecidas, mas com proporções diferentes, em Cuba e na China. E, vem a ser este país aquele que na mudança para o século XXI passou a se constituir como o principal exemplo vivo daqueles ideais. De Mao Zedong a Xi Jinping, embora mesclado com uma economia de mercado, o socialismo ao estilo chinês se consolida, pelas mãos do Partido Comunista Chinês, e fortalece-se enquanto uma referência para quem deseja identificar um modelo que possa ser alternativa ao capitalismo.
A experiência russa, inspirada na Revolução Francesa e na Comuna de Paris, seguirá espelhando outros exemplos conquanto se acentue a crise que afeta rotineiramente o sistema capitalista. Mas, como a ideologia dominante se impõe, aberta ou rasteiramente, os desvios, perversidades e egoísmos que marcam o sistema hegemônico mundialmente, não são identificados como problemas sistêmicos. E a cada momento em que uma voz destoante à esquerda aponte esses desvios, imediatamente os conservadores e reacionários buscam no medo identificar o socialismo e o comunismo como responsáveis pelas desgraças do mundo. No entanto, é visível que isso ocorre como uma óbvia contradição na forma de funcionamento do capitalismo, baseado na ganância e na usura, e tendo no individualismo e no consumismo o motor que nos encaminha em direção a um abismo.
Resta repetir as frases que embalaram os movimentos que levaram até à revolução russa e ainda se mantém atuais: “Trabalhadores de todo mundo, uni-vos”, e... “Abomináveis na grandeza,/Os reis da mina e da fornalha/Edificaram a riqueza/Sobre o suor de quem trabalha!/Todo o produto de quem sua/A corja rica o recolheu./Querendo que ela o restitua,/O povo só quer o que é seu!” (A Internacional. Por muito tempo o hino da União Soviética).
Outros Outubros virão!

domingo, 15 de outubro de 2017

REFLEXÕES SOBRE O NOSSO TEMPO E O COMPORTAMENTO HUMANO

Fiquei um tempo afastado das postagens no Blog, em função de duas seleções de textos que estive fazendo, com o objetivo de lançar dois livros com artigos aqui já publicados. Mas nesse período não deixei de estar atento às polêmicas e situações políticas que afetam o nosso cotidiano. Expressei em alguns momentos nas redes sociais algumas opiniões, embora bem pontuais, sobre polêmicas que se disseminaram rapidamente. Situações tornadas mais complexas em função da condição em que estamos vivendo, com uma radicalidade política que tem feito explodir comportamentos estúpidos e intolerantes. Contudo, as questões nas quais me senti estimulado a comentar, tem a ver com o objetivo que me propus a voltar às crônicas neste blog.
Como historiador que analisa as sociedades com base na dialética percebo que estamos vivendo uma crise estrutural, sistêmica, consequência do choque de contradições na forma de funcionamento das relações de produção capitalistas. Em outros tempos, em outras formações sociais, situações parecidas também aconteceram, levando a transições longas e dolorosas, porque são situações que intensificam como num efeito dominó, diversas outras crises por todos os setores da sociedade. Inclusive no crescimento da violência, da intolerância, do individualismo, do messianismo e dos atos e gestos tresloucados, individuais ou coletivos. A grande diferença, comparando-se com outros momentos da história, é a rapidez com que os acontecimentos chegam ao nosso conhecimento, gerando medo e histeria coletiva numa intensidade muito maior. Além de existirem atualmente mecanismos de comunicação que dão vozes a qualquer um, disseminando crenças, boatos e ampliando a dimensão dos fatos a níveis bem maiores do que os normais. Ou do que se poderia considerar normais em determinadas circunstâncias. É o que vem sendo chamado de "pós-verdade". O que nos assusta, para além dos medos que nos agrilhoam, é saber que noutros tempos as sociedades só conseguiram sair dessas mesmas crises por meio de grandes guerras. Para confirmar meu olhar dialético, concluo com uma frase atribuída a Karl Marx, por Vladimir Saflatle (não consegui encontrar a fonte, por isso atribuo a este): "A situação desesperadora da época na qual vivo me enche de esperanças". (http://www.ihu.unisinos.br/540154-enfim-o-desespero).
Atenção! Tudo é perigoso.
Acompanhei também, equidistane, a polêmica em torno do “homem nu no museu”, e a reação conservadora eivada de intolerância que se seguiu. Considero uma aberração estabelecer censuras a museus.  Nos leva de volta para o passado, em tempos nos quais as liberdades individuais foram sumariamente suprimidas. A diversidade que se apresenta nos museus e teatros refletem as diferenças que existem em nossa sociedade. Não é segredo, não pode ser escondida. Aliás, as camadas pobres já não são estimuladas a frequentarem e ver um mundo diferente daqueles que eles habitualmente vêem e vivem, sejam em museus ou em teatros. Portanto, manifesto apoio a toda e qualquer forma de luta contra mais esse ataque retrógrado às liberdades.
No entanto eu também tenho minha opinião, e o que desejo é exatamente essa liberdade de expressá-la. Corpo nu, não é arte pra mim, nem em museu nem nas páginas da playboy ou outras revistas do gênero, seja masculina, feminina ou LGBT. É simplesmente um corpo nu, objeto de curiosidades e desejos numa sociedade em que o hábito é andar com alguma roupa. Isso é tão estranho quanto o fato de não poder andar de biquinis ou sungas pelas ruas, mas poder usar e ser visto/a assim nas praias. Tudo questão cultural. De liberdades outras que se permitem em campos de nudismo, mesmo que com regras. As performances feitas com corpo nu podem ser feitas com roupas íntimas, de ceroulas, saias, bermudas ou de qualquer jeito. A arte está nas performances. Mas essa é a minha opinião. Por isso eu quero ter a liberdade de poder analisar e opinar, de ver ou de não querer ver. Impor censura nos leva a práticas ditatoriais e totalitárias. É precedente perigosíssimo, como tantos outros estão acontecendo. É melhor nos ligarmos no grito contido na música de Caetano: "Atenção: Tudo é perigoso. Tudo é divino maravilhoso. Atenção para o refrão. É preciso estar atento e forte..."
(https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44718/)

MENTES ESCRAVIZADAS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Para além dessas polêmicas, tenho me batido também contra um vício, que para nós professores, tem sido um golpe mortal na possibilidade de conseguirmos chegar ao final de uma aula com o prazer de ter cumprido o nosso papel, podendo receber como feed back uma demonstração de interesse por mergulhar em busca e transmissão do conhecimento. Refiro-me à dependência tecnológica que tem afetado a juventude, mas não somente esta, como também às pessoas de uma maneira geral.
E, quando nós professores, perdemos um bom tempo de nossas aulas, ralhando com alunos e alunas, insistentemente, para que não usem seus smart-fones em sala de aulas, significa que chegamos a um ponto de difícil retorno à nossa condição humana.
No livro, “Eu Robô”, escrito em meados do século XX, Isaac Asimov cria, em ficção, diversas situações que demonstram os avanços da robótica e o desenvolvimento, até mesmo no campo da inteligência, de máquinas que substituiriam os humanos. No clássico “Blade Runner”, de Philip K. Dick (1968), os humanos são substituídos por androides, chamados replicantes, que gradativamente também vão adquirindo inteligência, sensibilidade e a capacidade de sentir prazer. Para completar os clássicos, também Stanley Kubrick avançou nessa direção, praticamente afirmando a possibilidade de robôs/andróides serem capazes de desenvolverem suas inteligências, a partir de protótipos criados por corporações. Todos esses livros ou roteiros foram transpostos com sucesso para o cinema, este último amplificado por Steven Spielberg (A. I. 2001). A Inteligência Artificial, elemento presente em todas essas obras de ficção, hoje já ultrapassa essa condição, e se torna algo objetivamente real, com o desenvolvimento dessa capacidade em computadores e já também em robôs.
Mas o que tem isso a ver com a minha decepção em relação ao uso desmedido de smart-fones, inclusive em horário de aula? Porque isso demonstra que, gradativamente, e de forma mais acentuada com as mais novas gerações, o cérebro vai aos poucos tendo partes descartadas por falta de uso, já que não somente isso é um objeto de distração, como vai sendo substituído pouco a pouco pela “inteligência” artificial. E propositadamente coloco a expressão entre aspas, porque não se trata, enfim de inteligência que possa adquirir capacidade crítica, na medida em que cada vez mais o uso desses aparelhos desvia a atenção da juventude, anestesia sua capacidade de reflexão de forma mais aprofundada, retira-os implacavelmente do mundo real e contribui para a disseminação de atos de estupidez e intolerância, na medida em que o poder de discernimento vai, pouco a pouco, perdendo-se em meio a uma infinidade de informações mal processadas e não verificadas em suas autenticidades. Com as devidas e raras exceções.
Claro, os aparelhos são os transmissores, os equipamentos que permitem a determinados programas cumprir esses objetivos. As redes sociais disseminam-se celeremente, afetam rapidamente a rotina e o cotidiano das pessoas. Parecemos cada vez mais com zumbis, inclusive em plenas vias urbanas e até mesmo no trânsito, absolutamente distraídos em relação ao mundo real que nos cerca, e completamente absortos em um mundo virtual, distante e desatento do nosso lócus.
O uso excessivo de smart-fones já se constitui em um vício. Algo devidamente diagnosticado como uma patologia, inclusive com tipos de tratamentos semelhantes àquelas pessoas viciadas em drogas fortes. Naturalmente, como tantos outros vícios, as pessoas não tem essa percepção. Informam-se, divertem-se, trabalham, leem, estudam, e dessa forma encontram sempre uma justificativa para o uso exagerado desses aparelhos. Ora, muitos fazem tudo isso. Confesso que também eu. Mas devemos ter a capacidade de saber dos nossos limites, ou até onde podemos sucumbir às máquinas. Algo que aliás, o geógrafo Milton Santos, morto em 2001, já alertava para esse caminho que a humanidade estava seguindo, em que estávamos sendo dominados pelas máquinas, ou pelos objetos.
Acredito que o limite disso tudo chega a um nível perigoso quando as novas gerações trocam o saber pelo instrumental, o conhecimento pela informação, a objetividade pela superficialidade, e o real pelo virtual. Ao nos depararmos com jovens que diante de seus professores, em plena sala de aula e durante a exposição do seu mestre, prefere acessar esses aparelhos, começamos a nos sentir derrotados naquilo para o qual dedicamos boa parte de nossas vidas. Já não faz mais sentido, mesmo que por enquanto ainda não seja uma maioria a fazer isso. Mas se não impomos restrições essa maioria aparece rapidamente.
Creio que um filme (três, na verdade) nos possibilita discutir isso com precisão. Mais um desses filmes, naturalmente. Embora tenha sido produzido atemporalmente. Ou seja, antecipou uma realidade que veio despontando ano a ano depois de sua produção: a trilogia Matrix. Talvez esse seja um filme de grande relevância para debater com a nova geração, mas duvido que consigamos convencer aqueles que já estão numa dependência doentia na relação com esses aparelhos.
Ademais, e isso é fato, a maneira como esses aparelhos possibilitam os contatos virtuais, encurtam as distâncias entre as pessoas, muito embora as distanciem fisicamente, tem possibilitado a difusão de mentiras, boatos, notícias falsas, “fakes” (que pode ser tudo isso), e potencializado a disseminação de ódios, preconceitos, intolerância e atos estúpidos, pois criam condições que encorajam pessoas que não se manifestariam, e não se manifestam, presencialmente.
São caminhos perigosos que trilhamos nesse momento de insensatez, visível nos atos e gestos do boquirroto que assumiu a condição de presidente da maior potência econômica e militar do planeta, fazendo bom uso dessas tecnologias e desses mecanismos geradores de estupidez. Sua campanha foi um exemplo de como nossos destinos estão submetidos às neuroses coletivas provocadas por “verdades” produzidas em laboratórios de marketings. Somos, cada um de nós, cobaias de novos experimentos que analisam comportamentos e criam inteligências artificiais mais espertas do que a maioria dos mortais, entregues que nem zumbis aos deslumbramentos tecnológicos.
Ainda há tempo para adquirir capacidade crítica, resistir e combater.  Um outro mundo é possível! Mas estamos perdendo batalhas importantes.