quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O VÍRUS DA FÉ – O VELHO FUNDAMENTALISMO

No momento em que escrevi este texto estava um pouco distante do meu lugar. Paradoxalmente, estava no norte do Tocantins, em Xambioá, mais uma vez participando do Grupo de Trabalho que busca vestígios dos corpos dos guerrilheiros mortos, para que suas famílias, por suas crenças e fé, possam dar sepultura digna aos que lutaram contra a ditadura militar na Guerrilha do Araguaia.

Mas não estava longe o bastante que me tirasse do mundo real, daquele em que as teias que nos envolvem nos mantém permanentemente atentos e sempre dispostos a procurar intervir de alguma maneira. Devemos ser, na medida em que adquirimos a capacidade de entender as contradições e ver a vida sempre criticamente, agentes ativos que não só compreendem, mas que tornam-se partícipes em momentos cruciais a determinarem transformações radicais no ambiente em que vivemos. Neste mundo real.

E é dele que quero falar e o que direi será impactante, porque não é usual. E certamente desta vez eu irei de encontro a valores tradicionais, motivado pelo embuste que se tornou o processo eleitoral brasileiro. Pela onda de hipocrisia, comportamentos medievais e pela reação de uma multidão de mentes anestesiadas por aquilo que Richard Dawkins denomina de “o vírus da fé”, que “infecta geração após geração e torna-se uma arma mortal de intolerância em todo o mundo” (http://www.youtube.com/watch?v=LzXAaY9TWek).

No meu texto anterior, a que eu denominei de “o novo fundamentalismo” eu abordei em parte esta questão. Foi interessante perceber como no decorrer da semana o assunto entrou de vez em discussão tanto pelos meios de comunicação tradicionais, como pela internet, via emails e blogs.

Fico feliz em ter me antecipado e perceber que a leitura que faço, através daquilo que denominei Gramática do Mundo, se demonstra correta. Não é suficiente olhar o mundo tal como ele nos é mostrado, seja pelas belezas que ele possui ou pelas desgraças que acontecem. É preciso descer ao limite de suas contradições para entender quais os mecanismos que o movem e de que são feitos as emoções, atitudes e escolhas do ser humano.

Não quero desrespeitar os que têm suas crenças, fé e seguem uma religião. Apenas manifesto uma outra posição, dos que não crêem em divindades e não professam nenhuma religião.

Já de há muito tempo venho me batendo contra o crescente domínio das visões fantasmagóricas de mundo, e abertamente me escandalizado com o aumento do número de pessoas que se submetem cotidianamente a uma absurda lavagem cerebral. Nunca o mundo foi tão dominado pelo medo. Este passou a se constituir o principal mecanismo de controle e de determinação de modos e estilos de vida das pessoas.

Os anos 90 foram responsáveis por trazer à tona, juntamente com as novas idéias (neo)liberais dois elementos que definiram a maneira como dali em diante faríamos uma leitura dos nossos comportamentos. O crescente individualismo, em contraposição a uma derrota que se propunha coletivista, e a isso se completava o crescimento de uma enorme quantidade de lixo literário denominado de “auto-ajuda” (que vem a ser a maneira mais idiota de se acreditar que se está superando algo sozinho quando se está lendo sugestões de um indivíduo e sendo acompanhado por milhares de outros pobres solitários a enriquecer alguns experts em dar conselhos para desesperados cidadãos consumistas, estressados ou sem-dinheiro).

O outro, vem na esteira deste, porque está fundamentado no individualismo, e numa auto-ajuda fortemente inspirada em uma mãozinha que deva ser dada por deus. Você irá vencer por si próprio, mas se você não acreditar em deus, de nada lhe adiantará. Devo assim dizer que é uma auto-ajuda divina. Segue-se assim a velha lógica protestante, calvinista, segundo a qual você não deve se preocupar se enriquecer mais do que os outros. Deus definiu o seu futuro assim, não se envergonhe. A não ser que você não “creia”. É de bom grado não se esquecer de se esforçar para ser merecedor de tamanha confiança. Tu, porque o outro, ao seu lado (a maioria, aliás), não foi merecedor e “só deus sabe porque”. Tal qual aquele jogador que faz um gol e ergue os braços aos céus admitindo: “sou um abençoado, obrigado, meu deus”. Ora, e os demais, porque não foram também?

Tudo isso são perguntas tolas para crenças fantásticas e absurdas, em nome das quais se praticam todos os tipos de crimes e guerras, desde que um indivíduo mais esperto do que os demais percebeu o quanto seria importante e lhe garantiria poder controlar as pessoas por suas consciências. Fazê-las temerosas de fatos e coisas difíceis de serem compreendidas e, acima de tudo, temerosas da morte.

Se contabilizados, os genocídios e guerras na história da humanidade se deram em sua ampla maioria em nome de crenças, criadas, tanto quanto seus deuses, por indivíduos obcecados por riqueza e poder, não necessariamente nesta ordem. E assim, manipulando os indivíduos pela consciência e os paralisando pelo medo, principalmente pelo medo das punições a serem dadas ironicamente por seus deuses, o ser humano tornou-se extremamente vulnerável e facilmente sujeito a manipulações, principalmente quando este recurso é utilizado com o objetivo de conduzir, induzir e controlar multidões.

No final da Idade Média uma revolução opôs o domínio das mentes perpetrado pela Igreja e prometeu um mundo onde o centro do universo não seria mais deus, e sim o ser humano. O iluminismo foi esse movimento que resgatou da antiguidade o discurso da materialidade e do valor do ser humano, opondo às crenças fantásticas o conhecimento, o saber e a cientificidade do mundo.

Contudo, a elevação do ser humano à condição de centro de tudo, alterou no limite a capacidade do “homo sapiens-sapiens” de produzir deuses e os tornarem seus servos no objetivo de concentrar poder e riqueza. Invertendo-se a lógica, o homem se externalizou à natureza em si e pôde com autoridade continuar a criar seus deuses. E o pior de tudo, suas religiões.

Ora, como pode o ser humano ser causa e conseqüência de um mundo conduzido por idéias absurdas e governado pelo fundamentalismo religioso? Sendo ele o criador e a criatura. O homem fez de deus um instrumento de seus mais perversos desejos, da ambição, da ganância e da usura. E transformou o mundo em um espetáculo de beleza e maldade, de imagens odientas e bondades, de valores invertidos pretensamente explicados por uma predestinação divina. E assim manteve sob controle uma multidão de incautos, conformados com a miséria e esperançosos de se verem atendidos pelos céus em algum momento. Senão, será deles esse reino para além da morte. Pois que não seja aqui, será em outras improváveis vidas.

Mas hipocritamente, enquanto muitos morrem segundo a lógica construída a partir desse raciocínio que move o mundo, a gritaria se dá em torno de fetos, alçados à condição de seres vivos. São tanto quanto as milhões de células que habitam nosso corpo.

Enquanto isso, nas ruas, favelas, morros, nos campos de batalhas, nos miseráveis casebres infestados de ratos e baratas, nas aldeias abandonadas pelos deuses na África de tantos deuses, crianças mal ultrapassam os cinco anos de idade e sucumbem diante dessas desgraças. Muitas que sobrevivem a essas idades tornam-se reféns das drogas, ou são seqüestradas para tornarem-se escravos e escravas do sexo, a infestar o submundo do crime e a satisfazer os gozos de crentes e descrentes. E morrem aos milhares a cada dia.

Do alto de seus pedestais bem sucedidos executivos, filhos(as) de “boas famílias”, enriquecidos em um sistema cuja lógica consiste em assaltar o futuro dos mais pobres, clamam em nome de deus contra a morte de “criancinhas”, adjetivo dado a um óvulo que mal recebeu um espermatozóide e em pouco tempo de fecundação já tem seu futuro garantido por esses obsequiosos reverendos da moral hipócrita.

Forçados ou não, feitos com intenção ou decorrente de situações mal-resolvidas, o fato é que as igrejas, todas elas, são ocupadas por várias mulheres que já se viram nesta situação. Isso não as fazem diferentes, ou sequer criminosas. Mas correm elas os mesmos riscos de serem apedrejadas, tal qual se diz de Maria Madalena, aquela mesma riscada da história do cristianismo, seguramente para retirar da mulher qualquer papel decisivo na formulação de valores e da vida, elementos que ela por natureza carrega com muito mais autoridade do que o homem. E, por isso, naturalmente, deveria ser a primeira a definir o que fazer com o seu próprio corpo, e a condição que ela teria de garantir ou não a existência de um novo ser a preservar sua espécie, e se está devidamente apta para tal.

E seguimos nossa bela cultura ocidental, a mirar nossos dedos sujos em direção ao oriente, acusando de fanatismo os islâmicos que defendem a submissão do Estado aos interesses de seu livro sagrado,o Alcorão. E nos vemos diante do que? Como a seguir a velha e hipócrita democracia, elegem-se os crentes e carismáticos, a representarem o “povo de deus” e a escrever na constituição brasileira os valores que são passados por outro livro sagrado, a Biblia, escrito há milênios em um mundo completamente diferente do que se vive atualmente, mas cujas frases são repetidas ad nausean, a guiar o Estado em seus costumes e tradições eternamente. Como a confirmar as palavras de Engels, que dizia: “a tradição é uma força freadora do progresso”.

Isso difere apenas na forma, daquilo implementado por países teocráticos. Na essência é o mesmo mecanismo de impor através das leis do Estado valores que são criados seguindo dogmas que dizem respeito apenas a uma parcela da população. E ao tornarem-se leis, elas impõem que a parcela restante respeite o que passa a ser constitucional como um dever, desrespeitando-se o direito de escolha de se ter ou não ter religião.

Diante do vendaval de moralismos e de comportamentos hipócritas que tomou a sociedade brasileira como resultado do oportunismo eleitoral me coloco diante do tribunal inquisitório e me declaro ateu. E afirmo, que não é necessário professar nenhuma religião, ou acreditar em deuses, santos, budas, gnomos, duendes, bruxas, elfos, saci-pererê ou o que quer que seja, para adotar uma vida honesta, baseada em virtudes que aprendemos também com algumas religiões, mas que podem ser professadas independentes delas.

Basta abstrair o ódio, o rancor, o desejo de se impor perante o outro, a usura, a ganância, o individualismo, e simplesmente acreditar que “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” (Legião Urbana).

terça-feira, 12 de outubro de 2010

UM NOVO FUNDAMENTALISMO (II): O DISCURSO NEOFASCISTA TRAVESTIDO DE MORALISTA.

Não sei o quanto as pessoas têm a percepção do que anda acontecendo no mundo nos últimos anos. Algo que deve ser observado desde o fatídico 11 de setembro de 2001, quando as ações de um grupo radical, movido pelo rigor de uma leitura sectária e dogmática do Alcorão, culminou na morte de mais de três mil pessoas nos Estados Unidos.

A partir dessa data se intensificou o discurso religioso que passou a justificar ações agressivas, não somente daqueles que professam o islamismo de forma radical, mas também por parte de setores cristãos ultraconservadores situados nos Estados Unidos. A última campanha para presidente naquele país foi sintomática desta nova situação, quando elevou-se à condição de nova liderança a candidata a vice-presidente na chapa de John McCain, pelos Republicanos, a ex-governadora do Alasca Sarah Palin.

Desde então, até mesmo como conseqüência da eleição de Barack Obama, esse discurso não somente se consolidou como se ampliou a um extremo, assumindo ares de fascismo. Tanto que levou à criação de um novo grupo político, seguindo esse discurso fundamentalista, descontente com o Partido Republicano considerado pouco eficaz no combate ao pretenso “socialismo” de Obama. Surgiu a partir daí o Tea Party, inspirado no movimento que na época colonial foi responsável pela rebelião contra a cobrança de impostos por parte do Império Britânico que culminou com a Revolução que criou os Estados Unidos da América.

Mas o Tea Party tem pouco a ver com os ideais do início da história dos EUA. Constitui-se em um movimento direitista, de caráter neofascista, que adota um discurso religioso para conseguir angariar seguidores. A base disso tudo é o medo e o resgate ao que é considerado como valores “americanos”, ameaçados pelo excessivo liberalismo presentes nas medidas do governo de Obama. Mais recentemente destaca-se outra personagem, Christine O’Donnell, com discurso ainda mais conservador.

A nova polêmica que envolve este grupo, prestes a se tornar um partido político, diz respeito à um de seus candidatos (ainda concorrendo pelo Partido Republicano) que se deixou fotografar com uniforme nazista. Mesmo com toda a reação, inclusive de judeus do Estado de Ohio por onde concorre, ele se recusou a se desculpar.

Vemos algo semelhante nas eleições brasileiras. Impossibilitados de derrotar a candidatura do governo com um discurso de oposição, em função do alto índice de popularidade do presidente Lula, a discussão em torno dos temas de campanha desviou-se perigosamente para assuntos que circundaram a sociedade brasileira no período anterior ao golpe militar de 1964.

Os velhos discursos moralistas que motivaram a famosa passeata “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” e se constituiu em um forte incentivo ao golpe militar de 1964, retornam agora, trazendo inclusive alguns de seus personagens, como os grupos radicais católicos Tradição, Família e Propriedade (TFP) e Opus Dei. Este último claramente vinculado a setores do PSDB paulista e à família do governador eleito Geraldo Alkmin.

Mas um elemento novo é acrescentado àquele discurso ultraconservador: o aborto. Introduzido na campanha de maneira claramente oportunista, porque circulou em panfletos apócrifos através da internet este é um tema que desperta os mais indecifráveis ódios religiosos. Nos Estados Unidos, a luta que se desencadeia entre os que defendem a descriminalização do aborto e os fanáticos religiosos chegaram a situações tão radicais que motivaram assassinatos por grupos sectários e ataques a clínicas que realizam esses procedimentos, autorizados em boa parte dos Estados daquele país.

Uma rápida pesquisa sobre esse tema na internet nos levará a intervenções radicais e quase sempre com um discurso claramente conservador. Apegados a valores tradicionais e a citações anacrônicas que nos levam a mais de dois mil anos, as discussões em torno deste tema carrega muito mais do que a defesa da vida, na medida em que isso é cientificamente falso, mas a valores que envolvem o papel da mulher e à capacidade dela poder decidir sobre os destinos de seu corpo.

Quase todos os dogmas na maioria das religiões submetem a mulher a um papel secundário. Historicamente as mulheres foram afastadas de todas as grandes decisões, notadamente aquelas que envolviam a propriedade e direito de herança. Submetidas propositadamente à insignificância por certo tempo elas também foram acusadas de relações satânicas, bruxaria, mas objetivamente com o intuito de mantê-las completamente dominadas. Isso para não falar da culpa que a mulher carrega em função dos mitos bíblicos que as acusam de seduzir maleficamente o homem e ser responsável por seus desvios de condutas. Adão teria sido sua primeira vítima, segundo conta a lenda.

Ironias à parte existem muito mais irracionalidade nessa discussão do que seria possível imaginar. De tal forma que torna praticamente impossível discutir a questão. Em períodos eleitorais o tema torna-se instrumento nas mãos dos oportunistas, mas assume um caráter perigosamente direitista, porque carrega uma forte carga de irracionalidade e fecha os olhos às questões sociais que envolvem esse problema.

Nas últimas eleições dos EUA esse foi um tema muito explorado e Barack Obama defenestrado raivosamente por grupos cristãos radicais conservadores. De lá para cá esse tem sido um assunto transformado em instrumento eleitoral e junto ao Tea Party fortaleceu o discurso fascista incorporado principalmente no Partido Republicano, mas a exigir um comportamento bem mais conservador daqueles que sempre estiveram à frente desse partido. Obama tornou-se, para esses grupos, a incorporação de satã.

Aqui no Brasil percebe-se que as discussões em torno da questão do aborto, utilizado como arma de campanha, abre as portas para que alguns setores fascistas retornem à vida política e tramem nos subterrâneos bem além do que instiga essa discussão. Evidentemente por traz de tudo isso encontramos a velha luta de classes, aquela mesma dita por alguns sociólogos e cientistas políticos como desaparecida nos anos 90 em decorrência da “crise do socialismo”.

Faz-se do discurso moralista um instrumento de tergiversação, retirando do debate político a condição de o país poder resolver seus problemas sociais e garantir às camadas mais pobres melhorias econômicas e sociais significativas, como vem acontecendo nos últimos anos e demonstrados em dados impossíveis de serem contestados.

Dessa forma, as pessoas são motivadas às escolhas instrumentalizadas por discursos fantasmagóricos e faz do medo, do dogma religioso, a arma a ser utilizada na escolha do voto, incapacitando o eleitor ao uso da crítica social como principal elemento para essa definição. Isso que poderia tornar esse voto mais solidário, coletivo e preocupado com as questões sociais. Os desvios para a abordagem em valores religiosos e tradição conservadora constitui-se no principal mecanismo dos setores reacionários para retomar o poder e realizar suas ações de governos mediante interesses que atendem a esses grupos conservadores e aos que controlam a riqueza no país.

A tentativa de submeter o povo através desses mecanismos não é novidade, tem sido utilizado há milênios. No momento atual, para contrapor a isso somente uma discussão intensa sobre os problemas sociais e a necessidade de garantir às pessoas melhores condições de vida e acesso às riquezas que o país produz. E para isso, necessariamente, é preciso saber comparar não somente as melhores propostas através do discurso, mas na prática que foi aplicada por governos anteriores. Reanimar a memória e comparar, por exemplo, o Brasil dos anos FHC e o Brasil dos anos Lula, e poder descobrir entre Serra e Dilma as razões para se escolher um lado.

Romper esse terrorismo moralista e fazer as pessoas abrirem os olhos às armadilhas que os grupos conservadores estão armando é o desafio que está posto para quem tem uma consciência crítica e defende os verdadeiros valores baseados na justiça social e de resgate da cidadania do povo brasileiro. Inegavelmente isso que O Brasil passou com governo Lula só se consolida com a eleição de Dilma Roussef. O risco da eleição de Serra representa um atraso enorme no caminho de desenvolvimento que o nosso país está trilhando.

Para finalizar cito uma frase do escritor e poeta Eduardo Galeano, para reforçar esse alerta: “A história é um profeta com o olhar voltado para trás, pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”.

domingo, 3 de outubro de 2010

A ENCRUZILHADA - OS PRÓXIMOS ANOS DO RESTO DE MINHA VIDA

“Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu”
Vinicius de Moraes – “Como dizia o Poeta”

Quem de nós não chegou a certo tempo de sua vida e não precisou olhar para trás, a fim de poder refletir sobre o presente e indagar o que pode reservar o futuro? São momentos em que precisamos tomar decisões que são baseadas em múltiplas complexidades vividas no presente, verdadeiros turbilhões de sensações e sentimentos que afetam e alteram nossas vidas. Quase sempre, nessas circunstâncias o impulso de todos é olhar para o futuro, diz-se sempre que “é preciso olhar para frente”. A meu ver um equívoco. O futuro é uma construção, ele existirá de conformidade com as decisões que tomarmos no presente.
Há uma música belíssima, de Paulinho da Viola, em cuja frase ele sintetiza esses elementos que para mim são fundamentais para a construção que pretendo fazer nessa crônica: “meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado, quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado” (Dança da Solidão).
Ainda buscando uma referência de qualidade neste mesmo compositor, do qual eu sou um grande admirador ele diz, ao final do DVD “Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje” (espetacular!): “Wilson Batista é um dos meus compositores preferidos. Ele tem um samba com um verso que diz, ‘meu mundo é hoje não existe amanhã para mim’. Eu costumo dizer, que meu tempo é hoje, eu não vivo no passado, o passado vive em mim”.
Vivi momentos intensos em minha vida. Às vezes por impulso, influenciado por amigos (bons amigos, razão pela qual não me arrependo de suas influências), e ressalto que uma das qualidades que me orgulho é de sempre ter escolhido bons amigos.
Suas influências, portanto, foram positivas. Mas, sempre tive a capacidade de tomar posição, de criticamente analisar cada situação e assumir sem receios decisões que definiram um lado a me situar. Nunca tive receios em assumir tais responsabilidades e de torná-las públicas. Por muitas vezes fui criticado por isso, mas fazia parte de minha personalidade. Nunca me acovardei diante das idéias e posições que tinha que assumir e procurei esgrimir, sempre, aqueles argumentos que para mim eram definidores dos meus posicionamentos. Isso tanto no cotidiano de minhas relações afetivas e pessoais, quanto da minha escolha e militância política. Os que me conhecem podem atestar isso. Mas aqui separarei esses dois momentos, primeiro o político, depois o pessoal e afetivo.
Mas, depois de 30 anos de militância política, sempre num mesmo partido, e diante das circunstâncias criadas pelas complexidades da vida, algumas naturais, outras porque nós mesmos as complicamos, pelas escolhas que fazemos, algumas dúvidas e questionamentos se avolumam e nos deixam em permanente conflito. Isso nos leva a tomar posição. Algo que, como eu disse anteriormente, jamais deixei de fazer.
Isso me permite dizer, com segurança, que meus tempos de militância política se esgotaram. Não sei se pelos percalços deixados pelos acontecimentos que afetaram minha vida, pelos desânimos e/ou decepções causadas por determinadas frustrações sobre os rumos daquilo que sempre acreditei, ou quem sabe por uma somatória de tudo isso.
Mas desde algum tempo tenho sido fortemente influenciado por um dos maiores intelecuais brasileiros, que aprendi a admirar quando passei a ter contato com o mundo dos geógrafos, Milton Santos. Sempre me martelou uma de suas frases para mim mais significativas na definição da intelectualidade, dentre tantas outras: “Ser intelectual é exercer diariamente rebeldia contra conceitos assentados, tornados respeitáveis, mas falsos. É, também, aceitar o papel de criador e propagador do desassossego e o papel de produtor do escândalo, se necessário” (Revista Adusp, outubro de 1997).
Não que eu queira me incluir arbitrariamente como intelectual, mas acredito freqüentar esse ambiente formador dessas definições, e exercer eventualmente determinadas situações que podem me condicionar para tal, independente do grau de qualificação que me seja dado.
É assim, então, seguindo os exemplos de Milton Santos, que pretendo me posicionar. Sem jamais abdicar de meus posicionamentos ideológicos, forjados após anos de militância marxista, que encontra na dialética e no materialismo as respostas para o entendimento do mundo e da complexidade que o forma e o cerca.
Declaro, portanto, a partir deste momento, encerrada a minha militância político-partidária, sem me arrepender em um momento sequer de minhas escolhas e dos embates nos quais me envolvi, sempre com muita paixão, dedicação e garra. Nesta encruzilhada, o caminho que escolho é o da independência partidária, mas seguirei firme no rumo da minha definição ideológica: marxista e materialista.
Mas nossos destinos não são traçados apenas por decisões políticas. Talvez mais complexas do que essas são as que construímos em nossas relações pessoais, mas também igualmente carregadas de contradições. E as alterações desses rumos são muito mais complicadas e não dependem de simples escolhas, de qual o caminho temos de seguir quando nos deparamos em uma encruzilhada.
Aqui as decisões dependem muito de uma série de fatores, e quaisquer que sejam elas possibilitam desencadear uma infinidade de conseqüências porque enredam nossas vidas em tantas outras. Vividas desde o passado, construídas por paixões, amizades, amores possíveis e impossíveis. Mas envolvem valores culturais, tradições e rotinas que estabelecemos ao longo de décadas em que formamos nossos ambientes familiares, ou dos quais não pudemos nos afastar muito.
Contudo, não há nada mais passível de alterar nossas vidas, seja em relação à nossa personalidade, ou na formação de nossa família, do que a perda de uma filha. A partir disso há uma desconstrução e reconstrução forçosa de nossas vidas. Perder um filho, como já disse em outras oportunidades, é perder a perspectiva do futuro, pois é nele que construímos nosso amanhã, vivemos para isso a partir de suas existências. Não existimos mais para nós, individualmente, mas para eles. O eu desaparece, quando aparecem os filhos. Somos nós, são partes de nós mesmos. Ao perdê-los, por morte, antes que partamos, perdemos por certo tempo os rumos que sempre imaginamos para nossas vidas.
Mas, conta-se na vida também não somente as partidas. Mas ao seguirmos em frente, apesar das adversidades, das frustrações, dos momentos depressivos pela perda de um filho, nossas vidas vão adiante, em ritmos e sensações diferentes. Mas o universo ao nosso redor não muda tanto quanto sentimos intimamente. Nossos amigos, as pessoas que nos cercam e convivem conosco a rotina de um cotidiano do qual não podemos sempre fugir, seguem nos observando com olhares sutis, companheiros, às vezes, dependendo da sensibilidade de cada um, com carinho e admiração diante do enfrentamento de determinada tragédia.
As pessoas têm olhares diferentes para o mundo. Às vezes não têm sequer dimensão do que acontece ao seu redor. Algumas se entregam ao sobrenatural, às crenças jamais improváveis, mas cuja fé as deixam plenamente cientes de que não há fantasia, há realidade. Confunde-se, então, o irreal com o real, e transpõe-se para um mundo distante daquele que o cerca.
Há, contudo, outras pessoas, cujos sentimentos são plenamente incorporados de amor e carinho, e transferem isso muitas vezes para quem luta, sofregamente, por sobreviver após tragédias que alteram não somente vidas, mas também individualmente, pessoas.
Ao invadir nossas vidas, com esses sentimentos, essas pessoas também afetam sobremaneira nossa relação com a vida e com as pessoas que nos cercam. Vivi e vivo isso intensamente.
Busquei no ambiente do meu trabalho, seja com alunos ou colegas, suportar todos esses conflitos gerados pela perda de minha filha. Tornei-me mais tolerante na relação com meus “discípulos”, para usar uma expressão muito comum na época de Karl Marx. Procurei compreender as dificuldades que cada um de meus alunos carrega, porque são seres humanos, e tanto quanto no meu caso, sujeitos a se depararem com momentos de conflitos e sofrimentos. Mas, mesmo nos momentos mais difíceis em que vivi, sem jamais abdicar da seriedade e responsabilidade que me é dado como mestre.
Em alguns casos, no entanto, as relações confundem-se, da amizade para sentimentos mais complexos, embora carregados de nobreza, e muitas vezes nos colocam frente à dilemas que não dizem respeito somente às nossas escolhas, ou à decisões individuais, mas afetam sentimentos fortes, paixões, que mexem com nossas rotinas e maneiras de ser e viver. Põem-nos diante de muros, muralhas, que transpô-las pode significar surpresas às vezes indigestas, ou quem sabe, não, mas indecifráveis.
Os sofrimentos, ou sacrifícios, fazem parte da cultura judaico-cristâ. Assim se conta a história dos mitos que definiram a maneira de ser do mundo ocidental. Por isso o sofrimento atrai as pessoas e estimulam sentimentos de compaixão e solidariedade. Assim, nos tornamos reféns de nossas próprias tragédias, e muitas vezes não sabemos discernir quando nos confrontamos com determinadas situações em que paixões e compaixões confundem-se, ou nós mesmos confundimos porque não sabemos identificá-las.
E, fragilizados, diante das circunstâncias que nos cercam e tornam nosso futuro indecifrável, sucumbimos às sensações motivadas por amores e carinhos determinados por essas identidades. Mas isso muitas vezes nos coloca diante de outra encruzilhada. Já não se trata de uma escolha política, mas de uma decisão movida tanto pela racionalidade como também pelo coração. São razão e emoção, definindo as escolhas que selam nosso destino.
Cabe-nos então, retornar às questões postas no início dessa crônica, e relembrar a frase de Paulinho da Viola, “não vivo do passado, o passado vive em mim”. Isso torna difícil qualquer escolha que queiramos fazer, porque representaria retirar o passado de dentro de nós, e dificultaria a definição sobre qual caminho devemos seguir nessa encruzilhada que, permanentemente, a vida prepara para cada um de nós.
Por fim, uma dúvida que surgiu no decorrer da elaboração desse texto. Acredito ou não no destino? Para mim o destino é o acaso. Portanto, considero natural que o acaso seja considerado quando pensamos na maneira como nossa vida vai sendo delineada.
Ora, não vivemos sozinhos, isolados, no mundo. Fazemos parte de uma realidade extremamente complexa, onde vidas se entrecruzam permanentemente. Seria improvável acreditar que em meio às redes que determinam as rotas que seguem nossas vidas, nada pudesse se “enredar” de tal maneira que não fosse suficiente para alterar esses rumos, independente de nossa vontade.
Temos nossas escolhas, inegavelmente. Mas a vida, às vezes, prepara armadilhas das quais temos dificuldades de nos desvencilharmos. Aí, nesse embate entre razão e emoção, podemos sucumbir ao destino, ou ao acaso, que a vida nos reserva, e perdemos a condição de traçá-lo. Somos carregados por ele.
Para finalizar, ainda inspirado em Paulinho da Viola, cito uma frase de uma belíssima música dele, como tantas outras, para resumir essa relação com o destino: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.