quarta-feira, 31 de março de 2021

1964 - 2021: "EU NÃO VIVO DO PASSADO, O PASSADO VIVE EM MIM"

A longa noite de 21 anos, consumiu uma geração e usurpou vidas de pessoas valiosas. Mas o que temos atualmente, além de um aprendiz medíocre de Nero, é uma tempestade perfeita a nos sucumbir, e nuvens cinzentas, como se bilhões de vírus sobrevoassem nossas cabeças levando embora boa parte daquela geração que viveu tempos perversos, ditatoriais, sob a cruel (in)governabilidade de militares que usurparam o Poder. O Nero pós-moderno, uma fake news da política, louco ou não, deve ser nossa maior preocupação atualmente. Porque ele, como presidente desse país, é responsável pela mais incompetente, criminosa e irresponsável condução de um país diante de uma pandemia terrível. 

Omisso, cínico, desequilibrado, menospreza vidas da nação que governa. Nada há de mais repugnante na política do que a traição de um governante ao seu povo. A História já nos deu a dimensão exata do que foi o golpe militar de 1964, bem como definiu o perfil dos psicopatas, ou sociopatas, que estiveram à frente do estado (militar) brasileiro naquele período tenebroso. Nos cabe hoje, para além de reconhecer, e jamais deixar esquecer, o que foi aquele período, nos voltarmos para essa realidade absurdamente surreal, mas terrivelmente, e realisticamente perversa, que estamos vivendo.

Não podemos seguir a estratégia diversionista do insuportável Nero pateta tresloucado, que usa de todos os artifícios para desviar a atenção dessa tragédia que nos consome. Ele, e a Covid19, representam os males dessas novas gerações, e simboliza, por suas ações, uma espécie de vingança pérfida sobre as gerações que reconstruíram a democracia e redefiniu o papel dos militares no Estado brasileiro.

Expelido da Força, por essas mesmas características que carrega ainda hoje, prossegue eu seu intento de sublevar os militares e quebrar a hierarquia, como fez quando foi condenado por insubordinação e expulso por seus atos e atitudes desequilibradas. Enquanto o nosso país desaba moralmente, tornando-se um pária internacional, e o povo brasileiro sucumbe aos milhares, diariamente, por um vírus trazido das profundezas, sabe-se lá se do mesmo lugar de onde surgiu esse personagem nefasto, e ambos se tornam protagonista de um dos piores momentos da história brasileira.

É para hoje, e para esses personagens, que nossos olhares e nossas preocupações devem se voltar, sem esquecer a história, mas sabendo que as perversidades atuais também serão história amanhã. E não podemos ser vistos como quem caiu nas armadilhas diversionistas de um personagem medíocre. Foco no presente, nas perversidades que nos governam e na forte compreensão que a história não se repete, mas que por meio de farsas ela pode nos dar a indicação da tragédia que nos assombra, nos cerca e nos atinge.

Como diz Paulinho da Viola, compositor, "Eu não vivo do passado, o passado vive em mim". E é com as cicatrizes daquele tempo, da noite que durou 21 anos, que devemos olhar para o que acontece hoje, e imbuído da força que moveu milhares de brasileiros e brasileiras que se entregaram a uma causa justa, contra a violência injusta que nos governava durante a ditadura militar, temos que resistir, numa defensiva estratégica, e impedir que o que vivemos hoje se prolongue por um longo tempo, como o que se estendeu com a ditadura militar.

A luta é hoje, e que 2022 seja o limite da insensatez. Daqui para a frente precisamos sair da defensiva estratégica para a ofensiva que nos fará retomar esse país e reconstruí-lo em toda a sua plenitude. Para que se complete o ciclo de nossa história de resgate da memória de luta dos que tombaram vitimados pela perversão criminosa de uma ditadura militar que nos consumiu por 21 anos.

Thiago de Melo, do alto de seus 95 anos completados neste mês, em seus poemas brilhantes, e engajados, nos aponta o rumo: “Não tenho caminho novo/ o que tenho de novo é o jeito de caminhar./ Mas com a dor dos deserdados/ e o sonho escuro da criança que dorme com fome/ aprendi que o mundo não é só meu./ Mas sobretudo aprendi/ que na verdade o que importa/ antes que a vida apodreça/ é trabalhar na mudança do que é preciso mudar/ cada um na sua vez/ cada qual no seu lugar”. E assim finalizo esse pequeno artigo, na certeza de que precisamos ter foco, estratégia e força para lutar, escolhendo o caminho certo e o jeito de caminhar.

DITADURA NUNCA MAIS!!

segunda-feira, 22 de março de 2021

A ARQUITETURA DO CAOS

Foto: Site Poder360

Vamos aos fatos, e, naturalmente, é preciso entender toda a situação, como chegamos até aqui e porque estamos à beira do caos, numa das piores crises médicas, sanitárias e socioeconômicas da história de nosso país.

Segundo o presidente da República, "O povo não tem nem pé de galinha para comer mais. Agora, o que eu tenho falado, o caos vem aí. A fome vai tirar o pessoal de casa. Vamos ter problemas que nunca esperávamos ter problemas sociais gravíssimos”.[1] Vejam, essa é a fala do presidente do Brasil, não é de nenhum sindicalista ou militante que está lutando contra as desigualdades sociais. Mas de quem governa e, em tese, possui todos os elementos e as condições de adotar medidas que minimizem os graves problemas sociais gerados por essa pandemia. Só que ele não fará isso, por uma razão óbvia, estrangular a economia e disseminar medo, angústia e ansiedade, faz parte de um projeto de governo.

Evidente que tem razão ao dizer que estamos em meio a um caos. E isso condiz com uma estratégia adotada por seu governo, não somente durante a pandemia, mas mesmo antes de vivermos esse inferno viral. Claro, a Covid19 se incorporou a uma estratégia que já estava em curso: tornar a sociedade brasileira um caos.

Bolsonaro foi eleito no rastro de uma destruição da democracia, conforme a conhecemos por nossas bandas, e, principalmente da política. Embora ele fosse o azarão da história, serviu-se perfeitamente de toda uma onda gerada por perversos mecanismos midiáticos, de canais de televisão, jornais e emissoras de rádio, que apostaram desde 2015 na desconstrução de projetos políticos de cunhos sociais e de visões econômicas baseadas no desenvolvimentismo, para, por meio do ataque à política e projetando a ascensão da alienação derrubar um governo e apostar em políticas fortemente neoliberais, meritocráticas e antinacionais.

Mas o discurso levado a cabo, por meio do incentivo às manifestações, transmitidas ao vivo pelos canais de TV, por onde se disseminaram um comportamento de ódio e projetou o neofascismo, não atingiu o objetivo desejado pelos setores conservadores de partidos derrotados na eleição de 2014. Pois eles também se tornaram alvos da caça às bruxas, e na identificação do que se convencionou chamar de “velha política”. Foi tudo por água abaixo, inclusive caráter, seriedade, honestidade, esperança... Prevaleceu o cinismo, o banditismo miliciano e a hipocrisia religiosa. Se o que se pretendia era demonizar a política, o demônio soube entender e assumiu o controle. Assim, o caminho estava aberto para o caos. As redes sociais potencializaram isso, através das fake news, e a pandemia só veio para acelerar essa situação, já prevista e consolidada nas eleições de 2018.

Ora, já pude analisar neste blog e no meu canal no Youtube, como Bolsonaro chegou à presidência, no vácuo dessas desastrosas intervenções dos setores de centro-direita neoliberal. Despontou como um “mito”, na condição do que na geopolítica conhecemos como um “outsider”, desancando a política, com discurso anticorrupção (como sempre esse discurso antecede as crises políticas brasileiras e os movimentos golpistas) e aglutinando ao seu lado ressentidos, derrotados moralmente, despossuídos economicamente, frustrados e alienados. Embora a absoluta maioria desses aí adjetivados pudessem ser classificados no nível máximo de alienação. Além de uma burguesia estúpida e uma classe média oportunista. E, correndo por fora, de forma sutil e sibilina, porque nessa década esse movimento esteve ao lado de todos os governos, os segmentos evangélicos, neopentecostais principalmente, e os conservadores católicos da corrente carismática. Correram por fora num primeiro momento, porque depois incorporaram o discurso neofascista do presidente e se constituíram em sua principal base de apoio. Logicamente por traz disso a ambição pelo poder e a ganância como prática contumaz de seus principais líderes religiosos a extorquir os fiéis.

Mas Jair Messias Bolsonaro não caiu de paraquedas. Ele se tornou parte de um projeto desses segmentos reacionários religiosos e se incorporou a um movimento que tomava corpo mundialmente havia uma década, que gerou outra aberração política: Donald Trump. Mas que também estava em curso em diversos outros países, como Hungria, Itália, Reino Unido dentre outros, além dos EUA, de onde saiu toda essa inspiração perversiva.

Já citei em outros artigos que escrevi, baseado em alguns livros e documentários (que indico ao final desse texto), que esse projeto teve à frente um personagem que se tornou mais conhecido no ano passado, porque foi preso acusado de desvio de dinheiro numa arrecadação feita nos EUA para ajudar o governo Trump e construir um muro na fronteira com o México. Steve Bannon é o personagem por trás da “estratégia do caos”. Seu escritório foi responsável por dar assessoria aos “políticos” que surgiram das trevas, atraindo para seus lados todos esses indivíduos que carregavam algum tipo de frustração e ódio às condições sociais em que viviam.

No documentário “Privacidade Hackeada”, disponível na Netflix, chama a atenção uma frase dita por Christopher Wylie, Cientista de Dados, ao se referir a Steve Bannon (vice-presidente da Cambridge Analytica, e criador do site de notícias Breitbart), que seria a doutrina utilizada por essas empresas: “Se você quer mudar fundamentalmente a sociedade, primeiro tem de destruí-la. E somente depois de destruí-la é que pode remodelar os pedaços segundo sua visão de uma nova sociedade”.

Bingo! Eis porque Bolsonaro tem razão na frase dita, paradoxalmente sendo ele, como presidente, quem poderia adotar medidas que evitassem esse caos. Mas como eu já disse, isso ele não fará, porque faz parte de uma estratégia. Seu desejo é manter radicalizado um segmento que será muito prejudicado economicamente, para além das perdas de vidas, que se tornarão esquecidas pelo foco que está sendo adotado e pelas condições reais que ficarão milhões de pessoas. As mortes serão naturalizadas. Isso representa o que conhecemos hoje como “necropolítica”. Alienadas e corrompidas em seus desejos e olhares, essas pessoas seguem o discurso fácil, irresponsável e adredemente planejado pelos arquitetos do caos.

Mas o que falta para que aqueles responsáveis por abrir as porteiras dessas perversões, quando levaram a cabo uma outra estratégia, fracassada, de “reerguer o país destruído por Dilma Roussef” revejam seus comportamentos e percebam a gravidade dos acontecimentos que estão em curso e podem levar a que nosso país tenha mais de 500 mil mortos nessa pandemia, além de sua total destruição econômica? Enfim, esta semana divulgou-se um manifesto de banqueiros e economistas[2] que apoiaram essa loucura que empurrou o país para mãos inconsequentes.

Quem sabe um mea-culpa não abra caminho para recomposição de forças políticas que compreendam a gravidade da situação na qual eles nos meteram? É o que desejam aquelas pessoas que têm juízo, clamam pela vida, choram por seus mortos e anseiam por um país soberano, livre dos “mitos” que vagam por aí órfãos de seus manicômios. Que lutemos para recuperar nossa dignidade e saibamos compreender a importância de lutar por uma sociedade justa, menos desigual, e onde se dissemine valores como empatia, altruísmo e solidariedade. 

Ou fazemos isso ou prevalecerá pelo tempo que requer a destruição de um país, a estratégia do caos. O apocalipse por trás da necropolítica.

Está em nossas mãos, não somente os nossos destinos, como a determinação para provar a Bolsonaro que embora ele tenha razão hoje, o caos não prevalecerá e que toda maldade, perversão e vilania serão combatidas pelos que sobreviverão à sua hecatombe planejada. E seremos milhões!


DOCUMENTÁRIOS:

The Weekly S01E09: A Toca do Coelho (The Rabbit Hole) - https://www.youtube.com/watch?v=b3J7r1H4SYo

Privacidade Hackeada - Entenda como a empresa de análise de dados Cambridge Analytica se tornou o símbolo do lado sombrio das redes sociais após a eleição presidencial de 2016 nos EUA - https://www.netflix.com/br/title/80117542

Get Me Roger Stone - Observe a ascensão, queda e renascimento do operador político Roger Stone, um player influente da Equipe de Trump há décadas - https://www.netflix.com/br/title/80114666

Eles estão entre nós - O documentário explora a aliança política entre religiosos, oligarcas, Cambridge Analytica e suas empresas de fachada que mudaram o equilíbrio da política nos EUA. - https://globoplay.globo.com/eles-estao-entre-nos/t/wwppjgqzSJ/

LIVROS:

DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2020

DOWBOR, Ladislau. O Capitalismo se desloca. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018

LIMA, Delcio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1987.

ARTIGOS DO BLOG:

https://gramaticadomundo.blogspot.com/2020/04/como-chegamos-ate-aqui-e-como-sera-o_28.html

https://gramaticadomundo.blogspot.com/2020/07/a-estrategia-da-destruicao-de-bolsonaro.html

https://gramaticadomundo.blogspot.com/2020/08/tempos-perigosos-em-que-negam-as.html

https://gramaticadomundo.blogspot.com/2020/08/o-despertar-das-bestas-3-parte.html

https://gramaticadomundo.blogspot.com/2020/09/o-efeito-borboleta-ou-teoria-do-caos.html

 

CANAL ROMUALDO PESSOA: https://www.youtube.com/watch?v=UaAi8OuUojM


NOTA:

[1] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/19/o-caos-vem-ai-a-fome-vai-tirar-o-pessoal-de-casa-diz-bolsonaro.htm

[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/banqueiros-e-economistas-pedem-medidas-efetivas-de-combate-a-pandemia-em-carta-aberta.shtml

 

 

quarta-feira, 10 de março de 2021

O MILITAR NÃO FAZ SUA PARTE

Por Manuel Domingos Neto*

10.03.2021

Foto: Nelson Almeida_AFP

Todos ligados na incompetência do militar na pandemia. E quanto à defesa armada do Brasil?

O país precisa, pode e deve dispor de instituições militares com missões definidas, apropriadamente equipadas e obedientes ao princípio de que todo o poder emana do povo e só em seu nome pode ser exercido.

Nunca dispusemos de corporações assim. A disjunção entre o Estado e a sociedade não permitiu. O Estado nasceu obediente a um príncipe português e não superou sua índole vassala. Foi capturado por oligarquias e estamentos que promoveram o desenvolvimento socialmente excludente.

Descolado dos anseios da maioria, o Estado se expôs aos instrumentos de força que criou para se proteger. O militar empenhou-se em ditar-lhe os rumos. O Exército, deslumbrado com a própria força, imaginou-se até fundador da nação, também chamada de pátria, que deriva de “terra dos pais”.

O militar não entendeu que pátria é elaboração simbólica coletiva. Emerge de confrontações e negociações entre variados atores. Não resulta de deliberações corporativas. Outorgando-se a paternidade da pátria, o militar menospreza a sociedade e avilta o Estado. Da janela do quartel, só vê qualidade no “paisano” que o corteje.

O militar precisa contribuir para a defesa do Brasil. Não pode, usando artificiosos expedientes, pretender papel que não lhe cabe. Sem perder a mania de mandar em tudo e de policiar brasileiros não faz sua parte.

Para o Brasil se defender, é fundamental distinguir os “assuntos da defesa” e os “assuntos militares”. Os primeiros compreendem vasto e intrincado rol de políticas públicas; os segundos dizem respeito a estruturação, funcionamento e manejo das corporações armadas. O militar deve subordinar-se aos ditames do Estado, não pretender conduzi-lo.

Apenas o Estado, entendido como um pacto entre interesses conflitantes, tem autoridade e capacidade para conceber e conduzir assuntos de defesa. Percepções e vontades corporativas não traduzem os interesses do Estado e da sociedade. Ao poder político cumpre definir as forças armadas necessárias ao Brasil.

Dispomos de ministério específico para tratar dos assuntos da defesa. Ministérios são braços executivos do poder político. Do contrário, prevaricam. Expressando dilemas existenciais e gana de mando, o militar, por ignorância ou má fé, pretende que esse ministério lhe “represente”.

Foto: outraspalavras.net

Comandante prepara a tropa para atender ao mando político. Arrebatando o lugar do político, subverte a ordem democrática e deixa o país vulnerável.

Para dispormos de defesa nacional, a primeira condição é promover a coesão entre os brasileiros. Quanto mais fragmentados por iniquidades, mais vulneráveis seremos. Divididos por preconceitos e discriminações, não teremos a defesa de que precisamos. 

Potências estrangeiras procuram sabotar nossa coesão estimulando a percepção de “inimigos internos”. Assim fizeram os franceses que modernizaram o Exército na primeira metade do século XX e os estadunidenses ao longo da guerra fria. Assim ocorre hoje quando defensores da inclusão social são tratados como inimigos.

Quem rejeita mudanças sociais de premência indiscutível trai a pátria. Apresenta-se como defensor de “tradições” sabendo que há tradições e valores que são cadáveres insepultos.

O militar que só tem olhos para a ordem interna parou no tempo colonial. É um anacrônico. Não percebe a pátria como uma sociedade em mudança permanente, unificada pelo sonho de uma vida melhor para todos. A pátria é antes de tudo uma poderosa e imaginária comunhão de destino. Sacrossanta, não aceita registro de nascimento em cartório, mas na alma comunitária. Como disse Ernest Renan há mais de um século, é uma opção cotidiana. Castrense vive apartado, não capta suas pulsações. Quando ávido de butins, atravessa o Rubicão fantasiado de patriota.

Caçador de “inimigos internos”, o militar desrespeita a sociedade e subverte o Estado. O patriotismo castrense é mesquinho, nega solidariedade aos mais sofridos. Alimenta guerra sem fim contra quem lhe garante o soldo.

A segunda condição para a defesa do Brasil é o cultivo da amizade com os vizinhos. Sólida coesão da América do Sul e laços estreitos com a África Ocidental constituem barreiras contra as pretensões de agressores poderosos. Os potenciais inimigos do Brasil sabem disso, daí alimentarem falsas rivalidades entre nações condenadas à irmandade.

Para justificar sua existência e obter recursos públicos, o militar vê nossos vizinhos como inimigos perigosos. Assim, sabota uma das condições essenciais à defesa do Brasil.

Exemplo pouco conhecido de sabotagem da integração sul-americana foi o trabalho do general Maurice Gamelin, um francês que o Brasil contratou a peso de ouro, em 1919, para modernizar o Exército. Habilidoso vendedor de armas (adorava nos empurrar sucatas), esse general preparou o militar brasileiro para guerrear contra nossos vizinhos, em particular contra a Argentina, que recebia armamento alemão.

Essa rivalidade fabricada começou a ser desfeita no final do século passado, quando as ditaduras militares foram derrotadas. Iniciando a construção da vizinhança fraterna, o político cuidou da defesa. Hoje, ocupando o governo, o militar destroça num piscar de olhos o trabalho realizado.

A terceira condição para nossa defesa é o estabelecimento de sólidas parcerias estratégicas que nos ofereçam o máximo de soberania. Estas parcerias são aquelas que não se desfazem ao sabor de circunstâncias fortuitas. Parceiros estratégicos firmam colaboração favorecedora de seus respectivos interesses.

Os Estados Unidos sempre obstaram tais parcerias. A lista de casos é infindável, mas caberia lembrar o boicote ao domínio da tecnologia nuclear, da exploração do petróleo e do programa espacial.

Quando a perspectiva de multipolaridade surgiu no horizonte, o militar se empenhou em favorecer um governo vassalo de Washington. Agiu contra a defesa do Brasil.

Outra condição irrecorrível para a nossa defesa é a mobilização e a articulação eficiente das capacidades nacionais.

Instituições dedicadas à pesquisa científica e à inovação tecnológica são indispensáveis à defesa. A comunidade acadêmica é componente de máxima valia. O sequestro de cérebros alemães no pós-guerra mostra bem isso. Sem cientistas, permaneceremos na eterna dependência dos produtores de armas e equipamentos. Hoje, não podemos agir militarmente sem o aval do fornecedor de armas e equipamentos. Quem elege o mundo acadêmico como inimigo trai o Brasil.

Empresas públicas e privadas competentes para desenvolver projetos de alta complexidade e grande porte constituem elementos fundamentais do aparato de defesa nacional. O estrangeiro cobiçoso alegrou-se com o desmonte injustificável de empresas brasileiras indispensáveis à estratégia de defesa.

Foto: Diário do Centro do Mundo (DCM)

A destruição de nossa diplomacia é outro crime inominável. O mesmo se pode dizer das instituições responsáveis por políticas públicas de proteção do meio ambiente e da sociedade. A pandemia que destrói vidas brasileiras revela o quanto estas instituições são indispensáveis para nossa comunidade. 

Militar que desmonta instituições públicas desserve a pátria. Não cabe apenas deter Bolsonaro. Para a defesa do Brasil, é preciso um basta no ativismo deletério do político castrense.


* Doutor em História pela Universidade de Paris. Ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Foi vice-presidente do CNPq.