terça-feira, 31 de julho de 2012

OS DESAPARECIDOS DO ARAGUAIA

Esse artigo foi publicado no jornal O Popular, edição de 31.07.2012 em uma versão resumida, em função do espaço. Publico aqui o texto completo sobre as atividades do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) - do qual tenho participado como ouvidor-convidado - e a busca pelos corpos dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.
Grupo de Trabalho Araguaia - Mapa

A criação da Comissão da Verdade, pela presidenta Dilma Roussef, seguramente já traz em si mesmo um fator positivo. Coloca na ordem do dia a necessidade de se aprofundar as investigações sobre as centenas de desaparecidos políticos, cujos corpos ainda não foram encontrados, gerando desgastes e ansiedades para familiares. Dentre os quais pais e mães que, pelo tempo, já estão morrendo sem que tenham sido encontrados os restos mortais de seus filhos e filhas.
Mas essa é uma procura que não tem início com a criação dessa comissão. Por determinação judicial, da juíza Solange Salgado, da Justiça Federal de Brasília, desde o ano de 2009 várias expedições à região onde ocorreu o conflito Guerrilha do Araguaia tem sido feitas, com o intuito de encontrar vestígios de restos mortais que possam ser daqueles que ali combateram a ditadura militar entre os anos de 1972 e 1975.
Esse foi, seguramente, o movimento guerrilheiro mais duradouro aqui no Brasil, e o que mais envolveu, para sua repressão, grandes contingentes de tropas militares, desde as três forças (exército, marinha e aeronáutica), até os órgãos da comunidade de informação, e polícias federal e militares de pelo menos três Estados (Goiás, Maranhão e Pará).
Contudo, embora sendo um conflito de grandes proporções, para os padrões de enfrentamento que já ocorria aqui no Brasil, o que mais deve ser destacado foi a maneira como agentes do Estado, principalmente aqueles ligados aos órgãos de inteligência, agiram para eliminar os combatentes.
Muito embora guerras e guerrilhas existam se caracterizem pela violência dos embates, há sempre, por força de tratados internacionais, limites para esses combates, no que se refere à preocupação com a população que reside na área onde ele se desenrola e no trato aos prisioneiros.
No enfrentamento aos guerrilheiros esses dois preceitos foram desrespeitados pelas forças militares do estado brasileiro. Desrespeito aos camponeses, com intimidações, prisões, torturas e até mortes atingiram um elevado número deles. E, quanto aos prisioneiros, muitos foram além de torturados, executados e tiveram seus corpos jogados em locais jamais identificados por seus algozes. Além da nefasta prática da degola e da amputação de mãos para identificação daqueles que eram abatidos dentro da mata. Tudo isso em total afronta com as exigências dos tratados de guerras, do qual o Brasil é signatário.
Relato da História da Guerrilha em
reunião do GTA - julho 2012 - Xambioá
O resultado dessa longa história está relatado no livro, que se constitui em um trabalho de pesquisa que praticamente se desenrola desde 1992, “Guerrilha do Araguaia – a esquerda em armas”, agora publicado em sua 2ª edição. Inicialmente uma dissertação de mestrado, o estudo se prolonga desde então, exatamente por se tratar de uma história cuja última página ainda não foi escrita.
Em função dessa intensa pesquisa, cuja primeira edição do livro foi publicada em 1997, tenho sido convidado para participar do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), que desde o ano de 2009 procura encontrar restos mortais dos guerrilheiros, cumprindo a determinação da justiça. Já participei de várias expedições, embora não de todas, em função das dificuldades de conciliar minhas atividades na Universidade Federal de Goiás.
Mas os trabalhos não são fáceis. Como não há informações dadas por aqueles que efetivamente participaram dos confrontos diretos com os guerrilheiros dentro da mata, e principalmente de execuções seguidas das ocultações dos cadáveres, a busca torna-se extremamente difícil. Apesar de declarações já publicadas em livros, e até mesmo em entrevistas em jornais e TVs, alguns oficiais responsáveis pelas operações que eliminaram o movimento guerrilheiro, recusam-se em indicar os locais onde os corpos dos guerrilheiros mortos possam estar enterrados.
Buscas do GTA
As dificuldades, e a demora em encontrar corpos (até hoje somente dois foram identificados, de Maria Lúcia Petit, e de Bergson Gurjão de Farias) que sejam dos guerrilheiros, e camponeses, que foram mortos no conflito, motivou um grupo de parentes, através do Grupo Tortura Nunca Mais, a entrarem com uma ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos. O parecer dessa corte foi favorável aos familiares, obrigando o Estado brasileiro a dar respostas imediatas a essa busca incansável. O prazo da sentença deveria ter sido cumprido até o mês de dezembro de 2011.
Os trabalhos que são desenvolvidos pelas expedições, embora atendam sentença da justiça brasileira, cumpre em parte as exigências da Corte Interamericana, visto que os objetivos são os mesmos. Ocorre que, muito embora sendo feito com qualidade, e com equipes técnicas envolvidas de alta competência (médicos legistas, antopólogos forenses, odontólogos do IML, arqueólogos do Ministério Público, historiadores, coordenados por membros do Ministério da Justiça, da Defesa e Secretaria Nacional dos Direitos Humanos), e com uma logística adequada assegurada pelo Batalhão de Logística do Exército, situado na cidade de Marabá, as dificuldades decorrem das imprecisões das informações.
Cemitério de Xambioá
Como os executores recusam-se a darem informações, as buscas pelas mesmas se dão através de antigos guias do exército, moradores da região, e camponeses que foram presos durante o conflito. Mas as naturais modificações na região, e o estado caótico dos cemitérios das duas cidades onde os primeiros corpos teriam sido enterrados Xambioá(TO) e São Geraldo do Araguaia (PA), tornam os trabalhos extremamente difíceis e lentos.
Mas isso decorre da própria natureza dos trabalhos e das dificuldades em lidar com informações que precisam ser comprovadas, antes de se iniciar escavações em possíveis locais de inumação. A ansiedade e angústias, geradas por décadas de buscas sem resultados, e diante do silêncio daqueles que confirmam as execuções, mas se recusam a indicar os locais onde os corpos estariam, levaram alguns familiares a recorreram mais uma vez à OEA, criticando a forma como os trabalhos estão sendo desenvolvidos e demonstrando fortes ceticismos quanto aos resultados das buscas, principalmente por haverem 19 corpos (agora somados a mais quatro da última expedição) à espera de identificação na Universidade de Brasília, através de exames de DNAs.
Cemitério de Xambioá
Contudo, apesar de concordar que a melhor maneira de obter sucessos seria através de informações repassadas por aqueles que comandaram as operações militares, entendo que os trabalhos do GTA não podem cessar. É preciso, sim, dar mais agilidade às investigações sobre as ossadas já recolhidas, através de comparação com a utilização do DNA. Mas isso não significa prescindir das atividades que esse grupo desenvolve, com equipes capacitadas e uma estrutura adequada, garantida pelo exército. E quanto às críticas aos gastos com logísticas, e à estrutura necessária para essas buscas, são injustas, pelo que se pretende com essas expedições. As condições da região impõe essas necessidades.
Aliado a isso, torna-se importante decisões como as do Ministério Público, de responsabilizar criminalmente o coronel Lício Maciel, da mesma forma que o fez em relação ao Major Curió, por crimes de sequestro. Isso demonstra que há brechas para condenar aqueles que extrapolaram em suas funções, procurando forçá-los a darem informações mais precisas, que facilitem o trabalho de busca dos corpos daqueles que desapareceram nas matas do Araguaia. Afinal, ambos já confirmaram em depoimentos, terem sido responsáveis pela prisão de guerrilheiros que em seguida teriam desaparecidos, segundo testemunhos de antigos guias, após serem torturados.
Tudo isso representam atos e decisões que cumprem o objetivo de garantir às famílias o direito, legítimo e inalienável, de terem acesso aos restos mortais de seus entes, a fim de proceder a um sepultamento de acordo com suas crenças, pondo fim a uma angustiante procura que já dura quatro décadas. O Estado brasileiro, para fazer jus á criação de uma comissão para tal fim, deve dedicar todo o apoio a esses procedimentos, para que a verdade e a justiça prevaleçam, e se possa fechar esse capítulo de nossa história.


Fotos: Tereza Sobreira (Ministério da Defesa) - GTA

domingo, 29 de julho de 2012

COMO ILUDIR O POVO, COM SLOGAN DE LIBERDADE, IGUALDADE E DEMOCRACIA


Tomei emprestado de Lênin esse título. Não propriamente nos termos por ele posto num discurso realizado em 19 de maio de 1919, mas como uma paráfrase a ser aplicada nas circunstâncias que se propõe a análise aqui presente. Acrescento aqui uma discussão sobre o sentido da democracia, que ele se refere como “vontade da maioria”. É interessante observarmos que para completar a tríade que compunha a palavra de ordem da burguesia - nos momentos em que ela enquanto classe em ascensão questionava o putrefato poder feudal - falta apenas a fraternidade. Ora, a essência do discurso de Lênin[1] é criticar a maneira como certas palavras, ou como os sentimentos de igualdade e liberdade, eram costumeiramente manipulados, e cerzidos numa teia de demagogia a fim de iludir o povo.
Aliás, essa preocupação já estava presente muitos séculos atrás, com Aristóteles, Platão e Sócrates. Diversamente eles apontavam os riscos presentes nas várias formas de democracia, e o temor de que a mesma degenerasse em demagogia. “Aristóteles (Política, IV, 4, 2-7 e IV, 5, 3-5) distingue cinco formas de democracia: a primeira é aquela em que as classes dos ricos e dos pobres estão, por lei, no mesmo plano de igualdade, mesmo que, sendo os pobres mais numerosos, seja a eles que cabe inevitavelmente governar, com a conseqüência implícita de uma política de classe; a segunda é aquela onde, para chegar à magistratura, é preciso possuir um patrimônio não elevado; a terceira é aquela em que os cargos são acessíveis a qualquer cidadão de origem irrepreensível; a quarta é aquela em que todos os cidadãos podem aspirar aos diversos cargos; a quinta é aquela onde é soberana não a lei, como nas formas precedentes, mas a massa, ou seja a assembléia, sendo então que ocorre o fenômeno da demagogia” [2].
Com esses dois exemplos pretendo resgatar uma discussão, que, ao que parece, nos tempos de neoliberalismo terminou por ser enfiada no fundo do baú: qual o caráter da democracia?. Lembro-me bem que essa discussão opunha ideologicamente segmentos que politicamente tem marchado conjuntamente, mas que no vislumbre de disputar o poder mediante o sufrágio universal omitem a essência dessa polêmica, reforçam momentaneamente a democracia participativa tal qual expressa na palavra de ordem da burguesia, e a própria forma como a burguesia tem governado do ponto de vista do aparato do Estado e das leis.
Nenhum problema quanto a isso, em termos de inserir-se em um processo assumido como legítimo. A esquerda assimilou bem a possibilidade que se descortinava com o fracasso da burguesia em garantir a igualdade e a fraternidade expressas em sua  bandeira revolucionária. Percebeu que, historicamente, o sentido dado a esses termos pela burguesia, haviam se esgotado no tocante à aceitação das massas, e que era preciso se colocar como alternativa e alternância na condução do poder político.
O problema, a meu ver, situa-se no próprio esgotamente do processo, como Engels previra, mas que ainda não chegou ao ponto de ebulição por ele imaginado[3]. Enquanto isso, o discurso anacrônico da burguesia, envelhecido em “barris de carvalho” e apresentado como sofisticado, transfere-se para uma parcela importante e significativa da esquerda. Democracia passa a ser a representação divinal nos discursos, e a justificativa para caracterizar de forma maniqueísta os que divergem de tal ou qual opinião, ou decisão. A súmula inquisitória define, antes do purgatório, o caminho do inferno para os que se opõem às decisões “democráticas” da maioria. Mesmo que essa maioria represente apenas uma parte presente do todo majoritariamente ausente. Eis o temor de Aristóteles em relação ao assembleismo.[4]
Mas que democracia?
A banalização do discurso em defesa da democracia, e os interesses demagógicos que se encobriam por trás do mesmo, levou a uma descrença absoluta do que deveria ser o princípio de decisão da maioria. A lógica, enviesada, que permeia o discurso democrático, reza que a decisão pelo voto é o momento mágico que integra o indivíduo e o qualifica como cidadão. Seria a representação da sua individualidade num momento de decisão coletiva. Mas este também é o princípio da demagogia, na medida em que conforma as massas numa finalidade que é o voto. A isenção da participação está na ideologia da dominação burguesa, fundada principalmente no positivismo. O sufrágio universal possibilita a escolha democrática, e o eleito julga-se plenipotenciário, porque ungido das urnas, e do poder popular legitimamente conferido. A este cabe, seguindo-se o rito ideológico da dominação, estabelecer a ordem mediante a autoridade que lhe foi outorgada. A passividade, ou a pusilanimidade, nestes termos, é garantida pela “tradição” religiosa, e da crença divinal na autoridade.
Ditadores e democratas usufruíram desse discurso para justificar a consolidação de uma plutocracia ou de uma burocracia. Tudo em nome do povo, pelo povo e para o povo. Atualmente, repete-se à exaustão, o velho jargão da democracia, universalmente aceito como estabelecido pela burguesia, mesmo com todo o desgaste e descrença que o termo carrega.
Mas onde se encontra o sentido da discussão que no início do texto me propus a resgatar? Está no fato de se considerar a democracia como valor universal. Não só a democracia, como a própria noção de igualdade e liberdade, deve ser entendido historicamente. Do ponto de vista de uma racionalidade dialética ver esses conceitos, ou qualquer um outro, universalmente, é desconsiderar o próprio princípio da contradição, base fundamental para se entender qualquer processo de transformação.
Assim como a democracia, a liberdade e a igualdade se situa com caráter diferente a depender do momento histórico preciso. E é necessário, portanto, conhecer temporalmente e espacialmente, as condições concretas e objetivas que envolve um determinado fato, ou fenômeno, para nele aplicar dialéticamente o sentido que lhe cabe cada uma dessas categorias.
Assim o faz Engels, quando polemizando com um desafeto de sua época, M. E. Duhring, critica a noção de igualdade que a burguesia transmitia. “A idéia de igualdade, tanto sob a sua forma burguesa como sob a sua forma proletária, é também um produto da história, cuja criação supõe necessariamente relações históricas determinadas, que, por sua vez, supõem uma longa história anterior. Ela é, portanto, tudo o que se quiser, salvo uma verdade eterna”.[5] É exatamente por isso, que a noção de democracia, igualdade e liberdade é diferente em Cuba e nos Estados Unidos, assim como na Grécia antiga, berço da democracia apesar de na época ser uma sociedade escravocrata; ou como certamente crêem os !Kung San, povo que ainda vive primitivamente ao norte de Botswana, na região do deserto de Kalahari, na África.
A leitura fossilizada, presente no discurso de uma boa parcela da esquerda, descambou para uma defesa demagógica do igualitarismo, e embora apregoem a defesa do socialismo, cujo Estado é altamente centralizado e fundado no princípio da autoridade expressa no partido organizado mediante o uso do “centralismo democrático”, desconsideram o próprio princípio da autoridade.
Primeiro que, tanto numa sociedade em que prevaleça a lógica “a cada um segundo o seu trabalho”, ou em outra em que vigore “de cada um segundo as suas possibilidades”, não há, efetivamente nenhuma condição de igualdade, até porque a própria finalidade seria “a cada qual segundo as suas necessidades”. Segundo, porque autoridade pressupõe subordinação, e em qualquer sociedade isso será uma condição sempre presente, como o foi, em gradações diferenciadas, porque devem ser entendidas historicamente, nas sociedades comunistas primitivas. O que há de se ver, no entanto, é que qualquer grau de igualdade, ou desigualdade, presente em sociedades onde se elimine, ou não tenham existido classes sociais, não signifique uma exploração e dominação sobre os meios de sobrevivência dos indivíduos, mas apenas uma relação social baseado no respeito recíproco, mesmo considerando-se a existência de diferenciações em suas formas de existência.
Contra essa fraseologia se arremeteu Lênin, em discurso contundente, combatendo aqueles que, após a revolução soviética, e ainda em pleno processo de uma intensa guerra civil, inclusive contra exércitos estrangeiros, atacavam o governo bolchevique acusando-o de anti-democrata, e de acabar com as liberdades. É importante compreendermos o que se passava historicamente na época em que Lênin pronuncia esse discurso, para não cairmos no erro que criticamos sempre: do anacronismo. Mas a essência de sua abordagem prende-se às concepções expostas antes de sua época, por Marx e Engels.
Diz Lênin: “Qualquer pessoa que tiver lido Marx - quem quer que tenha lido mesmo uma divulgação popular de Marx - sabe que ele devotou a maior parte da sua vida, das suas obras e a maior parte das suas investigações científicas, exatamente à ridicularização da liberdade, igualdade, vontade da maioria e a todas as espécies de Benthams que o descrevem, para provar que por detrás destas frases se encontram os interesses da liberdade do proprietário, a liberdade do Capital, para oprimir as massas trabalhadoras”.
Ainda no mesmo opúsculo ele prossegue, agora referindo-se à igualdade: “Engels tem toda a razão quando afirma que o conceito de igualdade é um preconceito estúpido e absurdo, separadamente da abolição de classes. Alguns professores burgueses tentaram convencer-nos dum conceito de igualdade pelo qual todos seriam iguais. Tentaram atribuir aos socialistas este absurdo por eles inventados. Mas na sua ignorância, não sabiam que os socialistas, e especialmente os fundadores do moderno socialismo científico, Marx e Engels, tinham afirmado: a igualdade é uma frase oca a não ser que por igualdade se entenda a abolição de classes”.[6]
Por que se teme tanto o plebiscito?
O que podemos deduzir das questões posta aqui, em citações que fariam enrubescer qualquer paladino da democracia, da liberdade, da igualdade? Depende da leitura que se faça. Aí vai pela ótica, evidentemente dominada pelo cérebro, que formula a leitura condicionada pelos fatores ideológicos que instruíram, ou educaram, determinado indivíduo. Concordando plenamente com Marx, quando ele diz que é o meio que determina a consciência, e não o oposto. Portanto, a assimilação da “verdade” do que vem a significar cada uma dessas categorias, está de acordo com as elaborações político-ideológicas dominantes num determinado momento.
Não se pode esconder o fato de que esses valores não estão disponíveis para dois terços das pessoas que vivem no mundo, e atingi-los é somente possível a uma minoria. A consequência disso tem sido passar do discurso da crítica para a aceitação da condição daquilo que se criticava, porque diante da perspectiva de se atingir o poder ou ascender à classe média e a elite dominante. Uma parte considerável da intelectualidade, principalmente, seguiu também por esse caminho. Inclusive aqueles que se apresentam com postura radical e discurso ultra-revolucionário, mas não se consideram intelectuais, preferem ser "proletários" ilustrados. Sustentam melhor assim o "dom de iludir".
Lembrando Lênin, assistimos também na universidade uma repetição de frases “ocas”, onde discursos pretensamente avançados iludem uma massa passiva com slogans de igualdade, e avançam agressivamente com palavras de ordem que visam mexer com o emocional e com a defesa corporativa, esvaziando-se do conteúdo a essência do que se deve discutir. Criou-se na universidade também uma visão de “igualdade”, que ameaça a autoridade que deve haver na relação professor-aluno. Uma relação, claro, que deve ser fundamentada no respeito mútuo, mas que jamais deve deixar dúvidas quanto a quem é o mestre e quem é o discípulo, quem é o emissor e quem é o receptor e daí extrair o grau de responsabilidade e representatividade que deve existir num centro de produção do saber. Pode-se combater o esvaziamento da crítica, ou mesmo a incompetência, que porventura venha a existir, mas jamais relegar a um igualitarismo estéril, o papel do professor na Universidade.
Mesmo que o discípulo venha futuramente a superar o mestre (o que deve ser visto orgulhosamente), como eventualmente ocorre, jamais se pode ver nessa relação um igualitarismo como se propõe os anti-autoritários.
Mas, como se pode ver pelas questões postas anteriormente, essa não é uma interpretação baseada nas idéias de Marx. Pode, sim, ser uma visão obtusa dos significados expressos nas obras de Marx e Engels, um “marxismo” que o próprio Marx negara ver em suas obras quando critica alguns ditos “marxistas” franceses de sua época. Aproxima-se mais de uma visão cristã de mundo, não propriamente ingênua, mas eivada de hipocrisia.
Na universidade, como na sociedade, vive-se da ilusão da liberdade, concedida dentro da lógica sistêmica. Para os seus defensores, nunca se criou algo melhor, por pior que ela seja. É um falso sofisma, pois sempre dentro dessa lógica, a minoria seguirá se impondo pelas condições sociais. E, em alguns casos, como na universidade, não é só pelo erro da escolha, pois se pode esperar mais capacidade crítica (embora isso não seja necessariamente verdade), mas pela absoluta abstenção da maioria de participar nos fóruns decisórios, deixando nas mãos de uma minoria sectária a condução de seus destinos.
Qualquer que tenha sido esse caminho, da democracia ou da tirania, tem beneficiado sempre uma minoria, não somente pela escolha da maioria, mas principalmente sua omissão em momentos cruciais. Mesmo que consideremos isso circunstâncias geradas pelos elementos superestruturais que justificam uma alienação das massas. Mas, e na universidade? Fica o enigma da esfinge, numa reflexão que deve ser entendida como um desabafo diante de determinadas circunstâncias. Por isso esse é um texto para ser decifrado, e ele será assim entendido. Claro que há um simbolismo na escolha da frase de Lênin .


[1] Lênin, V.I. Como iludir o povo. São Paulo: Global Editora, 1979. (
[2] Bobbio, N et alli. Dicionário de Política, Vol. II. Brasília-DF: Editora Universidade de Brasília, 1992. Págs. 951-952
[3] Engels, F. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. 5ª edição. Rio de Janeiro: Editora Civiização Brasileira, 1979. Pag. 195
[4] Temos exemplo de anos atrás quando uma assembleia dos professores da UFG aprovou um indicativo de greve. A maioria presente na Assembléia assim o decidiu, democraticamente. Ocorre que não estavam presentes nem 30 professores, de um total de cerca de 1.500. Mesmo que sejam 300, hoje corresponde a menos de 20% do total. Mas muitos defensores desse processo não aceitam plebiscito, quando em tese se atende a um número maior de professores com poder de decisão. Porque teme-se o plebiscito?
[5] Engels, F. Anti-Duhring. Lisboa: Dinalivros, 1976. Pág. 145

quinta-feira, 19 de julho de 2012

SÍRIA, UMA BATALHA GEOPOLÍTICA. O ALVO É O IRÃ.


Escaldados pelo resultado da intervenção da OTAN na Líbia, Rússia e China resolveram endurecer suas posições e dificultar as tentativas dos EUA e demais aliados ocidentais - com uma forte propaganda midiática – de repetir a mesma estratégia na Síria. Desde o mês de fevereiro várias resoluções têm sido apresentadas no Conselho de Segurança e todas rejeitadas, por não obter unanimidade entre seus membros. Rússia e China opuseram-se a todas elas, pois poderiam dar o pretexto para uma invasão à Síria, como ocorreu na Líbia.
Conselho de Segurança da ONU
Como já abordei aqui em outras oportunidades, inclusive na 5ª parte de “Crônica de um mundo em transe” (http://www.gramaticadomundo.com/2012/01/cronica-de-um-mundo-em-transe-5-parte.html), a Síria é a última pedra de dominó, cuja queda irá possibilitar um cerco ao Irã, permitindo aos aliados ocidentais atingirem o território daquele país pelo mediterrâneo. Claro, considerando que o Iraque garantiria passagem para tropas aliadas atingir fronteiras iranianas (o que não é certo). Há que se considerar também o fato que é através desse país que a Rússia consegue monitorar o Mediterrâneo, com a base militar de Tartur, ali instalada, a única da marinha que ele possui fora de seu território.
Tudo isso decorre também das dificuldades de se utilizar o estreito de Ormuz, em função também das seguidas ameaçadas do Irã em fechá-lo, bem como, mesmo que isso não ocorra, pela facilidade de os mísseis iranianos atingirem embarcações que tentarem utilizar aquela rota. Há pouco tempo esse país realizou algumas manobras militares, algumas com mísseis potentes, capazes de atingir Israel e todas as bases militares dos EUA no Oriente Médio, outras no próprio estreito. Somente este ano várias manobras militares foram feitas nessa área estratégica para qualquer conflito ali na região. O objetivo é nitidamente intimidatório, de mandar recados para EUA e Israel, com o intuito de demonstrar sua capacidade em suportar qualquer ataque por aquele istmo. Embora isso não signifique poder de fogo suficiente para conter a ferocidade do império.
Oleodutos tentam reduzir a importância
estratégica do estreito de Ormuz
As notícias de que o governo sírio estaria atacando a população, repetidas infinitas vezes, constroem a mesma verdade, seguindo a lógica goelbesiana, que alterou o perfil de Kadafi, de aliado ocidental, a “um tirano sanguinário assassino de seu próprio povo”. Assim, seu assassinato foi recebido com naturalidade, e merecimento, em função da propaganda insidiosa, insistentemente, que o transformou em um monstro cuja morte tornou-se merecida. É assim que as multidões são preparadas para a aceitação de assassinatos seletivos e agressões aos direitos humanos.
Pode-se ver em fatos escabrosos como atentados a bombas, que tem tirado a vida de centenas de pessoas. As informações são dadas como sendo atos da oposição contra o ditador, quando em outras circunstâncias seria dito como sendo atentados terroristas. Como sempre, terroristas são somente aqueles que praticam violência contra os aliados do império. Da mesma forma, informações não confirmadas, ditas cegamente porque à distância, dão falsas impressões, e muitas vezes tem como fonte informantes ligados aos grupos que se encontram em guerra aberta contra o governo, o que indica claramente uma parcialidade suspeita.
Atentado ao Ministério
da Defesa da Síria
A constatação da parcialidade e manipulação com que as notícias são dadas sobre a guerra na Síria, não implica na defesa do regime de Bachar Al Assad. Mas é um alerta sobre as novas estratégias adotadas pelos EUA, de não intervir diretamente naqueles países cujos governantes não participam de seu círculo de confiança. As ações de agentes para insuflar revoltas, a antiga estratégia de contaminar a economia desses países, a presença dos falcões – assassinos especializados do serviço de inteligência ligado diretamente ao Pentágono – e, a ciberguerra, que inclui desde a contaminação com vírus poderosíssimos, até a sofisticação dos aviões não tripulados, os drones. De forma sutil, mantém-se a velha estratégia de apoiar golpes de estados, o que já foi tentado em vários países do continente americano, dando certo em Honduras e mais recentemente no Paraguai, mas fracassado na Venezuela, na Bolívia e no Equador.
Assim, a mídia prepara a opinião pública para que o destino de Bashar al-Assad seja semelhante ao de Kadafi e ao de Sadam Hussein. Mas esconde o que está por trás da insistência, e seguramente, da ação de agentes infiltrados entre os opositores sírios, em derrubar aquele regime. Depois do objetivo alcançado, as notícias sobre tais países caem no esquecimento, e as destruições causadas por essas medidas deixam de ser manchetes. O resultado da queda da Líbia e da maneira como internamente  tem sido perseguidos antigos aliados de Kadafi, com torturas e assassinatos seletivos, denunciados pela ONG “Médicos Sem Fronteiras”, que decidiu, por isso, abandonar o país, deixou de se tornar notícia. Recentemente, uma eleição faudulenta não foi suficiente para unir o país, nem para forçar dezenas de grupos paramilitares que recusam-se a entregar suas armas e controlam partes do território, esfacelando o que antes era uma nação.
Manifestação de apoio ao governo
Seguindo a mesma estratégia, somente recentemente as informações tomaram o foco pretendido. Há alguns dias a grande mídia passou a dizer que havia uma guerra civil na Síria. Ora, esse conflito já poderia ser considerado guerra civil desde o ano passado (e assim eu afirmei eu meus artigos). A empulhação de acordos que deveriam ser aceitos entre partes não passou de “mis-em-scéne”, pura embromação, a fim de passar para as pessoas desinformadas que assistem esses noticiários de que haveria uma relutância por parte do regime sírio. Ora, o cessar-fogo era puro conto da carochinha. Os rebeldes desde o começo estão sendo armados – e com armas sofisticadas – pelos países ligados à Otan, sob o comando dos EUA. Boa parte deles composta de mercenários, que atuam desde o começo das revoltas e outros são grupos que respondem na síria pela franquia da Al-Quaeda. Além de grupos ligados à irmandade muçulmana, que na Síria adotaram um comportamento diferente do que tiveram no Egito.
Nos últimos dias, sem que se possa haver qualquer comprovação, ou exemplo de que algo já tenha acontecido relacionado ao fato, os meios de comunicação estão noticiando que o governo sírio “irá” utilizar armas químicas, e já cogitam ação de bombardeios da OTAN com o intuito de “destruir essas armas”. Descaradamente repetem a mesma estratégia utilizada para justificar a invasão do Iraque, mesmo se, depois de centenas de milhares de mortes ocasionadas com a invasão daquele país, nada tenha sido provado da existência de “armas de destruição de massas”. Agem como se as pessoas esquecessem facilmente das farsas que se escondem por trás dessas notícias.
Opositores do regime sírio
Tal qual ocorreu em relação ao Iraque, e mais recentemente no caso da Líbia, a mídia cria toda uma preparação, forjando uma opinião pública que seja favorável a uma nova invasão repassando informações, não comprovadas, que são obtidas de fontes não confiáveis, pois são opositores do regime sírio. Mas são nítidas as manipulações das informações.
Isso que reafirmo aqui nesse artigo eu já havia escrito em fevereiro, só estou atualizando. Seguramente muitas ações violentas e repressões brutais estão ocorrendo na Síria há mais de um ano, são fruto não tão somente de manifestações da população, mas da ação de grupos opositores armados no que podemos identificar como uma guerra civil ocorrendo naquele país.
Desta feita, com interesses geopolíticos em jogo, e até em função do radicalismo gerado pelas declarações da secretária de estado Hilary Clinton, por conta de suspeitas de fraude no processo eleitoral, a Rússia se recusa a aprovar resoluções que dê o pretexto para novos ataques da OTAN, como ocorreu na Líbia. E nisso é seguido pela China, demonstrando que nesse tabuleiro de xadrez já é nitidamente conhecida a posição de cada uma das peças que compõe o jogo. Os interesses são enormes, e todos estão ligados á geopolítica do Oriente Médio e tem como objetivo principal atingir o Irã. Aquilo que é manipulado na informação midiática, e pouco entendido pelo público, constitui-se na principal batalha disputada em território sírio, mas também no Conselho de Segurança.
Base russa de Tartur, no Mediterrâneo
imagem do Google
Como a demonstrar as dificuldades que a Rússia criará para impedir a mesma estratégia utilizada na Líbia, dois de seus navios, liderados pelo Porta-aviõesAlmirante Kuznetsov, aportaram em sua base militar no Mediterrâneo, em território Sírio, desde o dia 9 de janeiro deste ano. Essa é a única base que os russos possuem e que lhes dão certo poder de manobra no mar Mediterrâneo e facilita contatos com países do Oriente Médio.
Se de um lado torna-se difícil emplacar qualquer nova Conselho de Segurança que possa abrir caminho para ataques da OTAN, por outro cresce a impaciência de Israel, que passa a ver dificuldades para um possível ataque ocidental ao Irã. Caso não se dê rapidamente a queda do governo Sírio, impossibilitando um cerco seguro ao Irã, a tendência é que Israel resolva atacar o país persa, acreditando que o tempo beneficia os iranianos, dando-lhes condições de aperfeiçoar sua capacidade de lidar com a energia nuclear. O receio de que o país dos Aiatollahs construa artefatos atômicos, já que possui mísseis com capacidade de deslocá-los a centenas de quilômetros, tem muito mais a ver com a hegemonia geopolítica naquela região do que por um possível ato tresloucado de seus dirigentes.
Enfim, é isso que está em jogo. E é absolutamente abominável, embora compreensível, já que as grandes corporações da mídia têm também interesses por trás desse conflito, a forma como as notícias são passadas, repetitivas ad nausean, tentando formar no meio da opinião pública internacional, as justificativas que tornariam aceitáveis mais um ato de agressão militar, que não tem nada a ver com preocupações humanitárias.
Mas é provável que o fim do governo sírio seja o mesmo dos demais países do Oriente Médio que não sobreviveram às revoltas populares e as ações de agentes infiltrados em grupos opositores. Recentemente, em um debate do qual participei, considerei equivocado o título dado a ele: “Porque o governo da Síria não cai?”. Achei que seria melhor utilizar, “Porque o governo da Síria demora a cair?”. Isso porque considero que está em jogo um poder estratégico imprescindível para os interesses do império e dos seus aliados. A Síria, sob o governo de Bashar al-Assad é um empecilho a esses objetivos, por suas relações com o Irã e pelo apoio que sempre deu aos palestinos e aos grupos Hamas e Hebollah. Ademais, talvez seja o regime sírio, a despeito de todas as críticas, o que melhor garante uma certa liberdade às minorias étnicas e religiosas dentre todos os demais da região. E essa constatação não impede de reconhecermos um caráter ditatorial nesse regime, algo não muito diferente de todos os outros países do Oriente Médio.
Oriente Médio, uma região
em permanente disputa
É possível, sim, que o regime de Al-Assad não resista. E isso não se deve somente a uma possível organicidade da oposição, ou de uma rejeição popular ao governo. Mas porque todos os esforços das potências ocidentais têm sido para fortalecer esses opositores. A estratégia dos EUA para essa região, desde que começaram as revoltas árabes, tem sido de se postar ao lado dos revoltosos e municiá-los de armamentos suficientes para derrubar qualquer governo. Muito embora os regimes anteriores fossem seus aliados. Além das ações de agentes espiões com a posterior entrada em ação de aviões não tripulados, seja para ações militares (como assassinatos seletivos) ou para obter informações sigilosas, com aparelhos que não podem ser facilmente detectados por radares. A não ser os mais sofisticados.
Mas, caso se concretize a tomada da Síria pelos rebeldes, com o apoio da OTAN a serviço do império, somente aumentará mais ainda a instabilidade na região, somando-se mais um estado caótico, como decorrência das intervenções que se tornaram hábito neste século. Iraque, Afeganistão, Líbia, Egito, Iêmen, e agora a Síria, deixam de ter governos títeres, mantendo à força regimes de poucas liberdades políticas, e passam a conviver com instabilidades decorrentes de governos fracos que mal conseguem desarmar insurgentes que atuam dominando territórios nas fronteiras desses países.
As condições para uma nova guerra, de proporções incalculáveis seguem sendo criadas. Embora seja difícil prever se isso de fato acontecerá, não resta dúvida que as jogadas políticas caminham nessa direção, e deixam claro que esse é o objetivo das grandes potências ocidentais. A Síria não é o alvo final. Assim como a Líbia foi invadida para se dominar o petróleo daquele país, possibilitando o embargo do petróleo iraniano, a queda do regime sírio tem como objetivo conter o fortalecimento do Irã, cuja capacidade de produzir armas nucleares o tornaria praticamente inatingível no Oriente Médio e o transformaria numa potência regional com condições de controlar a região detentora das maiores reservas de petróleo do mundo.
Disso tudo podemos dizer que as informações repassadas pela grande mídia, não passam de grandes mentiras, versões falsas disparadas a esmo para todo o mundo com o intuito de justificar ataques seletivos e o contrabando milionário de armamentos para grupos rebeldes. Como sempre, a guerra se constitui em um grande negócio, mais ainda nesse momento de profunda crise econômica, com economias estagnadas e desempregos crescentes. O dinheiro sujo, seja de narcotráficos, prostituição e, principalmente, da guerra, tornam-se o meio mais fácil para abastecer mercados falidos pela corrupção na política e nas grandes corporações.
Interesses geopolíticos em jogo -
insightgeopolitico.com
A ânsia desses países em aprovar resoluções que facilite um ataque a Síria não tem nada a ver com defesa de população ou de direitos humanos, a história está aí a comprovar isso. Somente interessa os objetivos estratégicos visando o controle de uma das regiões com maior reserva da matriz energética mais importante do mundo. É o dinheiro, o grande poder e a política que comandam as ações. Então, quem quiser se informar sobre o que acontece nesses conflitos, deve fugir do convencional, desligue-se da informação manipuladora e mentirosa da grande mídia. Em grande parte, essas informações bombásticas sobre tais conflitos tem também o objetivo de desviar as atenções da enorme crise que afeta o capitalismo e que tem levado à falência as economias das maiores potências capitalistas. Uma guerra sempre é motivo para tentar salvar economias falidas. As corporações agem como abutres nas carniças, disputando politicamente a reconstrução de países devastados pelos bombardeios. 

domingo, 1 de julho de 2012

O OVO DA SERPENTE

A pós-política e o perigo dos três efes: fakes, farsantes e fascistas(*)

Há algum tempo alimento a vontade de escrever um texto que pudesse problematizar uma situação que vivemos no mundo real, mas que se manifesta mais fortemente na virtualidade de um cotidiano que segue perigosamente em direção ao acirramento de comportamentos fortemente marcados pela intolerância.
Os golpes silenciosos aplicado em alguns países que viveram dias e meses de revoltas populares, e o rito sumário da impostura democrática, com os setores da elite conservadora paraguaia destituindo o presidente daquele país, me levaram a, enfim, concluir por tentar registrar minhas preocupações que já me acompanhavam desde que terminei de escrever as “crônicas de um mundo em transe”, no começo do ano. E me convenceram após por várias vezes ter sido estupidamente afrontado com ofensas, por divergir de determinadas opiniões expostas na internet.
Como os amigos leitores desse blog podem perceber, ao longo da leitura de mais de uma centena de artigos, embora tenha me desligado umbilicalmente da militância política, não o fiz das minhas concepções nem da minha filiação partidária. E mantenho sempre a ideologia marxista, e o método dialético, a guiar os meus olhares e definirem as minhas observações sobre as transformações que afetam o cotidiano da humanidade. E o nosso entorno, em particular.
Os dissabores da vida, registrados no acaso que dilacerou uma parte de mim, e que me levou inclusive a criar esse blog, gerou certo ceticismo quanto a construção do futuro. No meu caso particular o futuro desvaneceu-se no momento em que uma tragédia tirou de mim parte dele, e me fez prestar mais atenção no presente, valorizando mais o passado, e tentando entender como as mudanças casuais nos afetam em nossos sentimentos mais profundos, de esperança, fé e crenças nas transformações materiais.
Tornei-me mais criterioso nas análises, mais ponderado na avaliação política, e equilibrado na identificação dos sentimentos de solidariedade. Mas me assusta ver como o caráter dos indivíduos vem sendo determinado por fortes traços de intolerância. E o que vejo é preocupante, após três décadas de militância política, e tendo podido acompanhar essas transformações por minhas leituras focadas na dialética materialista e pela experiência principalmente desses últimos cinco anos, em que pude observar melhor com outros olhares esses comportamentos, principalmente da juventude.
O meu ingresso na virtualidade das redes sociais, motivado principalmente pela necessidade de melhor difundir o meu blog, me levou da euforia com o deslumbramento pela potencialidade que essas ferramentas nos possibilitam, à decepção com que comecei a perceber nesse meio um canal de expressão de comportamentos desrespeitosos, intolerantes e catártico das frustrações digressivas de personalidades certamente marcadas por históricos de convivências sociais complexas. Muito embora sendo comportamento de uma minoria, incomodam e preocupam.
Imaginei, num primeiro momento, poder transferir a minha militância para o mundo virtual, até mesmo me intitulando um “guerrilheiro cibernético”, como uma forma de prosseguir na difusão de ideias que marcaram a minha formação política. Como aprendi a ser mais tolerante com as diferentes opiniões, e a não me consumir por questões menores que venham a nos dividir, os que possuem concepções que se baseiam na solidariedade e na busca pelo caminho que nos leve a uma sociedade mais justa e menos desigual, acreditei poder levar o bom combate para as redes sociais.
Eu sabia que encontraria discussões ácidas, no enfrentamento de opiniões advindas de setores conservadores. O que não seria nenhuma novidade, e até mesmo natural. Mas o que me viria a me surpreender, por todo esse tempo de virtualidade digital seria a virulência dos embates, oriundos principalmente de pessoas identificadas com grupos aparentemente de esquerda. Além dos inconformados conservadores, contrariados com as recentes mudanças políticas no Brasil.
Passei a observar tais comportamentos, e até mesmo em algumas situações o grau de agressividade e de ofensas destiladas atingiu níveis preocupantes, me alertando para buscar explicações em uma nova realidade que teve início em conflitos que marcaram um novo estilo de luta da juventude por vários países, denominado “indignai-vos”. Na esteira da crise capitalista que se estende desde quando as torres gêmeas foram postas ao chão, em 2001, cujo epicentro se deu em 2008 com a quebra de inúmeras instituições financeiras na sequência de uma grave crise no mercado imobiliário estadunidense, até o momento atual, com uma crise imprevisível na Europa e do capitalismo de uma maneira geral.
A partir de uma situação concreta, particular, e as observações que as minhas aulas de geopolítica me impunham, fui construindo algumas ideias a respeito dos tempos atuais. Na junção das lembranças das elaborações de Milton Santos, das leituras dos últimos textos de Eric Hobsbawm, e, obviamente, da dialética marxista, fui me convencendo que vivemos uma época de transição, de um possível esgotamento do sistema capitalista. Mas, como já alertava Gramsci, o perigo está quando o novo demora em chegar e o velho resiste em desaparecer. Se não há a perspectiva de saídas revolucionárias, que possam dar um novo rumo à sociedade mediante a existência de uma vanguarda devidamente organizada, outros mecanismos certamente despontarão, a exemplo de como se deu o surgimento do nazi-fascismo, nas décadas de 1930-40, e prolongarão a agonia sistêmica.
Lembrei-me de ter lido há alguns anos um livro do filósofo Slavoj Zizek, quando ao final ele conclui com algumas formulações interessantes, que podem perfeitamente serem pontuadas com os acontecimentos patrocinados pelos “indignados” – que surgiram nas revoltas árabes e nas lutas contra o sistema financeiro capitalista, nos Estados Unidos e Europa – e nos ajudam a entender o comportamento de uma juventude sectária e intolerante. As justas revoltas são desprovidas de senso crítico aprofundado, porque não lhes acompanham nem questões teóricas, que lhes ajudem a compreender as contradições, nem ideologia, que lhes indiquem como superar tais complexidades e encontrar caminhos alternativos àqueles pelos quais se estão protestando. Voltei a ele, e cito aqui um trecho interessante.
Assim dizia Zizek:
“Por tudo isso, a lição ‘leninista’ fundamental de nosso tempo é a seguinte: política sem a forma organizacional do partido é a mesma coisa que política sem política; por isso, a resposta àqueles que querem apenas ‘Novos Movimentos Sociais’ (nome muito adequado, aliás) deve ser a mesma que os jacobinos deram aos girondinos que queriam negociar uma solução de compromisso: ‘Vocês querem revolução sem revolução!’. O dilema atual é que há dois caminhos abertos ao engajamento sociopolítico: ou joga-se o jogo do sistema, engajando-se na ‘longa marcha através das instituições’, ou toma-se parte em novos movimentos sociais, do feminismo à ecologia e ao anti-racismo. E, reiterando, a limitação desses movimentos é que eles não são políticos no sentido do Singular Universal: eles são ‘movimentos de uma só causa’, que não têm a dimensão da universalidade – quer dizer, eles não se relacionam com a totalidade social” (ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução – escritos de Lenin de 1917. São Paulo: Boitempo editorial, 2005. Pág. 325).
A máscara do protagonista de "V"
de Vingança inspirou alguns a
esconderem-se no anonimato
Prosseguindo, em um capítulo denominado “Contra a pós-política”, Zizek critica o comportamento gerado do desencantamento seja com a desilusão do socialismo, como pela crescente crise do capitalismo. O caminho escolhido quase sempre tem sido do apoliticismo e da busca por escolhas de temas pontuais, que se tornam bandeiras de grupos e camadas sociais, desconectadas de uma realidade bem mais ampla, que poderia levar ao entendimento que tais circunstâncias são geradas pela forma como funciona o sistema capitalista.
Os exemplos que surgem dessa confusão têm levado ao poder setores conservadores oportunistas, que se aproveitam desses dilemas e da desideologização, que tem caracterizado os tempos atuais. Na medida em que não carregam em si ideologias, e limitam-se às particularidades, esses movimentos contribuem para a alienação das massas em geral, quase sempre afastadas dos embates políticos. A consequência disso é a incapacidade em se identificar possíveis diferenças, mesmo quando há um completo antagonismo no confronto de concepções ideológicas bem distintas levando ao poder candidatos conservadores, reforçando o controle dos meios de produção pela classe dominante e impedindo possíveis mudanças estruturais.
Creio ser a situação atual do Paraguai um ótimo exemplo, que já me referi no texto anterior. E o processo eleitoral mexicano, que deve levar a retornar ao poder o PRI (Partido Revolucionário Institucional), conservador, que dominou a política naquele país por 70 anos. Mesmo tendo nas duas últimas décadas um movimento social que adquiriu uma grande influência internacional, os zapatistas, e estando o México em uma verdadeira guerra civil contra o poder do tráfico de drogas.
Mas essas situações não são o cerne das questões que quero aqui abordar. São apenas exemplos, dentre dezenas de muitos outros que apontam as contradições flagrantes de um tempo que deveria apontar para a busca por alternativas progressistas ao capitalismo, sistema que vive uma de suas maiores crises desde a grande depressão da década de 30 do século passado.
As causas de tudo isso, como pontuadas por Zizek, podem ser encontradas na absoluta falta de compreensão política de uma juventude, distanciada de conteúdos teóricos que possam explicar, ou pelo menos facilitar, o entendimento sobre como as contradições afetam nossas vidas e a sociedade de maneira geral, e não são possíveis de serem explicadas mirando-se apenas nas particularidades. As palavras de ordens, quase sempre distantes de atingir o substrato do problema, miram preferencialmente setores emergentes da própria esquerda, notadamente partidos comunistas em ascensão. Há uma disputa sectária entre grupos de esquerda que confunde o alvo, e alivia a classe dominante, que se unifica quando sente o chão abrir-se a seus pés.
Miguel de Unamuno, iludiu-se com
o movimento que ascendeu o fascismo,
e depois o combateu quando descobriu
o seu sentido perverso.
Além disso, por não possuírem elementos ideológicos que lhes garanta organicidade, alguns desses movimentos não somente atacam os partidos políticos, mas escolhem aqueles que são forjados ideologicamente, e destilam injustos ódios que com o tempo transformam-se em comportamentos intolerantes. Parece haver uma necessidade de se destruir as ideologias dos que as têm. Mas como não há espaços para discussões, pela ausência delas diante de um pragmatismo imediatista, a agressividade passa a se constituir na arma aparentemente eficaz para fazer valer seus objetivos.
Ocorre que na sequência de comportamentos que vão se tornando cada vez mais intolerantes, amplia-se a virulência das agressões, e o que se vê é a repetição de atos que nos fazem lembrar a maneira como o nazismo e o fascismo despontaram logo na sequência da crise econômica da terceira década do século passado.
A alienação de uma juventude forjada em tempos de uma globalização neoliberal, a destruição dos laços familiares, a individualidade crescente, a busca egoística pelo sucesso a qualquer custo, e a ampliação de valores teológicos que substanciam tudo isso, denominada teoria da prosperidade, compõem um conjunto de circunstâncias que explicam os tempos de negação da ideologia. Mas não somente isso. Agregue-se, contraditoriamente, a falta de informação em um tempo em que as ferramentas tecnológicas facilitam a aproximação com o que acontece em todas as partes do mundo. Mas são essas mesmas ferramentas, que explicam, para o bem e para o mal, o distanciamento de leituras mais complexas, filosóficas, optando-se por um cartesianismo vulgar, porque fruto de toda a confusão gerada pela sociedade midiática neoliberal, e pela informação deformada, apolítica e baseada na espetacularização do medo. O que os empurram para leituras alienantes, bizarras e de auto-ajuda.
A radicalidade de alguns desses comportamentos foram potencializados pelas redes sociais, criando uma coragem peculiar a alguns jovens, situação que não aconteceria em plano real, pela absoluta falta de backgrounds, consequência do distanciamento teórico e da ausência de fundamentos a lhes garantir segurança para um embate ideológico.
A intolerância, característica fascista,
não tem limites. E se inspira em crimes
hediondos no combate político
O que se vê, então, é o destilar de ódios a todos aqueles que porventura pensem diferentes, discordem e confrontem seus pensamentos e práticas. Semelhante ao que aconteceu na ascensão do fascismo tradicional, aquele que no período de crise sistêmica parecida com a que vivemos nos dias atuais, despontou a partir de comportamentos críticos, de suportes garantidos pelas insatisfações e indignação de populações que viviam momentos de dificuldades econômicas graves. Também naquele momento, os jovens tornaram-se alvos potenciais de lideranças emergentes, pela insatisfação com uma época que não lhes ofereciam perspectivas. E alimentados pela intolerância, visaram também os comunistas, que ameaçavam ideologicamente a elite dominante, fracassada desde o final da primeira guerra mundial. A negação da política instrumentalizou uma reação conservadora.
Alguns daqueles que usam das redes sociais para agirem de maneira desrespeitosa não o fazem de maneira explícita, mas escondem-se em perfis falsos, prática criminosa que tem se tornado comum, principalmente no Facebook. Ou senão, omitem de seus perfis informações que possam identificá-los e apresentam desenhos, ou charges, em lugares de fotos que os reconheçam.
Não é essa uma prática somente desses grupos, mas pude identificá-las também sendo utilizada por jornalistas de blogs conservadores, de jornais, tabloides e revistas, que postam suas matérias para serem repercutidas, e que, ao serem criticados acionam seus fakes, que agem agressivamente, ofendem o interlocutor e tentam desqualificá-lo. Assim como fazem alguns desses farsantes, anonimamente, em comentários agressivos nos blogs que tem defendidos os últimos governos no Brasil e teçam criticas aos partidos conservadores.
Ao fim de tudo, esses comportamentos tornaram-se bem visíveis no desencadear da greve na universidade. Comportamentos sectários, violentos e intolerantes, traduzem um sentimento comum à época do fascismo, de não aceitação das diferenças, de negação do pensamento oposto e da reação intempestiva e agressiva na imposição de um pensamento ou de uma determinada prática. Não sei se surpreende, mas é lamentável, o fato de juntarem-se a esse coro intolerante alguns professores, que obviamente se desqualificam enquanto educadores. Mas suas posturas indicam que eles pouco se importam com isso, a inconsequência é uma marca que lhes acompanham e a intolerância um traço de caráter.
O filme "A Onda" mostra
como o fascismo pode
iludir a juventude
E, não surpreendente, grupelhos de extrema-esquerda, setores anárquicos despolitizados e contumazes direitistas, se irmanaram no mesmo comportamento. Mas tudo isso deve servir de alerta aos que defendem uma sociedade baseada na tolerância, no respeito às diversidades e na aceitação de ideias que se contraponham. Considerando-se o momento de crise econômica mundial, do xenofobismo e da intolerância religiosa, vivemos circunstâncias bastante parecidas com o que ocorreu no século XX. O fascismo e o nazismo ascenderam mediante a insatisfação popular, e se consolidaram com um discurso baseado no moralismo hipócrita, no anticomunismo e na descrença com as organizações políticas.
Diferente do que se pensa, a ideologia que moveu o fascismo não foi construída pela direita, mas originou-se de um viés esquerdista, notadamente naqueles setores mais sectários, cujo discurso radical empolgava as massas e as tornavam-nas facilmente manipuláveis e aptas a uma lavagem cerebral coletiva. Tanto Hitler (que criou o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães), quanto Mussolini (expulso do partido socialista por suas ideias extremistas, e antigo editor do jornal mais lido da esquerda, o Avanti), excelentes oradores, críticos dos desmandos sistêmicos e com carismas suficientes para se apresentarem como salvadores, o fizeram apropriando-se de forma oportunista da expectativa que a população tinha em relação ao socialismo e a conduziram a um tempo de intolerância que vitimou milhões de pessoas em uma época que não pode ser esquecida, para que não se repita jamais.
Ao se colocarem como alternativas ao movimento socialista e comunista em ascensão, adotando comportamentos intolerantes e anticomunistas, tornaram-se confiáveis a uma burguesia que já não tinha mais opções para conter a débâcle do capitalismo naquele momento. Registre-se, porque é história, que alguns setores esquerdistas alemães, naquele momento, se negaram a combater esse movimento, porque poderia beneficiar os comunistas, melhores organizados e preparados para tomarem o poder naquele país.
O "Ovo da Serpente", filme de Ingmar
Bergman, mostra a gestação do nazismo
Mas, tudo indica que, tal qual nos mostrou Ingmar Bergman, os sintomas do fascismo podem a qualquer momento serem gestados, como o ovo de uma serpente, aproveitando-se de insatisfações momentâneas e usando como tática a desqualificação do outro, a mentira persistente e a estupidez alienante. São tempos que exigem além de reflexões muita determinação e combate a essas novas práticas fascistas encobertas com discursos de liberdade e democracia, em mais um período de crise estrutural do sistema capitalista.
Como no período do Estado Novo, na ditadura varguista, quando o integralismo de Plínio Salgado desfilava suas bandeiras fascistas em marchas pelas ruas das cidades brasileiras, novos “galinhas verdes”, como ficaram conhecidos esses personagens, retornam à cena em tempos cibernéticos, reforçando a conhecida frase irônica de Karl Marx, para quem a história, ao se repetir, se configuraria da primeira vez como farsa, em seguida como uma tragédia.