domingo, 29 de março de 2015

UNIVERSIDADE, UM PAQUIDERME COM PÉS DE BARROS

“Não me importo com seu pensamento lento.
O que me importa é você publicar mais rápido do que pode pensar”
Wolfgang Pauli (Prêmio Nobel de Física)[1]

Talvez eu não seja o primeiro a tecer comentários bem diretos sobre comportamentos adotados pelos que vivem o cotidiano do ambiente universitário. Certamente esse olhar que transmitirei aqui não é exclusivo meu, muitos sabem, vivem e também tentam sobreviver em circunstâncias de absoluta pressão e a uma lógica de inversão de valores e de discursos moralistas, escorados em regras rígidas definidas por parâmetros estatísticos e qualidades duvidosas.
Esse ambiente é, em verdade, um microcosmo da própria sociedade. Onde vicejam os vícios, e os ditos “pecados capitais”, que permeiam o cotidiano da vida de muitos indivíduos, principalmente os citadinos. Por ali passeia a inveja, a ambição, a vaidade, o rancor...
Mas não são características que estão presentes na maioria dos que compõem o universo universitário. Como na sociedade, são minorias. No entanto, da mesma forma que nesta, esses comportamentos são os que definem os ritos, e impõem rigores mediante regras burocráticas e discursos pautados numa moralidade duvidosa, mas que por sua veemência, e por estar escorados em princípios de uma modernidade impositiva que se tornou paradigma desde a virada do século XX, assume ares de verdades e inibe os que eventualmente divirjam. Esses, mesmo que se manifestem sofrem uma espécie de bullying inquisitivo.

“Afirmo que há um elo causal entre a demanda corporativa pelo aumento da produtividade e o esvaziamento, em todas as publicações, de qualquer significação que não seja gerar números” (Wolfgang Pauli)[2]

Nesse ambiente, pouco importa o que se fez. A história é descartada e o papel desempenhado por alguém no processo de consolidação dessa instituição é desvalorizado, passando a valer meramente o que se faz agora, ou nos últimos três anos, desde que dentro de exigências rígidas baseadas em titularidades e em quantidades de atividades, de pesquisas e de publicações, muitas vezes inexpressivas, de baixa validade, qualidades duvidosas e pouco, ou quase nenhum, conhecimento da sociedade. Mas seguem os padrões burocráticos e estatísticos exigidos pelas agencias de fomentos, tornados universais desde a década de 1990, seguindo-se as mudanças “pós-modernas” disseminadas pelas potencias centrais, europeias e EUA.
A pós-modernidade desvaneceu-se em meio à crise econômica da primeira década deste século, que persistem nos dias atuais, mas seus valores permaneceram, mais ainda dentro da universidade, porque se tornou paradigmática para uma geração de novos doutores que souberam muito bem adaptar-se a essas mudanças, e assim tornaram-na incrustada nos conselhos, comissões, órgãos administrativos universitários e agencias de fomentos. Passou a ser a regra.
Os editais reproduzem essas exigências e descartam os que, no passado, possam ter dado contribuições relevantes para avanços substanciais no presente dessas instituições. As progressões e promoções nos impõem ritos burocráticas e impedem nossa liberdade em adotar outros mecanismos de envolvimento de alunos no debate sobre questões essenciais que marcam nossa realidade contemporânea. Aliás, os alunos são vistos também dentro desta ótica, e garimpados aqueles de melhor nível intelectual, sendo descartado os demais. Deixamos, por assim, de nos preocupar com aqueles alunos que apresentam maiores dificuldades de aprendizado. Os incluídos são os que porventura tenham requisitos necessários para servirem de suportes às atividades de seus orientadores.
Nos tornamos ouvidos moucos, e nos fechamos em copas, tornando irrelevante a participação da universidade nos destinos da nação. Se engajar na luta sindical ou política, não nos permite “pontuar” e pode ser empecilho para uma possível ascensão na carreira. Assim, mais do que viver a realidade que nos cerca e na qual vivemos, faz-se mais importante produzir algo sobre ela, ao longe, com artigos devidamente citados por tantos outros que, também ao longe, tentam entender como gira o mundo e se comportam os que ali vivem.
Vivemos uma espiral de citações e de vaidades arrogantes e se gasta dinheiro em muitas pesquisas cujo objetivo principal é alcançar o próprio umbigo. Mas isso garante convites para bancas e debates onde se podem ostentar conhecimentos limitados, apresentados como absolutas verdades, proferidos por autoridades irrefutáveis. Repete-se por eventos, anos a fio, concepções superficiais e especializadas que, efetivamente, em nada contribuem para transformar a sociedade. Ressoa dentro de uma redoma, mas incha o ego dos que se julgam donos da verdade.
Para tornar mais paradoxal essa realidade, modificada recentemente pela nossa nova carreira, muitos adentraram a universidade no meio dela, posto que numa situação bizarra conseguiram atingir o topo, em situações de metade do tempo em que tantos outros atingiram pelo tempo de permanência, muito embora eventualmente por circunstâncias diversas não terem atingido o grau de doutoramento. Muitos professores, alguns dos quais em vias de aposentarem, e já tendo vivido décadas contribuindo com a universidade, tiveram que submeter-se ao discurso arrogante de jovens recém doutorados, incensados à condição de “produtivos”, mas, naturalmente criados nesse ambiente pós-moderno, burocratizado e produtivista, onde quantidade sobrepõe-se à qualidade e a experiência perde para uma rígida especialização, que, pelo título, transmite ares de plena competência, e impulsiona o comportamento arrogante.
A Universidade, hoje, é isso. O esteio de uma produção burocratizada, onde o que se produz dentro dela, em muitas áreas, embora de maneira desequilibrada entre elas, não ocupa nenhuma lista de produções vistas, validadas e reconhecidas pela sociedade. O que não impede que a vaidade e arrogância acompanhem os discursos mais empedernidos. Tudo isso é parte de um sistema anacrônico, de um arremedo de cópias mal feitas, de uma política científica escoradas nas universidades públicas, quando deveriam ser buscadas alternativas que pudessem separar a rigidez produtivista da necessidade de se manter um sistema acadêmico dinâmico e vivo, sem perder a relação com a pesquisa e a extensão, mas sem a excessiva burocratização e o enrijecimento das iniciativas que considerem qualidades e características de cada profissional.

“Como um físico da UFPE, cheguei à conclusão de que Albert Einstein não seria pesquisador 1A do CNPq, porque ele não preenche todos os pré-requisitos – número de orientandos de mestrado, de doutorado…” (Miguel Nicolelis, neurocientista brasileiro)[3]

Assim, por mais que seu histórico dentro dessa instituição seja repleto de contribuições e sua participação política tenha sido destacada em vários momentos de crise pela qual passamos ao longo do tempo, nada vale sem uma produção que atenda as exigências burocráticas rígidas. E nessa equação a sala de aula passou a ser o último refúgio do excêntrico produtivista. Ela atrapalha a produção, impede pelo esforço de lidar com alunos cada vez mais alheios à leitura. Inclusive ao que produzimos ali dentro. Somente a exigência de horas necessárias a serem cumpridas é o que ainda mantém alguns nessa “atividade estressante” e “improdutiva”.
Mas o tempo, a passividade e o discurso arrogante e ostensivo dos que se adaptaram a esse estilo, e não por serem necessariamente os mais capacitados, fazem com que a normalidade da universidade seja essa. E isso transforma esse ambiente em um território de conflitos, disputas e confrontos de vaidades, em que não se considera o valor contido nos esforços de tantos que por suas lutas e desprendimentos tornaram-se, e tornam-se, essenciais na consolidação dessas instituições.


* Esse artigo não é contra a necessidade de se pesquisar e produzir, mas contra a rigidez como isso é feito e a cultura que se criou a partir daí, gerando uma pressão interna intensa e disseminando oportunismos e tribunais inquisitoriais. Bem como desvalorizando outras atividades acadêmicas estabelecendo-se parâmetros duvidosos qualitativos e quantitativos.
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**Após ter postado este texto recebi de uma amiga, que a leu em concordância, um interessante artigo que eu não conhecia, mas que aborda a mesma questão com muito mais profundidade. A meu ver atinge a essência do que pretendi analisar e criticar. Sugiro a leitura:
http://jornalggn.com.br/fora-pauta/normose-a-doenca-da-normalidade-no-mundo-academico
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***Acrescento mais este artigo, escrito pela professora e pesquisadora Ana Fani Alessandri Carlos, da Universidade de São Paulo:
CONTRA O PRODUTIVISMO: UM PROTESTO ISOLADO
http://www.cadernoterritorial.com/news/contra-o-produtivismo-um-protesto-solitario-ana-fani-alessandri-carlos/


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* ATUALIZANDO(24/10/17): Um trabalho de pesquisa demonstra que embora tendo aumentado a produção científica brasileira, caiu a relevância dos artigos publicados. Veja isso numa reportagem publicada este mês: 
http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2017/10/1927163-brasil-aumenta-producao-cientifica-mas-impacto-dos-trabalhos-diminui.shtml



[1] SGUISSARDI, V. Produtivismo acadêmico. In:OLIVEIRA, D.A.; DUARTE, A.M.C.; VIEIRA, L.M.F. DICIONÁRIO: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. CDROM (http://www.gestrado.org/pdf/336.pdf)
[2] IDEM