quarta-feira, 16 de agosto de 2017

A ESPERANÇA EQUILIBRISTA – BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA – ÚLTIMA PARTE

Essa pretende ser a última parte de uma análise que comecei a fazer sobre a realidade política brasileira, mas que tinha como objetivo chegar a uma conclusão em um único artigo. Impossível. Assim como também será fechar essa avaliação nesta parte.
É chavão dizer que a política é dinâmica. Na verdade tudo é. A vida é movimento, e todas as ações que desenvolvemos são marcadas, cada vez mais por uma intensidade no conteúdo, pela radicalidade na forma e pelo encurtamento do tempo para suas realizações. A rapidez é a marca da contemporaneidade, mas o dinamismo é uma característica natural do nosso desenvolvimento enquanto espécie humana, e, mais do que isso, enquanto parte da própria natureza. Num mundo dominado pela tecnologia e pela profusão de objetos, é natural que o nosso tempo seja insuficiente para lidar com todas essas transformações.[1]
Isso se incorpora em nosso cotidiano. A política é um reflexo das nossas relações em sociedade. E, porquanto ela carrega fortemente a perspectiva do Poder, eleva a um patamar diferenciado as formas disseminadas na sociedade com um elemento crucial: a estratégia. Embora nos dias de hoje seja fundamental ter noções de estratégia, em qualquer situação, é na política, e na guerra – quando os elementos da política se esgotam – que o tabuleiro de xadrez requer uma competência diferenciada para lidar com as contradições que cercam um ambiente de constante disputa.
Eu não tenho muito a acrescentar a um artigo que escrevi em 2016, aqui neste Blog, em que analiso a crise brasileira inserindo-a numa realidade mais ampla, em parte como consequência da crise mundial.[2] Na época tudo se encaminhava para o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Parecia inevitável, e foi. Hoje podemos olhar para o passado, analisarmos o que escrevemos e fazer uma somatória de todos os elementos que projetamos e daqueles que se consolidaram com o passar do tempo.
A crise política brasileira, que levou a destituição de uma presidenta não tem a ver com a “crise fiscal”. Era natural que o afastamento de Dilma Rousseff ampliaria os problemas. Os déficits fiscais, ou as fragilidades nas contas públicas, foram meros pretextos para se assentar um golpe que tinha com objetivo a correção de rumos no Brasil e a proteção de poderosos grupos da política que se acostumaram a roubar os cofres públicos e a construir fortunas e consolidar poderes regionais a partir dessas práticas. Há muita complexidade por trás desses acontecimentos. E numa sociedade marcada pela alienação em relação à política, e com uma geração que se perde em um mundo virtual construindo realidades em outras dimensões, o despertar para o mundo real às vezes age como numa crise de labirintite, com tudo girando aceleradamente podendo levar ao desfalecimento. O que é a absoluta ausência da realidade.
A sociedade reagiu assim. A juventude, que em 2013 bradava nas ruas contra o aumento das passagens dos coletivos e por passe livre estudantil, de repente se viu em meio à outras demandas na política e tiveram seus desejos sequestrados. A alienação, por trás de uma pretensa combatividade revolucionária, aliás uma tendência natural na juventude, não permitiu que se tivesse a percepção dos rumos. Os meios de comunicação de massa, de imediato entraram em campo, conduziram a multidão numa direção que era conveniente com o que já se fazia em outras partes do mundo. Nas sombras agiam grupos organizados, financiados por agências de espionagem, ONGs estrangeiras e até mesmo empresas de grandes investidores, como Georges Soros, bilionário que enriquece cada vez mais à custa da desestabilização de governos que trazem como consequência a desvalorização de ações de empresas nacionais desses países que veem a economia e a política instáveis. Para os ajudarem na especulação e nas ações rapaces entram em campo as agências de classificação de riscos: Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s. Todas elas envolvidas em manipulação de informações no interesse de grandes corporações.[3]
Outras demandas, de interesses de setores corporativos, mas que coincidiam com objetivos que já estavam sendo preparados para atingir o governo brasileiro, ou a estrutura corrompida sabidamente existente, mas nunca fiscalizada e punida, foram incorporadas às manifestações, sem que a maior parte daqueles que estivesse nas ruas soubesse, de fato, por que estava lutando. O maior exemplo disso foi a execração da PEC-37,[4] na época das Jornadas de Junho em discussão na Câmara dos Deputados, que limitava às polícias o poder de investigação dos crimes cometidos, restringindo o poder do Ministério Público, que se limitaria às acusações.
Seguindo um roteiro previsto, já conhecido pelos fatos ocorridos em diversos países que desde quando a crise econômica se tornou visível para o mundo levou multidões para as ruas, que geraram desestabilizações em diversos governos e em alguns casos até mesmo guerras civis e assassinatos de governantes, as “jornadas de junho” se constituíram na oportunidade para que o país se transformasse no “inferno”. Mas haviam muitas brechas para que isso acontecesse e a incapacidade da esquerda de perceber o que estava acontecendo no mundo e que batia à nossa porta, desguarnecida e fragilizada, sob um aparente manto de avanços na economia, de ações na infraestrutura, de programas sociais elogiados no mundo todo. Se havia uma multidão vagando pela rua, como na figuração dada por José Saramago em “Ensaio sobre a Cegueira”, certamente alguns dirigentes políticos que comandavam o governo também se perdiam em meio ao deslumbramento do que acreditavam estarem fazendo de “mudanças”.
As chamadas jornadas de junho, em 2013, representou o começo do fim de uma era, de governos de esquerda que tentaram fazer algo de diferente, mas se perderam em meio à práticas políticas arcaicas, corruptas e comandadas por uma oligarquia ferozmente gananciosa e usurária. O que viria a seguir, numa desconstrução da política e de ações que mudaram a feição do país, teve nas eleições de 2014 o golpe fatal. Mas toda a desestruturação do governo, da economia, da política, da democracia e do país, se deveu não somente aos erros da esquerda, mas também aos seus acertos, às propostas de inclusão social de camadas marginalizadas e à tentativa de botar o Estado como condutor de políticas econômicas que visassem pagar uma dívida histórica com esses setores. Como afirmado no artigo anterior faltou a necessária compreensão que a luta de classes sempre conduz as disputas no âmbito da política. E por ações de interesses externos nos vimos mergulhados nos intestinos de uma estrutura política viciada. Como nos momentos de nossa história em que governos populares ousaram mudar seus focos, a corrupção, doença endêmica na estrutura social brasileira, tornou-se a arma pela qual os setores de direita se serviram para implodir a base política do governo e abriu caminho para a destituição da presidenta.
Mas isso se tornou possível porque faltou tomar medidas necessárias para alterar a forma de fazer política. A reforma eleitoral, a reforma do sistema político, a atuação da agência de informação para monitorar ilícitos no âmbito do Estado, além da ação da Controladoria Geral da União, e uma aproximação com o povo mediante a criação de mecanismos de participação popular, que reforçasse inclusive a própria defesa do governo. Essas ações não foram desenvolvidas, ao contrário se repetiram práticas sobejamente combatidas de uso abusivo de dinheiro público para financiamento de campanha, mediante a existência de caixas 2, e o loteamento de setores importantes do estado, principalmente alguns de valores estratégicos imensuráveis, como os de energia, transporte e comunicação, para agregar grupos políticos comandados por velhas raposas rapaces, espécies de coronéis políticos regionais, na quase unanimidade pouco merecedores de confiança. Todos eles carregando em si a essência de serem escorpiões na política.
Optou-se por garantir o poder a qualquer custo, numa disputa que envolveu, do outro lado, o que poderia ser na oposição um oponente qualificado, a social-democracia tucana. Por aspectos conjunturais da política passamos a ter uma esquerda aliada a segmentos oportunistas e conservadores para manter o poder, e uma social-democracia que se aliara à direita e confundia-se muitas vezes com a própria, pela postura virulenta de caráter absolutamente reacionário. A política brasileira caminhou visivelmente para a direita, por todos os flancos. E, como o ambiente em outras partes do mundo já espalhara o vírus da intolerância e do sectarismo político, pela intensidade da crise que se disseminava e perdia perspectivas de ser solucionada, não encontrou dificuldade de transformar a realidade brasileira, de uma euforia que ia além de nossas fronteiras, para um caos que mergulhou o país na estupidez, na intolerância, no comportamento fascista de grupos sectários e no medo, um sentimento tradicional a projetar os piores indivíduos ao longo da história humana.
A verdadeira caçada que se transformou a “Operação Lava Jato”, que desde o começo teve como objetivo atingir o ex-presidente Lula da Silva encontraria facilmente atos corruptos, e roubo do dinheiro público por onde investigasse, nas estruturas do Estado.[5] Os atos que se combatem agora, tornaram-se crônicos na estrutura política brasileira e se espalha pela sociedade como um caldo de cultura. No âmbito da política sempre existiu e era ignorado pela Justiça, pelos tribunais eleitorais dos estados e pelo TSE. Só passou a ser objeto intenso de correção, e de prisão de corruptos e corruptores, quando se viu a possibilidade do retorno de Lula da Silva e a continuidade por outros tantos anos dos grupos ligados à esquerda, notadamente ao Partido dos Trabalhadores.
Malgrado essa questão, e ela é óbvia a menos que não se queira enxergar a realidade, houve um erro inequívoco e que deve ser assumido pela esquerda. Sabe-se que a estrutura do estado capitalista é corrupta, por essência. A própria lógica que move a sociedade nesse regime aponta nessa direção para aqueles que anseiam ter Poder: a ganância, a usura e o individualismo. A esquerda sempre teve uma posição avessa a esse comportamento, por tanto tempo combatido enquanto oposição. Era inadmissível que persistisse uma prática que sempre foi criticada quando estivesse à frente do Estado. Até pelo próprio conhecimento de nossa história, quando os conservadores usaram do discurso, hipócrita, de combate à corrupção, meramente para destituir governos que estavam adotando medidas populares, já se saberia que em algum momento isso também se voltaria nos tempos atuais. Mas não só por isso, como também pela necessidade de inspirar nas pessoas confiança em uma nova forma de governar, que se coadunasse com o discurso apresentado pelos partidos de esquerda para combater grupos que por décadas se beneficiavam da estrutura do Estado e se fortaleciam à custa do empobrecimento de seu povo. Caia-se na mesma armadilha que derrubara Getúlio Vargas, ameaçara Juscelino Kubitscheck e destruiu o governo de João Goulart por meio do golpe que nos legou uma ditadura militar.
Já analisei aqui em outros artigos, e pontuei ainda neste também, os interesses externos que existiam na desestabilização do governo da presidenta Dilma Roussef, para conter novos governos de esquerda e atingir os países que buscavam construir uma nova hegemonia geopolítica, no caso, os BRICS.[6] A incapacidade de se fazer uma leitura e se prevenir para o que viria após as jornadas de junho, somou-se à insistência em fazer da prática política o jogo dos setores conservadores, distanciado do povo e sustentado em ações de marketing pagas a peso de ouro. Por esse caminho a oposição conservadora, de forma oportunista, se escorou para desestabilizar o país e golpear de morte uma aposta que se fazia na transformação do Brasil e na elevação à condição de grande potência mundial, que pudesse trazer equilíbrio social e distribuição de rendas. 
Mas, depois da derrota em 2014 esses setores que não tinham mais nada a perder na política, temiam perder na economia caso viesse pela frente uma nova eleição de Lula da Silva e o temor que desta feita algumas reformas profundas pudesse acontecer. Não seria como se parecia, pelas próprias características já demonstradas no jeito de governar de Lula, mas existiam muito mais questões complexas que não somente essas aqui postas, que incendiavam a oposição em sua radicalidade destrutiva da política e da democracia: as novas estratégias adotadas pelas classes dominantes, no âmbito do sistema capitalista mundial.[7] Um sistema em crise, que busca se reestruturar e que não tem pudor em destruir a democracia, caso haja uma ameaça visível aos seus interesses, não propriamente local, mas nacional, comandados pelas grandes corporações e por Estados-Nação belicistas.
Esses equívocos na forma de manter o poder e a submissão a uma casta de políticos que sempre estiveram ao lado daqueles grupos que estão no poder, em quaisquer circunstâncias, embora sendo uma contingência em governos de coalizão e como consequência de uma diminuta força da esquerda no Congresso Nacional, macularam a imagem da esquerda, potencializado pela forma como a mídia passou a retratar essa relação e com as seguidas denúncias das corrupções que irromperam de forma dura no imaginário do povo brasileiro. Levantar-se dessa derrocada não será fácil, e só será possível com a unidade em torno de objetivos que possam atender à demanda da população pobre, resgatar a confiança da classe média e ter coragem de enfrentar uma realidade de uma crise que vai para muito além do Estado brasileiro.
Retomar a força daquilo que foi construído ao longo de uma década não acontecerá em curto tempo, e dependerá de mais do que força para derrotar a base política permissiva montada por ex-aliados e o ex-vice-presidente, juntamente com toda a casta oportunista e corrupta que lhe cerca. Será preciso um novo tipo de protagonismo das forças de esquerda e uma necessária aproximação com segmentos de centro-esquerda que se oponham abertamente às medidas neoliberais e aos comportamentos reacionários e intolerantes que vicejam na política e contaminam a sociedade. É necessário resgatar a crença de que a política não pode ser retratada pelo perfil de sicofantas e corruptos que abominam e causam náuseas às pessoas honestas que labutam incessantemente para sobreviverem em meio à realidade adversa.
É necessário olhar para o mundo, e ver aqui no Brasil o reflexo da desordem mundial que intensificam os conflitos e ampliam as guerras, atendendo interesses belicistas e hegemônicos do império estadunidense e de seus aliados. Mas também que outra estratégia tem sido colocada em curso, como aqui em nosso país, e agido com eficácia na desestabilização de diversos governos por meio de ações de agentes que se infiltram em empresas e principalmente em ONGs, financiadas por organizações similares nos EUA, institutos e megainvestidores do sistema financeiro. Tudo isso tem sido fartamente demonstrado em diversos trabalhos de jornalistas e cientistas sociais, com destaque para as duas publicações de Moniz Bandeira, recheada de informações e comprovações de como essas ações se realizam.[8]
Mais do que tudo isso, é dever dessa esquerda renovada encarar com vigor a luta ideológica, e fazer as pessoas compreenderem que vivem em um sistema repleto de contradições, que perpetua a desigualdade e amplia o fosso entre os ricos e os pobres de forma crescente e cada vez mais intensa com a continuidade e profundidade da crise econômica sistêmica. Não é possível, depois de tudo que atingiu o Brasil, tentar passar uma ideia de que é possível retomar o caminho de um desenvolvimento sustentável em vias de reduzir as desigualdades, sem o forte protagonismo do Estado, mas deixando bem claro em quais condições isso pode ser possível. Mediante um embate ferrenho com uma classe dominante perversa que adota um comportamento insensível diante das dificuldades do povo. As medidas que estão sendo adotadas pelo governo de Michel Temer, isentando ricos de pagarem dívidas milionárias e impondo dificuldades aos trabalhadores é uma demonstração clara de qual é o foco desses segmentos, senão fortalecerem e ampliarem cada vez mais suas fortunas. Ou seja, como sempre, é o uso do poder do Estado em benefício dos mais ricos.
A organização popular e a luta ideológica, para que as pessoas tenham outra dimensão da realidade e reconheçam a importância da política, constituem-se nos elementos fundamentais, principalmente com o envolvimento da juventude, para nos reerguermos do limbo no qual fomos jogados pelos erros cometidos à esquerda, pelas traições de aliados impróprios e pela estupidez de uma elite perversa e insensível. Resgatar a esperança de milhões de brasileiros não será uma tarefa fácil, mas é a única maneira de retomar o caminho que o Brasil e o seu povo merece.




[2] CRISE: O BRASIL NO OLHO DO FURACÃO - DA CRISE ECONÔMICA MUNDIAL A UMA DISPUTA ENCARNIÇADA PELO PODER E À QUEBRA DO ESTADO DE DIREITO - https://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2016/03/crise-o-brasil-no-olho-do-furacao-da.html
[6] CRÔNICAS DE UM MUNDO EM TRANSE – A LOUCURA CONTINUA - https://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2015/04/cronicas-de-um-mundo-em-transe-loucura.html
[8] BANDEIRA, LUIS ALBERTO M. A segunda guerra Fria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
   ______________________. A Desordem Mundial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

LEIA TAMBÉM:

1 - BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA: A LUTA DE CLASSES REDIVIVA – PARTE I
2 - BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA – PARTE II – NA SOMBRA DA LUA CHEIA.

3 - BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA – PARTE III – GIGANTE COM PÉS DE BARRO - https://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2017/08/brasil-da-euforia-ao-caos-e-incerteza_14.html

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA – PARTE III – GIGANTE COM PÉS DE BARRO.

Recomposto o governo após a reeleição de Lula da Silva em 2006, e com um crescimento num ritmo vertiginoso, bem acima da média mundial, poderia se pensar que no segundo mandato haveria uma preocupação em sanar os problemas gerados por uma sangria apelidada de “mensalão”, que expôs a política e aumentou o descrédito com os que representam a população. Mas, apesar da reeleição, aparentemente tranquila do presidente, a eleição do parlamento continuou sendo um contraponto, com uma maioria conservadora, e repleta de representantes da burguesia, dos latifundiários, do setor financeiro. Seguramente esse quadro levou o governo a não propor ações concretas que pudessem barrar atitudes como as que tinham sido denunciadas e maculavam as instituições políticas brasileiras. Além do mais, havia um clamor progressista por mudanças estruturais em diversos setores, bem como uma necessidade de democratizar os meios de comunicação.
Nada disso foi feito. E o que se via era uma euforia com os índices positivos na economia, que, se por um lado retirava da miséria absoluta boa parte da população brasileira, por outro, ampliava a concentração de riqueza nas mãos de uma burguesia que entrava na onda da globalização e procedia a uma intensa fusão de grandes empresas. Os bancos, jamais ganharam tanto dinheiro com nas duas primeiras décadas do século XXI. Havia incoerências visíveis na maneira como se dava o desenvolvimento brasileiro, e perdia-se a oportunidade de se ampliar as conquistas, num ambiente que era favorável, malgrado a contradição criada com um parlamento conservador e um presidente progressista.
A descoberta do Pré-Sal, uma enorme reserva de petróleo em águas profundas surgiu como uma grande esperança. Diante da capacidade tecnológica da Petrobrás comemorava-se esse potencial e a certeza que o Brasil entraria no grupo dos maiores produtores de petróleo. Mas, e aí a dialética é implacável a identificar as contradições. O petróleo tem sido ao longo da história do capitalismo tal qual foi o ouro no período da exploração colonial. O território que se vê contemplado com essa enorme riqueza, passa também a correr o risco de ser objeto de cobiça dos países imperialistas, notadamente, e isso é absolutamente visível nos últimos tempos, os Estados Unidos. Praticamente toda a instabilidade do Oriente Médio, onde se concentra enormes reservas de petróleo, se deve à disputa desse produto que se constitui na principal fonte energética da civilização industrial a partir do começo do século XX. Mas não somente no Oriente Médio, como também em alguns países do Norte da África, bem como aqui bem perto de nós, na Venezuela.
Para comprovar isso, e não por mera coincidência, poucos meses depois do anúncio da existência dessa enorme reserva petrolífera em costas brasileiras, os EUA deslocaram para próximo do limite das águas territoriais do nosso país sua Quarta Frota, comando naval que tem por objetivo vigiar as águas do Caribe e do Atlântico. Como sempre, o argumento utilizado pelos governos estadunidenses tem sido o de combater o narcotráfico, pretexto que faz com que essa guerra seja uma espécie de “cavalo de Tróia”, para que seus estrategistas e espiões monitorem e tenham informações sobre a capacidade dos países em se desenvolver e vir a tornarem-se oponentes no controle da economia da América.
A partir daí a Petrobrás se tornou, mais do que já era, um alvo prioritário na espionagem estadunidense. Mas, um dos grandes erros dos governos Lula/Dilma foi a negligência em relação a essa questão. Era preciso fortalecer o Estado brasileiro com mecanismos de proteção sobre as ações de espionagens, seja com contraespionagens, seja por meio de fortalecimento dessa estrutura para se proteger das ações rapaces imperialistas.
Ora, um dos erros foi manter uma grande corporação estadunidense como responsável pela segurança da Petrobrás. Uma corporação fortemente envolvida com ações complexas na guerra contra o Iraque, que já fora comandada por ninguém menos do que Dick Cheney, vice-presidente dos EUA durante os governos de George W. Bush. No ano de 2008 a Halliburton esteve envolvida num incidente bastante suspeito no interior do estado do Rio de Janeiro. Um roubo de dados da Petrobrás, contidos em dois discos rígidos de computadores que estavam sendo transportados, juntamente com outros equipamentos, por essa empresa.[1] Poucos detalhes se souberam desse roubo de informações estratégicas, mas o episódio, pouco explorado pela imprensa brasileira, e sem muitos comentários do governo demonstra que já desde o começo as notícias sobre o pré-sal atraíam os interesses estrangeiros.[2] No entanto, não se reforçou a principal agência de espionagem brasileira, substituta do famigerado SNI. A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) deveria ter sido colocada na posição de um forte protagonismo na investigação e defesa de questões relevantes para a segurança nacional. Mas o governo optou por investir na Polícia Federal, o que era necessário, mas abdicando de reforçar uma área de segurança num momento em que país se tornava alvo da cobiça internacional. Isso traria consequências nefastas, e seria um dos fatores a desequilibrar e desestabilizar o governo brasileiro mais adiante.
O governo Lula negligenciou um elemento essencial, o fortalecimento do Estado Nacional. Certamente contaminado pelos problemas gerados a partir de tempos sombrios comandados pelos militares, durante uma ditadura que nos trás terríveis lembranças, não compreendeu a necessidade de proteger o país da cobiça das grandes corporações que comandam os governos das principais potências. Como exemplo disso foi a nomeação para o Ministério da Defesa de um ex-ministro da Justiça no governo FHC, Nelson Jobim, e que foi mantido no cargo por Dilma Roussef após sua eleição, onde permaneceu por um ano. A nomeação de Celso Amorim, no entanto, apesar de sua postura mais progressista e com conhecida competência no trato das relações internacionais, o que naturalmente lhe qualifica como estrategista, não significou mudança necessária para fazer com que as Forças Armadas brasileiras adquirissem uma feição mais preocupada com a defesa nacional e que pudesse estar atenta aos movimentos visando desequilibrar o governo brasileiro, como já vinha ocorrendo em situações parecidas por diversos países que tem no petróleo uma forte riqueza. Vide as “revoluções coloridas” nos países da Eurásia, na Venezuela com as constantes tentativas de golpe de Estado para destituir Hugo Chávez, e, mesmo os rumos tomados com a chamada “primavera árabe”, identificada desde o início com tentativas de desestabilizar países importantes estrategicamente na rota internacional do petróleo e gás.
Nos problemas políticos internos faltou iniciativa e coragem para tratar de reformas que eram cruciais para que determinadas políticas de Estado fossem concluídas e que outras fossem tornadas leis, que pudessem manter com consistência mudanças estruturais necessárias para fortalecer o país e consolidar as ações contra as desigualdades sociais. A incapacidade política da presidenta eleita Dilma Roussef de lidar com um campo político absolutamente conservador, interesseiro e oportunista ficou evidente em seu governo. Mas para a sua eleição faltou ao governo Lula, mesmo que consideremos toda a complexidade da política brasileira, em suas nuances regionais, também capacidade de articulação que pudesse garantir uma maior representatividade progressista na eleição de 2010, formando uma composição parlamentar que pudesse garantir uma maioria adequada às necessárias reformas que não foram feitas: política, tributária e nos meios de comunicação, dentre outras. Os partidos de esquerda foram incapazes de, durante os anos do governo Lula, transmitir à população que as conquistas que estavam projetando o país internamente e internacionalmente, se deviam a decisões que confrontavam os poderes tradicionais. Aqui entra um aspecto elementar numa democracia: a luta ideológica.
Nitidamente a luta ideológica foi perdida pela esquerda, apesar da vitória nas eleições da sucessora de Lula da Silva. A política ampla, conforme a regra necessária para ter aprovadas matérias importantes no parlamento resvalou para os rincões do país que se fortaleciam economicamente devido às medidas do governo de forte aquecimento do mercado interno e valorização do salário mínimo. As concessões feitas a políticos conservadores, a conveniente aliança com partidos fisiológicos e a incapacidade de compreender que se devia levar a cabo a luta ideológica, terminou por manter o desequilíbrio no Congresso, fragilizando as forças progressistas dificultando a consolidação das políticas que estavam mudando a cara do país.
É preciso observar, como uma necessária compreensão do que aconteceu no país que culminou nas “jornadas de junho” em 2013, e na sequente desestabilização da política brasileira, o crescimento do movimento evangélico brasileiro, notadamente os de feição neopentecostal. Seguramente esse é um elemento a considerar que comprova a absoluta ausência de um necessário debate que criasse na população a compreensão sobre as razões que transformaram suas vidas e que levaram a uma grande mobilidade social, tirando milhões da pobreza absoluta e transferindo centenas de milhares de famílias da classe C para a B, criando o chamado grupo dos “emergentes”. A obsessão pelo consumo crescente, a propaganda das maravilhas tecnológicas ao fácil alcance, a possibilidade de acesso ao ensino superior, e aquisição da casa própria, todas essas conquistas foram adequadamente capturadas por segmentos religiosos, e vistas como consequência da fé. Ao mesmo tempo, e beneficiado por esse discurso, se ampliou consideravelmente a bancada evangélica, fortalecendo uma visão conservadora que contribuiu para o enfraquecimento da presidenta num momento crucial da disputa política. A disputa ideológica foi travada com furor por esse setor.
Mas esse aspecto da luta ideológica não se resume à captura pela religião, dos elementos da ação política. Faltou também a necessária proteção, aos que participam dessa luta e concebem  com clareza as disputas que existem, consolidando por meio do fortalecimento da organização popular mecanismos que protegesse o governo quando se tornasse necessário. Para isso, era preciso jamais se afastar da velha concepção histórica inserida nos estudos sociológicos por Marx e Engels, da existência de uma luta de classes renhida nas sociedades que se constituíram desde a antiguidade pelos diversos modos de produção que vigoraram desde há dois milênios.
A ideia do fim da luta de classes foi inserida no imaginário político pós-globalização, com a destruição dos regimes existentes em diversos países, liderados pela União Soviética, que enfraqueceu o socialismo. Juntamente com a teoria do fim da história, rapidamente desmoralizada pela intensificação dos conflitos após o ataque ao World Center, em 11 de setembro de 2001, a crença no fim da luta de classes tomou corpo e não foi devidamente rebatida pela esquerda que assumiu o poder e o comando dos governos de países importantes, como o Brasil.
Mas isso não foi regra, e principalmente diversos países latino-americanos, como Venezuela, Bolívia e Equador, conseguiram criar condições para demonstrar a necessidade da organização popular diante de uma luta de classes que permanecia, e, evidentemente, permanece enquanto houver desigualdades sociais aos níveis do que existem atualmente no mundo. Principalmente num mundo de crescente centralização de poder nas mãos de poucas corporações financeiras e industriais, e de controle da riqueza por poucos grupos familiares que se perpetua por meio de heranças. Esse aspecto, da fragilização ideológica e da negligência diante da luta de classes, seria também mais um elemento a jogar por terra todo o esforço feito para consolidar uma política focada na melhoria das condições da população mais pobre. E permitiu que essas pessoas, num momento de crise do governo que lhes garantiu importantes conquistas, lhes dessem as costas, e sucumbisse ao discurso reacionário que desconstruía todos os avanços inegavelmente transformadores da realidade brasileira por 12 anos.
Uma das ações fragilizadas pela negligência de considerar a necessidade de fortalecer segmentos da população que precisavam das políticas do Estado, e que permitiriam segurança na vida econômica e possibilitaria um reforço na defesa ideológica do governo, foi a Economia Solidária. Surgido no governo FHC e fortalecido no primeiro governo Lula, principalmente com a indicação do economista Paul Singer para a sua coordenação, terminou por ficar restrito às sombras, e não teve o destaque merecido, que garantia microcréditos a populações de baixa renda. Ao mesmo tempo faltou compreender a importância de investir no cooperativismo e no associativismo, como condição para garantir que houvesse um desenvolvimento com sustentabilidade para as camadas mais pobres por todo o interior brasileiro. Essa seria uma das condições de forjar um segmento fortemente convencido da necessidade de manter governos populares, além de não alimentar ilusões sobre as derrotas para as camadas baixas, caso governos liberais voltassem a assumir o poder.
A luta de classes, disfarçada da luta política, seria, então, o elemento fundamental que garantiu aos setores conservadores, por meio do poder da grande mídia, sequestrar os desejos de multidões que por vários meses ocuparam as ruas em enormes manifestações que demonstravam a insatisfação com diversas atitudes políticas, embora a maioria fosse de cunhos locais e regionais. As “jornadas de junho” representavam a guinada destruidora da política, da democracia, das esperanças, e desarticulou o governo da presidenta Dilma, indeciso sobre quais medidas a serem tomadas para fazer com que as vozes das ruas não afetassem a governabilidade. Mas a proposta mais lúcida da presidenta naquele momento foi combatida por alguns setores da esquerda, e solenemente ignorada por outros: a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para proceder a reformas essenciais na política e no Estado brasileiro.
Na base social de sustentação do governo, os sindicatos e as centrais de trabalhadores e trabalhadoras agiam por um lado corretamente, ao tentar por meio de negociações obter melhorias para as categorias. Por outro, se esfacelavam numa divisão pela hegemonia na condução das lutas e, em alguns casos, se caracterizavam como uma espécie de peleguismo oficial, ao não confrontar ideologicamente os interesses empresariais que vigoravam e prevaleciam nas decisões do parlamento e também em algumas medidas tomadas pelo próprio governo, embora com impactos reduzidos, mas que iam pouco a pouco retirando direitos trabalhistas. Nitidamente o governo dava com uma mão e tirava com outra, realizando reformas que não resolviam os problemas fiscais do Estado, mas afetavam os trabalhadores, principalmente nas questões de aposentadorias. Essa ambiguidade ajudaria a fragilizar a defesa da presidenta no momento de forte pressão no período posterior à eleição de 2014. Mas o pior estaria por vir.
O governo Dilma Roussef, que sucedeu Lula da Silva manteve políticas sociais importantes, que garantiram empoderamento de setores por muito tempo marginalizados na sociedade brasileira. No entanto, a crise que rondava o país e já estava disseminada por todo o mundo adentrou fortemente em nossa economia. Os investimentos feitos por programas que dependiam fortemente de recursos do Estado, na saúde, na educação, no combate à pobreza, na aquisição de casa própria, seriam fortemente impactados com a redução drástica da arrecadação, como consequência do desequilíbrio na balança comercial. A dependência do país em uma economia baseada na exportação de commodities (minérios, agronegócio) terminou por ser fatal na queda da economia, reduzindo a capacidade de arrecadação fiscal.
Na tentativa de garantir que o nível de emprego não seria afetado, o governo isentou uma série de produtos, de carros a máquinas de uso doméstico, focando em cadeias produtivas que eram fundamentais para isso. Ledo engano, imaginar que a burguesia industrial, principalmente com a crise batendo às portas, estaria preocupada com a situação dos trabalhadores. A consequência disso foi uma queda maior na redução da arrecadação, tornando praticamente impossível escapar da crise. Os gastos do governo, situados num patamar elevado, seriam drasticamente afetados pela queda nas receitas, agravando a crise fiscal, somente possível de ser solucionada mediante a adoção de medidas que aumentassem os impostos. A saída se apresentava por meio de um imposto que já vigorara antes, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Mas somente a perspectiva disso acontecer, gerou uma forte reação no setor empresarial e, agregado aos interesses externos, dos EUA, que desejavam desestabilizar o governo e impedir o retorno de Lula da Silva, levou a oposição a uma forte reação, impulsionada pela derrota nas eleições que garantiu a reeleição de Dilma Roussef. A CPMF age também como um elemento fiscalizador, e praticamente não permite que nenhum cidadão escape da receita federal e da sonegação, talvez o elemento principal no rombo das contas públicas por muito tempo. Os empresários, do campo e da cidade, já sabiam desde sempre quem deve pagar o pato. Isso se veria nos anos seguintes.
Na política e na economia a marolinha se transformaria num tsunami e o país passaria a conviver com um quadro político instável, que mudaria por completo a rota que estávamos seguindo. O Brasil entrava num caminho perigoso, mas que não se diferia do que acontecia no resto do mundo. Apesar da melhoria na vida dos brasileiros, das ações afirmativas, da redução da pobreza, do investimento na educação e na saúde, de política de governo focada no combate às desigualdades sociais, faltou consistência nos alicerces do país que se estava construindo. Os erros foram capitais nesse sentido. Nosso sonho se transformava em pesadelo.
A seguir, na última parte dessa análise, abordaremos as razões por trás do impeachment da presidenta Dilma, as denúncias de corrupção e o caos político que abalou nossas melhores esperanças.


NOTAS:
[1]Polícia Federal investiga furto de dados sigilosos da Petrobras - https://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/02/14/ult23u1166.jhtm
[2] Estrategista militar vê 4ª Frota como ameaça real ao pré-sal - http://www.contee.org.br/noticias/msoc/nmsoc387.asp
(*) LEIA TAMBÉM:
1 - BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA: A LUTA DE CLASSES REDIVIVA – PARTE I
2 - BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA – PARTE II – NA SOMBRA DA LUA CHEIA.
3 - O MUNDO NÃO É PLANO. DESCONSTRUINDO A PÓS-MODERNIDADE
  https://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2017/08/o-mundo-nao-e-plano-desconstruindo-pos.html

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA – PARTE II – NA SOMBRA DA LUA CHEIA.

Na primeira parte procurei fazer um histórico do processo político vivido pelo Brasil desde a redemocratização, após o fim da ditadura militar.[1] Logo depois, em outro artigo que não incluí como sequência, procurei dar uma abrangência maior tentando analisar como nas últimas três décadas o mundo passou por transformações profundas, identificadas por alguns como a terceira revolução industrial. Não entro nesse tipo de denominação, porque considero que houve, sim e de fato, uma crescente aceleração tecnológica, mas tenho plena convicção que são transformações que seguem na mesma direção da lógica de funcionamento do sistema capitalista.[2]
Portanto, não haveria uma “terceira revolução tecnológica”, mas uma nova etapa de uma revolução capitalista que começou no século XIX, que, de tempos em tempos, seguindo o ciclo de crises “naturais” sistêmicas, necessita de reestruturação. Passamos nesses nossos tempos, por uma dessas reestruturações sistêmicas, que afetam não somente a economia, mas pela profundidade e dificuldades trazem outros tipos de mudanças na sociedade. São impactados a política, os valores, a moral, a religião, e se ampliam todas as formas de conflitos, internos e externos a cada país. Potencializado pela disputa hegemônica do controle do poder mundial.
Isso não significa desvio do assunto sobre a crise brasileira. Mas segue a análise dentro de uma abordagem que considera a totalidade. O Brasil não é uma ilha, e as contradições que tem levado a uma crise crônica na economia mundial, também nos afeta. E o próprio processo de reestruturação capitalista, necessário, leva a uma desestabilização política, onde a disputa pelo poder local é parte da necessidade de dar o rumo que se deseja à política e à economia mundial. Não foi à toa que a diplomacia brasileira foi rechaçada pelo poder imperial estadunidense, quando procurou fazer do país um protagonista importante no conflito do Oriente Médio envolvendo o Irã. E, mais ainda, quando se tornou um dos países líderes na construção de uma alternativa a esse poder, com a criação dos BRICS.
É fundamental compreendermos as mudanças que estão acontecendo no mundo, numa direção indefinida, mas dentro da necessidade de se encontrar saídas para os problemas que afetam o sistema capitalista. O que se viu como consequência da crise que estourou em 2008 foi uma desconfiança por parte daqueles que controlam a riqueza do mundo com os rumos que tomariam os países com a democracia capitalista, vista como excessivamente liberal. É evidente, para quem conhece a estrutura do sistema que o que se permite dentro da democracia vai até um limite em que se possa ter ainda o controle do Estado. A aceitação, por exemplo, de um personagem como Lula na presidência do Brasil tornou-se possível até um limite, mesmo com todas as garantias que foram dadas aos donos da riqueza no Brasil, que lhes seriam asseguradas as condições para prosseguirem se enriquecendo. Mas, se não há definição para onde essa crise nos levará, a garantia perde validade. E isso aconteceu. Atingiu-se o limite, e o que importa é a necessidade de se tomar medidas reformistas que assegurem a reestruturação capitalista também aqui no Brasil, por meio de medidas antipopulares e de retomada do controle do Estado para a minoria gananciosa, usurária, mas proprietária dos meios pelos quais se produzem e se concentram essa riqueza.
Em 2014 o país foi despertado do curto sono que nos fez sonhar com o paraíso. De repente, um ano antes havia estourado nas ruas o grito de uma multidão que foi rapidamente capturada, e se descobriu haver ainda forte presença de duas síndromes, nessa multidão, nesse país: de Cinderela e de Peter Pan.
Não vou entrar na discussão psicanalítica sobre essas síndromes ou complexos, deixarei aos leitores a curiosidade de pesquisar. Mas tem a ver com o histórico de um país que convive historicamente entre a cruz e a espada, desde os tempos coloniais. Aliás, desses tempos carregamos uma tradição horrenda, e sempre que se identificava uma perspectiva de transformação social, e que lutas populares tomavam uma dimensão “perigosa” para as classes dominantes, de imediato a repressão brutal sufocava qualquer tentativa de se buscar solucionar graves problemas sociais gerados pelas desigualdades entre os poucos ricos que dominavam o poder político e econômico, e uma pobreza que demograficamente crescia vertiginosamente em cidades cada vez mais apartadas.
Por um lado nosso país, por meio de uma elite absolutamente submissa aos fortes poderes dominantes externos, das metrópoles coloniais ou imperiais, julgava-se sempre incapaz de seguir seus passos a depender sempre da proteção imperialista, não só contra inimigos externos, mas principalmente contra os inimigos internos. Por outro lado, essa mesma elite, afundava o país com a entrega de nossas riquezas, seja na incapacidade de fazê-lo crescer com modelos econômicos sempre escorados em exportação de commodities e na fragilidade do desenvolvimento industrial, como também pela evasão de divisas por meio de depósitos em contas bancárias no exterior.
Mas o maior dos complexos e o que mais nos fez mal enquanto nação tem sido o de “vira-latas”. E isso estimulado culturalmente principalmente pela classe média, seja pela constante desvalorização da capacidade de nosso povo, o que se torna até folclore, acentuado em tempos de crise e repetido ad nausean. Um elemento a nos desvalorizar e a abrir caminho para discursos liberais que enfraquecem nossa estima e facilita as políticas de abertura do nosso mercado às corporações estrangeiras. Tudo isso começou a mudar no século XXI. A partir da primeira eleição de Lula da Silva o país passou por um processo de transformação e de crescimento, em todos os aspectos, jamais visto, superando toda a intensidade dos anos JK.
O Brasil na virada do século vinha de uma mudança estrutural importante, com medidas tomadas durante o governo FHC que reforçaram as políticas neoliberais iniciadas no governo Collor. O custo foi muito elevado, fazendo o país recorrer por diversas vezes ao Fundo Monetário Internacional, e a pagar o preço da submissão aos desígnios de uma política econômica definida pelas governanças globais, tanto o FMI quanto o Banco Mundial. O custo pela estabilização da economia, via uma nova moeda, foi muito elevado.
A ascensão de um governo de esquerda, apesar da manutenção de uma linha herdada do governo tucano, a presidência do Banco Central entregue a um representante do sistema financeiro mundial, representou uma importante alteração de rumo na política brasileira, principalmente com a adoção de diversos programas de cunho social que impactou consideravelmente no mercado interno e se espalhou por todo o país, modificando a paisagem em grandes, pequenas e médias cidades.
Apesar da crise econômica que ameaçava o sistema financeiro mundial, com o estouro da bolha imobiliária nos EUA em 2008, aqui pelo Brasil e se disseminando por outros países da América Latina, a realidade econômica e política passava a conviver com outros ares. Chegamos a praticamente atingir o pleno emprego, devido a queda vertiginosa do desemprego. Pari passu, o aumento do salário mínimo e programas sociais, como o Bolsa Família, e a disseminação de fartas linhas de créditos, aqueceu fortemente o consumo interno potencializando economias locais e regionais. O Brasil parecia entrar nos trilhos rumo ao clube dos países ricos, chegando a suplantar o Reino Unido. As relações internacionais, tanto econômicas, quanto no protagonismo político entre as nações do mundo, por todos os continentes, adquiriram um solene ar de liderança regional, com respeito ressaltado publicamente por chefes de Estado e de governos dos principais países do mundo. Luís Inácio Lula da Silva, era “o Cara!” Assim dito pelo dirigente da principal potência econômica e militar do mundo, à época Barack Obama.
Mas esses aspectos do desempenho do país por esses anos de governos Lula, adentrando pelo primeiro governo Dilma, já foram objetos de vários artigos escritos aqui neste Blog.[3] Por todos os meses que antecederam ao impeachment/golpe da presidenta Dilma produzi diversos textos analisando toda aquela conjuntura.
O que pretendo a partir daqui, com essa análise, é identificar aspectos de todo esse processo político em que vivemos, que foram geradores de uma crise que se estenderá por um tempo imprevisível, mas que desde já está deixando marcas profundas na sociedade brasileira.
Quero me ater ao que considero aqueles erros cruciais nos três governos populares, até culminar com a eleição de 2014. Dali para adiante minhas análises estão postas e podem ser lidas nos links que insiro ao final deste artigo. Certamente haverá contestações, mas as críticas serão contundentes, porque a meu ver representaram erros cruciais na condução do Estado brasileiro. E tenho certeza, que as discordâncias virão à esquerda e à direita. Mas isso não significa que minhas avaliações estarão situadas numa posição de centro. Ao contrário. Bem ao contrário.
Não tenho dúvidas do que representou em termos positivos para a história política brasileira a eleição de Lula da Silva. Para a esquerda brasileira, principalmente, mas também para a latino-americana. Além de também representar um elemento novo na geopolítica mundial, não só por ser esquerda o Partido dos Trabalhadores, mas pela origem de classe de quem veio a se constituir na maior liderança política de nosso continente neste século.
Quebrou-se uma linha genealógica na política brasileira, sempre acostumada a ter na linha de frente do Poder elementos oriundos de castas tradicionais, da elite dominante, principalmente da região Sul. Embora tendo feito sua trajetória política em São Paulo, a origem nordestina, pernambucana, jamais foi renegada. Ao contrário, sempre demonstrada como um elemento enriquecedor na história desse personagem.
O Brasil entrava numa nova era da política. Era o que se acreditava, e tudo indicava que, de fato, era isso que estava acontecendo. Mas o que deu errado para que dois governos depois o veículo degringolasse ladeira abaixo, sem freio, e tendo na condução outro personagem, pérfido, guindado à condição de vice dentro de um ambiente político que se imaginava progressista?
É difícil analisar passo a passo tudo que aconteceu. Erros se cometem, naturalmente, principalmente na política, e tendo um governo progressista que lidar com um congresso repleto de oportunistas, de parlamentares eleitos via compra de votos e de financiamento empresarial de campanha, com data marcada para a cobrança ser feita por uma “elite” patrimonialista torpe que há séculos avacalha a política a sua benquerença.
Representação parlamentar no
Congresso brasileiro em 2013
(http://jornalggn.com.br/noticia/uma-
analise-da-representacao-atual-do-congresso)
Ora, não se pode imaginar poder governar à vontade o país, que possui um regime presidencialista, mas depende de um parlamento para a consecução de seus projetos políticos. Tudo bem é a democracia, dirão os cautos. Mas é a democracia que constrói essa aberração, onde um presidente de esquerda é eleito para governar o país, e o mesmo povo elege um congresso repleto de parlamentares que rezam numa cartilha política oposta, e que a maior parte deles não possui o mínimo pudor e vendem-se descaradamente, independente de quem está a conduzir o Estado. Desde que possam ser beneficiados por medidas que os sustentem por longo tempo em seus mandatos, e/ou que sirvam a projetos maiores de conquistar governos em seus estados. E a política, tradicionalmente se faz assim no sistema capitalista. Ou mesmo em outros sistemas, não importa. Estou analisando o Brasil.
Podemos concluir que seria impossível governar sem estabelecer uma ampla aliança com setores de centro, ou eventualmente com alguns liberais mais conservadores, embora politicamente maleáveis. Dada às circunstâncias, era isso que precisava ser feito, e foi feito. Mas à custa de comportamentos condenáveis, e condenados pela esquerda por décadas antes de assumir o poder. Construiu-se dessa forma, uma plataforma (base) frágil, tendo abaixo areia movediça. Ao não adotar uma atitude de apresentar propostas que mudassem a estrutura partidária e eleitoral, juntamente com outras reformas necessárias para fazer do ato político parlamentar algo mais decente, a esquerda terminou por escolher um rumo perigoso, que poderia levá-la para aquele solo arenoso e pantanoso que traria o risco de engoli-la.
Mas no princípio era o verbo. Tudo transcorreu tranquilamente a partir de medidas adotadas que garantiram à classe dominante, principalmente ao setor financeiro, que não haveria mudanças bruscas na economia. Assim, o governo por certo tempo conseguiu se equilibrar numa corda bamba, tendo que agradar a esse setor, por um lado, e por outro adotar medidas de caráter social que contemplasse todo o discurso de investimento nas camadas mais pobres e apresentasse propostas progressistas para setores que por muito tempo foram marginalizados em nossa história.
Só que não se pode confiar na política, e em políticos que agem como escorpiões. Os métodos adotados para garantir uma maioria parlamentar, foram os mesmos usados por aqueles que estavam na oposição, mas que fizeram usufruto deles quando estiveram à frente do governo. Naturalmente, à medida em que o governo se fortalecia, os que lhes davam apoio pediam mais, e os que lhes faziam oposição preparavam o bote, para por meio de estruturas do próprio estado, onde ainda haviam influências ou tinham compatibilidades de ideias, denunciar os mesmos métodos corruptos pelos quais governaram por muito tempo. O resultado disso foi o aparecimento de denúncias de compras de votos para garantir votações importantes no Congresso. O mecanismo era tradicional, feito na política historicamente desde séculos e, sempre criticado pela esquerda.
Useiro e vezeiro de um método espúrio, o poder político, desta feita comandado por setores de esquerda, mergulhou num lamaçal putrefato. A luta política saiu do parlamento e foi deslocada para a justiça, onde alguns personagens narcisistas se sobressaíram, e transpôs-se no tempo o lugarejo e as bruxas de Salém[4] para o planalto central. Iniciava-se um período de delações, perseguições, prisões, em alguns aspectos derivados de malversações, de fato, realizadas, em outros por mecanismos de vinganças sobre alguns personagens que se destacavam na condução do Poder e do partido majoritário, por trás do governo de Lula da Silva.[5]
O governo se enfraqueceu. Perdeu seus principais personagens auxiliares do presidente. O chamado “mensalão”, expressão chula comprada pela mídia de um dos principais delatores, aquele personagem que na multidão pego roubando sai gritando: “pega-ladrão”. Por trás de tudo, embora no vocabulário boa parte deva ser caracterizada como corrupção, estava o financiamento de campanhas, o “maledeto” Caixa 2, nunca antes tipificado como crime e sendo sempre negligenciado pela Justiça Eleitoral. Ou cobrava-se para quitar dívidas de eleições passadas, ou para garantir sucesso na eleição seguinte. Mas, inegavelmente, há quem se beneficie pessoalmente desse processo, se enriquecendo às custas de dinheiro ilícito.
Embora enfraquecido Lula da Silva contava com um trunfo maior. A economia brasileira surfava em ondas bravias e conseguia chegar à praia sem dificuldades, diante de uma crise financeira que ameaçava quebrar as principais potências econômicas do planeta, e de quebra (com perdão da redundância) levar o sistema financeiro junto. Mas o Brasil, por meio das medidas que aqueceram o mercado interno, principalmente os programas sociais e o aumento real do salário mínimo, parecia passar incólume diante de tamanha crise. Uma marolinha, diante do tsunami que se aproximava.
Veremos a seguir como, e porque, descarrilou essa locomotiva que seguia a todo vapor.