Quero começar a partir de
uma formulação de Carl Sagan, contido no livro “O Mundo Assombrado pelos
Demônios”:
Nós criamos uma civilização global em que os elementos
mais cruciais – o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a
agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio
ambiente e até a importante instituição democrática do voto – dependem profundamente
da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende
a ciência e a tecnologia. É uma
receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais
cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir
em nossa cara. (Pág. 39)
É impressionante
nesse artigo (escrito em 1995) a perspicácia de Carl Sagan, ao analisar o
descompasso entre a capacidade adquirida pela humanidade de avançar nas
ciências, e o quanto essas se tornaram importantes para o mundo, mas ao mesmo
tempo, e numa enorme contradição, ou paradoxo, com um aumento da ignorância e o
desconhecimento da importância das ciências e das novas tecnologias, por parte
da maioria das pessoas.
Minha preocupação é que especialmente com a
proximidade do fim do milênio, a pseudociência e a superstição parecerão mais
sedutoras a cada novo ano, o canto de sereia do irracional mais sonoro e
atraente. Onde o escutamos antes? Sempre que nossos preconceitos étnicos ou
nacionais são despertados, nos tempos de escassez, em meio a desafios à autoestima
ou à coragem nacional, quando sofremos com nosso diminuto lugar e finalidade no
Cosmos, ou quando o fanatismo ferve ao nosso redor – então, hábitos de
pensamento conhecidos de eras passadas procuram se apoderar dos controles.
A chama da vela escorre. Seu pequeno lago de luz
tremula. A escuridão se avoluma. Os demônios começam a se agitar. (IDEM, pág.
40)
Todo o
deslumbramento tecnológico, que inclui inteligência artificial, robotização,
sofisticações impressionantes que nos fazem chegar até Marte e de lá transmitir
informações em tempo real para a terra, se depara com um mundo
onde cresce assustadoramente o número de pessoas que vivem abaixo da linha da
pobreza. Situação que foi impulsionada pela pandemia, mas que já vinha dando
sinais claros de um caminho quase sem volta, dentro do sistema capitalista, de
uma crise estrutural permanente.
Nesse novo mundo
que se delineia, a partir desses caminhos que estão sendo construídos, que
inclui até mesmo colonização de outros planetas, a maior parte da população
está excluída. Passo a passo, os que detém o poder econômico, e controlam os
meios de produção, ignoram a abissal distância entre os diversos segmentos
sociais, e transformam o mundo virtual em um mundo real, a Matrix se consolida
aqui na terra, e os meios de comunicação oferecem mercadorias deslumbrantes, ultrassofisticadas,
para um percentual de 10% da população. Essas mesmas pessoas, capazes de se
inserir nesse mundo consumista, se deleitam em compartilhar, ostensivamente,
seus mundos, onde o deslumbramento ignora a miséria, achincalha a pobreza e
milhões de pessoas que padecem na miséria e pouco tem para comer. E transformam
a vida em um big brother perverso, ou melhor, de perversões.
Posto isso, quero
pontuar os descaminhos pelos quais podemos apontar os rumos que a humanidade
pode seguir. Nós não podemos afirmar que este ou aquele será o rumo, mas partimos
das condições reais de nossas existências, dos conflitos, dessas características
que são marcantes no sistema em que vivemos: ganância, usura, vaidade, egoísmo,
individualismo e a crença em deuses perversos, aos quais alguns indivíduos se
apegam para justificar seus pecados mortais. Tudo isso se baseia na forma como
os que controlam a riqueza e o Poder estabelecem as leis e os mecanismos pelos
quais essas estruturas se mantém, a despeito de todas essas misérias e
desigualdades sociais. E, fundamentalmente, como essa riqueza é construída, por
meios que oprimem e exploram forças de trabalhos cada vez mais mal pagas,
restritas e, aos poucos, substituídas por novas tecnologias, para além da
robotização, com o uso da Inteligência Artificial.
A globalização, ou
mundialização, abriu a caixa de pandora do capitalismo no fim do século XX.
Muita coisa mudou muito rapidamente. Aí entram as ciências, incluindo a
Geografia tanto como ciência, como também um importante saber estratégico,
fundamental nesse processo, de forma essencial e fundamental, no âmbito do
conhecimento e dos avanços obtidos pela humanidade. Mas não são elas, as
ciências, responsáveis pelo que veio a acontecer. Importa saber quais os
destinos dados aos novos conhecimentos adquiridos por meio de avanços
científicos que impulsionaram de forma impressionante, e novas tecnologias,
nosso destino para o século XXI. Os que viveram nessa passagem de séculos,
entre o final de um e o começo do outro, lembram-se dos deslumbramentos e de
como a grande mídia indicava aquele momento e como seria o nosso futuro. Isso
que é o nosso presente hoje.
Lembro-me de
revistas com edições especiais que falavam desses novos tempos, marcados pela
desregulamentação da economia, pela liberdade de comércio com o fim das
imposições levadas a cabo por governos protecionistas e em seguida às pressões,
as aberturas das fronteiras para as mercadorias e o capital. O mundo virou um
enorme cassino global, e a pilantragem se transformou em desejos mórbidos,
invertendo valores, princípios e ignorando o que com muito custo foi
conquistado (embora pouco exercido) dos direitos iguais para todos e todas.
O cinismo passou a
conduzir as finanças, a economia se abastardou em meio aos que esbanjavam
dinheiro. E assim expunha abertamente um novo comportamento icônico, ser
mau-caráter já não era mais algo que desmerecia alguém, mas a condição e
garantia de que somente assim, e pela esperteza, seria possível ser incluído ou
permanecer no altar de imolação, ou fogueira das vaidades. Onde a riqueza já
não ardia mais em chamas como algo pecaminoso, mas a ser perseguido por todos,
como a quem de direito, na certeza que o novo capitalismo globalizado garantiria
a quem assim quisesse ser. Os neopentecostais ensinavam aos pobres que o
caminho da submissão, da idolatria fundamentalista ao deus do capital, era duro
mais possível de ser trilhado. Pelo esforço próprio, sem arengas e rebeldias,
mas de firmeza na crença de que esse deus é fiel.
Abriram-se as
portas do inferno. O capital financeiro jamais foi incensado por quem se
julgasse protegido por algum deus. Sua proteção é o demônio, seguramente. E
para combatê-lo não seria possível os chicotes pelos quais Jesus teria
expulsado os vendilhões do templo. Já não são mais reles mercadores, mas
representantes de enormes corporações, gigantescas transnacionais, que se
agigantam a cada ano, por fusões que reduzem a força de trabalho, investe-se
mais e mais em novas tecnologias, ampliam-se os ganhos em produtividade e,
consequentemente os lucros.
Mas tudo isso não
significa o fim do caminho, com o descanso necessário para usufruir desses
ganhos, pois a ganância impede isso. Esses lucros movimentam o enorme cassino
do sistema financeiro, as bolsas de valores, e ali se multiplicam por meio de
ladroagens oficializadas, burlas de expertises, golpes e espionagens a
envolverem os donos do dinheiro e agentes públicos, numa dança macabra de perversões
em busca de mais riqueza e Poder sobre as desgraças e infortúnios de
desempregados, miseráveis errantes que se transformam em nômades, favelados,
pobres, que são absorvidos pelo comércio mais lucrativo das profundezas do
sistema: as drogas.
Embora as mercadorias
mais sofisticadas desse comércio sirvam exatamente aos eufóricos agentes do
capital financeiro, movidos ao pó mais cobiçado que transita pelos arranhas
céus e torres de luxos, e impulsiona o eletrizante cotidiano das corretoras,
investidoras e bolsas de valores. Ali onde se realiza o capitalismo financeiro,
e onde a riqueza gerada esnoba e dejeta estrume sobre bilhões de pobres por
todo o mundo. Mas esse mundo, desse capital financeiro especulativo,
improdutivo e pérfido, é disputado por poucos que dominam e controlam impérios,
que possuem bilhões... de dólares.
E, pela lógica que
movimenta o sistema, cuja característica é a expansividade, não pode ganhar
amanhã, nem um centavo menos do que ganhou hoje. É uma corrida febril a mais
dinheiro, não importa o quanto se tenha, nem o quanto isso torna a sociedade
doente. Assim se chegou ao limite da globalização, escorada nas políticas
perversas neoliberais, insensíveis à crescente desigualdade social.
O mundo, não
poderia, e nem pode encontrar um destino saudável por esse caminho. De
insensibilidade, arrogância, corrupção, injustiça, falta de empatia e desrespeito
pelo outro. Tanto o mundo construído, e destruído, por quem por todo esse tempo
teve o controle dos meios de produção; quanto o mundo natural, a natureza,
desnaturalizada, artificializada, e posta abaixo, para servir a essa ânsia
gananciosa e fazer girar a estrutura capitalista, baseada em mercadorias que se
esgotam e são substituídas por outras, que envelhecem e precisam ser deixadas
de lado, levando a que o sistema se reestruture, e se reinicie todo o processo
de inserção de novos produtos e novas fontes energéticas, sob o pretexto de
proteger a natureza, que seguirá sendo destruída para comprazer essa lógica
expansiva. Não nos iludamos, o fantasma de Goebbells (Ministro da Propaganda do
governo Nazista) não está levitando somente por sobre o Palácio do Planalto.
Ele está por toda a parte, e incorpora os discursos daqueles que controlam o
Poder político, econômico, militar e são disseminados pelos grandes meios de
comunicação.
Ora, a história
nos ensina que por esses mesmos caminhos, em tempos outros, o resultado dessas
loucuras levou a conflitos que geraram guerras, genocídios e o descontrole
sobre uma população absolutamente abandonada e revoltada. Assim, cega e
desprovida de consciência crítica, tanto lá, quanto nos dias de hoje, o caminho
termina sendo a busca de falsos “messias”, protagonistas estúpidos que se
colocam de forma invertida no lugar desses pobres e miseráveis, com discursos
de ódio, intolerância, ressentimentos, medos e mentiras, reforçando a
ignorância, o apego a crenças baseadas em construção de sentimentos de
indiferença, raiva e construção de inimigos erigidos assim fundamentados em
preconceitos, misoginia, racismo, em novas formas inquisitoriais e invertendo o
foco sobre quem de fato se beneficia dessa estrutura.
Mas precisamos ter
claro qual é a estratégia que existe por trás desses comportamentos, daqueles
que usufruem de privilégios, se impõe gananciosamente sobre corpos inertes,
frágeis pela ausência de recursos para se manterem, ou mesmo sobre
trabalhadores superexplorados, cujas reformas feitas retiram o pouco de si, mas
ampliam os ganhos dos que controlam a riqueza.
Se já vínhamos de
há muito tempo consolidando uma forma de Poder, definido por Michel Foucault,
como Biopolítica e Biopoder, as circunstâncias delineadas nos últimos anos, e
potencializadas pela pandemia, confirma a sofisticação daqueles mecanismos
controladores seja sobre a população enquanto massa agregada, a partir da
constituição do Estado moderno, seja sobre o corpo das pessoas individualmente,
estabelecendo padrões e definindo regras e comportamentos. Quanto mais as
crises surgem e se intensificam, mas se definem políticas e se constroem regras
conservadoras para conter a expressão da individualização e da liberdade do
corpo das pessoas e de suas vidas.
O controle da
vida, pelas políticas do corpo, bem como por uma política (biopolítica) de exploração
acentuada do esforço escravizado ou semi-escravizado, pela extorsão da
liberdade ou pela exploração da força de trabalho, se constituiu nos elementos
cruciais para a transformação do capitalismo no sistema que conhecemos hoje, e
no qual nos tornamos engrenagens em sua lógica de absorção de nossos esforços
para garantir os privilégios de uma minoria abastada.
A moral
protestante definida como elemento fundamental das formas de desenvolvimento da
sociedade capitalista, num olhar weberiano, não demorou a ser suplantado por
novos elementos de controle de Poder, definido a partir da garantia da vida, na
tentativa de controle da morte. Esse foco, expressado por Michel Foucault, como
Biopoder, se encerra nos objetivos da burguesia e das classes dominantes, na
descrição de uma sociedade liberal, cujos preceitos se encontram definidos em
legislações criadas para garantir muito mais do que uma liberdade, mas o
controle e a disciplina sobre o corpo, sobre a vida.
Essa política,
decorrente das formas que foram delineadas pelo Poder dentro da estrutura
dominante capitalista, por meio do Estado burguês, oferecido como fonte da civilização
e do progresso, tudo isso feito dentro das normas legisladas pelas instituições
formais da democracia, se entesa e emperra quando sob seu controle assumem-se
indivíduos dotados dos piores desejos, pérfidos, desprovidos de caráter, de
empatia e solidariedade.
Governantes que
reacendem os piores pesadelos transformados em atos, reais, de situações em que
a política do controle da vida se inverte na macabra política da morte. Os
preconceitos disfarçados se apresentam ostensivamente, o ódio se reflete no
olhar às diferenças. Os pretos, pobres, mulheres, velhos, os que possuem algum
tipo de deficiência, ou aqueles que escolhem o tipo de prazer sobre os seus
corpos e suas sexualidades e gênero, tornam-se alvos e, para além do biopoder,
um novo tipo de higienismo se manifesta, e encontra na pandemia do Covid19 um
vírus mortal que lhes ajudará, a esse tipo de Poder, a completar o objetivo
criminoso de olhares, vieses, ideologias e atitudes neonazistas e de um visível
fascismo contemporâneo.
E nessa necropolítica
os que comandam o estado se debruçam sobre um macabro e mórbido desejo de
encolher a população para melhor definir suas estratégias perversas, mirando no
que eles, por esses sentimentos fascistas, entendem como entraves ao
desenvolvimento e a consolidação de uma sociedade puritana, pentecostal,
ultraconservadora, para lentamente constituir o Estado como um instrumento
totalitário, controlado por insanos, cínicos, milicianos, mercadores da fé e fascistas.
As mudanças que
ocorrem aqui no Brasil, embora também em outras partes do mundo, decorrem de
crises profundas nas estruturas capitalistas, que já estavam se desenvolvendo
há anos, são sintomas de um estágio avançado da desintegração desse sistema já
atingindo o limite de suas contradições. O século XXI abriu suas portas
escancarando essa crise. O ano de 2001 (ataques às torres gêmeas nos EUA); 2008
(crise do subprime nos EUA) e a partir de 2020, com a pandemia do Covid19, se
constituem em picos dessa crise, e, em seu ciclo constante, esses momentos
disseminaram os medos, por todos os lados e de todos os tipos, despertando de
suas profundezas, alguns demônios, que não são estranhos ao sistema, mas suas
próprias crias, que viviam em estado criogênico.
Mais do que
entender essa conjuntura, devemos identificar os caminhos e os possíveis
cenários que nos esperam em um curto prazo, e, portanto, exige de nós a
urgência em decisões e estratégias que nos impeçam de despencar do abismo que
está à nossa frente. Nunca foi tão importante fazer a junção dentre as ciências
humanas, onde se insere a Geografia, ultrapassar o simples diagnóstico da
realidade, mas a partir da constatação das desgraças que nos afligem, e que
isso se dá no mundo real, urgir mais do que a necessidade de esgrimir
argumentos e coragem para se contrapor a esses demônios materializados e que
perversamente buscam infernizar nossas vidas. Se trata, como já dito outrora
por Marx, de mais do que interpretar a realidade, lutar para transformá-la. Ou
para citar um geógrafo de renome, e responsável por um dos clássicos da
geografia e da geopolítica, Yves Lacoste, a geografia deve nos ajudar a mais do
que descrever o mundo, estabelecer um olhar crítico sobre essa realidade,
compreender a dimensão das desigualdades, apontar por quais meios podemos
identificar as contradições desse sistema, e não medir esforços para
transformá-lo econômica e socialmente.
Estamos correndo
contra o relógio.
(*) Palestra apresentada na Mesa Redonda: Geopolítica, Dinâmicas Populacionais e Biopoder, no II SIMPÓSIO INTEGRADO DE ESTUDOS TERRITORIAIS. Em 28/05/2021.
Disponível no Canal do Laboter no Youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=E-Q-t-MSuuM&t=582s
Obra citada:
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