sábado, 28 de dezembro de 2013

QUE SEJAM FELIZES OS DIAS QUE VIRÃO. VAMOS INVENTAR UM 2014 COM SOLIDARIEDADE, AMIZADE E AMOR

Fotomontagem: Célia Regina
Não sei o que dizer do que será. Resta-me analisar o que se foi. Assim, na reconstrução do passado, que me pode dar a compreensão dos erros e acertos do tempo que se foi, posso melhor inventar o meu futuro. 2014, e o que mais vier.
Repito aqui, os mesmos desejos do ano passado, pois eles são permanentes, apenas envelhecemos um ano a mais.
Seguramente uma das coisas boas em minha vida nesses últimos anos foi a força para criar e consolidar este Blog. Gramática do Mundo, como já disse, um nome quase emprestado de Fernand Braudel que criou sua Gramática das Civilizações, representou para mim muito mais do que eu pretendia que se fosse inicialmente. Transformou-se em um fórum de debate bem provocativo, como sempre fui, e sou, em minha peculiaridade. Através desse estímulo pude reencontrar minhas forças, me dedicar ao doutorado, e enfim, concluir mais uma etapa de minha vida profissional. Ter me tornado doutor, em 2013, foi mais do que uma satisfação, encaro como uma superação, diante dos anos passados sofridos e dilacerados pelo falecimento de minha filha.
Por essa razão, ter me dedicado ao doutorado, produzi pouco para o blog neste ano que passou. Bem menos do que nos anos anteriores, quando ele se transformou numa catarse a aliviar os meus tormentos.
Enquanto pude me dedicar ao blog ele cumpriu esse papel, de fazer com que eu pudesse libertar do fundo da minha intimidade todos as angústias motivadas pela perda de minha filha, Ana Carolina. Através do Gramática do Mundo, e tentando ainda fragilmente seguir o lema da filosofia antiga, exposta inicialmente em um poema de Horácio, no século I, antes da Era Cristã, com a expressão Carpe Diem, não me preocupo em viver obcecado com o futuro, mas buscar a compreensão do presente, de forma a vivê-lo em toda a sua intensidade.
Fotomontagem: Célia Regina
Essa máxima permanece a guiar as minhas atitudes e a maneira como concebo a vida. Mas sem jamais querer eliminar as minhas memórias, as lembranças, mesmo tristes, que me marcaram e me conduziram ao presente. Bloqueei por algum tempo lembranças trágicas da internação de minha filha, até o dia fatídico da sua morte. Mas, neste último ano, 2013, principalmente após a defesa de meu doutorado – talvez algo que ainda eu devesse a ela – recuperei essas imagens, mesmo que doídas, mas já conseguindo sentir a sua presença permanentemente ao meu lado, em nossos momentos de alegrias.
Por isso essa minha mensagem de transição entre dois momentos simbólicos (2013-2014), construídos seguindo uma lógica que interessa ao consumismo capitalista, mas que inegavelmente também se constitui em um momento de confraternização, e de expiação de todos os nossos problemas, eu quis produzi-la aqui. Transformo, assim, todos os meus seguidores e eventuais leitores, em personagens de minha vida, com os quais estabeleço abertamente, por essa ferramenta espetacular que é a internet, momentos de franca discussão ideológica e intelectual, bem como compartilho todos os meus sentimentos pela perda irreparável que me consumiu e me consumirá pelo resto da minha vida. 
Continuo recebendo, principalmente nas minhas postagens mais sofridas, nas datas que mais me lembram da Carol, mensagens de amigos, e até mesmos de pessoas anônimas para mim, que só conheço pela internet, e foram e têm sido fundamentais para a recomposição de meu caminho. São, seguramente, estímulos para a superação das adversidades e me ajudam a viver a vida como expressado na filosofia antiga, nessa loucura do mundo moderno.
Isso nos dá também a convicção de que a solidariedade só precisa ser praticada, porque muito embora tenhamos a sensação de que vivemos em um mundo cruel, as pessoas, em sua maioria, têm sim, sensibilidade e expressam ainda isso de várias formas. O velho altruísmo que salvou a espécie humana em épocas primitivas permanece, ainda que hibernado pelos tempos individualistas como resquícios do neoliberalismo, e do próprio capitalismo. Mas em certos momentos ele se manifesta e desperta o lado sensível dos indivíduos, homens e mulheres.
2013 foi, mais uma vez, um ano de superação. Mesmo envolto nas leituras e redação de minha tese de doutorado, segui repensando os comportamentos que me acompanharam por vários anos, e que somente um choque em nossas vidas é capaz de nos fazer parar para refletir. Embora agora doutor, seguirei sendo eu mesmo, um pouco melhor da minha “ranzizesse” privada, apesar de mais velho. Mas isso diz respeito aos defeitos que cada um de nós possui e compõe a nossa personalidade. Mas adquiri uma capacidade maior de compreender os dramas e fragilidades da vida humana. Até pela acumulação de conhecimentos que busquei no estoicismo, somando-os à minha visão de mundo, baseada na dialética materialista e pela experiência adquirida da vida. E, pela minha pesquisa, com o contato com o povo simples, humilde e hospitaleiro do Sul do Pará.
Não sou partidário de princípios doutrinários, segundo os quais o sacrifício é um fator essencial para que o sentimento humano se realize. Não temos que, necessariamente, buscarmos o sofrimento a fim de termos nossos “pecados” expiados. Mas é inegável que ele nos trás um choque de uma realidade da qual não esperamos experimentar. Construímos nossos mundos (assim como nossos deuses) de acordo com o que queremos, e esquecemos que não podemos querer aquilo que é inusitado, ocasional. O inevitável pode nos trazer surpresas para as quais não nos preparamos, e da fragilidade de uma vida aparentemente perfeita, desfazem-se sonhos e ilusões de futuros construídos quase que moldados por fantasias que nos são impostas por mecanismos exteriores à nossa vontade.
Converso com minha companheira, Celma, sob óticas diferentes de ver a vida. Ela, sempre otimista, construiu toda a sua resistência à tragédia que nos abateu, buscando espiritualmente forças que traduzisse sentimentos de solidariedade e de um pensar positivo que vê ao longe, além do momento em que estamos, e constrói positivamente um futuro de esperança. Assim ela vai lidando com os projetos que o Instituto Ana Carol tem construído e, principalmente o que já se tornou uma realidade consistente, a Bordana, Cooperativa de Bordadeiras a consolidar essas certezas construídas com o olhar para adiante.
Não tento desconstruir os sonhos, mas parto de outra perspectiva. A de que o que imaginamos ser a construção de um futuro nada mais é do que a realização do presente. Dialeticamente, ele vai sendo tecido, e termina por concretizar algo que foi pensado. Mas o que seria desse “futuro” se no presente não tivéssemos construído as bases das mudanças? Ademais, não há futuro, pois o que idealizamos como sendo isso, ao imaginarmos tê-lo construído, ele já se torna presente. E, como o tempo não para, em frações de segundos já se torna passado.
Digo isso para afirmar que são as realizações do presente que possibilitam aos nossos pensamentos se concretizarem. Contudo, nada do que se constrói hoje, ou do que se imagina construir, está livre do acaso. Mas, como não podemos ficar pensando no acaso, assim como não faz sentido a obsessão pela morte, devemos pensar sempre em viver toda a intensidade do presente. Abstraindo o egoísmo e o individualismo, logicamente. Afinal, a nossa vida não se realiza isoladamente. E, principalmente, procurarmos viver cultivando a honestidade e a solidariedade.
Assim, 2014 se construirá a cada dia. Por isso, a mensagem que quero passar é a de que cada ano novo só se completa em seu final, até lá ele simplesmente é a somatória de dias, semanas e meses. E cada um de seus dias, deve ser vivido em seu tempo, na duração que lhe foi dada por essa espetacular e indecifrável condição que adjetivamos como vida. E, ao final, ele soma-se à nossa própria história.
Então, não nos basta pensar no ano de 2014. E sim na construção dele, a partir da vivência ativa e intensiva de cada dia, separadamente. Viver um dia por vez, ao invés de nos perdermos em angústias e desesperos do que fazer depois de amanhã. Isso parece óbvio, mas estranhamente não é visto dessa maneira.
Mas alguns dirão que isso é utopia. Que é ilusão se imaginar preso apenas ao que acontecerá a cada dia, na medida em que isso acarreta um efeito em sequência e, seguindo a própria lógica da vida, impõe naturalmente o pensamento no que se seguirá.
Isso também é verdade. Mas aí reside a beleza, a incógnita e o segredo da dialética. A vida em sua mais perfeita contradição. Pela qual não conseguimos jamais compreendê-la por completo, nem vivê-la a cada momento. Pois que ela nada mais é do que uma tridimensionalidade que nos cerca: vivemos o presente, a partir de coisas que construímos do passado e que seguiremos levando adiante, naquilo que se traduz como o futuro.
Que 2014 seja assim, então, para cada um de nós. Cheio de saúde, alegria, amor e fraternidade. Que a solidariedade jamais deixe de estar conosco cotidianamente, por mais que tenhamos em nossas ideologias o sentimento de que tudo que está aí deve ser mudado na construção de um mundo novo.
Tudo bem. Mas as pessoas que vivem a sofrer, por uma condição de sujeição à lógica irracional deste mundo, têm direito a superar seus sofrimentos. Não devemos esperar as pessoas morrerem na miséria para tomar isso como exemplo de que o sistema é injusto. Devemos condená-lo, mas salvando as pessoas... e não somente as matas, as árvores, os animais. Somos nós, seres humanos, que damos sentido a este mundo. Embora contraditoriamente sejamos nós também os responsáveis pela aceleração de sua destruição. Enfim, devemos lutar pela vida. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás” (Che).
Que 2014 inspire solidariedade, amizade e amor. Que construamos um novo mundo a partir de nossos próprios exemplos. Que não nos limitemos à crítica, pela crítica, mas que apresentemos alternativas concretas para realizarmos o sonho das pessoas viverem seus presentes com dignidade. E façamos isso também com nós mesmos. Que consigamos viver intensamente cada dia, cada momento, e nos coloquemos um desafio: de a cada dia que conseguirmos superar, aumentar o número de amigos e amigas que nos cercam.
Quem sabe assim atingiremos nosso objetivo de inventar um 2014 que corresponda ao que desejamos para cada um de nós em particular, e para todos coletivamente.
E o façamos tornar-se realidade.


Carpe diem!
“Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati. seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam, quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida aetas: carpe diem quam minimum credula postero”.
“Tu não procures - não é lícito saber - qual sorte a mim qual a ti os deuses tenham dado, Leuconoe, e as cabalas babiloneses não investigues. Quão melhor é viver aquilo que será, sejam muitos os invernos que Júpiter te atribuiu, ou seja o último este, que contra a rocha extenua o Tirreno: sê sábia, filtra o vinho e encurta a esperança, pois a vida é breve. Enquanto falamos, terá fugido ávido o tempo: Colhe o instante, sem confiar no amanhã”.
 "Odes" (I,, 11.8) do poeta romano Horácio (65 - 8 AC) 


(*) A idéia central desse texto eu construí no final de 2011. Adaptei-o em algumas partes para torná-lo atual a mais um momento de transição em nossas vidas. Um feliz ano novo aos leitores e leitoras do blog Gramática do Mundo e aos meus amigos e amigas do Facebook. Que possamos continuar lutando pela construção de um mundo melhor.  E que em 2014 possamos avançar muito nessa direção. Um forte abraço.

Prof. Romualdo Pessoa

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

OS ÚLTIMOS MOMENTOS DA PEQUENA CAROL (DEZEMBRO DE 2007)*

Última foto da Carol -
Novembro de 2007
Quando minha filha começou a tossir e a ter sua respiração alterada (ela sempre sentia isso quando adoecia) logo me preocupou. A mim, a Celma, também sua Vó Maura (a Vó Maria José mora em Araguaína, e também ficava de lá preocupada), a Domícia. Todos nós ficávamos muito apreensivos quando esses sintomas apareciam. Principalmente depois dos dez dias que ela ficara internada, no mês de julho
Levamo-la em sua pediatra, Dra. Mônica, que a acompanhava desde o seu nascimento. Ela também foi a pediatra do Iago. Um exame dos pulmões, que ela solicitou, diagnosticou uma bronco-pneumonia. A dra. não sentiu isso auscultando sua respiração. Mas na mesma hora ela ligou para a pneumologista que tinha acompanhada Carol durante a internação. Trocaram idéias sobre o remédio a ser medicado e, se a suspeita era pneumonia, mesmo incipiente, o indicado seria usar um antibiótico. Também ficou acertado um horário para que a pneumologista pudesse avaliar o quadro da Carol pessoalmente.
Diferente do vírus, a bactéria – no caso a causadora da pneumonia – deve sempre ser combatida por antibiótico. Na primeira internação da Carol, ela também tomara antibiótico, mas por não se ter um diagnóstico definitivo das razões de sua doença. Em sendo vírus, somente a reação dos anticorpos em seu organismo é capaz de derrotá-lo, o que exige muito repouso, hidratação e transfusão de sangue se o quadro requerer, para que o organismo se fortaleça o suficiente para reagir ao vírus.
Apesar desses encaminhamentos, e do tratamento que foi passado para Carol, com base na existência de um início de pneumonia, era visível o enfraquecimento da minha pequena. E tornava-se mais evidente o seu quadro de enfraquecimento, palidez e cansaço. Os sintomas eram básicamente os mesmos que fizeram com que ela fosse internada em julho.
Preocupados, já estava marcada uma consulta com uma médica nutróloga – tentávamos fazer com que Carol se alimentasse melhor do que rotineiramente fazia -, solicitei a ela que fizesse um pedido para realização de um exame de sangue, também porque eu já tomara a iniciativa de buscar informações sobre um bom infectologista, para marcar uma consulta. Todo o receio nosso era que o quadro de julho se repetisse.
Fizemos um exame, hemograma completo, e diante de tamanha preocupação, mesmo sendo leigo tive a curiosidade de observar os resultados. É possível ter uma dimensão do problema, de maneira superficial, na medida em que os índices de referências acompanham os resultados do exame. O que vi me preocupou mais ainda. Tinha quase certeza de que estava se repetindo o quadro da internação anterior e isso era tudo o que não gostaríamos de ver acontecendo. Até mesmo porque, naquele momento houvera uma suspeita de leucemia.
Devemos ressaltar que, embora tendo recebido alta do hospital, quando de sua internação em junho, ela não teve alta médica, porque o seu quadro era ainda de debilidades, e até porque o médico queria confirmar o diagnóstico a partir de um acompanhamento permanente. Com isso, continuamos a realizar, a pedido do médico, os exames de sangue completos, mês a mês. Até outubro, quando os índices sanguíneos atingiram a normalidade e só assim ela teve alta médica. Ela estava ansiosa por duas razões, primeira poder continuar jogando seu esporte preferido, o Badminton; segundo, porque ela teria que fazer uma apresentação de ginástica rítmica em sua escola, na semana do aniversário de Goiânia.
Juntei todos os exames de sangue (hemograma) que ela fizera, desde o período anterior à sua internação em julho, organizei por ordem de data em uma tabela, item a item, até o último realizado antes da consulta de dezembro (07/12/2007) e enviei-os por e-mail a alguns amigos médicos, solicitando que eles pudessem dar uma opinião sobre o que poderia estar acontecendo com minha filha. Mais uma vez começava tragicamente uma alteração em seu quadro sanguíneo, com uma queda brusca das plaquetas e uma elevação dos leucócitos. A palidez dela se acentuava, a falta de ânimo, dificuldade de se alimentar e uma fraqueza que nos angustiava e nos deixava desesperados.
Mas minha filha impressionava por seu comportamento. Ela se mantinha com uma expressão de conformidade, sem reclamar da doença. Às vezes ficava impaciente, mas a cada vez que perguntávamos como ela estava se sentindo, sua voz frágil respondia: “bem”! Apesar disso, nós sabíamos que havia algo errado e que nos parecia ser bem grave. Tínhamos dificuldade em acreditar que pudesse ser leucemia, mas essa já era uma hipótese levantada mesmo que de forma cuidadosa pelos médicos, tantos os colegas quanto os profissionais que a acompanhava.
Começamos a acreditar nessa possibilidade quando, após a levarmos ao laboratório para uma nova bateria de exame de sangue, desta vez solicitado pelo infectologista na penúltima consulta (07/12), fomos alertados, pelo médico responsável pelo laboratório, da gravidade da situação da Carol. Estávamos em casa quando recebemos uma ligação do laboratório. Pediam-nos que levássemos novamente Carolina para repetir os exames. Ela tinha feito os exames na sexta-feira pela manhã, e esse contato se deu à tarde do mesmo dia. Preocupados levamos ela imediatamente ao laboratório, ainda na sexta-feira, ao cair da tarde.  Já começávamos a ficar abatidos, e repetia-se também a triste rotina dos exames de sangue em dois bracinhos cujas veias eram quase imperceptíveis (quando ela esteve internada em julho contou mais de 40 picadas de agulha para fazer os exames necessários).  Quando chegamos ao laboratório fomos conversar com o médico que, atenciosamente, explicou a necessidade da contraprova. Eles consideravam grave o quadro apresentado nos exames e disse que se fosse mantido aquele diagnóstico nós deveríamos trabalhar com a hipótese de realizar exames na medula. Apresentando informações científicas o que ele queria em verdade dizer era que o resultado do exame apontava para um quadro de leucemia. O mundo começou a girar em nossas cabeças. Dentro de nós, pai e mãe, sentíamos plenamente a gravidade do quadro de nossa querida filha, e iniciava naquele momento horas e dias de angústias e desespero.
Em um momento de descontração, necessário naquela circunstâncias, até mesmo para que ela não se entregasse à passividade, lembro-me de um fato que jamais vou esquecer, pelo inusitado e pela situação em que nos encontrávamos. Herança dos hábitos de meu pai, sempre carrego comigo um pente de bolso. Nesse dia, ao pegar a carteira deixei-o cair na entrada do laboratório. Ao chegar em casa fui procurar o pente e não o achei, foi quando a Carol disse tê-lo visto no chão. Eu disse: “minha filha, porque você não me avisou?”. E ela respondeu: “Ah, pai não acredito que você ia pegar aquele pente do chão”. Foi um dos poucos momentos de descontração dela, em meio ao cansaço e à fraqueza que aumentava a cada dia. Quando retornamos à tarde para o exame da contra-prova lá estava o pente, abaixei-me e peguei-o sob o olhar repreensivo dela. Fiz aquilo para acentuar a descontração e foi bom ter feito, ela passou uns dois dias rindo disso. Tenho o pente guardado até hoje, e espero jamais perdê-lo. Será sempre um objeto a despertar a lembrança dos últimos momentos de minha filha.
O fim de semana foi angustiante, depois até nos perguntávamos se não teria sido melhor que ela já tivesse sido internada desde aquele momento. Em casa, víamos sua fragilidade aumentar, e o cansaço tornava sua respiração difícil fazendo com que constantemente tivéssemos que aplicar aerosol para amenizar a situação.
No sábado fomos realizar outro exame. Uma ultrasonografia, solicitada pelo infectologista para verificar a situação do fígado, rins e baço. Como da vez anterior, da crise provocada pelos vírus, esses órgãos já estavam ficando bastante inchados. Retornamos para casa e aguardamos para o segundo exame com o infectologista. Isso aconteceu ás 13 horas da segunda-feira. Logo após olhar atentamente os exames ele nos disse que era necessário a internação imediata da Carol e acreditava não ser um problema afeito à sua especialidade. Segundo ele tratava-se um problema originado no sangue e que, portanto, ela devia estar sob os cuidados de um hematologista.
No mesmo momento fizemos um contato com o hematologista que a estava acompanhando desde sua última internação, acertamos a internação no Instituto Ortopédico de Goiânia (IOG), onde havia uma unidade do INGOH (Instituto Goiano de Oncologia e Hematologia). Mesmo não sendo aquele hospital e unidade hematológica do seu hematologista, ele não impôs dificuldade, concordando com o local e dizendo que daria o acompanhamento necessário. Como lá já existia uma hematologista da confiança do médico infectologista, a Carol passou então a ser acompanhada pelos dois, o que consideramos positivo apesar do hospital não ser adequado ao tratamento de criança. Mas ela ficou internada em uma unidade do INGOH e recebeu o tratamento necessário.
A internação dela se deu na segunda-feira mesmo, portanto, ao final da tarde. Ficamos preocupados porque nosso plano de saúde só garantia o atendimento em enfermaria e ela foi encaminhada para uma que tinha como companhia duas senhoras, o que dificultava minha presença tornando necessário um sobre-esforço da Celma, visto que eu não poderia passar a noite com ela. Fiz alguns contatos, inclusive junto à direção do plano de saúde, alertando para a gravidade do quadro dela e tentando encontrar uma forma de transferi-la para um apartamento. A resposta do Plano de Saúde foi imediata e positiva. Contudo nos esbarramos em outra dificuldade: não havia apartamento disponível. Mas no dia seguinte, até mesmo em função do seu estado, ela foi transferida para uma sala especial do INGOH, adequada para o tratamento oncológico.
Quando cheguei em casa, após deixar Celma e Carol no Hospital fui dar a notícia para minha mãe, que estava morando conosco e era super-apegada à Carolina e à Domícia, nossa secretária do lar e que trabalha conosco desde o nascimento de nosso primeiro filho, Iago. Portanto cuidava também da Carolina desde que ela nasceu e as duas se gostavam muito. Eu tentava me  segurar, para não dar a impressão que não estava acreditando em sua recuperação. De fato eu acreditava que teria minha filha de volta, mesmo que com dificuldades para um tratamento de uma doença terrível como a leucemia, que eu já passava a considerar uma hipótese provável. Mas lutava também contra pensamentos furtivos que insistiam em me levar para o desespero de quem vê a filha à beira da morte. Consegui transmitir a notícia com tranqüilidade. Minha mãe recebeu aparentemente bem, ela fervorosamente católica, sempre se apega à sua crença para acreditar no melhor, mesmo que esse melhor seja em última instância definido por Deus. Isso de certa forma a confortava naquele momento. O pior ela viria a sentir posteriormente, no retorno à uma rotina que já não mais contaria com a presença daquela figurinha que estava sempre presente ao lado dela. Da mesma forma reagiu a Domícia, com um grau maior de apreensão, agravando a sua situação emotiva quando viria saber da ida da Carol para a UTI.
Já era terça-feira e os novos exames de sangue feitos ali mesmo comprovaram a gravidade da situação da Carol. Imediatamente ela passou a receber transfusão de sangue, sua imunidade caía assustadoramente, o cansaço aumentava e os médicos passavam a demonstrar temor com possíveis sangramentos. Ainda nesse mesmo dia eles consideraram a necessidade dela ir para um hospital que tivesse uma Unidade de Terapia Intensiva adequada para uma criança de sua idade.
Lembro-me bem quando recebi um telefonema da Celma dizendo que os médicos consideravam a hipótese dela precisar ir para uma UTI. Eu estava em meu serviço, na Universidade, e imediatamente senti um forte aperto no coração, não pude conter minhas emoções e após desligar o telefone desabei em um choro convulsivo. Passou rapidamente por minha mente um filme me lembrando de dois casos recentes envolvendo um amigo de longa data, Gilson Bueno, que ficou quase trinta dias na UTI e não sobreviveu a um AVC, e a uma grande amiga e colega da Universidade, Verbena Lisita, que contraiu uma bactéria e teve que ser internada às pressas em uma UTI. Também não sobreviveu, vindo a falecer pouco mais de 24 horas depois de ser internada. Lembrei-me também de meu pai, que após uma luta desesperada contra o câncer, e no final dessa luta ter passado 28 dias internado, também não sobreviveu após ser transferido para uma UTI. Acompanhava-me, portanto, péssimas lembranças sobre Unidades de Terapias Intensivas, embora sendo essa uma unidade de tratamento para melhor acompanhar o paciente em estado grave. Não foi o que aconteceu em três situações que envolviam pessoas queridas, sendo uma delas o meu pai. Era natural que a minha reação fosse de desespero, temor e medo do que estava por vir.
Mesmo considerando não ser urgente a transferência para a UTI, os médicos julgaram necessário buscar um hospital onde existisse esse tipo de unidade voltada para o atendimento de crianças. Iniciou-se, então, um contato com o Hospital da Criança visando uma mudança imediata de hospital. Contudo, mais um problema nos deixaria angustiado. Não havia leito disponível no Hospital da Criança, nem enfermaria, nem apartamento. Embora ainda não fosse necessário a UTI percebia-se o agravamento da situação da Carol primeiro porque a transfusão não estava recompondo as taxas sanguíneas a sua normalidade, mas já fazia-se necessário o uso constante do oxigênio em função da falta de ar que ela estava sentindo.
A partir da terça-feira o quadro agravou-se mais aceleradamente, a falta de ar fez-se acompanhar por uma dor permanente que ela reclamava em seu braço direito, na altura do ombro. Provavelmente já era um dos sintomas apresentados pela doença, ainda não diagnosticada. Na quarta-feira pela manhã o médico nos comunicou que havia conseguido uma vaga em enfermaria no Hospital da Criança. Isso nos deixou mais tranqüilos, embora apreensivos com a possibilidade dela ter que ir para UTI.
Tentávamos anima-la, mas ela estava sentindo muito incômodo com a máscara de oxigênio, e nos preocupava o aumento da ânsia de vômito, o receio ela que viesse acompanhado de sangramentos. A máscara prejudicava também seu cabelo, já alguns dias sem poder lavá-lo. E isso também a incomodava. Fui ao supermercado comprar shampoo para que ela pudesse lavar o cabelo, algumas presilhas para mantê-lo preso e água mineral. Equivocadamente, pela pressa comprei água com gás. Como era típico da Carolina, ela não perdoou e reclamou da minha distração. Lamentavelmente ela não faria mais uso desses objetos, por isso, jamais esquecerei o que comprei naquele dia para ela.
Providenciamos através do plano de saúde uma ambulância para transferi-la de hospital. Mas ela precisava ainda realizar mais alguns exames, desta feita na medula óssea, para identificar se a causa mesma da sua doença era a leucemia. Essa transferência ficou para o período da tarde e isso permitiu que eu pudesse levar o Iago, seu irmão, para visitá-la. Ele ainda não tinha ido ao hospital desta vez. Ao mesmo tempo, acertamos com a médica um exame de sangue no Iago, para testar a compatibilidade da medula óssea, já tentando prevenir para a necessidade de transplante, caso desse positivo o exame de Leucemia. Nesse dia, além da visita do Iago, ela recebeu também outras visitas, dentre elas a do seu tio Bosco. Para ele, ao contrário do que dizia para nós, ela disse que não estava se sentindo bem. Mas, mesmo assim, conseguiu dar aquela que seria a sua última risada, quando o Iago imitou os personagens do programa humorístico “Bofe de Elite” e brincou com o fato de ter tantas coisas no quarto para ela comer e como ela não comia, ele iria pegar. Ficamos felizes por vê-la sorrir, mas seria seu último sorriso.
Enquanto ela era transferida para o Hospital da Criança eu levei o Iago para realizar o exame de compatibilidade. Depois a Celma me disse que já na ambulância Carolina virara-se para ela e fez um comentário sobre mim, dizendo que agora eu ficaria satisfeito porque lá havia uma máquina de café. Ela sempre se lembrava de quando estivera internada no mês de junho e do meu vício de tomar café. Quando era meus momentos de ficar com ela eu sempre me afastava por alguns minutos, e ela já sabia: eu me dirigia à entrada do hospital para pegar um cafezinho numa máquina automática de café expresso. Lembro-me também que, antes de sair com Iago virei-me para ela e lhe disse: “força minha guerreira, você vai sair dessa”. Ela balançou a cabeça e deu um sorriso triste, cansado. “Quem você gostaria de ser nesse momento, a Mulan ou Pocahontas?”, insisti, tentando levantar seu ânimo. Ela respondeu: “Mulan”. Fiquei satisfeito com a escolha, dei-lhe um beijo e saí apressado, para que ela não percebesse meu estado emotivo.
Depois do exame feito fui para casa deixar o Iago para em seguida ir ao Hospital da Criança, deixar algumas coisas que era preciso transferir, objetos pessoais da Carolina. Quando estava me dirigindo para lá recebi uma ligação da Celma. Havia ficado no outro hospital sua sandália. Deixei os objetos lá e fui imediatamente buscar porque era uma sandália que havia sido presenteada pela avó e ela sentiria bastante sua perda. Não tive dificuldade em achá-la. Mas quando retornei já não encontrei mais minha filha no leito da enfermaria. A mãe me aguardava, sem muita ação, e com o olhar abatido me avisou que ela teve que ser transferida para a UTI, porque se agravara o quadro respiratório. Não tínhamos o que fazer, mas no peito comprimia uma dor que relutava em despontar. Brigávamos internamente entre o otimismo necessário, de quem não quer acreditar que a morte vá vitimar uma criança e o pessimismo de quem vive traumatizado por experiências negativas de UTIs., e, claro, por ver uma filha nossa submetido a um tratamento médico que é visto como a última tentativa de se escapar de um quadro de intensa gravidade.
É doloroso lembrar em detalhes de cada momento de angústia que passamos, mas desde a sua entrada na UTI até o momento em que a morte a levou de nós, vivemos as horas, minutos e segundos mais desesperadores e doloridos de nossas vidas. Porque, diferente de antes, não podíamos mais acompanhar nossa filha, o horário em UTI para visita é bastante rigoroso e não é permitido acompanhamento. Foram 24 horas de medo, angústia, tensão e desespero. Quando saíamos recebemos visitas de alguns amigos. Um deles médico, colega de UFG e professor no Hospital das Clínicas, outra era jornalista da ADUFG, mas tinha um irmão médico que trabalhava também naquele hospital, e em seguida chegou também uma médica e colega da UFG, também professora do Hospital das Clínicas, que já havia sido contactada por amigos da Associação dos Docentes da UFG, da qual eu já havia sido presidente. Foi dito a ela da gravidade da doença de minha filha e ela gentilmente se dispôs a vê-la na UTI. Quando ela se encontrou conosco, juntamente com esses outros amigos, mostrei a tabela com todos os exames que havia organizado. Ela foi bastante direta, embora cuidadosa ao falar. Mas foi clara ao dizer da gravidade da doença da Carol, e quando dissemos saber da possibilidade de ser leucemia ela nos disse que era 99% as chances disso ser confirmado. Mas ela ficou admirada com o quadro apresentado pelos exames e reconheceu que eles indicavam, de fato, que a situação dela em junho apresentava todos os indicativos de virose. E se espantou com a maneira como se deu a recuperação, diferente da leucemia.
Fomos para casa naquele dia sentindo o chão abrir-se aos nossos pés. Não adiantava ficarmos no Hospital, pois não poderíamos estar ao seu lado. Foi uma longa noite em que temíamos pelo toque do telefone. Por mais que lutássemos internamente para pensarmos sempre numa superação daquela situação por parte de nossa filha, era inevitável que também pensássemos no pior.
Na manhã seguinte nos dirigimos para o hospital. Em casa ficaram apreensivos, minha mãe, Iago e Domícia. Quando chegamos ao hospital tentamos entrar para vê-la, mas não nos foi permitido, devido à rigidez do horário de visita em UTI. A responsável pelo setor disse que somente no horário estabelecido poderíamos visita-la: às 12:30, e somente por meia-hora. Perguntei se a Avó e o padrinho também poderiam vê-la, ela respondeu que somente em caso de extrema gravidade.
Não nos conformamos. Embora o boletim da noite anterior indicasse um quadro estável, precisávamos ver nossa filha. Tentamos por vários caminhos antecipar a visita. Àquela altura já tínhamos ao nosso lado uma grande quantidade de amigos, além dos tios dela, meus irmãos. O irmão da Celma estava viajando. Tivemos também como apoio importante, em vários sentidos, o pessoal da ADUFG, inclusive tentando nos ajudar a encontrar uma maneira de entrarmos na UTI, através do contacto com a direção da Unimed e por meio dela a direção do Hospital. Depois de vários contatos, por diversos meios, conseguimos autorização para ver nossa pequena Carol, mas o quadro que observamos não gostaria de descrever. Falamos com ela, mas, sedada e com tubos de oxigênio, sua capacidade de nos compreender era muito pouco. Mas sentimos que ela reagia a nossa presença, tanto que nos foi solicitado para evitar que ela não se emocionasse, pois isso faria com que ela ficasse muito inquieta e a prejudicasse. Quando saíamos, a responsável pelo setor virou-se para mim e me disse: “agora, se o sr. quiser pode trazer a avó e o padrinho”.
Essa frase foi suficiente para que o mundo desmoronasse sobre minha cabeça. Descemos da UTI em prantos, o quadro que vimos e a frase dita nos indicava que nossa filha teria poucas chances de sobrevivência. Decidi não mais subir, não queria aquela imagem permanentemente em minha cabeça. Aquele foi um dos dias mais longos de minha vida. A Celma ainda subiu outras vezes, junto com o padrinho, além de outros colegas médicos e enfermeiras. A expressão de cada um que voltava da visita confirmava a gravidade da situação. Quando um amigo médico, com o qual eu sempre trocava opinião sobre o quadro dela, voltou da UTI após vê-la e ao invés de conversar comigo encostou-se em uma coluna e ficou em silêncio fui conversar com ele. Perguntei o que ele achava da situação e a única coisa que me lembro dele ter respondido foi que precisávamos torcer para que ela não tivesse sangramento pelo pulmão, pois ela correria o risco de afogar-se em seu próprio sangue.
Decidi, naquele momento, que deveria vê-la. Fiz isso, juntamente com a Celma ao cair da noite. Passava das 19 horas quando subimos à UTI para aquele que seria o último contato com nossa filha em vida. Já sabíamos, então, que sua doença era mesmo a Leucemia, de um tipo raro. O diagnóstico chegara até nós no meio da tarde, pela confirmação do laboratório. Na mesma tarde ficamos sabendo que o exame de compatibilidade do sangue do Iago deu negativo. Nesses casos, embora o irmão seja o que tem maior probabilidade, o percentual é de em torno de 25% de que isso ocorra. Os médicos já haviam nos explicados quais seriam os procedimentos: primeiro, a Carol teria que sair da UTI, em seguida seria necessário uma recomposição de seus níveis sanguíneos, para depois iniciar um tratamento quimioterápico e nos dedicarmos à busca de um doador compatível de medula para proceder a um transplante. Após essa fase, havendo o transplante, o acompanhamento necessário para verificar se haveria ou não rejeição. E o acompanhamento para o resto da vida.
Vimos nossa filha viva pela última vez às 19:30 do dia 13 de dezembro. Descemos abatidos e fomos convencidos pelos colegas de que nada adiantaria ficarmos ali, que deveríamos ir para casa descansarmos. Concordamos e chegamos em casa ainda com a imagem de sofrimento da Carol na UTI. Procuramos disfarçar a emoção para deixarmos minha mãe, Iago e Domícia mais tranqüilos. Mais tarde, por volta das 23 horas, imediatamente após eu haver terminado de jantar – a Celma estava na Igreja participando de uma novena dedicada à Carol, a pedido da nossa vizinha Eunice – chegaram dois amigos, a Cláudia, uma grande amiga e também médica que sempre nos ajudava a entender os exames, e o Orlando, um companheiro de longas datas e que havia pouco tempo perdera sua esposa e nossa amiga, Verbena. Eles se encarregaram de nos transmitir uma notícia que nenhum amigo gostaria de dar a outro. Nossa filha não resistira e se foi, tendo como causa de óbito insuficiência respiratória. Não sei dizer como me senti. Não sei dizer como me sinto. Não sei o que aconteceu à minha volta. Só sei que um pedaço de meu corpo foi dilacerado. Um vazio tomou conta de mim, as lágrimas demoraram a sair, e a única coisa que eu conseguia dizer era que eles estavam de brincadeira comigo. Mas infelizmente era verdade, uma brutal, cruel e estúpida verdade. Um filho se foi diante da impotência de seus pais. Não tínhamos como salvá-la, mas eu daria minha vida para isso. Assim é que deve ser, os pais darem a vida pelos filhos, afinal, é isso que fazemos desde o momento em que nasce nosso primeiro filho, passamos a viver em função deles. Deixa de ser a MINHA vida e passa a ser a NOSSA VIDA.

No dia 13 de dezembro de 2007 perdemos um pedaço de nós mesmos. Carolina se fora em vida, e nossas vidas jamais serão como antes.

(*) Esse texto fez parte do livro que publiquei em dezembro de 2008, um ano depois da morte de minha filha. Originalmente o título dessa crônica foi “Última internação da Carol”. O título do livro, já esgotado, é: “DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU”.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

ARAGUAIA: DEPOIS DA GUERRILHA, OUTRA GUERRA – A Luta pela terra no Sul do Pará, impregnada pela Ideologia da Segurança Nacional (1975-2000)

O programa de Pós Graduação em Geografia convida a todos para participação na Defesa de Tese de ROMUALDO PESSOA CAMPOS FILHO, intitulada: ARAGUAIA: DEPOIS DA GUERRILHA, OUTRA GUERRA A Luta pela terra no Sul do Pará, impregnada pela Ideologia da Segurança Nacional (1975-2000), a ser realizada no dia 22/11/2013 às 14h, no Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás.

Resumo
Esta tese analisa as transformações que ocorreram na região Sul do Pará no período posterior à Guerrilha do Araguaia. Os estudos sobre a região tiveram como objetivo entender a maneira como o Estado brasileiro, ainda sob o domínio dos militares, adotou políticas públicas para exercer o controle efetivo sobre uma região recém-saída de um movimento guerrilheiro, cuja repressão ao mesmo afetou duramente a população, com muitas pessoas tendo sido presas e submetidas a prisões e torturas. E a delimitação de um poder paramilitar construído pelo Major Curió. A caracterização da região visa apresentar as condições de um ambiente inóspito, profundamente transformado por desmatamentos descontrolados para a comercialização clandestina de madeira, e posteriormente, tendo como objetivo transformá-la para a produção agropastoril. As categorias geográficas, região, território e lugar foram conceitualizadas e compreendidas em suas peculiaridades, sendo fundamentais na análise do objeto de pesquisa. Estuda as ações do Estado brasileiro, que define a região, a parte oriental da Amazônia, como estratégica e, por meio de planos nacional e regional de desenvolvimentos tentaram exercer um controle sobre ela. Identificamos na pesquisa que as medidas adotadas seguiram os preceitos contidos na ideologia de Segurança Nacional, e por ela os movimentos sociais foram criminalizados. Comprovamos que os órgãos de informação, principalmente SNI e CIE, atuaram com muita ênfase para conter a organização camponesa e reforçaram o poder do Major Curió, que desde o final da Guerrilha do Araguaia constituiu-se no elemento chave da ditadura militar na região, na formação de um poder paramilitar e definindo um território extenso em que as ações foram duramente executadas mediante um temor do ressurgimento guerrilheiro. Analisa os conflitos que aconteceram depois da Guerrilha, fruto da luta camponesa para garantir a posse da terra. Fazendeiros, autoridades judiciais e policiais, grandes empresários aliaram-se às políticas implementadas nos planos da ditadura militar e transformaram a região em uma das mais violentas do País. Foi possível comprovar nossas hipóteses de que os agentes do Estado brasileiro agiram fundamentados em princípios definidos pela doutrina de Segurança Nacional, que transformava em inimigos internos aqueles que reagiram aos roubos de terras públicas praticados impunemente e com o apoio das autoridades. Assassinatos se sucediam, quando eram eliminadas lideranças sindicais, clericais e parlamentares, praticadas por pistoleiros e policiais a mando dos fazendeiros. Ao fim, as hipóteses comprovaram-se, na demonstração da existência de um poder paramilitar sob o comando do Major Curió, do uso da ideologia de Segurança Nacional para combater os que lutavam pela posse da terra e da execução de políticas que favoreciam aos grandes proprietários de terras e/ou empresas que investiram na região onde antes viviam famílias de camponeses. Concluímos que as ações do Estado brasileiro foram fundamentais para gerar as violências que caracterizaram a região diante de um temor obsessivo da possível reorganização do movimento guerrilheiro. Para tal, utilizou-se teoria abalizada centrada em obras de autores clássicos da geopolítica, tanto em suas origens quanto dos estudos brasileiros, neste caso daqueles vinculados às doutrinas militares geradas em torno da Escola Superior de Guerra (ESG); as pesquisas feitas anteriormente na região, que analisaram o fenômeno da ocupação como frentes de expansão e pioneira em trabalhos que se tornaram clássicos e os relatos de personagens que viveram o cotidiano da violência e estiveram marcados para morrer

Palavras-chaves
Guerrilha do Araguaia; Doutrina de Segurança Nacional; Ideologia de Segurança Nacional; Ditadura Militar; Violência no Sul do Pará


domingo, 15 de setembro de 2013

A GUERRA DEPOIS DA GUERRILHA DO ARAGUAIA

ENTREVISTA COM O PROF. ROMUALDO PESSOA
Por Osvaldo Bertolino, no Portal da Fundação Maurício Grabois
Publicado 12.09.2013
O professor Romualdo Pessoa Campos Filho é um dedicado pesquisador da Guerrilha do Araguaia. Esse baiano de Alagoinhas, de 56 anos de idade, se embrenhou na região e saiu de lá com um farto material para a sua pesquisa que resultou na dissertação de mestrado publicada na obra “Guerrilha do Araguaia – a esquerda em armas”, já em sua segunda edição pela editora Anita Garibaldi. Agora ele volta ao tema para a sua tese de doutorado, que deve ser defendida em novembro e igualmente se transformar em mais livro sobre o tema.
Formado em História pela Universidade Federal de Goiás, após uma ativa passagem pelo movimento estudantil, tendo sido diretor da UNE entre os anos de 1984 e 1986, Romualdo Pessoa Campos Filho é professor de Geopolítica no Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) da mesma Universidade e membro da Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), vinculada ao Arquivo Nacional.
Na entrevista a seguir ele comenta seu novo trabalho.
Professor, fale um pouco sobre mais esse trabalho abordando a região onde atuou a Guerrilha do Araguaia.
É o meu projeto de doutorado, no qual dou continuidade ao estudo da região onde aconteceu a Guerrilha do Araguaia. Como a minha dissertação de mestrado foi sobre a Guerrilha, publicada em livro, agora eu tento entender como os camponeses viveram nessa região marcada pelo movimento guerrilheiro. Busco exatamente compreender de que forma a repressão, que permaneceu na região, se abateu sobre aqueles moradores. E com isso eu fui investigando e descobrindo que boa parte dos conflitos que existiram ali teve a terra como elemento principal da disputa, mas que por trás disso havia muito mais.
À medida que eu ia estudando a pesquisa documental a que tive acesso — muitos documentos do Serviço Nacional de Segurança (SNI), do Centro de Informações do Exército (CIE) e do Centro de Inteligência da Aeronáutica (Cisa) —, fui percebendo que havia uma rede densa de informações e fui estabelecendo uma relação com a maneira como a área estava sendo monitorada. A ação dos militares se dava através do serviço que era desenvolvido pelos agentes de informações comandados pelo major Sebastião Curió, que atuou na repressão à Guerrilha.
Era uma ação articulada com o poderoso esquema de poder montado na região pelo Curió?
Sim. Depois da Guerrilha, o Curió criou um poder praticamente paramilitar, que era escorado nas ações dos agentes do serviço de informações, o SNI, o CIE e a Cisa, e em certa medida o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Por trás de cada um desses conflitos, portanto, havia a presença de agentes monitorando, acompanhando, dando as indicativas e as coordenadas sobre quem estava por trás deles. E sempre nesses relatos aparecia o receio desses militares que comandavam os serviços de informações de que havia a presença de remanescentes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) com atuação muito próxima aos camponeses. Havia, de fato, mas os objetivos eram outros.
Ao lado do PCdoB estavam os padres vinculados à Teologia da Libertação, das Comunidades Eclesiais de Base, que faziam trabalho conjunto com os camponeses. E isso incomodava os militares sobremaneira. Em seus relatórios eles expressavam sempre que tanto os padres quanto os comunistas estavam reorganizando o movimento guerrilheiro. Portanto, em toda a ação que gerou assassinatos de camponeses em vários conflitos eu fui identificando que havia um acobertamento muito forte desses órgãos de informações, pelo poder do Curió.
Esse aparato esteve presente nas eleições do Sindicato de Conceição do Araguaia em um momento crucial, no começo dos anos 1980, quando estava surgindo uma grande liderança, Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, que foi assassinado. Logo em seguida foi assassinado outro dirigente sindical, João Canuto, militante do PCdoB. E assim sucessivamente. Aconteceu também com os padres Aristides Camio, Francisco Gouriou e Josimo Moraes Tavares. Ou seja: os padres que atuavam ali também estavam na lista dos marcados para morrer.
Mas o principal alvo, o que os militares mais temiam pela ação que desenvolvia e pela organização que efetivava, inclusive resgatando antigos membros do PCdoB que estavam praticamente perdidos depois de participar da Guerrilha, era Paulo Fonteles. Na maioria dos documentos que eu tive acesso, ele era o nome que mais apareceu. Havia um temor muito grande dos militares em relação à atuação e à ação de Paulo Fonteles. E ele terminou sendo assassinado, em 1987.
Pode-se caracterizar esses acontecimentos como legado da Guerrilha?
Sim. Toda a região adquiriu um poder de reação muito forte, de efetiva participação dos camponeses. Muitos dos quais conviveram com os guerrilheiros e estiveram lado a lado em suas roças. Muitos dos quais foram presos também. O líder da revolta da comunidade dos Perdidos, em São Geraldo do Araguaia, em 1976, era amigo dos guerrilheiros. Tinha a roça dele ao lado da dos guerrilheiros. Um dos enteados dele se tornou militante do PCdoB. E havia também a presença de um antigo militante do Partido que fora para lá como base de apoio dos guerrilheiros, que era o Amaro Lins. Ele estava atuando ali na região dos Perdidos e foi reencontrado por Paulo Fonteles.
Mais tarde Paulo Fonteles foi um dos responsáveis pela organização da caravana dos familiares dos desaparecidos no Araguaia que percorreu a região em busca de informações sobre seus parentes. Então, a figura de Paulo Fonteles é um elemento marcante, forte, nesse período pós-Guerrilha. E, por isso, ele passou a ser visado. O temor dos militares, presente em todos os documentos aos quais eu tive acesso, era que ele estivesse preparando um novo movimento guerrilheiro; quando, na verdade, claro, o que havia era uma luta intensa dos camponeses pela manutenção de suas posses contra a grilagem, contra o poder dos grandes fazendeiros que constituíam milícias, que contralavam pistoleiros e tudo mais. 
Era, então, uma neurose dos militares injustificável.
Havia uma luta muito intensa ali. E nessa luta o PCdoB esteve presente, assim como a Igreja com as Comunidades Eclesiais de Base. Mas a neurose dos militares trazia consigo o fato de que a Guerrilha poderia estar sendo reorganizada. Por trás de cada um daqueles assassinatos que aconteceram ali, por trás de cada uma das grandes repressões, estava a Polícia Federal atuando ao lado de pistoleiros. Eu tenho comigo, portanto, que boa parte dessas atuações não tinha o objetivo de resolver os problemas do conflito de terras. Nem a atuação do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins (Getat), que foi criado para isso, mas que não cumpria esses objetivos.
O objetivo era eliminar possíveis lideranças que se destacassem na região e que poderiam constituir empecilhos às políticas que estavam sendo desenvolvidas pelos militares. Principalmente pelo poder do major Curió, que controlou a região da Guerrilha e depois abriu um braço de poder em direção à Serra Pelada, que viveu sob seu domínio por muito tempo. Acredito que possa ser algo difícil de ser comprovado, mas fácil de ser compreendido quando a gente analisa esses documentos.
O senhor acha que essa neurose perpassou o tempo e chegou a casos como os envolvendo o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST)?
É possível que sim. Porque a questão do MST e dos conflitos que aconteceram ali, como o caso de Eldorado dos Carajás, têm a ver também com o esvaziamento de Serra Pelada. Serra Pela, em um primeiro momento, foi um atrativo, serviu para que os militares atraíssem posseiros para o sonho do ouro e tirassem eles do meio dos conflitos. Só que quando o ouro se esgotou havia ali em torno de cem mil pessoas e boa parte delas permaneceu na região. Tornaram-se pistoleiros, foram invadir terras ou participar de acampamentos do MST.
Essas pessoas também passaram a ser monitoradas pelos órgãos de informações. A ação repressiva que viria em consequência das ocupações, dos trabalhos que foram sendo desenvolvidos pelos camponeses, tinha não só o objetivo de atender, digamos, as pressões dos fazendeiros; era para conter explosões sociais em uma região já marcada pelo fato de ter acontecido a Guerrilha do Araguaia. O receio era ligado à estratégica que eles sempre tiveram para a Amazônia, que sempre foi um elemento de preocupações dos militares dentro daquilo que se chama de Doutrina de Segurança Nacional. A preocupação com as fronteiras e principalmente com a defesa da Amazônia.
Soma-se a isso o fato de ali ao lado ter os maiores projetos de mineração do Brasil, concentrações enormes de riquezas minerais e uma montanha de ouro que ainda não foi completamente explorada. Nos dias de hoje ainda há embates, muitos violentos, como os entre antigos mineradores por conta do uso de máquinas no local, a exploração em grande escala. Como se vê, é uma região complicada do ponto de vista da geopolítica. E os militares sempre tiveram essa questão presente. Toda essa neurose, essa obsessão.
Não tem um aspecto positivo nessa visão geopolítica dos militares?
Olha, no aspecto do controle das fronteiras sim. O problema é que com a Doutrina de Segurança Nacional ela gera uma concepção extremamente maniqueísta. E dentro dessa visão da luta contra o inimigo externo e interno há sempre a preocupação em conter o comunismo. Essa neurose foi construída tendo a preocupação com a Amazônia, mas vendo o comunismo como seu inimigo principal. O que do ponto de vista lógico, estratégico, e de quem de fato monitora a região e tem interesse por ela, é completamente equivocado. É o inverso, o oposto; a preocupação com aquela região e o seu monitoramente sempre se deu a partir dos Estados Unidos.
O senhor acha que os militares hoje ainda têm essa neurose anticomunista, essa propensão a se aproximar dos interesses norte-americanos?
Penso que não. Muito embora a Doutrina de Segurança Nacional ainda esteja presente no imaginário dos militares. Não só brasileiros. Essa doutrina fomenta a política externa dos Estados Unidos. Mas hoje eu vejo de forma diferente. Até o começo dos anos 2000, sim, ainda estava bastante presente entre os militares brasileiros.
O senhor chegou até esse ponto na pesquisa?
O foco do meu estudo vai até mais ou menos o ano 2000. Constato que essa neurose vai se enfraquecendo à medida que novas gerações de militares assumem e aqueles que carregavam esses preceitos vão indo para a reserva. Tanto que o foco de grande resistência às políticas progressistas adotadas no Brasil está presente no Clube Militar, em áreas de reservas desse oficialato. O que não quer dizer que não exista esse tipo de pensamento. Eles estão lá. Acredito que não são dominantes como eram antes.
Isso foi muito ruim para a região. Porque eles acabaram adotando uma política inversa àquela que planejaram inicialmente, na década de 1970, que era ocupar a região com camponeses, com migrantes. Modificaram isso a partir do final da década de 1980 e abriram a Amazônia para as grandes empresas, para os grandes fazendeiros, para grandes conglomerados agropecuários e até para grandes grupos financeiros. Bancos passaram a investir na Amazônia. Multinacionais, como a Vokswagem, passaram a investir na Amazônia.
Atrás de lucros?
Aparentemente para ter controle sobre as terras; parte delas para a criação de gado. A terra se mostrou infértil para a grande  produção agrícola. Ela dá certo para a agricultura tradicional. Mas não para essa grande agricultura que rompeu o cerradão. Prevaleceu a criação de gado em enormes fazendas, de onde foram expulsas quantidades muito grande de pessoas, antigos posseiros. Essa mudança no foco da política por conta da neurose criada foi a responsável por transformar o Sul do Pará e boa parte da Amazônia em uma terra de pistoleiros, de grileiros. Uma terra sem lei, que tinha por trás o reforço da Doutrina de Segurança Nacional, que transformou aquilo ali em um Frankstein. E que é responsável pelo grande atraso existente até hoje, uma região em que as terras estão nas mãos de grandes latifundiários.
Tem previsão para terminar o trabalho?
Acredito que em novembro faço a defesa da tese. Pretendo entregá-la no mês de outubro para a banca e espero fazer a defesa em novembro para a obtenção do grau de doutor.
A ideia é ter um segundo livro sobre o tema Guerrilha do Araguaia?
Na tese anterior eu trato da Guerrilha em si; fiz como dissertação de mestrado. O objetivo agora é dar continuidade à produção anterior. O título da tese provavelmente vai ser “Araguaia depois da Guerrilha — outra guerra”. Será exatamente isso: esse olhar sobre a região tendo como foco a Doutrina de Segurança Nacional, que vai impregnar a ação dos militares ali e como consequência o surgimento dos conflitos, dos quais em alguns deles os camponeses agiram de fato com tática de guerrilha. O que levou os militares a imaginar ser o surgimento de novas guerrilhas, com os comunistas por trás. De fato, os comunistas estavam por trás, assim como a Igreja progressista, mas no apoio à luta dos camponeses por suas terras.
Não cabia mais a organização de guerrilha...
Não era esse o objetivo, até porque o Brasil já estava passando por um processo de transição, com o apoio do PCdoB. Mas em 1986 esses remanescentes da espionagem, dos serviços de informações, ainda soltaram relatórios dizendo que os comunistas estavam preparando uma nova guerrilha no Sul do Pará. O que é inverossímil


Leia também:
Veja o programa "Linha direta" sobre a violência no Sul do Pará
http://www.youtube.com/watch?v=ppe6at7A0cM

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

EUA E PAÍSES EUROPEUS AMEAÇAM BOMBARDEAR A SÍRIA.

ESSE FILME É REPRISE.

Já disse Karl Marx, ironizando os que diziam que a história se repete: ela se repete "da primeira vez como tragédia, da segunda vez como uma farsa".
Foto: site Carta Maior
EUA e países europeus ameaçam atacar a Síria. Já vimos esse filme, diversas vezes. Só para avivar a memória, uma matéria do jornal O Estado de São Paulo (para não deixar duvida quanto a abordagem ideológica, segue link abaixo) relembra a farsa das armas de destruição em massa, que justificou a invasão do Iraque há dez anos. 
As bolsas despencaram em todo o mundo só com essa notícia do possível, e provavelmente eminente, bombardeio á Síria. Resultado: os grandes investidores, especuladores contumazes, se aproveitam das baixas geradas pelo medo da guerra, e compram ações em seus preços em queda.
Os EUA esperaram o momento adequado, a valorização do dólar. E se aproveitam de um ataque perverso, muito embora sem explicação sobre quem cometeu o ataque contra a população, podendo ser também uma ação de grupos terroristas, como a Al Qaeda, que lutam ao lado dos rebeldes sírios. Afinal, o governo sírio era sabedor de que se usasse esse tipo de armas estaria provocando as grandes potências. Uma armadilha? Quem sabe? Mas os velhos aliados não estão preocupados em obter essa resposta. Desejam uma guerra. A crise econômica exige uma saída. E a guerra é sempre uma saída para a crise. Vender armamentos é um ótimo negócio, as ações das empresas bélicas são as únicas que disparam nesses períodos.
Foto: EPA - Voz da Rússia
Acredito também que exista uma espécie de retaliação dos EUA à Rússia, pela concessão do visto a Edward Snowden (que denunciou o "big brother" estadunidense). Como se sabe, a Rússia, além de maior aliada da Síria, mantém uma base militar naquele país. A Única base militar russa no Mediterrâneo. Por outro lado, a Síria é o maior empecilho para se atingir o Irã por terra, via Mediterrâneo. Já que pelo Golfo Pérsico seriam alvos fáceis da Marinha iraniana.
Aliás, na semana passada foi confirmado por autoridades da CIA, que os EUA participaram no golpe de Estado que aconteceu no Irã em 1953. Quem sabe também não tem dedo da CIA nesse ataque em Damasco? A resposta pode não ser necessariamente uma teoria conspiratória. Qual o resultado desses ataques? Basta olhar para, a Líbia, o Iraque, o Afeganistão, e encontrará a resposta. Ou para o Egito, por um caminho diferente, embora de resultados igualmente trágicos. Enfim, os que sempre se colocam na condição de libertadores das tiranias são os antigos e atuais responsáveis pelo caos reinante no Oriente Médio. Da colonização, na descolonização e na globalização.


O DISCURSO "HUMANITÁRIO" ALIMENTANDO MAIS GUERRA, MAIS MORTES E ILUDINDO AS PESSOAS
Essa intervenção não é por direitos humanos, nem pelas vidas que estão sendo ceifadas em uma guerra estúpida. É pelo poder e hegemonia em uma das regiões estrategicamente mais importante da terra, pela riqueza que ela produz e pela necessidade de conter o avanço de potências regionais como a Rússia e o Irã.
Desde o século XIX geopolíticos britânicos e estadunidenses escreviam sobre a necessidade de criar um círculo no entorno do que era considerado como o "heartland" (ou o coração do mundo), a Rússia e as estepes asiáticas (Mackinder, geopolítico britânico). Dizia ele que quem controlasse essa região dominaria o mundo. Spykman (geopolítico) estadunidense concordava com Mackinder sobre o heartland (ou ilha-mundo), mas dizia que era preciso controlar as franjas que cercavam essa região (Rimland). Para Spykman para dominar o mundo não é preciso controlar diretamente o "coração", mas basta cercar o que ele chamava de "crescente interior". Depois da segunda guerra essa estratégia foi aplicada pelos EUA, principalmente com a criação da OTAN, e segue sendo assim mesmo depois da guerra fria.
A necessidade da guerra é por esse controle, então ameaçado pela eminência do Irã se armar atomicamente, pela recuperação da Rússia e pelo crescimento econômico da China. Ademais, a guerra sempre possibilita as economias, principalmente aquelas que estão distanciadas do centro do conflito (como os EUA, beneficiado geograficamente), se beneficiarem com o aumento da venda de armamentos. As armas enviadas pelos EUA e potências européias para alimentar a guerra civil na Síria, e outras, fomentam a indústria da guerra, são pagas pelos Estados em crise e destroem vidas em todas as partes do mundo.
O discurso humanitário é um engodo, difundido pela mídia para iludir incautos, ingênuos e alienados. Criticar isso não significa tomar partido em algum lado, mas demonstrar, em essência, o que está por trás dessa guerra. Nenhuma guerra  tem razões humanitárias. E uma guerra, e toda a estupidez que ela apresenta significa a falência da política. Não há bonzinhos nessa história, há justas e necessárias reações a governos ditatoriais e fascistas, mas os limites das fronteiras dos países devem ser respeitados. Os rebeldes que atuam na Síria são considerados terroristas fora dela, inclusive a AlQaeda que está se fortalecendo em meio à guerra civil, apesar do avanço sobre áreas dominadas por eles, pelo exército Sírio.
A PARCIALIDADE DA MÍDIA E A DESINFORMAÇÃO DOS JORNALISTAS
A mídia brasileira compra o peixe conforme ele é vendido pelos EUA. Os jornalistas brasileiros, em sua maioria, reproduzem os informativos do porta-voz da Casa Branca, e não se preocupam em investigar o que estão noticiando. Sequer buscam na história fatos semelhantes para desmascarar o poder imperial. Cedem a ele e reafirmam a total submissão aos seus interesses. Infelizmente não se pode criticar somente os grandes meios de comunicação. Os jornalistas, em geral, são desinformados sobre a geopolítica mundial.

O governo dos EUA não passou o "relatório" sobre o uso de armas químicas para a imprensa. E é estranho ele poder chegar ao número exato de 1429, mortos. Como isso foi conseguido diante do caos reinante na área bombardeada? Quem passou esses dados? Como a investigação foi feita e por qual lado? É possível que grupos terroristas que atuam entre os rebeldes possam ter usado uma estratégia terrorista para atrair o ocidente para a guerra civil síria. Porque se afirma aquilo que a Casa Branca deseja? Pode ter sido o governo Sírio o culpado? Tudo pode numa guerra, mas teria sido uma decisão burra, já que o governo sírio está ganhando a guerra e retomando posições importantes.

O discurso de Obama é parecido com o de Bush. Até hoje estão procurando as armas de destruição em massa do Iraque. Na Síria, de fato houve um ataque covarde à população, mas como confiar em grupos rebeldes sendo que em seu meio, cada vez mais forte, está atuante à Al Qaeda. Somente na Síria esse grupo não é terrorista? Todos os dias eles explodem bombas por lá. Isso se parece com a maneira como os Talibãs foram tratados pelos EUA no Afeganistão para expulsar os soviéticos. Ronald Reagan, então presidente os chamavam de "Guerrilheiros da Liberdade". O medo dos EUA, em verdade, é que esses armamentos químicos, sejam do lado do Assad ou dos rebeldes, possam ser usados em ações terroristas contra eles próprios. O discurso de defesa humanitária é "conversa fiada para boi dormir". Se eles atacarem possíveis depósitos de armas químicas, os efeitos colaterais podem ser pior do que o rastro de morte que eles deixaram no Iraque. Bombardear um país em guerra civil só fará aumentar o caos na região. E nenhum país tem o direito de fazer isso unilateralmente. Os resultados dessa estupidez são maiores do que a estupidez da própria guerra civil.

Em 2012 escrevi um artigo no Blog Gramática do Mundo sobre a crise na Síria. Segue o link logo abaixo:
No link do jornal Estadão a farsa preparada para justificar a invasão do Iraque: