domingo, 27 de maio de 2012

A GREVE DOS PROFESSORES NAS UNIVERSIDADES – UM DESABAFO!


Mais uma vez voltamos ao começo. Deparamos-nos com mais um movimento grevista nas universidades brasileiras. Mas é preciso entender melhor as razões dessa greve, que, a meu ver, vai além da necessidade de se pressionar o governo para termos uma melhoria em nossas carreiras.
Vou começar expressando claramente a minha opinião. Essa greve é absurda. Puro oportunismo. A Andes, um dos sindicatos de nossa categoria, quis dar o “pulo do gato”. Percebendo que as negociações sobre nossa carreira se direcionava para o final, podendo atender a maior parte de nossas reivindicações, quanto ao início e ao fim da carreira, de forma oportunista iniciou a partir das universidades menores, e em assembleias esvaziadas para a importância do fato, um movimento visando paralisar as atividades naquelas universidades onde ela ainda possui influência, e dessa forma pressionar as demais, que estão vinculadas ao Proifes.
Com essa estratégia, caso o ministro se dispusesse a negociar, a ideia que prevaleceria seria a de que a vitória da construção da carreira deveu-se a esse movimento. Isso é completamente falso, estávamos em meio a uma mesa de negociação, em que a contragosto a Andes foi forçada pelas circunstâncias a também participar, e, pelo seu feitio, de utilizar da greve como instrumento extemporâneo, com objetivos claramente políticos, aproveitou-se da lentidão do governo em cumprir o compromisso firmado no ano passado (somente implementado agora por meio de medida provisória) e deflagrou o tipo de movimento que sempre a caracterizou. A greve.
Ora, não se faz greve em meio a uma negociação. Greve é resultado de um impasse, das dificuldades em se abrir canais de negociações, e da impossibilidade de se obter resultados positivos que atendam às partes em discussão. O que deveríamos, pela experiência da demora do governo em cumprir os compromissos firmados é levar para a mesa de negociação uma data limite para termos nosso plano de carreira, e o compromisso de vigoração do mesmo a partir de 1º de janeiro de 2013. Haja vista que o prazo anterior foi prejudicado pela morte do principal articulador dessa mesa, o secretário executivo do Ministério do Planejamento, Duvanier Costa. E que seja garantida no acordo a equiparação de nossa carreira com a do Ministério de Ciência e Tecnologia. Caso até o final do prazo dado para apresentação do plano não tenha sido cumprido, aí sim, deveríamos radicalizar, a partir do início do próximo semestre. Mas, receio que essa estratégia oportunista, de deflagrar uma greve extemporânea, já tenha jogado por terra essa possibilidade.
Pelas informações passadas pelo nosso sindicato (Adufg), que tem acompanhado as negociações sobre a carreira, vários pontos complicados já haviam sido acordados. Houve um estremecimento nessas relações pela morosidade com que o projeto para incorporação de gratificação e de um reajuste (pífio) tramitava na Câmara dos Deputados. Paralisado nas mãos de um parlamentar inoperante, infelizmente de Goiás, o Deputado Jovair Arantes (PTB). Devido a essa lentidão, e já sabendo da insatisfação no meio universitário, o governo resolveu editar uma medida provisória. Mas um aspecto dessa medida desagradou uma parcela considerável dos colegas professores, aqueles que recebem gratificação por trabalhar em atividades insalubres.
Não que de imediato fosse haver uma diminuição nos ganhos. A redução dessa gratificação à metade, que poderia implicar em redução salarial, foi compensada por outra gratificação, evitando o impacto dessa diferença pelos próximos meses. Mas sua duração é por pouco tempo. Ocorre que essa é uma medida provisória, ainda será submetida à votação no Congresso, e é ali que se deve pressionar para alterá-la. Ademais, esse é também um dos pontos que está em negociação nas reuniões com os representantes sindicais e do governo, que discute a nova carreira, sendo, portanto possível de ser revertida quando da finalização do acordo, que deve ocorrer antes da extinção dessa nova gratificação de insalubridade. Portanto, nada que não possa ser revertido, mas absolutamente não se constitui em um pretexto para deflagrar uma greve cujas consequências são mais nocivas para nós, professores, e, principalmente para os estudantes, do que para o governo. Pelo menos nesse momento.
Assisti a uma entrevista na rede Globo, da representante da Andes, apontando um caos nas universidades, o velho discurso, dizendo que falta até papel higiênico, ridícula. A mídia, obviamente, agora dá vazão a essas críticas. Há interesses políticos. Mas como sempre, a crítica é direcionada para os investimentos nas universidades, quando o pano de fundo é o salário. Dessa forma ilude a opinião pública com mentiras sem ter a coragem de dizer claramente que o problema é sim, o salário. E não devemos ter pruridos em assumir isso, afinal nossos salários são os mais baixos dentre as carreiras públicas. Mas esse é um problema que estamos prestes a resolver, para isso há uma mesa de negociações em funcionamento.
Como a Andes percebeu que as negociações se direcionavam para uma carreira, senão 100% de acordo com o que queremos, pelo menos bem melhor do que atual, acelerou a preparação de uma greve. De tal forma que, se o ministro se dispõe a negociar, passará a idéia de que a vitória da construção da carreira foi dela. Quando isso não é verdade, a Andes sempre buscou o embate e nunca negociação.
Faço qualquer coisa para evitarmos que a greve seja deflagrada na Assembleia do dia 06/06, na UFG. Mas não movo uma palha caso isso seja aprovado. Farei igual à maioria dos indignados professores que não se dispõem a participar de absolutamente nada, reclamam de tudo, mas não tem coragem sequer de paralisar seus projetos de pesquisa e atividades de orientação na pós-graduação. E quando retornam as aulas não são repostas, nunca, da forma como deveria ocorrer em um calendário normal. E no final das contas o prejuízo é somente da graduação e dos planejamentos de nossas férias. Ficamos um, ou dois anos, como já aconteceu em épocas passadas, com um calendário desorganizado prejudicando nossos descansos.
Há um grande comodismo por parte da maioria dos colegas, que não participam das assembleias e se curvam às decisões de uma minoria que segue movida não pela indignação geral, mas por questões particulares e por motivações políticas. Quando se deflagra uma greve, então, essa maioria limita-se a acompanhar de longe o desenrolar dos fatos, mas permanecem atuantes em outras atividades nos seus laboratórios, principalmente em suas pesquisas, cujo prazo não pode ser prorrogado. Bem como as orientações de pós-graduação, que devem cumprir também prazos determinados.
A decisão do Ministro foi a de não abrir diálogo com os grevistas. Mas isso era esperado. Esse tem sido o comportamento dos governos frente às greves. Principalmente quando já existe uma mesa de negociação fazendo isso, com a participação, inclusive, e principalmente, das entidades sindicais. É claro o caráter oportunista e diversionista do movimento. O resultado vai ser o mesmo da última greve dos servidores e também das últimas que a Andes liderou, e a primeira medida do ministério foi exatamente suspender as reuniões da mesa de negociação.
Neste domingo, na coluna do jornalista Elio Gaspari, já há uma crítica ao movimento, afirmando que o “piquete” realizado pelas lideranças do movimento só foi suficiente para parar algumas unidades da Universidade Federal Fluminense por um dia, com muitos professores seguindo suas atividades normalmente.
A propósito, tenho um salário menor do que da maioria dos professores, muitos já como Associados, mais um degrau de nossa carreira conquistado com negociação. Acho pouco, o que ganho, pela importância da minha profissão. Ao contrário da maioria sempre me integrei na luta, foi presidente da Adufg por duas vezes, sendo que na primeira vez estive também à frente de uma greve, por decisão da categoria. Durante muito tempo me dediquei mais ao movimento docente do que propriamente em cuidar da minha carreira. A demora em ter o meu doutorado não se deve somente a isso, mas foi um dos motivos. Por todo o tempo de minha militância sindical sempre vi mais o coletivo do que as minhas questões particulares. Embora eu faça parte de uma categoria, onde, como as demais de outras áreas de nossa sociedade, a maioria dos que a compõem só se mobiliza por questões que dizem respeito a interesses particulares. Quando muito, aceitam as decisões do movimento.
Mas eu também fico indignado com o fato de receber menos do que acredito ter direito. Mas essa situação decorre também das burrices cometidas pelo movimento docente, principalmente na década passada. Poderíamos ter avançado mais se as estratégias utilizadas fossem mais inteligentes e que pudessem envolver os professores até mesmo com opiniões expostas em grandes jornais e revistas de circulação nacional. A divisão do movimento docente explicitou esse problema, com duas entidades adotando estratégias diferentes, um da radicalização e a outra da negociação.
Mas essa radicalidade caracterizou parte do movimento sempre pela deflagração de greves políticas e a constituição de um grupo de sindicalistas que se aproveitam desse momento para gerar desgastes políticos e fortalecer suas tendências. À custa, sempre, das receitas das entidades, com gastos exorbitantes em pagamentos de diárias, passagens e estadias. Enquanto a maioria, passivamente, permanecia distanciada das comissões criadas para fortalecer o movimento. Ao final, criticava-se o resultado, gerando permanentes desgastes para as entidades. E isso se tornou também uma arma política, por quem, no momento, faz oposição à diretoria do sindicato.
É que se repete agora, a meu ver como uma farsa, da qual não tenho mais ânimo nem de fomentar, e muito menos de combater. Faço desse texto um instrumento de dupla indignação, às diatribes de um tipo de movimento docente que nos desqualificam enquanto professores universitários que possuem outras capacidades de embates e pressões perante os governos; e à condição em que permanece nossa categoria, cujo reconhecimento é falado nos discursos – inclusive de nossa presidenta - com pouco efeito na prática, com péssimos salários, incompatíveis com nossa importância, dando margem para reações desse tipo.
Mas sou convencido de que as duas situações são resultados de uma relação dialética, de causa e efeito. Nacionalmente ainda estamos aquém de termos uma representação forte e com perfil mais respeitado, que nos qualifiquem, e que saibam adotar estratégias inteligentes compatíveis com nossa condição de mestres e pesquisadores. Por isso tenho defendido nos últimos anos a necessidade de construirmos sindicatos locais fortes e uma Federação Nacional de Sindicatos que tenha um perfil diferente e que seja respeitada pela estrutura do estado brasileiro, no executivo, no legislativo e no judiciário.
Saberei ser solidário com qualquer movimento, como sempre tenho sido ao longo de anos de atividades desde o movimento estudantil até o sindical.  Até porque eu também serei beneficiado com os resultados que dele advierem. Sejam negativos ou positivos. Mas não exijam mais de mim, além do que eu já consegui oferecer até então. Não me disponho mais a entrar em aventuras, me oporei à proposta de greve na UFG e tomarei a decisão sobre o que fazer, pelo foro íntimo que me é de direito, após o resultado da Assembleia Geral dos professores, no dia 06 de junho. Espero que os demais colegas participem, e não fiquem ao longe esperando para serem informados dos resultados.
Até lá!

sábado, 19 de maio de 2012

GUERRILHA DO ARAGUAIA - NAS LEMBRANÇAS DE DUAS VIDAS, O RESGATE DA MEMÓRIA E DA VERDADE.


Guerrilha do Araguaia,
a esquerda em armas -
2ª Edição - 2012
No dia 13 de dezembro de 2007 faleceu minha filha querida, Ana Carolina. O mundo pareceu desabar sobre minha cabeça. Embora fale por mim, posso dizer que foi o mesmo sentimento sentido por sua mãe. Por mais de um ano estive abaixo da linha que delimita a razão à emoção mais extrema. Nada além do sentimento, da emotividade, da sensação de vazio, parecia me acompanhar. As presenças de minha companheira e de meu filho me davam ânimo, mas tudo bem distante do tempo em que a Carol estava entre nós.
Dentre as incontáveis e minuciosas lembranças, de fatos e atos marcantes que fazem permanentemente nos lembrarmos dela havia uma em especial. Carolina era uma pessoa extremamente sensível, e de uma esperteza e inteligência que nos tornam suspeitos ao descrever, mas que pode ser atestada por quem a conhecia. Ela sempre procurou valorizar aquilo que nos destacava, a mim, à sua mãe e ao Iago. No meu caso uma das coisas que ela buscava sempre valorizar era o meu trabalho. Ele percebia minha dedicação e sentia que um dos orgulhos que eu tinha era o meu livro sobre a Guerrilha do Araguaia, tema que sempre esteve presente em nossa casa. Por várias vezes, quando uma professora fazia aniversário, e ela julgava ser importante levar um presente, algo comum às meninas de sua idade, ela me procurava e pedia um livro com dedicatória. Percebia-se que junto com o presente acompanhava também o seu orgulho por presentear suas professoras com um livro escrito por seu pai. Isso era visível.
Nesse livro, na dedicatória que fiz quando ele foi publicado, e que eu esperei até que ela nascesse para formulá-la, está escrito: “Para Celma, Iago e Ana Carolina, partes de mim que faltavam”. Carol nasceu no mês de março, e o lançamento da primeira edição do livro aconteceu em abril daquele mesmo ano: 1997.
Não somente na dedicatória, ou na alegria que ela tinha em presentear o livro, também o ano em que ele foi publicado, que coincidiu com o nascimento dela, criou uma forte relação em meu coração e em minha razão. Quando Carol morreu esses sentimentos se misturaram, e a vontade que eu tinha de reeditá-lo se dissipou. Era impossível para mim pensar em outra coisa que não fosse a perda de minha filha.
Pouco a pouco outro sentimento foi me atormentando. Inversamente do que acontecera até então, passei a acreditar que uma das maneiras de homenagear minha filha seria atualizar o meu livro e dedicá-lo integralmente à sua memória. Carregamos junto com os filhos, e também com os livros, a sensação de tê-los para sempre, e quaisquer que sejam as circunstâncias eles eternizarão nossa memória, e serão a materialização de nossas lembranças. Com minha filha, já não posso fazer mais isso, embora ainda me reste meu filho, a quem amo muito. Mas posso com o livro, e a dedicação à sua memória, manter vivo esse sentimento de eternização. Pois sei, que assim, quando eu morrer, permanecerá meu livro como um legado e nas suas primeiras páginas a lembrança de que um dia Ana Carolina se fez presente entre a História da Guerrilha do Araguaia e a minha vida. Três histórias, guardadas para sempre na memória.
No primeiro ano da morte de minha filha recebi o convite para acompanhar a comissão que investigava os acontecimentos ligados à Guerrilha do Araguaia, e que se dirigia ao Pará para realizar sessões públicas e identificar os casos de abusos e torturas sobre moradores da região em que o conflito aconteceu e as denúncias de assassinatos de guerrilheiros que foram presos com vida. Apesar da importância do convite, recusei. Não tinha forças para me dedicar a nada, e o desânimo me impunha uma reclusão, e o que me restava de forças dediquei a lutar para que a depressão não me tirasse a vontade de viver.
Mas no ano seguinte me integrei ao grupo, que hoje é conhecido como Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), e já por diversas vezes participei das expedições como observador dos trabalhos desenvolvidos com competência, mas com enormes dificuldades para se obter sucesso em função principalmente do silêncio daqueles que comandaram execuções e depois a ocultação dos cadáveres dos guerrilheiros que foram assassinados após terem sido presos e torturados.
Dois anos depois, final de 2009, recebi o convite da coordenação do projeto Memórias Reveladas, vinculado ao Arquivo Nacional, para colaborar na preparação de um arquivo de áudio-visual sobre a Guerrilha do Araguaia, aproveitando tratar-se ainda de um evento recente e, assim, ouvir depoimentos de moradores da região Norte do Tocantins e Sul do Pará, que estiveram no meio da guerra, e sofreram na carne, literalmente, a brutalidade das torturas, do desrespeito e do comportamento criminoso de agentes do Estado brasileiro, em plena ditadura militar. Isso terminou se consolidando no ano de 2010.
Já livre do medo da depressão, mas com a imagem de minha filha a me acompanhar por todos os lados, vi nesse convite a possibilidade de poder completar essa pesquisa, e ao mesmo tempo, através desse projeto eternizar para os que vierem a ler o meu livro, a memória de minha filha.
Aceitei o convite e o desafio de voltar a pensar na reedição de meu livro. O que passo a relatar, é o resultado dessas escolhas, me tirou da letargia em relação a esse tema que me acompanhará pelo resto da minha vida e me recolocou de frente a novos sofrimentos, que não me deixam esquecer os meus, pela razão do desaparecimento de minha filha, mas me faz saber que os sofrimentos acompanham a vida humana. Alguns, como no meu caso, marcados por uma brutal fatalidade. Outros como os que contam a História da Guerrilha do Araguaia, de uma brutalidade inexplicável, que nos põe diante de reflexões sobre a perversidade que constrói a sociedade humana, mas que resistimos em crer que sejam da essência do ser humano, pois que senão uma condição criada por sentimentos que envolvem poder e ganância.
A História da Guerrilha foi um momento de tentativa de ruptura com a ordem estabelecida no Brasil desde 1964. Talvez seja demais referir-se àquele período contemplando-o com o adjetivo “ordem”. Na verdade devemos dizer que prevaleceu um regime de exceção, de privação da liberdade e do sentido que as civilizações ocidentais dedicam à democracia. Imposto pelo poder das armas, somente assim poderia ser mantido, e alguns acreditavam que também só pelas forças das armas ele poderia ser destruído.
Quando publiquei meu livro, cinco anos depois de iniciar a pesquisa, eu havia percorrido a região onde se desenrolou a guerrilha por quatro vezes. Estive em Xambioá (TO), São Geraldo (PA), Brejo Grande (PA), Palestina (PA), São Domingos do Araguaia (PA), Fazenda Bacaba, na Transamazônica (PA) e Marabá (PA). Somente deixei de ir a São João do Araguaia. Do outro lado da Transamazônica, da direção de quem vai de São Geraldo para Marabá, local onde se juntam os rios Araguaia e Tocantins.
Ainda não havia o asfalto que hoje facilita o deslocamento entre essas localidades e nos possibilitava uma visão melhor das dificuldades existentes por ali durante a década de 1970. Mas o que me interessa mesmo enfatizar, nesse momento, foi a dificuldade em conseguir depoimentos que pudessem relatar, com os detalhes que um historiador anseia, tudo que de fato ocorrera naquela região durante o conflito guerrilheiro que quase começou a incendiar o sul do Pará e norte do atual Estado do Tocantins, então Goiás. Obtive depoimentos importantes, ricos em conteúdo histórico, como o do ex-guia José Veloso, ou o de D. Maria da Metade cujo marido morreu como conseqüência das torturas sofridas. Isso dentre tantos outros que hoje podem ser pesquisados no Arquivo Nacional.
Mas havia um medo latente que impedia aquelas pessoas em falar de forma aprofundada e com os necessários detalhes, sobre os acontecimentos que transtornaram toda uma população, espalhando o medo, terror e revolta. Um terrorismo não praticado pelos guerrilheiros, como procuravam divulgar os agentes repressores, mas por eles próprios, que submeteram camponeses, homens e mulheres, pessoas humildes e trabalhadoras, às mais sórdidas e aterradoras agressões. Nós sabíamos dos abusos cometidos, até mesmo por intermédio de alguns deles que só recuavam em suas afirmações quando ligávamos o gravador para registrar os depoimentos. O que era dito antes, num bate-papo informal, desvanecia-se logo em seguida como conseqüência dos traumas e dos temores de se estar sendo permanentemente vigiado pelos “secretas”.
Sabíamos assim, embora com dificuldades para registrar com toda a intensidade dessas declarações informais, que a brutalidade que se abateu sobre a população deixara a todos intimidados e poderia impedir, pelo menos naquele momento, depoimentos mais contundentes, inclusive com indicações dos prováveis (e hoje confirmados) atos de execução de guerrilheiros presos com vida. Mas, mais do que isso - como se tamanha sanha criminosa pudesse ser superada, ocorre no entanto que não falo agora de combatentes, mas de pessoas simples, moradores humildes daquela região – se abateu sobre a população toda uma reação brutal, covarde e criminosa, com práticas monstruosas de torturas, desencadeadas por profissionais frios, treinados para não sentir remorsos, agir cruelmente e até mesmo matar, indistintamente, qualquer um que fosse suspeito de ter tido algum tipo de contato com os guerrilheiros.
Frederico e Adalgisa, camponeses
que deram apoio à guerrilha
Quando fui à Brasília, portanto, participar do Seminário sobre Direitos Humanos na América Latina, em 2010, com o intuito de também realizar essas entrevistas, eu sabia que iria encontrar pessoas sofridas que tinham sido humilhadas e tratadas com desrespeito por agentes públicos que deveriam cumprir o papel que lhes caberiam constitucionalmente: o de protegê-las. Quase todos, homens e mulheres com alguma história triste para contar, lutavam naquele momento também para serem indenizados pelos sofrimentos que passaram e pelas perdas que tiveram como decorrência dos dias de prisão, torturas e perseguições.
Mas surpreenderam-me os relatos que gravamos e que estão devidamente documentados pelo Arquivo Nacional, através do Projeto Memórias Reveladas. Alguns deles, apesar de um tempo considerável que separa aqueles acontecimentos, mantém de tal forma um trauma decorrente das brutalidades que não se contiveram e, emocionados, verteram lágrimas ao se lembrarem das torturas e humilhações. Percebia-se um sentimento forte, de revolta, ainda represado, e uma incredulidade sobre tamanha bestialização, na medida em que eles não compreendiam as razões das acusações a que àquela época foram submetidos, nem os motivos por terem sido tratados tão estupidamente.
Esses depoimentos, a minha participação no Grupo de Trabalho Araguaia, os constantes retornos á região como consequência disso e o sonho refeito de lançar a segunda edição do meu livro e dedicá-lo à minha filha, me reanimaram. E em meio à dificuldades de saúde e com a pressão de um doutorado, aceitei o desafio e, oito meses depois pude ver o meu livro ser reeditado, agora devidamente atualizado e ampliado, pela Editora Anita de São Paulo, em co-edição com a Fundação Maurício Grabois.
Em suas primeiras páginas, conforme prometido, inseri a dedicatória à minha querida Carol: “À memória de minha filha, Ana Carolina Oliveira Campos. Parte de mim que se foi, em 2007, aos dez anos de idade, vítima de leucemia. Seu nascimento se deu no mesmo ano de lançamento da primeira edição desse livro, que ela sempre pedia para presentear suas professoras”.
Divino - o Nunes - filho de
D. Santinha
Por duas vezes, em lançamentos realizados em São Paulo e Goiânia, sucumbi às saudades e a emoção falou mais forte. Percebi o quanto essa ligação, entre a guerrilha e a minha vida, estava definitivamente amarrada pelas lembranças de minha filha. E me fez recordar de uma pessoa maravilhosa, D. Maria Gomes dos Santos – D. Santinha – mãe de um dos guerrilheiros, o goiano Divino Ferreira de Souza (Nunes). Com a Carol e Iago, mas principalmente com ela, por diversas vezes visitamos D. Santinha, seja para conversarmos sobre sua luta em busca de informações a respeito do paradeiro de seu filho, ou até mesmo para tomarmos um cafezinho, aos sábados, quando ela se dispunha a preparar uns pãezinhos de queijo.
Com sua simplicidade costumeira ela aproveitava para nos mostrar os recortes dos jornais, contando sua via crúcis, em busca de notícias sobre o seu filho. Rotina que se repetia na vida de centenas de outras mães e pais, à procura dos filhos, cujos paradeiros eram e permanecem incertos, devido aos comportamentos psicopatas de cruéis criminosos de guerra, que sempre se recusaram a dar informações que aliviassem suas angústias e sofrimentos. Eu conversava com D. Santinha tendo ao lado minha filha, e acompanhava sua dor pela perda de um filho, agravada pelo fato não saber onde estava o seu corpo. Uma dor potencializada pelo silêncio dos algozes. Mal sabia eu, que o destino me reservava para o resto da vida, aquele mesmo sentimento que eu buscava compartilhar, na solidariedade a D. Santinha. A dor da perda de uma filha.
Ela e a Carol, de idades diferenciadas por um tempo longo, partiram em épocas próximas, e me deixaram a juntar suas lembranças no tema da guerrilha do Araguaia. Cada vez que olho para o meu livro, lembro-me delas. Eu já havia feito uma dedicatória à D. Santinha na primeira edição, e naturalmente, a mantive nesta reedição. Mas nesse meio tempo, entre as duas edições, eu as vi partir, deixando em minhas lembranças na junção de suas duas imagens a história de outras vidas que se foram nas matas do Araguaia.
Os dias e meses que se seguiram à preparação para a segunda edição do meu livro, o envolvimento agora com o lançamento por vários Estados, as lembranças revividas, me jogaram definitivamente de volta ao tema, não me restando outra saída que não voltar ao leito natural de minhas pesquisas, reincorporando isso agora ao meu doutorado.
Mudei o meu projeto de pesquisa e volto a me dedicar a um acontecimento do qual eu comecei pesquisando para registrá-lo na história, mas que pelas razões citadas me vi envolvido diretamente com ele e ao mergulhar de corpo e alma não pude submergir sem carregá-lo comigo. Incorporei-me a essa história, me sinto dentro dela e busco agora compreender as transformações de uma região marcada por conflitos, e as ações que causaram profundas mudanças nas vidas dos camponeses e dos lugares por onde se desenvolveu a Guerrilha do Araguaia.
Ao retornar ao ambiente onde se desenrolou esse conflito, me acompanhará, sempre, as lembranças dessas duas personagens, de gerações distintas, mas que não estão mais entre nós. Elas serão o incentivo mais importante a me empurrar em busca de outras respostas. Quiçá me fosse permitido estar presente quando porventura pudéssemos ter informações sobre o filho de D. Santinha, o Nunes, cujo corpo certamente se encontra em algum lugar das matas do Araguaia. Tenho certeza que nesse dia meu coração sentirá mais forte, se isso for possível, a dor da perda de uma filha, e me deixará mais triste saber que D. Santinha partiu sem que a ela fosse dado pelo menos o direito de uma inversão da lógica natural da vida, poder enterrar o corpo de um filho que se foi.
Em tempos de tentativa de fazer com que nos reencontremos com nossa história, com a criação da Comissão da Verdade, esses sentimentos me dão força e ânimo para transformar as lágrimas em disposição e vontade de não permitir que a memória seja apagada.
Sigo, então, adiante, resgatando a história dos que lutaram no Araguaia, da vida dos camponeses tornados invisíveis por tanto tempo e daquelas pessoas que não me deixam esquecer que das matas do Araguaia se incorporaram definitivamente em minha vida uma história de amor, determinação, coragem e de uma luta incansável pela verdade.
Além de minha filha e de D. Santinha, dedicarei todos esses próximos momentos aos parentes dos guerrilheiros, incansáveis na busca por informações sobre os corpos de seus entes queridos. E aos camponeses do Araguaia, para que a história não lhes relegue somente pequenas notas aos pés das páginas.



No dia 17 de outubro, na Livraria FNAC, no Flamboyant Shopping Center, estarei lançando o meu livro. Também será lançado o livro de Liniane Haag Brum, "Antes do Passado", sobre o seu tio, guerrilheiro no Araguaia, Cilon Cunha Brum.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

AS CRISES E A DESCONSTRUÇÃO DA POLÍTICA


O objetivo desse artigo é fazer duas comparações, entre uma situação crítica porque passa a economia mundial, notadamente na Europa e Estados Unidos, e, mais uma vez, como no Brasil as denúncias de corrupção afloram um discurso moralista e de denuncismo exacerbado, que se antecipa às ações judiciais e condena indiscriminadamente, de lado a lado, desafetos políticos. Nos dois casos, por meios diferentes, a desesperança e a perda da razão pela revolta das circunstâncias, atinge duramente a política, os políticos e leva à escolha das massas pelos comportamentos e atitudes mais radicais. As consequências disso são sobejamente conhecidas na história, e não foram favoráveis ao bem-estar e à vida humana.
Na maior crise econômica do pós-guerra, a Europa se vê no meio de um longo labirinto. Agora unificada e com a maioria de seus países utilizando uma moeda única, o Euro, o chamado velho continente não consegue vislumbrar uma saída para a forte decadência de sua economia, e se perde em meio a esse labirinto criado pelos próprios Estados, quando insistiram em cobrir rombos de grandes instituições financeiras afetadas pela crise que estourou em 2008 nos Estados Unidos e contaminou todo o sistema financeiro mundial.
A multidão indignada
O impasse em meio a alternativas para mudar os rumos da crise tem levado a população às ruas, e na sequência das agendas institucionais o povo tem escolhido votar em partidos extremistas, à direita e à esquerda, à semelhança (guardando-se as devidas proporções) do que ocorreu durante a crise que antecedeu a instalação de regimes totalitários no século XX (Alemanha, Itália e Espanha). Mas, as diferenças estão nas escolhas democráticas da população, e não mais na concessão do poder à tirania de um só indivíduo. A situação da Espanha foi diferente, pois a ascensão do franquismo se deu após uma guerra civil, que terminou por contar com o apoio externo de Hitler e Mussolini.
Contudo, as razões para a aceitação dos discursos mais radicais são as mesmas, dificuldades profundas na economia, desemprego em alta e adoção de medidas antipopulares, em que se preserva a riqueza e impõe aos trabalhadores os maiores ônus, de uma crise que não foi causada por eles. A xenofobia, ou a escolha de culpas em meio às pessoas de origens estrangeiras, e a intolerância, marcada por uma situação que tolhe a todos a possibilidade de exercer o consumismo, a “religião” principal do sistema capitalista, cegam as massas e as impedem de racionalizar a maneira como se dissemina facilmente o oportunismo político. Tornando-as reféns de suas próprias escolhas.
A zona do Euro sob risco
de desintegração
Vê-se o resultado disso na Grécia, com um impasse gerado pela formação de um governo que seja antípoda às medidas de restrições aos gastos e de forte arrocho salarial. Isso porque dois partidos de extrema-esquerda e de extrema-direita se destacaram nas eleições e conseguiram uma bancada parlamentar como nunca tinha acontecido. Mas não conseguem formar um governo, já que se diferenciam em seus objetivos, apesar de se unirem na proposta de retirar aquele país da zona do Euro.
Nessas eleições o Partido Neo-Nazista conseguiu um feito inédito, eleger uma banca de 21 parlamentares, agindo abertamente com o comportamento típico desses setores. A ponto de em uma entrevista com o líder partidário, os jornalistas terem sido obrigados a se levantarem no momento em que ele adentrou o recinto, sob os olhares agressivos de “trogloditas” tatuados com suas marcas tradicionais.
Na França, a extrema-direita obteve sua maior votação em toda a história francesa, também com o discurso maniqueísta e tendo como alvos prioritários cidadãos de origens estrangeiras. Na Holanda, Espanha, Itália e outros países europeus, a crise segue derrubando governos e possibilitando a eleição de partidos cujos discursos são carregados de sentimentos nacionalistas e intolerantes, na medida em que aqueles que estiveram na condução dos governos de seus países foram inoperantes e incompetentes para solucionar problemas que estão perigosamente tornando aquelas sociedades deprimidas, impacientes e à beira de aceitarem lideranças cujos discursos reacendam mesmo que uma pequena luz de esperança de encontrarem uma saída do labirinto capitalista.
O público x privado
Mas no Brasil, muito embora a crise econômica traga preocupações, já que diante de uma economia global as consequências sejam inevitáveis, o que tem afetado a população e criado constrangimentos nos meios políticos é a eterna relação promíscua entre os interesses privados e republicanos. A estrutura do Estado, tradicionalmente usurpada por mecanismos corruptores, parece ter levado ao limite a paciência de uma população que já percebe com clareza que os ralos por onde escorrem recursos públicos abrem-se também para consumir parte de seus salários, que vão, assim, carregados pelo banditismo de grupos organizados que desfilam até então impunemente pelas altas rodas da sociedade, enriquecendo-se à custa de assaltos milionários e mediante a utilização de uma rede sofisticada que envolve representantes de todos os setores que compõem a organização do Estado: executivo, legislativo e judiciário. Confunde-se, vergonhosamente, o público e o privado.
É inegável que os constantes casos descobertos demonstram que nos últimos tempos tem aumentado o grau de fiscalização dos órgãos responsáveis por isso na mesma estrutura do Estado. Isso feito tanto pela Controladoria da União como pela Polícia Federal, e mesmo pelo Ministério Público, muito embora essas duas últimas instituições tenham que cortar em sua própria carne, em função do envolvimento de membros dessas duas corporações em casos de ilícitos, como demonstrado na Operação Las Vegas. A quantidade de operações feitas por esses órgãos não tem similar na história do país, principalmente envolvendo políticos de destaques, no parlamento e no executivo em seus vários níveis, e até mesmo membros do primeiro escalão dos governos estaduais e federal.
Isso demonstra que o país, republicanamente, tem buscado soluções através de seus órgãos investigativos, em que pese a forma como a mídia trata a questão, dando a impressão para a população que esse é o momento da história com maior grau de corrupção. Quando na verdade estamos diante de um momento inédito, já que nunca se investigou tanto como agora. Isso é o que dá a sensação de aumento da corrupção.
Combater a cultura da corrupção
Mas os que conhecem a história do Brasil, desde suas origens e de como a grande política era disputada por grupos rivais regionalmente, sabem perfeitamente que as relações espúrias, o compadrio e a apropriação privada dos recursos públicos sempre ocorreram em nosso país. Mas quase nunca investigado, e quase sempre aceito pela população, que cruzava os braços aos poderes coronelistas e buscavam se beneficiar com o apadrinhamento dos poderosos políticos para resolverem suas situações particulares.
Isso gerou uma cultura da corrupção em vários níveis, da famosa filosofia oportunista do “rouba, mas faz”, e do famoso “jeitinho” que o povo encontrava de se beneficiar das ilicitudes transmitidas pelos que detinham o poder. Tornou-se uma cumplicidade consentida. Isso é visível mesmo nos dias atuais de crescente indignação e se espalha pelo cotidiano da vida na sociedade, desde atos pequenos como separar-se em filas diferentes para ver qual a que anda mais rápido; das filas duplas nos sinaleiros; das desordenadas entradas em ônibus para se sagrarem vitoriosos sentando-se nas primeiras cadeiras; da privatização dos espaços em vias públicas, e de tantos outros males culturais.
Aparentemente inofensivos esses atos são essenciais para criar uma cultura de aceitação de ilícitos maiores, dentre eles o que mais se destaca e que a sociedade finge que não existe, o famoso “Caixa 2” das campanhas políticas. Origem da maioria das quadrilhas formadas para usurpar o patrimônio público, desde as que conseguem cair nas malhas da justiça e da ira popular, como a do contraventor Carlos Cachoeira, até aquelas que envolvem maiores recursos e gente da “mais alta estirpe”, grandes empresários e banqueiros, como provado na Operação Satiagraha, que indiciou o banqueiro Daniel Dantas, salvo por duas liminares relâmpagos concedidas por um juiz do Supremo que houvera sido advogado da união na época em que os rombos aos cofres públicos ocorreram.
Veja fala de um grampo
e de um áudio que nunca foi
mostrado
É bom acrescentar que essa operação foi abortada espetacularmente. Primeiro pela apreensão “perpétua” do disco rígido de um dos computadores do contraventor-banqueiro, que permaneceu em posse de uma ex-ministra do Supremo até que a Satiagraha fosse defenestrada. E isso aconteceu com a participação de um outro ministro do supremo, já citado, aliado ao “mosqueteiro da ética” Demóstenes Torres e ao principal instrumento que essa quadrilha utilizou, as páginas de uma das revistas mais vendidas no Brasil, não tanto por suas qualidades, a Veja. A denúncia sobre suposto grampos a ouvir conversas dessas duas autoridades serviu de pretexto para defenestrar o então principal nome da Polícia Federal, Delegado Paulo Lacerda, que havia apoiado a Operação Satiagraha, contra o banqueiro Daniel Dantas. Jogo sujo, pesado, a limpar a barra de um dos maiores esquemas de apropriação de dinheiro público do país.
Esta operação sabe-se lá por quais razões, talvez somente um apego espiritual para nos fazer entender, foi arquivada e o investigador tornou-se investigado. Todas as provas, com perdão da redundância, que comprovavam o roubo de recursos públicos no processo de privatização de grandes empresas e outras falcatruas, foram simplesmente consideradas nulas, pois teriam sido obtidas de forma ilegais. Ora, mas elas não provavam que o roubo acontecera?
No entanto, apesar de tudo ter sido provado, a nulidade do processo não teve na opinião pública nenhuma reação. Muito embora os valores envolvidos sejam infinitamente superiores ao que leva agora ao banco dos réus mais de uma dezena de suspeitos em vários crimes comandado por um contraventor do jogo do bicho, fachada para toda a roubalheira investigada. Para conter a indignação popular, tal qual ocorre no momento, teve papel fundamental as capas da revista citada, que se descobre agora ter uma estreita relação com os dois chefões investigados.
A operação Satiagraha não foi adiante
como a Monte Carlo. Porquê?
Talvez seja crível dizer que somente Freud possa explicar o comportamento distinto das pessoas em situações que são semelhantes. Mas a explicação aí deve ser mais política do que psicanalista, além da sabida manipulação midiática. Tanto essas, quanto a maioria das denúncias, infelizmente, transformam-se muito mais em instrumentos nas mãos de desafetos políticos, a exercerem suas vinganças não conseguidas pelo voto. Percebe-se muito mais a vontade de derrubar o oponente político, do que se buscar mecanismo de punição e de contenção de uma prática que está impregnada na estrutura do Estado brasileiro. Praticada, aliás, pela maioria dos que se dedicam a candidatar-se a um processo eleitoral, em disputas milionárias que envolvem contribuições de campanhas com boa parte delas não contabilizadas, constituindo-se no bem conhecido, mas fragilmente combatido, Caixa 2. É visível os gastos milionários nas campanhas políticas, quando o que se investe em um determinado candidato é centenas de vezes além daquilo que ele conseguirá ganhar honestamente com o seu mandato. Evidente, pela lógica de funcionamento do sistema, a conta da fatura virá depois, e será bancada por esses meios ilícitos que essas operações policiais estão a comprovar.
Aí entra outro elemento que se evita referir, pois que não há a intenção de romper com essa estrutura que garante privilégios aos que detém o poder. A evidência, clara, de que toda essa sujeira, jogada no final das contas para debaixo dos tapetes, corresponde a um vício de origem da forma como funcionam as estruturas do sistema capitalista. São problemas sistêmicos, possíveis somente de serem corrigidos com a própria superação de uma lógica política cotidiana que tem como objetivo beneficiar aqueles que detém as riquezas e controlam os meios de produção e o sistema financeiro.
As razões da crise econômica, política
e ética devem ser buscadas nas
estruturas do sistema capitalista
Mas não se vê, em meio aos indignados que se espalham ao sabor da maneira como as notícias são difundidas e ao tamanho do ódio que comportam por seus adversários políticos, nenhuma frase, faixa ou manifestações onde se aponte de forma certeira o sistema capitalista como sendo o mal de onde se originam todos esses pecados. E, muitos, de forma alienada, julgam ser esse um mal do nosso país, quando se sabe, por exemplo, que nunca foi tão grande o envolvimento em corrupção de políticos, empresários e banqueiros, nos Estados Unidos e em muitos outros países, sejam desenvolvidos ou em desenvolvimentos.
Por fim, mas não para finalizar, já que essa história seguirá despertando ódios, rancores, decepções e frustrações,há também o oportunismo que desponta em meio a essas denúncias. Junto à onda de indignação que, compreensivamente, tomada conta das pessoas, esconde-se alguns oportunistas, individualmente ou em grupelhos, que visam atacar não as causas, ou os próprios envolvidos, mas buscam manipular o sentimento da população para atacar até mesmo setores que não estão envolvidos nas falcatruas.
Como a tentarem se apropriar da bandeira da ética, como, aliás, fez espertamente o senador Demóstenes Torres, se julgam no direito de atacarem indistintamente todos aqueles que estão envolvidos na política. Trata-se não simplesmente de pessoas simples do povo, cuja desesperança afasta-as naturalmente da política. Mas de grupos (muitas vezes organizados politicamente, mas que assim não se assumem) que se escondem em meio à multidão e nas sombras das redes sociais, para alimentarem o ódio pela política e a tal qual se deu na década de 20 do século passado, instigar a intolerância, a caça às bruxas e a generalizar as acusações.
Filme que mostra como
surge o fascismo
Esses grupelhos, que não aparecem de forma organizada, ou alguns se assumem como adeptos do anarquismo, mas não da forma como os teóricos dessa tendência se preocuparam em combater os sistemas econômicos, e não somente a política, terminam por agirem da mesma maneira como procederam, principalmente na Itália, os grupos fascistas que levaram Mussolini ao poder. Seus alvos, além da política e dos partidos generalizadamente, são também os comunistas. E apostam na despolitização das massas para tentarem criar um ambiente que possibilite, a partir das desesperanças, levarem-nas a apoiarem qualquer aventureiro cujo discurso ultra-radical contemple suas frustrações. Quase sempre esses grupos se apresentam com um discurso de extrema-esquerda, e não obtém sucessos no âmbito das disputas democráticas.
Vivemos, assim, um momento de profundas contradições. Crise econômica nos Estados Unidos e Europa que potencializa situações em que a intolerância desperta as frustrações e o desespero pela falta de emprego e de perspectivas futuras, e aqui no Brasil, onde economicamente passamos por um período de expansão e crescimento, mas cujas deliquências políticas, tradicionalmente ainda vigorando, nos mantém tensos e incertos quanto ao nosso futuro. Ou a dúvida sobre quem será beneficiado com todo esse crescimento.
Documentário com imagens
que mostram as mudanças
no mundo no século XX
E, no meio de tudo isso, a necessidade de estarmos vigilante, principalmente aqueles que conhecem o processo histórico e os exemplos de situações parecidas que levaram a humanidade para rumos indigestos, e buscarmos o convencimento das pessoas de que não é banindo a política que esses problemas serão corrigidos.
Só haverá saída no âmbito da própria política. E é sempre assim, mesmo que no advento de um processo revolucionário. Sair dele será também um exercício de apaziguamento das diferenças e de acordos selados pela política. O que as pessoas não podem abdicar é da capacidade de discernir o joio do trigo na escolha de quem irá lhe representar nos parlamentos ou na condução das administrações públicas.
Recusar-se a essas escolhas, motivado pela desesperança e incentivados por quem queira se aproveitar desse momento em aventuras abstratas, só irá beneficiar quem tem a riqueza, afasta mais ainda os trabalhadores da vida política e nos mantém reféns de nossos próprios vícios.
Ao mesmo tempo, é essencial compreender que a solução definitiva para esses males passa necessariamente pelo combate a um sistema que tem na ganância e na usura a base de suas transformações. Enquanto a cultura que prevalecer na sociedade for aquela onde o consumismo é o motor a motivar as pessoas, a individualmente buscarem formas de serem felizes tentando alcançar um estilo de vida individualista, egoísta e que sempre exige o esforço em busca de cada vez mais dinheiro, dificilmente poderemos acreditar que as gerações futuras terão um ambiente mais saudável e honesto para viverem.
Jornal da época repercutem
o golme militar de 1964
O problema maior da sociedade contemporânea, e que se espalha pelo mundo desde os condomínios fechados luxuosos às mais modestas habitações, é a vontade de ampliar sua riqueza ou de enriquecer, fortalecendo a lógica que nos impõe essa busca desenfreada por mecanismos lícitos e ilícitos de acumular dinheiro. As crises políticas são consequências e não as causas de todos esses crimes e tentativas de burlarem os mecanismos – frágeis – do aparato jurídico do próprio sistema.
O desafio é saber como combater, em meio não somente à frustração popular, mas ao oportunismo político que desponta, quando certos acusadores escondem entre seus desejos a vontade de ocupar o lugar daquele acusado. O discurso moralista, ou a tentativa de apontar a era do caos, aumentando o medo e a desesperança nas pessoas, também deve ser visto cuidadosamente, pois pode induzir a multidão a cometer injustiças com acusações fabricadas, ou potencializar a ascensão de lideranças fascistas cuja prática distancia-se da democracia e visa impor a centralização de um poder conservador, ditatorial com base na intolerância política.
Enfim, o discurso moralista, anticorrupção sempre foi instrumentalizado e o povo manipulado, vide o golpe militar de 1964. É fundamental nos indignarmos com os desmandos na política, e principalmente com a perversidade da lógica sistêmica capitalista, mas é essencial mantermos nossa memória viva, e não esquecermos o que aconteceu no passado, porque ele nos ensina.

sábado, 5 de maio de 2012

O GRITO!!!!

Assisti com profundo sentimento de revolta, mas não de surpresa, as notícias sobre o leilão da obra “O Grito”, do pintor expressionista norueguês, Edvard Munch. Não vou entrar aqui no mérito da qualidade da obra, mas sei que essa à qual me refiro aqui é sem dúvida uma obra-prima, embora eu seja leigo no assunto. Contudo os valores atribuídos a essas obras ofendem a dignidade humana. Não pode ser visto como normal a atribuição de um valor completamente abstrato, já que impossível de ser mensurado, principalmente em um momento pelo qual o mundo passa por uma crise econômica que se estende por vários anos e sem perspectivas de solução. 
O Grito
Vendido por US$ 119.922,500
Pior do que isso é a nossa curiosidade crítica nos alertar para uma comparação escandalosa: esse valor corresponde a cerca de 340.000 salários pago ao trabalhador que recebe um salário mínimo por mês. Mas há ainda uma parcela enorme da população brasileira, e também a milhões de outros, na América Latina, Ásia e, principalmente, África, que sobrevivem com valores irrisórios, bem menores do que o salário mínimo brasileiro. Poder-se-ia contar meio milhão de pessoas nessa situação, cuja soma de seus rendimentos valem menos do que o quadro em análise.
Mas porque valores assim, superlativos, são aceitos sem nenhuma contestação? Mesmo por aqueles que porventura liderem manifestações contra as absurdas concentrações de renda e as desigualdades sociais? O que se percebe é a forma como as pessoas se enquadram no sistema capitalista, e aceitam como normais condições aberrantes e geradoras das próprias desigualdades que são motivos de preocupações e manifestações públicas.
As normas e leis construídas ao longo do processo de consolidação do sistema capitalista acomodou a percepção das pessoas, fazendo-as ver como corriqueiros atos que muitas vezes denotam profundo desrespeito pela condição humana, pela situação de milhões de pessoas que vivem à míngua e de crianças que morrem aos milhares pelas péssimas condições de pobreza a que estão submetidas.
Escultura de Bronze, "L'homme
qui marche I", do suiço Giacometti
vendida por US$104,3 milhões.
Porque é aceitável punir um parlamentar por ter aceitado doações não contabilizadas de trinta mil reais, para uma campanha política, mas se vê como normal a aquisição de um quadro por 120 milhões de dólares? Claro, eu sei que o proprietário não é brasileiro, mas isso não vem ao caso. Permito-me aqui desvendar a forma como a hipocrisia se esconde por trás de comportamentos dúbios. Ambos os casos são condenáveis, e mereceria repulsa parecida. Embora somente um dos casos permita punição, já que o sistema garante a uma pessoa liberdade para usufruir de sua riqueza. Mas deveria ser moralmente condenável, e socialmente inaceitável.
O comparativo aqui se pode considerar sem muita lógica, mas obedece simplesmente ao objetivo de demonstrar que a cultura imposta, e que compõe a nossa superestrutura, tem o claro intuito de tornar aceitáveis as desigualdades sociais, a ponto de tornar um indivíduo como esse, certamente, em um exemplo da capacidade em acumular riqueza. E isso o tornará conhecido como vitorioso, superior, espécime rara, mas que serve de exemplo, mediante a lógica sistêmica, para quem deseja “vencer” em um mundo de competição e de ferrenha disputa pelo dinheiro.
Não há indignação, portanto, pois se pressupõe que tal dinheiro tenha sido fruto dessa capacidade adquirida inteligentemente pelo esforço pessoal. Pois assim, nos fazem crer, é como funciona o sistema capitalista, em meio a sua “liberdade” de premiar os que “por esforço individual” se destacam dentre os milhões de pobres mortais. Aberração é a pequenina e teimosa ilha de Cuba não aceitar essa “liberdade” capitalista.
Mas não há dinheiro, notadamente milhões, que não sejam acumulados mediante a expropriação, exploração e ludibriação dos trabalhadores. O dinheiro não surge por geração espontânea, e os valores atribuídos, inclusive a uma obra de arte, compõem um universo fetichista – conforme disse Karl Marx – indecifrável pelo senso comum, esse exposto às manipulações dos que controlam a informação. Como, então, avaliar obras de artes que são únicas? O que as fazem custar valores tão absurdos? Por que se pode gastar tanto com tão pouco, enquanto milhões morrem de fome e desnutrição? Por que esses questionamentos não fazem parte do nosso cotidiano, embora fiquemos por todo o tempo indignados com os impostos que pagamos e com os baixos salários que recebemos?
Pintura de Pablo Picasso
"O menino com cachimbo"
vendida por US$104,1 milhões
Quem dera isso fosse uma exceção. Mas valores pagos a quadros, peças e joias, que ultrapassam centenas de milhões de dólares repetem-se todas as semanas e transformam-se em manchetes que visam muito mais transmitir uma sensação de euforia por algo mostrado como espetacular, do que possibilitar a que as pessoas se sintam indignadas por isso acontecer em meio a tamanhas desproporções.
Sentados em nossas poltronas, assistimos a esses espetáculos de acinte à nossa indignação pelas desigualdades que cercam o mundo, mas impotentes diante de uma sociedade cuja indignação é direcionada para fatos momentâneos, espetacularizados pela mídia, e muito pouco se diz ou se faz sobre a maneira estúpida e indecente como as mazelas que exalam odores fétidos movimentam e dão vida a um sistema social profundamente injusto, mas aceito em meio a uma indiferença em relação à essas distorções. Não se combate, enfim, a causa, mas o substrato, as consequências geradas pelos mecanismos de funcionamento do sistema. Falta a verdadeira radicalidade, aquela que nos leva ao sentido etimológico da palavra, oriunda de raiz, aqui no entendimento da base que dá sustentação a um estilo de vida somente possível de ser alcançado por uma minoria. Ser radical, verdadeiramente, é combater essa estrutura que gera as desigualdades sociais.
Um grito que deveria ser de rebeldia contra o sistema, em toda a sua essência, fica sufocado pela maneira como a alienação e a manipulação conduz a cultura e a obsessão pela riqueza disputada por todos, mas somente alcançada por poucos.
Acampamento de refugiados no Sudão
Numa representação de angústia e desespero, que marcou a própria vida do autor e a sua relação conflituosa com um pai autoritário, e ressentindo-se da morte da mãe e da irmã, a expressão de horror, ou de espanto, pode também representar situações de demências coletivas e do medo que incorpora o cotidiano. Este não só decorrente da própria realidade, mas estimulado por diversos segmentos midiáticos e religiosos, como parte do funcionamento do sistema, para manter as pessoas alienadas, horrorizadas e domesticadas. Mas, principalmente, com suas atenções voltadas para  o que é periférico e jamais se aprofundar em questões que coloquem em xeque o mundo real.
Os gritos que ecoam da multidão assemelham-se à ingenuidade retratada pelo cinema, no comportamento do personagem que dá título ao filme: O Mundo de Andy.
Repito aqui uma frase que inseri em um artigo publicado em julho do ano passado neste mesmo blog (http://www.gramaticadomundo.com/2011/07/tudo-que-e-solido-desmancha-no-ar.html):
“Enquanto isso se marcha contra tudo, menos contra aquilo que é, em essência, responsável pelas condições que tornam a sociedade insegura e refém de seus medos e individualidades. Muito embora todo um aparato repressivo seja mobilizado para conter isso, por uma necessidade de não se perder o controle do poder bem como para se impor a autoridade, não são essas as formas de lutas, nem o conteúdo que as movem, que irão fazer com que a burguesia perca o seu sono".
Afinal, como disse Marx: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.