terça-feira, 25 de agosto de 2020

AS ORIGENS DA INTOLERÂNCIA E O FASCISMO MODERNO

A sociedade brasileira, historicamente, sempre foi "racista". Isso é consequência da formação cultural de um povo que por longo tempo aceitava como dentro da normalidade o tratamento diferenciado a pessoas de cor negra e de classes sociais mais pobres. Por muito tempo também, essas imposições que estavam impregnadas nas relações sociais, eram tão marcantes, e impositivas, que aqueles que eram vítimas do preconceito pouco reagiam, como se aquela condição viesse determinada por algum desígnio divino.

E assim, imposto pelas relações de classes a partir de um regime escravocrata, sob a cumplicidade da igreja e a conformação dos fiéis, culturalmente fomos treinados a aceitar tais diferenças como normais. Os que ousassem se bater contra a estratificação social, que prevaleceu em nosso país desde os seus primórdios, eram de diversas formas, segundo sua época, considerados subversivos. A reação era violenta, porque a classe dominante temia as revoltas populares.

Do ponto de vista científico muitos avanços em pesquisas contribuíram para derrubar vários mitos, criados com o intuito de manter as pessoas acomodadas. O principal deles diz respeito à teoria de que o mundo é constituído por raças, sendo algumas delas consideradas superiores. Mais uma vez a religião foi utilizada para reafirmar essas crenças, possibilitando que inúmeras tragédias e genocídios fossem cometidos. As classes e “raças” inferiores não tinham o direito de se insurgirem, e se assim o fizessem, poderiam ser eliminadas sem que isso pudesse se constituir em crime.

Intolerancia - spaceblog
Mas a ciência desmontou essa farsa, tornada uma arma política para dominar povos mais fracos. Raças não existem. Os povos se diferenciam por seus ambientes, pela necessidade de adaptação a situações diversas e adversas, o que os tornam diferentes. Isso quer dizer que todos os seres humanos carregam em sua formação biológica as mesmas características impressas no DNA, com pequenas diferenças que nos distingue uns dos outros.

Por vivermos em ambientes diferentes e termos que nos adaptarmos a eles, criamos resistências que com o tempo definem o nosso perfil, as nossas características, a nossa cor. Também por isso cultivamos hábitos diferentes, seja na forma de nos relacionarmos ou na maneira como nos alimentamos. O próprio DNA vai definir nossas proximidades parentais, tornando aqueles de cada grupo mais ou menos parecidos, o que cientificamente passou a ser conhecido como diferenças, ou semelhanças étnicas. São etnias, e não raças, que se espalharam pelo mundo. Afinal, somos todos componentes de uma única raça. Somos humanos.

As nossas diferenças foram sempre objetos de manipulação, por quem buscava exercer o controle sobre regiões e territórios ricos e estrategicamente importantes. E isso não se deu somente em relação à dominação que o branco vai exercer, consequência de todo o processo de colonização europeia. Antes disso, mulheres, judeus e homossexuais, padeceram por toda a idade média, rejeitados pelos livros sagrados que traziam em seus parágrafos e parábolas toda uma carga negativa contra essas camadas sociais. Depois, com a expansão colonial e a descoberta de riquezas na África e na América, os negros e os índios entraram nessa lista.

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Mas a igreja permanece entre as instituições mais importantes para reforçar uma série de estigmas. E isso se reforçou, na medida em que a concentração das pessoas nas cidades aumentava, o número de templos se reproduzia aceleradamente e um verdadeiro poder intimidatório, armado, tornava as diversas igrejas, principalmente da religião cristã e muçulmana, verdadeiros instrumentos de dominação mediante o controle das consciências, mas também com um aparato militar poderoso a deflagrar guerras santas contra os que se opusessem a aceitar a influência e o poder de uma delas.

O maniqueísmo, trazido dos tempos antigos, pelos maniqueus, donde vigorou por volta do século III, determinava a existência permanente de um antagonismo, expresso em dois princípios irredutíveis, Deus e o bem absoluto, e o Diabo, ou o mal absoluto. Embora perseguidos por muitos séculos, os adeptos do maniqueísmo sincretizaram esses valores de praticamente todas as grandes religiões. Judaísmo, islamismo, cristianismo, e até o zoroastrismo que foi uma grande influência para elas, fundamentaram seus dogmas escorados nessa dicotomia. Construía-se a ideia de que o mal se manifesta não somente, mas principalmente entre aqueles que não aceitam aquela outra divindade religiosa. Isso serviu, ao longo dos séculos, para justificar comportamentos intolerantes e guerras que passavam a serem justificadas como santas, com objetivo de converter impuros e hereges. Daí se origina a velha expressão: “ficar entre a cruz e a espada”.

Inquisição - condenação das "bruxas
Por toda a idade média acusações contra os que não seguiam os credos da religião dominante serviam como pretexto para condenações de bruxarias, heresias, e outros argumentos que tinham o intuito de forçar a aceitação daqueles valores religiosos. Sempre em plena harmonia com os interesses da classe dominante naquela e em cada época. Guerras e execuções monstruosas expunham os comportamentos intolerantes, da não aceitação das diferenças, e, principalmente, da livre escolha de cada um sobre a maneira de ver o mundo e de se comportar perante ele. O que era "permitido estava nos limites do que era tolerado pelas crenças religiosas, do apego a valores culturais escritos em milenares livros sagrados, em condições históricas e sociais completamente distintas.

O dogma, e seus valores inamovíveis, que constitui a espinha dorsal dessas religiões, sempre carregou preconceitos de outras épocas, aceitas como princípios e valores que não podem ser contrariados. E as mulheres sempre foram as principais vítimas dessas intolerâncias, submetidas aos papéis mais inferiores e à condição de submissão diante do poder autoritário do homem. Isso muda, aos poucos, com o passar do tempo, na medida em que aqueles grupos sociais submetidos ao preconceito conquistam vitórias e obtém, mediante lutas de décadas, leis que lhes favoreçam. A partir daí, preconceitos e atos de intolerância ora escondem-se em comportamentos hipócritas, ora assumem-se de formas violentas e fatais.

Com o advento do capitalismo essas intolerâncias assumem novos contornos. A burguesia necessitava romper com os valores culturais que vigorou por toda a idade média, e mesmo antes. Para isso era preciso não somente agir com dureza contra a nobreza decadente, mas também contra a instituição religiosa que determinava regras que a impediam de consolidar o seu poder dominante, naquele momento em ascensão. Por isso a divisão que surgiu no cristianismo foi um fator importante para a consolidação de novos preceitos dogmáticos.

O Estado capitalista assumiu a condução não somente das questões econômicas, mas também dos novos valores baseados, pelo menos em teoria, na liberdade, igualdade e fraternidade. Teoricamente também, os credos religiosos deveriam se submeter a esse novo poder estatal e a uma carta constitucional que deveria ser laica, a fim de garantir os preceitos democráticos, que deveria atender a todos indistintamente.

Na prática as coisas não aconteceram assim. Por trás das leis permaneciam resquícios de hábitos que continuavam impregnados naqueles valores milenares, e se ampliavam com uma nova lógica que determinava as diferenças a partir da capacidade do indivíduo de acumular riqueza. Assim, além das mulheres, homossexuais, negros, índios, também os pobres passavam a se constituir em alvos de intolerância, por se deslocarem para aqueles lugares que oferecessem as melhores alternativas de sobrevivência.

geografiaetal.blogspot - imigrantes
Muitas vezes estranhos àqueles ambientes essas pessoas tornavam-se malquistas por representarem ameaças aos indivíduos nascidos no lugar. Os estilos de vida diferentes, a cor da pele, e até mesmo as diferenças religiosas, passaram a definir uma nova lógica maniqueísta, que levou a guerras mundiais, com crimes coletivos aterradores. Mesmo quando as razões principais eram econômicas, as religiões estavam presentes, definindo comportamentos e acirrando ódios, quando em tese deveriam ser o oposto. Apesar das exceções, de quem seguiam preceitos éticos e de tolerância. Esses, se descobertos, seriam igualmente eliminados.

A luta em defesa da democracia prevaleceu em meio a muitas, sacrifícios e conquistas, principalmente como decorrência da derrota do nazismo e do fascismo, que em certo momento da história simbolizaram esse ambiente de acirramento das intolerâncias. Mas, sempre que uma determinada sociedade entrava em crise, sintomas crescentes de comportamentos intolerantes reacendiam e tornavam-se mais frequentes. E isso atingiu o auge, nesses novos tempos inaugurados com a chamada globalização e o crescente individualismo. Como em outras épocas a religião volta a se destacar, introduzindo novos valores, agora com a marca da “teologia da prosperidade”, por força do crescimento das igrejas neopentecostais.

Em algumas sociedades impera a contraposição aos “valores ocidentais”, e opõe cristãos x muçulmanos, muçulmanos x judeus, e mesmo no Ocidente, cristãos protestantes x católicos. Em todas elas, carregando dogmas seculares, se mantém e se acirram com as crises, a reação contra ateus, homossexuais e a preocupação em não dar às mulheres a plena condição de decidir sobre seu corpo. As mulheres sempre foram vítimas de preconceitos em todas as religiões.

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E isso explica toda a violência que se mantém até os dias de hoje. Ora, de onde são retirados todos os ódios que se dirigem aos mesmos alvos de tantos séculos? As piadas, os constrangimentos, as brutalidades, se disseminam com a mesma estupidez de sempre, mas vêm carregadas de novos estigmas. Novos na forma, antigos no conteúdo, pois seguem a mesma lógica. Mulheres continuam sendo agredidas, embora leis cada vez mais duras sejam criadas; homossexuais são atacados, espancados e assassinados, e tanto quanto as mulheres são impedidos de definir o que fazer de seus corpos, e de suas escolhas sexuais; pobres, são vistos como ameaças a jovens que se julgam no direito de determinar quem deve se dar bem nos vários lugares, cidades, estados ou nações; e os ateus, cujo crime é buscar ver  a vida na compreensão de que a explicação para tudo o que nos cerca encontra-se na própria biodiversidade em plena transformação desde milhões de anos e de que a crença em um deus é uma das mais perfeitas criações humanas.

Mas, então, o que explica o fato de mesmo após de tantas conquistas e leis tais preconceitos e atos intolerantes permanecerem? Em minha opinião a religião é um fator preponderante. Nesta nova etapa da vida humana, século XXI, potencializada pela mais perversa delas, a religião do capital. Essa, nos dias de hoje definem o fascismo moderno, acentuado nesses anos de globalização neoliberal, cujos alicerces se sustentam no individualismo, no egoísmo e na ganância.

O mesmo capital que se torna a causa que motiva guerras religiosas, seja na disputa por territórios sagrados, de enorme riqueza mineral, ou pela ferrenha disputa pelos dízimos de milhões de ingênuos seguidores de pretensos apóstolos divinos. A religião do capital impregnou a sociedade e fez aumentar a intolerância religiosa, porque quanto mais a disputa pelo dinheiro seja o fator primordial, mas se tem a necessidade de defendê-lo e ampliar constantemente a possibilidade de maiores ganhos.

Em contrapartida, mas também marchando lado a lado com os interesses religiosos seculares, a disputa pelo poder, a política, e a crescente radicalidade de discursos xenófobos (de aversão ao estrangeiro), moralistas e preconceituosos. Na disputa pelo poder, o grande Poder, as grandes corporações midiáticas, entram com sua parcela considerável de culpa, ao posicionar-se ao lado de partidos e de políticos que assumem comportamentos fundados na intolerância. E a razão clara disso sempre foi conter a ascensão de personagens populares que não estivessem diretamente vinculados às elites secularmente dominantes.

Isso se expressou não somente nos períodos eleitorais, mas na aversão às políticas de inclusão social que buscavam minimamente resgatar dívidas causadas por esses valores culturais dominantes e preconceituosos. As políticas de cotas tornaram-se alvos de articulistas conservadores e políticos reacionários. Os velhos sicofantas religiosos arrepiaram-se e afiaram seus discursos, tentando impor a todos suas velhas crenças com base na meritocracia.

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Com isso a radicalidade do discurso preconceituoso e intolerante construiu nos templos, nas redações, nas escolas, nas ruas estressantes e perigosas para esses segmentos, os novos fascistas, remanescentes de práticas seculares, tão estúpidos, hipócritas e criminosos quanto todas as demais épocas da história. E, muito embora a época moderna traduza-se pelos avanços de leis democráticas, a dependência da decisão de uma justiça refém também de valores conservadores e moralistas, e presa aos interesses da elite dominante, reforçava a velha sensação de impunidade que mantém as cadeias abertas apenas para os pobres.

Ainda no âmbito da justiça, esses fascistas modernos se municiaram não somente de velhas crenças, mas também na impunidade que o dinheiro proporciona, nas brechas da lei e no que nos mostra o censo carcerário, onde 70% não completou o primeiro grau e cerca de 10% é analfabeto. Ou seja, se a cadeia é feita para o pobre, o que impede neo-fascistas e neo-nazistas oriundos de famílias ricas, de agirem contra o que eles consideram escória?

O fascismo moderno não aparece espontaneamente na cabeça de jovens. É fruto de teorias preconceituosas e de instrumentos sociais que criam e reforçam valores que se baseiam na intolerância, na não aceitação das diferenças, e na liberdade de as pessoas definirem suas opções sexuais. Como na atitude bisonha e estúpida de um deputado pastor que pretendia criar medidas que desfizesse a condição de ser dos homossexuais. Como se uma lei pudesse conter as escolhas sexuais de qualquer pessoa. A não ser numa sociedade totalitária, controlada por um governo fascista.

Tudo isso sempre fez parte de dogmas que permanecem sendo instigados de forma instrumental em templos, tabernáculos, igrejas e mesquitas de todo o mundo, muito embora não se constitua em regra geral nem tenha relação com a fé individual, de cada pessoa, com sua legítima crença e liberdade de acreditar no que lhe convier. É algo construído pela religião, e os que controlam as igrejas, e por esses meios se apropriam da fé do povo.

São teorias também que fundamentam programas partidários que representam setores econômicos dominantes e a classe média alta, branca, mas que pelo reforço ideológico religioso dissemina-se indistintamente por todas as demais classes sociais, apontam para perigosos caminhos, se refletem de forma mais agressivas em alguns países, que se expandiram na medida do crescimento da crise econômica mundial e que tende a se ampliar com a pandemia da Covid19, juntamente com o medo e insegurança que afetam as pessoas.

A consolidação de direitos, e de medidas legais contra o preconceito é bem recente no Brasil. Data da elaboração da Constituição de 1988, juntamente com a criação de instrumentos de punição, como o Ministério Público, instituições que surgiram e se fortaleceram, algumas sem vínculos diretos com o Estado, mas também com a criação de Ministérios, Secretarias e delegacias, voltadas para a defesa dos direitos humanos e das mulheres. Mas essas estruturas e leis não estão sobrevivendo à nova onda conservadora, moralista e perversa que se instalou em nosso país desde a última eleição, reabrindo feridas antigas e destilando ódios e preconceitos, em nome da “família cristã” e de um deus perverso, elitista, criado por pessoas pérfidas e de mau-caráter. A marca desse fascismo dos tempos atuais está se impregnando mais fortemente na sociedade, e deixarão feridas que irão demorar a cicatrizar.

Como na vida nada é eterno, esse será mais um período que será superado, muito embora com sacrifícios, lutas de classes e processos intensos de confrontação seja política ou por meio de violência revolucionária. Pois é assim que se tem escrito a história da humanidade e as transformações sociais. Isso é inevitável.

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(*) Esse artigo é uma adaptação do original publicado neste Blog em 2012:

https://gramaticadomundo.blogspot.com/2012/03/as-origens-da-intolerancia-e-o-fascismo.html

sábado, 15 de agosto de 2020

O DESPERTAR DAS BESTAS (3ª PARTE)

O-despertar-da-besta-1969- José Mogica Marins

Em dezembro de 2019 escrevi neste blog o segundo artigo, com o mesmo título acima, em que analiso as transformações que aconteceram no Brasil na segunda década deste século. Uma análise que venho fazendo já há muito tempo, em outros textos que podem ser aferidos numa simples pesquisa sobre o que já publiquei relacionado à política brasileira e ao “cavalo de pau” que aconteceu na geopolítica mundial nesse período. Enfim, essa loucura toda não estava restrita somente ao Brasil.

Mas 2020 nos traria muito mais surpresas. Despertadas, as bestas infernizaram, literalmente, a política brasileira. Jamais se viu em nossa história política atos tão tacanhos, comportamentos impressionantemente estúpidos e uso de expressões chulas, feitas e ditas por um dirigente político alçado ao maior cargo de nossa república. No entanto, nos espantaríamos mais saber que existia, e existe, dentre os mais de 200 milhões de habitantes desse país, um quantitativo inacreditável de pessoas que não somente apoiam esses comportamentos, como garantem a sustentação de um governo absolutamente irresponsável. Reforçam, assim, atitudes que facilmente nos permitem avaliar os traços de caráter dos que atualmente comandam o estado brasileiro.

Ora, se entendemos ser fácil definir os traços de caráter dos que estão à frente do Poder, achincalhando a nossa frágil república, como é possível explicar tantos seguidores a lhes dar apoio e a compartilhar, por meio das redes sociais, atitudes que podem ser consideradas desprezíveis?

Nos artigos anteriores analiso as conjunturas políticas em dois momentos. Do golpe institucional de 2016, contra a presidenta Dilma Roussef, que levou ao poder o seu vice Michel Temer, político de perfil oportunista, que ascendeu a esse cargo como resultado do jogo político brasileiro tradicionalmente manchado por um presidencialismo de coalizão corrompido, no qual a esquerda sucumbiu estimulada pelo pragmatismo político;[1] ao resultado inesperado, mas consequência de uma série de situações criadas por erros dos próprios governos de esquerda, mas principalmente pela guerra híbrida que se desenrolou também aqui no Brasil, impulsionado de maneira decisiva pela grande mídia, que gerou como resultado um personagem do baixo clero político do Congresso Nacional, absolutamente inexpressivo em suas duas décadas de “atuação” parlamentar e transformou a nossa política em um mosaico estilo franksteniano. Ou pelo menos deixou bem nítido que esse problema de caráter pode não ser exceção, e possibilitou o despertar das bestas. O significado dessa expressão eu explico no segundo artigo.[2]

No entanto, mais do que um comportamento que identifica as características do perfil de indivíduos reacionários, sem caráter e absolutamente desprovidos de qualquer empatia, o que se desenvolviam eram mecanismos construídos por uma estratégia planejada, onde a estupidez e a disseminação do ódio percorriam por caminhos psicossociais, e encontravam na outra ponta uma quantidade grande de pessoas aptas a assimilarem todos os engendramentos perversos de ações e atos que adequaram ao século XXI práticas utilizadas em outros momentos da história que culminaram em genocídios, ditaduras, fratricídios, racismo, homofobia, xenofobia, feminicídio e outras perversidades. Em meio a tudo isso, o uso da fé como componente forte a manipular e incorporar o ódio por meio de valores tradicionais milenares, transpostos de uma era para outra anacronicamente, a repetir dogmas que em outros tempos possibilitaram perseguições, julgamentos morais, inquisição e assassinatos impiedosos por questões de escolhas ideológicas.

É preciso, no entanto, que saibamos compreender a dimensão exata de porque houve uma mudança tão radical no comportamento da população, que em menos de uma década passa a assumir escolhas e posturas tão diferentes, indo de um extremo a outro no espectro político brasileiro. E, também como se deu a reação a esse comportamento por parte dos segmentos de esquerda e dos setores mais intelectualizados da sociedade, tanto nas universidades, quanto na área cultural. Ao mesmo tempo, a necessária compreensão de como a conjuntura se altera rapidamente, não somente como consequência de ações políticas, mas por outro fator que passa a afetar todo o mundo, e completa uma realidade caótica que já se delineara com essas mudanças políticas. Mais do que o despertar das bestas, o que se viu foi um verdadeiro cenário apocalíptico, pior do que a humanidade já vira na Idade Média, com a peste bubônica, e no começo do século XX, com o vírus influenza, gerador da “gripe espanhola”.

A Covid19, gerada por uma mutação de um velho conhecido, batizado agora de Sars Cov-2, trouxe desorganização sistêmica, confusão pandêmica, recessão econômica com um freio em boa parte das cadeias produtivas e ajudou a disseminar um caos político que, em parte já estava em curso, por meio da estratégia que transformou a política brasileira. Embora não atingindo somente o Brasil, a pandemia gerou situações caóticas principalmente naqueles países cujos governantes assumiram o poder apostando no caos, desconstruindo a política e desmoralizando a democracia.

Sobre isso já fiz algumas abordagens e escrevi artigos tanto nesse blog quanto em revistas eletrônicas. Quero me concentrar nos resultados gerados pelo caos social e econômico, e o revés político que tem particularidades que merecem ser devidamente estudadas. A estratégia do caos, nítida no comportamento do governo Jair Bolsonaro é evidente, apesar de uma estabilizada momentaneamente em suas falas desconexas e aparentemente estúpidas, principalmente desde que o Supremo Tribunal Federal abriu investigação contra grupos de extrema-direita, fascistas, que fizeram da mentira uma arma e das redes sociais mísseis a mirar instituições e adversários políticos. Assim como devido à crescente investigação sobre o mal feitos de seus filhos, até a prisão de um velho aliado, e verdadeiro capataz, administrador de um séquito de assessores fantasmas de toda sua família. Até o “cercadinho” dos horrores, em frente à residência oficial, se desfez, alterando o comportamento que até então era de bravatas, bazófias e estultices, devidamente compartilhadas.

Em meio a tudo isso, uma indiferença fria e desumana aos milhares de brasileiros e brasileiras mortos vítima de uma doença para a qual ainda não existe vacina, e o governo a trata de maneira insignificante, com desdém impressionante. Escorado num auxílio econômico emergencial, que tem chegado a dezenas de milhões de pessoas, em muitos casos, com um valor bem acima do que era pago pelo Bolsa Família, embora abaixo das necessidades das famílias de pessoas pobres e desempregadas, o que se viu foi uma inversão na curva de impopularidade que o ameaçava nos últimos meses.

Não era uma mudança impossível de se prever. É sabido que todo governante se mantém com popularidade mediante ações que atendam a situações extremas do povo em condições adversas. Esse é um aspecto, que teve também seus momentos de glórias nos governos de esquerda, quando da investigação do “mensalão” e uma situação econômica que favorecia o governo, reelegeu o presidente Lula e impulsionou a candidatura de Dilma Rousseff, até uma virada como consequência dos descontroles fiscais e equívocos cometidos nas políticas de desonerações para beneficiar setores importantes da economia brasileira. Como sempre, principalmente em sociedades marcadas por desigualdades vergonhosas, a dependência do Estado faz com que o sabor das escolhas políticas, principalmente entre os mais pobres, esteja condicionado às circunstâncias das políticas econômicas.

A crise econômica potencializada pelo Covid19, a confusão política protagonizada pela família Bolsonaro et caterva, o medo do desemprego, as fake-news a gerar um vôo cego em boa parte da população em relação à essa doença, a insensatez, insensibilidade e perversões de todas as formas, espalharam na sociedade um efeito dispersivo, um comportamento aleatório, que evidentemente, só poderia beneficiar os que viam, e veem, no caos, o caminho para se imporem no comando político do estado brasileiro.

Enquanto isso o comportamento dos setores de esquerda, mesmo das camadas mais intelectualizadas, e dos setores culturais, embora mantivessem o espírito de combatividade que lhes é peculiar, pecou por agir seguindo a onda aleatória e sucumbindo à estratégia do caos. Adotou os mecanismos de enfrentamento que eram utilizados pelo bolsonarismo, transformando a política em um nonsense, caindo na armadilha de ir para um enfrentamento, nitidamente numa postura defensiva, tendo como base a ironia, a negação dos erros cometidos e a indiferença em relação ao poder religioso evangélico, tradicional e reacionário, que se escondia por trás de líderes-pastores travestidos de políticos, camaleões, que se infiltraram nos governos anteriores, mas que mantinham um projeto de poder entrelaçado com suas pregações nos púlpitos.

A esquerda abdicou do debate ideológico e transformou as redes sociais em ambientes tóxicos, tal qual a direita já vinha fazendo há anos. A ponto de se disseminar um outro efeito, causado pelas lutas identitárias, de uma já chamada “cultura do cancelamento”, pelo qual se atinge quem porventura cometer algum deslize no trato das questões relacionadas à essas lutas, mesmo que sendo progressista e de esquerda. Até mesmo setores do movimento anarquista, libertário, também alinhado com as lutas populares, passaram a tecer críticas ao movimento antifascista, em meio a denúncias de dossiês sendo feito pelo Ministério da Justiça contra esses movimentos, para serem repassados à Agência Brasileira de Inteligência, e até mesmo sendo entregues a autoridades estadunidenses. Ou seja, para onde é possível a população olhar e enxergar uma luz no fim do túnel, que não seja de uma locomotiva vindo em sua direção?

Isso explica, em parte, o inesperado resultado da pesquisa Datafolha, publicada no dia 13.08, dando indicativas de um crescimento da aceitação do governo Bolsonaro, em praticamente quase todos os segmentos sociais. Em alguns desses segmentos, principalmente entre os mais pobres, com pico elevado de aumento da popularidade, de um presidente que se caracteriza por banalizar a política e fazer do ridículo o elemento condutor de seus comportamentos.

Não há acasos na história. Para tudo existem explicações e causas que nos ensinam como se dão os processos de transformações sociais, as crises econômicas e o caos político, que sempre leva estados a situações de enfrentamentos entre classes sociais, processos revolucionários ou ascensão de governos autoritários e de viés fascista. Como numa guerra, se não houver um enfrentamento organizado, com uma estratégia adequada a fazer do combate ao inimigo resultados promissores e vitórias parciais e definitivas, também na política jamais se obterá sucesso se não houver planejamento nas ações, com objetivos bem delineados e aglutinação de forças que se sobreponham ao poder adversário e imponham sucessivas derrotas. Nenhuma vitória será possível se não houver essa conjunção de fatores, e, principalmente, a adoção de atitudes, ações e proposições coerentes, que consigam levar à população uma confiança capaz de reverter os caminhos pelos quais ela está seguindo. Caso contrário, o adversário, mesmo apostando no caos, na ignorância e na estupidez, se sagrará vitorioso nesse embate de forças para conquistar apoio político e desencadear um processo de virada no espectro político no país.

Charge - Para além dos cérebros

Não me parece que, neste momento, a esquerda esteja conseguindo fazer isso. Pois não consegue se unificar, não possui uma estratégia adequada, os vícios da hegemonia na disputa do poder se mantêm como freio à qualquer aliança possível, e a ilusão eleitoral como saída dessa situação. É evidente, que em se tratando de uma democracia capitalista, o processo eleitoral é determinante. Mas ele não pode ser visto como um instrumento de transformação, senão como consequência das transformações que possam ser feitas a partir da organização e conscientização das massas populares e das camadas trabalhadoras. É o contrário do que está sendo feito, quando se busca obsessivamente por mandatos que possam influenciar a forma da população se comportar politicamente.

Infelizmente, as organizações sociais e entidades de trabalhadores transformaram-se em clubes de simpatizantes de causas, que embora justas, não agregam senão aqueles que já são militantes e/ou os que possuem uma postura crítica e de esquerda. Isso não é suficiente. As periferias das grandes cidades, e as pequenas cidades, estão sendo tomadas por forças conservadoras, neopentecostais, que destroem a capacidade crítica das pessoas, e as aprisionam em valores que são geradores de ódios e intolerância.

É claro que essa indiferença das pessoas em relação à importância de suas participações em sindicatos e associações, não se deve somente a erros de estratégia da esquerda. Mas também foi algo construído ao longo de tempo, com medidas cerceadoras contra essas entidades, mudanças que implicaram em reduzir suas finanças e leis que pulverizaram o sindicalismo, de forma a possibilitar sua divisão. Embora essa fratura tenha sido aceita por muitos da própria esquerda, como desejada, a fim de cada partido poder possuir uma central sindical como instrumento de suas lutas.

Restou à juventude manter sua unificação em torno de suas entidades nacionais, nos âmbitos secundaristas, universitário e pós-graduandos. Malgrado as diferenças que existem ideologicamente em seus meios, o que não é um problema em si, desde que as divergências não ajudem mais o inimigo do que à suas causas. Porque é a essa juventude que recairá o peso maior tanto das consequências dessas políticas nefastas que estão destruindo o estado brasileiro, e a educação como principal alvo, como também porque terá que sair dela, da juventude, a força que poderá fazer com que o futuro do nosso país não seja na direção de um estado fascista, guiado por uma sharia cristã neopentecostal a se contrapor a uma constituição laica e progressista.

Evidente que a esquerda brasileira não é um monolítico. Como também a direita não é. Mas a coesão quase sempre se dá quando uma conjunção de interesses, que mirem em objetivos coletivos e em prol da sociedade, se sobrepõe à posturas hegemônicas, individualistas, com preocupações focadas meramente na ampliação de suas organizações e que se imponha sobre vaidades de líderes que se cegam, e mantem a cegueira como uma doença transmissível para os seus seguidores, que passam a agir truculentamente contra os que não sigam as suas concepções políticas e interesses eleitorais.

Não pretendo carregar aqui o baú da verdade absoluta. São apenas visões, críticas, que acumulei ao longo desses anos, expressos em artigos críticos já publicados aqui neste blog, e que podem ser revistos, claro atentando-se para as datas em que foram escritos. Mas o que desejo é, mais do que querer ser lido compulsivamente, o que do alto de minha pequena modéstia sei ser impossível, é desabafar em relação à uma conjuntura que me aborrece, me intranquiliza e me deixa frustrado depois de quatro décadas de lutas, imaginando poder ver na minha velhice uma parte do nosso caminho pavimentado na direção de uma sociedade menos desigual, tolerante, crítica, avessa ao autoritarismo, defensora do livre debate e da aceitação das ideias divergentes e das concepções e posturas diferentes, como uma condição de ser humano.

Como já escrevi em outros momentos, o futuro não existe. Ele é uma construção do presente, que pode dar certo ou errado a depender dos ensinamentos adquiridos pelo passado. No momento, infelizmente, o futuro é sombrio, tendo como referência as condições em que estamos vivendo. Mas é evidente que é possível mudar, as mudanças estão em nossas mãos. No entanto, isso só será possível se aquelas pessoas que assim desejam, compreenderem que é necessário alterar o curso da história, e que isso só será capaz de acontecer, se mudarem também seus comportamentos, adotarem estratégias coerentes e criarem novas condições para que o nosso futuro possível seja melhor do que o presente.

Por fim, para não deixar a poesia de lado, insiro os versos de uma música de Caetano Veloso, que se encaixa bem nesse momento:[3]

“Enquanto os homens exercem seus podres poderes, motos e fuscas avançam os sinais vermelhos, e perdem os verdes... Somos uns boçais. Será que nunca faremos senão confirmar, a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos? Será, será que será que será que será, será que essa minha estúpida retórica, terá que soar, terá que se ouvir, por mais zil anos?” 

 


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

TODOS NÓS SOMOS AMERICANOS – REFLEXÕES SOBRE A APROPRIAÇÃO DO NOME DE UM CONTINENTE PELOS EUA

Esse é um assunto que de forma recorrente trato em minhas aulas de geopolítica[1]: a apropriação do termo “americano” pelos Estados Unidos da América. Desta feita vou partir da leitura de um texto de Michael Walzer,  “Que significa ser americano?”,[2] quando o autor propõe uma reflexão sobre não somente o sentido dessa expressão, como do próprio caráter da identidade do cidadão nascido naquele país, bem como de sua relação com o caráter da nação, ou do nacionalismo.

Mas a meu ver, além de uma opinião muito focada das concepções liberais republicanas, afinadas com os setores conservadores, ele peca ao omitir um elemento que é crucial para entendermos esse processo de afirmação dos EUA como um estado imperialista, e da apropriação do sentido de ser “americano”. Refiro-me à questão religiosa, cujos elementos foram norteadores do manifesto que impôs à governança estadunidense os caminhos que passaram a trilhar a partir do século XIX, e a enxergar o restante da América como submissa aos seus interesses imperais.

Podemos, e devemos sempre, encontrar as respostas para as origens dessa apropriação com uma rápida digressão histórica. Mas antes eu quero dizer que sou, e sempre fui, apaixonado na história dos Estados Unidos, em todo o seu processo desde a transformação de colônia em um dos primeiros países independentes e de constituição republicana, por meios revolucionários. Bem como se deu sua expansão territorial se apropriando de terras mexicanas, adquirindo territórios dominados pelos franceses e até mesmo pelos russos. E suas conquistas territoriais que conta-se pela bravura dos exploradores, mas omite-se o verdadeiro genocídio do povo autóctone, os indígenas. Apaixonar-se por uma história não significa compactuar com os malfeitos, muito menos aderir aos arroubos imperiais ou imperialistas que passaram a caracterizar esse país a partir do século XIX.

Tenho repetido que os Estados Unidos nasceu como um país sem nome, e essa “deformação” deveu-se à escolha das lideranças de suas colônias, quando do processo de luta para libertar-se das explorações impostas pelo império britânico e que se tornou a luta pela independência.

Na verdade, houve uma união de treze colônias, que se juntaram para lutar contra os ingleses, a partir da resistência em aceitar os exorbitantes impostos cobrados pela produção de chá. Ao final de uma intensa e sangrenta luta, a declaração de independência não firmou, como se deu, por exemplo, na França, um Estado-Nação com sentido federado e unificado.

A declaração de independência manteve a autonomia pré-existente, considerando cada uma das treze colônias com plenas liberdades em aspectos que visavam reforçar o sentimento de que elas possuíam características identitárias próprias, refletidas nas origens tanto religiosas como étnicas (na falta de outro nome). Ou seja, suas histórias de vidas mantinham-se vinculadas a outras nações, de onde originalmente vieram.

Criou-se assim os Estados Unidos, da América, continente que abrange dezenas de outras nações e nacionalidades. Cada um dos Estados (ex-colônias) manteve sua autonomia em questões que dizem respeito a valores que se encontram na base de suas formações, garantindo na constituição o direito ao Estado - no sentido mais geral -; a formulação das fronteiras, a defesa de seus limites territoriais e a formação de um poder militar que os defendesse de agressões externas. Isso até a eclosão da guerra civil, que só veio reforçar esse paradoxo, e rompe com um sentido de nação.

A guerra de secessão tornou-se um delimitador dessa situação. Após esse conflito os Estados Unidos aproximaram-se da formação tradicional de um estado nacional moderno, tal qual construído pela burguesia a partir da decadência do feudalismo e do fracasso do absolutismo.

Walzer analisa essa formação a partir de suas origens, e, abordando as características de um país construído a partir de fortes movimentos migratórios, ressalta a dificuldade, partindo dessa formação, de os Estados Unidos se aceitarem enquanto Nação.

Mas o “ser” americano, a meu ver, se explica pela adoção de um comportamento agressivo, já de um Estado Nação constituído, embora sem nome, cuja característica assumida aproximou-se da antiga metrópole contra a qual séculos antes ele se batera e conseguira libertar-se.

Pintura (cerca 1872) de John Gast
chamada Progresso Americano
 - wikipedia
Dois movimentos para isso foram fundamentais. Ideológicamente isso se concretizou mais adiante, no final do século XIX. Além das teorias geopolíticas, necessárias ao controle do domínio dos mares, e consequentemente de toda a América, um mecanismo religioso consolida essa postura imperialista. O chamado “Destino Manifesto”, pelo qual entendia-se que os Estados Unidos teria recebido por influência divina o poder de garantir a liberdade e segurança de toda a América.

Por outro lado, as estratégias geopolíticas de militares-teóricos, como Alfred Mahan e Nicholas Spykman, que propunham o controle por parte dos Estados Unidos dos dois oceanos, o Atlântico e o Pacífico, e a necessidade da influência militar sobre toda a América. Rechaçando toda e qualquer ingerência europeia, ou de qualquer outro continente, sobre o território americano. A guerra contra a Espanha, no final do século XIX, e o controle assumido após esse conflito sobre algumas colônias, como Cuba, foi o início dessa nova etapa de um país que começava a constituir-se em um novo império.

A palavra de ordem, “A América para os americanos”, veio juntar-se à concepções de uma política intervencionista agressiva, consolidada pela chamada “política do porrete”, ou o “big stick”, ameaçando todos aqueles que ousassem invadir o solo americano.

Impõe-se assim, pela força de um país que se fortaleceu e se unificou politicamente a partir da guerra de secessão, o domínio sobre antigas colônias britânicas, espanholas e portuguesas. Senão no sentido tradicional, mas agindo de outra forma, estabelecendo em cada uma delas governos submissos e/ou subalternos.

A expressão Estados Unidos da América se consolidou, assim, a partir do final do século XIX, não somente como dando sentido a um Estado Nação de característica diferente, porque manteve-se a autonomia de todos os seus novos Estados-províncias, mas impondo-se sobre os demais no continente, assenhoreando-se do termo “América” e “americano”.

A difusão desse termo, a ponto de tornar-se uma expressão definitiva da identificação de quem é nascido nos Estados Unidos deveu-se ao poder que essa potência passou a exercer por todo o continente americano. Principalmente devido à submissão secular das elites tradicionais dos países coloniais, que aceitaram essa influência e a apropriação do termo americano, e se propuseram a difundi-lo em todo o seu aparato midiático.

De tal forma que essa expressão passou a ser comumente utilizada, inclusive em livros didáticos, embora nitidamente farsesca e historicamente uma vergonhosa mentira, aceita inclusive por intelectuais, dentre os quais muitos historiadores.

A apropriação do termo “americano”, por um país que surge sem nome, e a aceitação submissa por parte das colônias políticas e culturais, demonstra o enorme poder, que, a partir do final do século XIX, o império estadunidense passou a impor para toda a América, e daqui para o mundo a partir do início do século XX.

Considerar o cidadão nascido nos Estados Unidos, como americano, é tanto uma verdade como dizer que os que nascem no Brasil, no Uruguai, no Chile e em tantos outros países desse imenso continente chamado América, também o são. Assim como são europeus os que nascem na França, na Alemanha, Irlanda etc. etc... etc...

Mas porque insistir em falar de americano aos que são estadunidenses? É o velho hábito, que se tornou uma cultura política, mantido pelo força da coerção, da subserviência e da aceitação do poder imperial. E, principalmente, porque todo o aparato midiático insiste em repetir cotidianamente, como a reforçar a necessidade de nos considerarmos inferiores, posto que o poder do império se impõe por toda a América. Isso, pode-se também dizer, tornou-se uma tradição pelo comportamento de elites assumidamente provincianas e submissas.

Resta-nos apostar que as futuras gerações conseguirão romper com esse forte domínio de uma cultura política que já se aproxima de duzentos anos. É salutar perceber que nos novos livros didáticos brasileiros gradativamente o termo estadunidense já começa a substituir a palavra americano, no contexto aqui analisado.

Particularmente nada tenho contra os cidadãos nascidos nos Estados Unidos. As questões, de ordem geopolítica que aqui analiso dizem respeito a políticas de dominação secularmente impostas sobre os demais países americanos, desde o México até o Uruguai, por uma potência imperialista. Aliás, diga-se ainda, que alguns, para fugir do uso do termo americano, o substitui por norte-americano, reduzindo o alcance do erro, mas transformando Canadá e México em duas províncias dos Estados Unidos.

Para que a História seja justa com aqueles que tentaram uma unificação americana, devem-se resgatar os ideais de Simón Bolívar, responsável pelas lutas de independências em vários países, dentre os quais, Bolívia, Equador, Venezuela, Panamá, Peru e Colômbia. É possível que os ideais de integração bolivariano para a América Latina tenham preocupado o emergente poder imperial dos Estados Unidos, se antecipando a uma provável luta pela união dos estados americanos.

Importa ao final enfatizar a compreensão de que os Estados Unidos não é a América. E a América não é os Estados Unidos. O continente americano tem nos últimos anos se deparado com situações que nos apontam para um resgate cada vez maior das identidades dos povos que habitam cada um de seus países. Mas deverá também consolidar cada vez mais o sentimento de que a América não é o quintal de um grande império, mas um continente a reforçar cada vez mais a sua identidade.

Afinal, todos nós somos americanos!


NOTAS:

[1] Este artigo foi publicado originalmente em 12 de agosto de 2012. Foi revisto e atualizado. https://gramaticadomundo.blogspot.com/2012/08/todos-nos-somos-americanos.html

[2] O que significa ser um americano ( Marsilio Publishers , 1992) ISBN  1-56886-025-0.   http://www.sociologicamexico.azc.uam.mx/index.php/Sociologica/article/view/850/823

 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

TEMPOS PERIGOSOS, EM QUE NEGAM AS CIÊNCIAS E DESTROEM AS ESPERANÇAS

As abordagens que tenho feito e escrito aqui neste blog fogem do padrão tradicional de artigos acadêmicos. Embora eu seja docente há 25 anos, na Universidade Federal de Goiás. Mas a criação desse espaço teve como objetivo criar um canal de comunicação mais fácil, de textos que não exigissem o esforço intelectual comum nas leituras de artigos científicos. Embora nosso desejo não seja fugir da abordagem científica, nem acadêmica, mas tornar mais fácil o entendimento acerca das ciências humanas, da geopolítica, do nosso conhecimento teórico, daquilo que assimilamos pelas notícias cotidianas e a experiência de nossas vidas.

Assim, identifico essas abordagens como crônicas de um cotidiano no qual estou envolvido, pelo olhar de historiador e doutor em Geografia, especializado no campo do conhecimento que aborda as relações internacionais e as questões políticas locais e para além-fronteira. Mas que abrange também as formas de funcionamento das sociedades e suas relações, a nossa especialmente. Compreendo que há cada vez mais elementos da geopolítica em nosso cotidiano, já que a sociedade capitalista ao mesmo tempo em que centraliza, pulveriza o poder. Uma contradição, naturalmente mais uma de tantas que marcam esse sistema controverso, embora vitorioso até aqui diante de outros já tentados.

Fomos escrevendo e produzindo essas crônicas, procurando compartilhá-las em um ambiente que foi ao longo do tempo se tornando tóxico: As redes sociais. Tanto o Facebook, que com uma característica comercial faz com que seus algoritmos selecionem o público que irá ter acesso a cada postagem, assim como a quantidade percentual, que quase sempre não passa de 15% (a menos que se pague para ter uma visibilidade maior), além de permitir a disseminação de perfis falsos propagadores de fake news; o whats app, que cumpre mais o papel de compartilhar informações interpessoais, mas que se tornou instrumento de difusão de notícias falsas ou distorcidas por meio de robôs; o Instagram, mais utilizado entre o segmento jovem; o twitter, esse com o potencial de gerar mais polêmicas, porque se constituiu na ferramenta mais importante para políticos e celebridades se destacarem e o You Tube, que impulsionou uma grande quantidade de novos comunicadores, chamados “youtubers”, que atingiram grande alcance de público e enorme visibilidade, com muitos se tornando instrumentos da extrema-direita que formaram opiniões com base em destruição de reputações e disseminação de ódios e comportamentos intolerantes.

Essas redes sociais se encarregaram de conceber a cada indivíduo uma espécie de dom do conhecimento geral e genérico. Apesar de isso ser algo que pudesse significar ampliação da democracia, com a liberdade de cada um poder se manifestar e opinar livremente, numa sociedade desigual do ponto de vista do conhecimento. Mas não foi esse o resultado.  Numa realidade em que uma classe média e ricos se julgam superiores não pelo que sabem, mas pelo que possuem, a ignorância e estupidez assumiram mais relevância, de forma rápida e estonteante, dificultando uma compreensão da verdade e da realidade.

Não se pode conhecer a realidade sem que se tenha uma capacidade de discernimento sobre as dimensões do Poder. O Poder com “P” maiúsculo, como diferencia Claude Raffestin (Por uma Geografia do Poder), inspirado em Michel Foucault. Na identificação do que envolve as questões de Estado, das grandes governanças globais e das empresas multinacionais, enormes corporações que comandam a economia, as finanças mundiais e a política. Muitos não têm a dimensão disso, e ficam submetidos a informações ideologizadas, apresentadas como anti-ideologia.

Essas são feitas por demagogos, conservadores, oportunistas, políticos obtusos, bem como por dogmas difundidos por indivíduos mal-intencionados. Passou-se a disseminar muito rapidamente discursos toscos, racistas, xenófobos e intolerantes em relação às escolhas individuais, seja no tocante à sexualidade, à liberdade de crença e de não-crença em divindades, e, principalmente a não aceitação do empoderamento das mulheres. O conservadorismo assumiu, assim, pelo caminho da ignorância e da estupidez uma direção que tem nos levado a uma sociedade marcada pela intolerância e ódio. Ou que serviu para despertar o que de pior existia, e estava submerso, nessa sociedade.

Igrejas espalharam-se celeremente, pelas periferias e até mesmo bairros nobres, aproveitando-se do desespero, angústia e, principalmente, dos medos que povoam a vida das pessoas, numa sociedade violenta e desigual. Não pregam o fim das desigualdades. Fazem do medo um instrumento de dominação, de mentes e de corpos. Não usam a solidariedade como forma de construir uma sociedade mais altruísta, ao contrário, estimulam frases ditas há milênios, como se elas se adequassem a todas as formas de sociedades por todos os tempos, acentuando a intolerância e o desrespeito quanto às diferenças.

Nos últimos anos, com a ampliação de uma crise econômica mundial, a frase que mais tem sido representada pelos discursos políticos e vieses conservadores que saem dos púlpitos e tomam conta das bravatas políticas tem sido “olho por olho, dente por dente”, além do crescente sentimento xenófobo, de um nacionalismo pérfido e intolerante. Naturalmente, este é o caminho da barbárie. Com o surgimento da Covid19 e a pandemia, essas vozes se tornaram mais presentes, repercutindo fortemente pelas redes sociais, e por canais de televisão, negando a ciência e os estudos científicos, já comprovados por experiencia e demonstrações que vêm sendo confirmadas há séculos. Até ao ponto de se gerar campanhas anti-vacinas, distorcendo a realidade e impondo às pessoas, pelo medo, a busca da cura milagrosa pela fé e o uso indiscriminado de medicamentos receitados por charlatões.

Nos deparamos em verdade, com um tempo em que disseminam-se informações curtas e superficiais por um lado, e, por outro lado, em função de todo um processo de desconstrução das ideias que se firmaram na primeira década do século e que levaram a esquerda ao poder, surgiram alguns arautos da inconformidade, do caos, resgatando discursos medievais, fomentando o medo e disseminando perversões em nome de deus e do resgate do sentido tradicional de família. Nos faz lembrar dos fascistas integralistas na era Vargas, década de 1930, e da malfadada TFP (Tradição Família e Propriedade), que nos anos sessenta e setenta desfilava suas loucuras reacionárias pelas ruas com estandartes em que pregavam a salvação pelos céus e abominavam o comunismo. Eram os tempos da guerra fria e vivíamos sob o domínio de uma ditadura militar. Não é uma repetição da história, mas até isso já se pode ver novamente pelas ruas.

Loucura, estupidez, burrice, intolerância, ódio e um absoluto esvaziamento dos cérebros por meio de repetição de frases bíblicas, de anacronismo, e de força de um neopentecostalismo que faz dos templos espaços de perversão, usura e negócios que extrapolam o que se pregava da fé cristã.

Dentre as aberrações que se diz nos dias de hoje, e que se tornou um mantra repetido ad nausean, tem sido “desideologizar” “sem viés ideológico”. Ora, ideologia é o elemento superestrutural que nos move, e nada mais é do que o conjunto de ideias que determinam as formas como se dão as relações sociais. Pode haver uma ou mais ideologias dominantes, bem como outras que são expressas por grupos que não estão vinculados às classes dominantes, sejam econômica ou politicamente. Assim, é impossível haver qualquer forma de governo, ou qualquer tipo de sociedade, que não seja organizada a partir de ideologias.

Elas se apresentam na forma de religião, na constituição de organizações políticas e sociais, em agrupamentos que se opõem ao establishment e defendem o fim do estado e de todas as formas de dominação, estão em todas as construções filosóficas que representam hábitos e estilos de viver e de contemplar a realidade e o que pode existir para além dela. Ideologia faz parte de nossas vidas, não há como viver sem uma. Acreditar que um governo comandará um estado “sem viés ideológico” só exprime total ignorância e desconhecimento da própria realidade em que se vive.

Mas isso passou a existir. O discurso construído teve como alvo, em um ambiente onde as mídias insuflaram a desesperança e a descrença, os mais pobres, aquelas pessoas frustradas, despolitizadas, sem perspectivas pela frente e atropeladas pelo passado, os que acumularam ao longo da vida frustrações, tendo alimentado a crença que a culpa era deles próprio, não do sistema, e que somente a fé poderia lhes dar algum alento, e os ressentidos, que não se alimentavam dessa fé e passavam a ver na política a responsável por seus fracassos, demonizando indistintamente os que porventura estivessem em algum cargo público.  

Essas percepções, e a enorme quantidade de pessoas facilmente alvos desses discursos, se encaixaram perfeitamente como numa tempestade perfeita, numa conjuntura de forte crise econômica e de caos político, que se criou aqui no Brasil com a disputa visceral pelo poder e a não aceitação do resultado eleitoral de 2014.

Essa não é uma situação fácil de desfazer, porque essas concepções se enraizaram, estão consolidadas pela maneira como a política foi desconstruída e a democracia desmoralizada, como já dito, pelas ações vis que se disseminaram pelas redes sociais.

Assim, diante de um comportamento completamente avesso ao conhecimento científico por parte daqueles que assumiram o poder nesse contexto caótico em que nosso país foi metido, pelas “fake news” e pela estratégia goelbesiana adotada pela grande mídia, tornou-se difícil tentar racionalizar um debate. O contraditório passou a ser negado, como se isso fosse possível, e o debate substituído por ironias, zombarias, ridicularização, menosprezo, escárnio, ódio, desprezo, intolerância, raiva etc.

Esse ambiente foi gestado nos últimos seis anos aqui no Brasil, mas construído há mais de uma década pelo mundo afora, se acentuando quando os EUA deram uma guinada ao escolher seu presidente, elegendo um negro de viés liberal, Barack Obama. Que pela sua postura era visto naquele país como um esquerdista, além da sua própria cor incomodar uma elite branca perversamente intolerante com a diversidade étnica. Muito embora ele fizesse parte do establishment naquele país. Depois disso vingou naquele país, e se espalhou para outras partes, o supremacismo racial, a intolerância política, a homofobia e reforçou com bastante força o machismo, a agredir com mais visibilidade as mulheres.

A partir daí, e em um ambiente de uma grave crise econômica, a política deixou de ser aquele elemento que serve para aplacar as crises, e passou ela própria a fabricar crises, ao sabor de interesses conservadores, de ideologias reacionárias no combate aos comportamentos libertários e de ampliação do poder das igrejas neopentecostais, cada vez mais envolvidas na disputa do Poder político, visando desconstruir as mudanças de comportamentos celeremente em curso e representativas de uma época de forte mudança e de transição.

A política foi derrotada, e em meio a essa onda nefasta de estupidez, tem levado junto a democracia. As duas perderam validade e confiança. No choque desses elementos, envolvendo a força dos avanços dos direitos sociais com os freios conservadores que se ampliaram em meio ao medo gerado pela crise e alimentado pelos púlpitos e pela mídia, abriu-se um enorme abismo que se ampliou indiferente à possibilidade disso se transformar em um enorme caos, com a pandemia. É o tempo da cegueira que se conta pelas páginas bem descritas do escritor português José Saramago. Impossível saber onde vamos parar, já que fica cada vez mais impossível enxergar saídas e alternativas para esses dilemas.

Do lado de cá, preparado para brandir como arma uma ideologia que preze pela solidariedade, pela comum união e pelo respeito à diversidade, sigo enxergando ao longe a utopia. Como aprendi, ela me ajuda a seguir em frente, embora a veja cada vez mais distante à medida que me afasto dos tempos em que meu corpo me garantia mais energia e força para lutar por aquilo que acredito. No momento insisto em escrever, torcendo para que as novas gerações consigam chegar ao fim do último parágrafo, nessa época de informações parciais, curtas e abstratas.

A minha geração fez o que pôde, acreditou que era real o que ainda era utopia, e cabe aos mais novos construir com solidez outros caminhos, que levem na mesma direção do que acreditávamos ser a construção de uma sociedade mais justa, solidária e menos desigual.


(*) Essa crônica é uma adaptação de outra escrita em janeiro de 2019 - https://gramaticadomundo.blogspot.com/2019/01/tempos-insidiosos-como-combater-os.html