quarta-feira, 27 de maio de 2020

DESGLOBALIZAÇÃO – A DESTRUIÇÃO DOS ORGANISMOS MULTILATERAIS E A NOVA GUERRA FRIA

Algumas questões têm me chamado muito a atenção durante essa crise que afeta o mundo todo. Não é deste ano que me dedico a analisar todos esses processos históricos, e os do tempo presente, que nos envolvem diretamente nesses tempos em que vivemos. A função de historiador é exatamente essa, remexer o passado, investigar fatos e circunstâncias que levaram a transformações que marcaram épocas, seja por meio de revoluções ou sucessivas crises estruturais ou conjunturais. Com a Geografia, e por meio da Geopolítica, ampliei esse meu olhar.
Mas a sucessão de eventos, principalmente nessas duas últimas décadas, tomam nosso fôlego, e nos consomem em indagações e perplexidades, quando começamos a estudar a celeridade das mudanças que se seguiram na contraposição da Globalização, mas paradoxalmente, acontecidos exatamente por causa dela, decorrente da intensa integração e aceleração do mundo contemporâneo, mas sobretudo da corrida ambiciosa nas disputas hegemônicas pelo controle do poder militar e do mercado mundial.
Inclui-se nessa lista de eventos do monumental ataque terrorista às torres gêmeas, o World Trade Center, nos EUA, e as guerras que lhe sucederam, até essa terrível pandemia gerado pelo vírus, até agora invencível, “Sars Cov-2”, passando pela grave crise econômica que explodiu em 2008 e todos os conflitos que se espalharam pelo mundo, potencializados, ou estimulados, pela guerra híbrida e pela nova modalidade de desnorteamento e propagação do ódio, na esteira das crises: as fake news.
Tão rápido e intenso quanto se deu a globalização, cuja característica marcante em seu DNA foi justamente a rapidez e a celeridade das transformações, técnicas, científicas e informacionais, nos deparamos com o transbordamento do que se pretendeu construir nesse mundo movido por uma ambiciosa etapa da revolução industrial do capitalismo. Eu prefiro não me referir a esse processo como sendo uma “terceira revolução industrial”.[1]
Uma sucessão de crises, que já impactava o capitalismo desde os anos 1970, levou a desestruturação do socialismo real quando este se abria para o mercado mundial, e possibilitou uma reviravolta impressionante nos rumos da humanidade, desde o final da década de 1980, acelerando nos anos 1990 e atingindo seu ápice na primeira década desde século. (HOBSBAWM, 1995, pp. 465-479) Até que em 2008 a “bolha” estourou, desnudando um sistema que passara a ser caracterizado pela frivolidade das relações humanas, que se tornaram coisificadas, desprovidas de sentimentos humanitários e solidários, salvo os momentos em que isso servia a interesses marqueteiros, e pela obsessão muito mais nítida e desavergonhada pela busca e ostentação da riqueza.
A ganância tornou-se parte da condição meritocrática, um valor intrínseco à lógica perversa e individualista da ascensão social a todo e qualquer custo. Naturalmente que esse caminho levaria a sociedades dominada por valores perversos e insensíveis diante das fragilidades humanas, que se ampliavam à medida em que as estruturas globalizantes (bancos, corporações, bolsas de valores, organismos mundiais, mecanismos de controles etc.) se fortaleciam e concentravam as riquezas no topo da pirâmide. (HARVEY, 2018, pp. 203-205)
Indubitavelmente o mundo passou por uma acelerada transformação. O capitalismo chegou a ser considerado como a última etapa da humanidade e o “mercado”, o deus todo poderoso da ganância, seria o balizador das competências individuais, ou nas relações entre os estados-nações. A aceleração tecnológica atingiu patamares surpreendentes, e o tempo em que se descobrem inovações se encurtava rapidamente. (HARVEY, 2016, PP. 11-12)
Entramos na era da robotização com a inteligência artificial, algo adiantado pela ficção cinematográfica desde os anos 1980, mas bem antes pela literatura, a partir de meados do século XX, com a obra de Isac Asimov, “Eu Robô”. Uma série de contos que estimulou realmente muitos estudiosos e cientistas, e inspirou um filme produzido em 2004.[2] O mundo projetado no filme é 2035, mas a realidade tem se intensificado mais rapidamente do que a ficção. O que deve se acelerar no pós-, pandemia.
Mas o caráter absolutamente expansivo do capitalismo, e a forma como o mundo entrou numa desesperada competição, seja entre as pessoas, e principalmente entre os países, notadamente os mais ricos, levou ao limite das relações políticas, e o que se dissemina atualmente é ódio, preconceito e xenofobia. E uma forte disputa entre as duas maiores potências mundiais: EUA e China.
O mundo tornou-se pequeno para os desejos de grandiosidade, de inventividade e de necessidade de se produzir em escala crescente para abastecer mercados cada vez mais fluídos, e poucas décadas após se encerrar o ciclo bipolar que prevaleceu no pós-guerra e termos entrado nessa fase denominada globalização (ou mundialização, como gostam de se referir os franceses), esse curto espaço de tempo histórico de três décadas, politicamente dirigido pelas ideias neoliberais e em meio ao deslumbramento da globalização, chegamos ao fim de uma época que passou da unipolaridade para a multipolaridade, e, parece, retornar à bipolaridade. Encontremos um réquiem para a globalização.

OS ORGANISMOS MULTILATERAIS E A GEOPOLÍTICA GLOBAL

Antes de entrarmos nesse ponto, cabe esclarecer que os organismos multilaterais, que tiveram um papel importantíssimo na globalização, não foram criados a partir desses processos de integração mundial pós-guerra fria. A seguir apresento um quadro com o ano de fundação e o objetivo de cada um deles, para que possamos acompanhar o raciocínio sobre para o que eles vieram, o papel que cumpriram durante todos esses anos e o que está acontecendo nesse momento em que a globalização se esfumaça.

Essas instituições foram criadas, sempre, em períodos de crises, na maioria das vezes em pós-guerras, e, principalmente depois da segunda grande guerra mundial. (HOBSBAWM, 1995, p. 419) O advento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) acentuou essa necessidade. Portanto, para além das dificuldades geradas por essas guerras, uma outra se tornaria mais importante, e se faria necessário a criação de organismos multilaterais que, a princípio, servisse para reforçar os interesses dos países ocidentais, no âmbito de uma luta que se tornaria crucial para os destinos da humanidade: a guerra fria.
Evidente que alguns desses órgãos cumpriram a importante função de estabelecer alguns limites ao belicismo, e em determinados momentos foi crucial no equilíbrio necessário entre esses dois mundos que se armavam perigosamente, inclusive com enormes arsenais nucleares. E, muito embora para manter esse equilíbrio algumas regras impostas tenham sido estranhas nas relações com a maioria dos estados-nações, como por exemplo deixar a critério de cinco grandes potências a capacidade de decidir os destinos do mundo. Eram, e são ainda hoje, as únicas com poder de veto no Conselho de Segurança. O que, pelas regras da Organização das Nações Unidas, implica na necessidade de haver consenso entre esses cinco países para que quaisquer sanções possam ser executadas.
Poucas vezes isso ocorreu nas últimas décadas, e em uma dessas vezes, por manobras embutidas nas entrelinhas de uma resolução, possibilitou que os EUA e aliados da OTAN perpetrasse atos arbitrários contra a Líbia, influenciando vergonhosamente no assassinato do presidente de uma Nação soberana, por interesses escusos, embora possíveis de serem entendidos. O resultado disso é que até hoje a Líbia se encontra em um intenso conflito e tornou-se mais um dos estados párias na constelação das nações impactadas por decisões que interessavam ao poder imperial dos Estados Unidos da América. (BANDEIRA, 2013, pp. 287-303)
Pouco a pouco desnudou-se o poder exercido pelos EUA e seus aliados, por trás desses organismos multilaterais. Jamais houve verdadeira independência, ou, quando muito, algumas decisões questionáveis não pela isenção, mas pela dúvida de não atender inteiramente os interesses estadunidenses, ou se porventura fosse complacente com algum dos países por este Estado considerados inimigos, como no caso emblemático da pequenina Cuba, por mais de cinco décadas sofrendo todos os tipos de bloqueios, muito embora sendo apoiada pela absoluta maioria dos países membros da ONU em suas assembleias gerais.
Mas os EUA sempre fizeram valer o poder de veto, nesses e em outros casos de países cujos governos lhes contrariassem. Por outro lado, quatro outros países também tinham esse poder: Rússia (URSS), China, França e Reino Unido. Ou seja, os principais países que se sagraram vitoriosos na aliança construída para derrotar o nazi-fascismo. Um equilíbrio forçado para evitar que desequilíbrios levassem a uma nova grande guerra, que vigorou por todo o período do pós-guerra, denominado de Guerra Fria, e que passou a cumprir um papel importante na construção do mundo globalizado.
Apesar de todos os porém, esses organismos multilaterais assumiram um papel preponderante no processo da globalização. Claro, quase sempre pressionados pelos EUA, e na maioria das vezes atendendo aos seus interesses e de seus aliados. O GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) foi o único que passou por transformação em sua nomeclatura, mudou de denominação e veio a se constituir no organismo mais importante para a Globalização, a Organização Mundial do Comércio (OMC). (SILVA, 2004, pp. 628-630) A desregulação do comércio mundial, a partir principalmente da abertura das fronteiras comerciais e dos processos de desnacionalização de inúmeras empresas estatais, necessitava de um organismo que pudesse gerenciar esse processo e estabelecer as regras que deveriam ser seguidas a partir de então.
Os países que não obedecessem as normas da OMC tornavam-se párias e encontrariam dificuldades para lidar com o comércio mundial. Impunha-se dessa forma os mecanismo de aceitação das regras neoliberais, assim como se fazia também através do Fundo Monetário Internacional (FMI), como condição para concessão de empréstimos aos países menos desenvolvidos, quase sempre endividados e com suas riquezas sendo expropriadas pela elite corrupta, tornada parte do poder político. A partir dos anos 1990 do século passado, a própria elite passou a disputar as eleições, e não mais deixar a cargo de seus apaniguados, testas-de-ferro, como se fez historicamente no Brasil e na maioria dos países latino-americanos.
Como essas transformações se intensificaram muita rapidamente a partir dos anos 1980, era preciso estabelecer parâmetros que identificassem as mudanças na direção dos interesses definidos pelos países centrais, dentro da lógica política que se impunha, o neoliberalismo. Ou, uma nova forma de liberalismo, sempre focado como em seus princípios, tendo o mercado como elemento mais importante, a despeito do poder dos Estados, mas retirando deste aspectos importantes na condução da economia, que passou a ser celeremente controlada por grandes corporações financeiras, industriais, comerciais e das recém criadas corporações que passaram a se expandir e controlar o poder crescente das novas tecnologias.
As conhecidas empresas “.com”, que obtiveram um crescimento acelerado no final dos anos 1990, a ponto de gerar uma das primeiras crises da globalização, em função da bolha que se criou com preços supervalorizado de ações de empresas que surgiam, quando se popularizava a “world wide web”. Ficou conhecida como a “bolha da internet”, e levou a uma intensa insegurança nos mercados financeiros e a um efeito cascata de desvalorização de empresas cujo valor era infinitamente maior do que efetivamente elas valiam. Algo que se tornou, de certa forma, muito comum nos tempos da globalização financeira.
A ganância foi um fator fundamental para gerar uma cegueira obsessiva nos que se extasiavam com a facilidade gerada por investimentos fáceis, e que levavam gradativamente alguns setores a forçar o endividamento das pessoas para levá-las ao consumo fácil, algo bem possível devido ao deslumbramento pelas novas tecnologias. (SANTOS, 1999, pp. 10-20) O capitalismo se intensificava, o dinheiro virtual se disseminava pelo mundo e crescia o número de bilionários. Embora fosse muito maior a quantidade de pobres e miseráveis que se espalhavam pela maioria dos países, e em muitos casos os conflitos regionais, as guerras, o sectarismo religioso e a escassez hídrica, as populações, sem escolhas, se deslocaram em massa, aos milhões, por suas fronteiras próximas ou em direção aos países mais ricos, na Europa e na América do Norte.
A crise de 2009 despertou dos sonhos, ou transformou em pesadelo, o que se imaginava ser um eterno paraíso de ganhos fáceis gerados pela globalização. Mais uma bolha explodiu, agora a hipotecária e no coração financeiro do mundo, os EUA.[3] Daquele momento em diante a globalização desandou. Evidente que não se pode atribuir a somente esse fato a acentuação de uma crise sistêmica que se estende desde o final dos anos 1970, cambaleando por vários momentos e se reerguendo de forma impressionante. Mas as fissuras permaneciam, e por elas as estruturas do sistema foram se fragilizando.
“Ma non tropo”. Alguns países souberam se aproveitar bem das transformações e atraíam para seus territórios uma infinidade de empresas, que na busca por lucrar mais, com mão de obra mais baratas e menos problemas gerados por leis trabalhistas que se tornavam alvos dessas corporações e eram abominadas pelo ideário neoliberal, eram deslocadas de seus países de origem, onde a organização dos trabalhadores era mais forte. Esses países não somente se preocuparam em atrair essas empresas, mas se debruçaram sobre as mercadorias que ali eram montadas, e em pouco tempo tinham copias perfeitas daqueles produtos. Com os ganhos conseguidos nesse processo investiram em educação e no desenvolvimento tecnológico. Das cópias feitas nas linhas de produção, à produção de tecnologias que passaram a superar muitos dos produtos ocidentais, não se passaram três décadas.
Foi muito rápido o passar do tempo para que alguns países antes encarregados de abrigar empresas montadoras de peças fabricadas fora, passassem eles mesmos a produzirem, e com novas tecnologias. Ao passo que os países asiáticos se despontavam por esse caminho, principalmente a China, o Japão já estava envolvido nesses avanços desde antes, mas também a Coréia do Sul, a Tailândia, o Vietnam... a Rússia se recuperava do desastre causado pelo governo desastroso de  Bóris Ieltsin, e retomava gradativamente o seu protagonismo.
Enquanto desde o começo do século XX os EUA se deparava com um inimigo invisível, a quem declarara guerra depois de um atentado que assassinou mais de três mil pessoas naquele país, em 2001, e deslocava todo o seu aparato bélico e suas atenções para o Oriente Médio e o Afeganistão, alguns países emergentes numa espécie de segunda onda da globalização, se uniam para criar um novo polo hegemônico, com a intenção de pelo menos romper com qualquer possível unipolaridade que se pensava construir com a globalização. Os BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, surgiu e fez despontar um novo bloco forte política e economicamente, e a partir daí estabeleceu-se uma nova polarização, que crescia ao mesmo tempo em que mecanismos que visavam destruir essa força eram postos em ação. A guerra híbrida, que funcionara no Oriente Médio, em especial na Líbia, Egito, Iêmen, e Síria,  passou ser aplicada nas fronteiras da Rússia (principalmente na Ucrânia), China, região do Tibete, (BANDEIRA, 2013, pp. 119-132) e no Brasil a partir de 2013. (HARVEY, 2018, pp. 190-192)
Os conflitos se espalham por todo o mundo, e as tensões retornam em larga escala  ameaçando fazer explodir novas guerras. Acordos são rompidos e os EUA, com a eleição de Donald Trum, e sua política “América First” passa a romper diversos acordos e a atacar abertamente aqueles países que ameaçavam a hegemonia estadunidense, e que ele via como ameaça para o próprio desenvolvimento nacional.
Os organismos multilaterais tornam-se alvos da política de Trump e os ataques sistematicamente acontece revezando-se qual deles será o próximo a ser atacado. Primeiro a OTAN, cujos parceiros são acusados de não investirem recursos necessários para armar a organização e a fragilizar diante dos avanços do poder russo;[4] depois a OMC, vista como uma ameaça aos interesses dos EUA, passando a ser pressionada para que as decisões favorece seus interesses. Essa pressão sobre a OMC terminou por fazer o brasileiro Roberto Azevedo, diretor geral da instituição, decidir abandonar o cargo a partir do segundo semestre deste ano de 2020.[5]
No começo deste ano a Pandemia do Covid19 concentrou o protagonismo das ações nas mãos da OMS, e foi o próximo desses organismos a sofrer intensos ataques do presidente estadunidense, a ponto de ameaçar retirar todo o apoio financeiro e a acusando de beneficiar a China. O quadro que se constituía a partir dessas pressões com a nova política isolacionista adotada pelo presidente dos Estados Unidos, foi agravado pela disseminação dessa doença. O vírus (Sars Cov-2) avançou implacavelmente sobre todos países gerando centenas de milhares de mortes, sem que houvesse uma vacina para contê-lo, e transformando os Estados Unidos no epicentro da doença, e atingindo o terrível número de 100 mil mortos, só podendo ter essa marca atingida pelo Brasil, cujos número de mortes sequem crescendo.
Os EUA, com sua política de ataque aos blocos econômicos, e de identificação de inimigos a quem lhes ameaçassem em sua hegemonia, definiu seus objetivos centrados nos interesses internos, e estava se recuperando às custas de um forte isolamento e distanciamento até mesmo de seus parceiros tradicionais. A China substituiu a antiga União Soviética, no imaginário persecutório de Trump, que passou a usar um discurso nacionalista e, como sempre é comum aos EUA, de defesa da segurança e dos interesses nacionais.
Em meio a uma forte recessão e à beira de uma inevitável depressão, como consequência do agravamento da crise em decorrência da Covid19, o discurso de Donald Trump sobe o tom, e se eleva mais à medida que se aproxima das eleições presidenciais marcadas para dezembro deste ano.[6]
Inevitavelmente o cenário pós-covid19 não será de um mundo globalizado. Os organismos multilaterais sofrerão uma pressão maior do que está acontecendo neste momento e deverão passar por transformações estruturais, se não estarão fadadas a desaparecerem. A tendência é termos um mundo marcado por fortes disputas econômicas e ameaças bélicas, com forte possibilidade de termos um grande conflito que se estenda por todo o mundo. Uma ameaça de guerra nuclear não pode ser destacada, dependendo do quadro a ser definido nas eleições estadunidenses e as consequências que após essa pandemia.
A desglobalização se concretizará, na eminência do enfraquecimento dessas estruturas, o que não irá significar o desaparecimento de blocos regionais. Esses também serão refeitos, e haverá um forte crescimento da influência chinesa em países asiáticos e europeus, seguindo o curso do projeto da nova rota da seda.(GEROMEL, 2019, pp. 116-123) As tensões se intensificarão no Oceano Pacífico e envolverão os países latino americanos. O Brasil, na postura de isolamento ao lado dos EUA, será mais um pária no contexto da política mundial, ao contrário do protagonismo construído no começo do século, auge da globalização.
A incógnita que permanecerá é se de fato teremos algo parecido com a guerra fria, onde dois gigantes bem armados se temiam e se respeitavam, em alguns momentos vivendo tensões que os fizeram se aproximar do confronto aberto, como no caso da crise dos mísseis soviéticos que seriam enviados a Cuba, mas sempre salvos pela diplomacia. A posição de Donald Trump, de romper acordos, atacar adversários e ameaçar aliados, elevará as tensões ao limite do suportável. Mas esse limite pode ser muito frágil, ou estar não muito distante, a depender das condições econômicas que afetarem os países, e principalmente os EUA. E, diferente dos anos pós 2ª guerra, quando a economia estadunidense ajudou a reerguer a Europa, agora a situação poderá ser inversa, acuando um forte poder imperial que será mais perigoso ainda caso o povo daquele país insista no erro de mais uma vez elegê-lo.
Os caminhos da humanidade, no âmbito da política internacional, dependerão da gravidade da crise econômica pós-pandemia e do resultado das eleições dos EUA. Mas, certamente, qualquer que seja o resultado já não será mais um mundo globalizado. Claro, estamos nos referindo à globalização como um modelo, um método, e os mecanismos que lhes faziam funcionar empurrando sociedades para o abismo, o neoliberalismo e a perversa política de reduzir o estado ao mínimo, aos interesses das grandes e dos ricos. Porque a integração entre países prosseguirá, como uma necessidade, malgrado as tentativas isolacionistas e xenófobas que serão implementadas por governos de extrema-direita.
A desglobalização, nos parece, já está em curso, e se efetivará. Para o bem, ou para o mal. Pode renascer com a China com nova protagonista em seu comando, mas isso só o tempo dirá. E aos trabalhadores de todo o mundo resta ouvir o clamor da Associação Internacional dos Trabalhadores, de meados do Séculos XIX: “Uni-vos”!



NOTAS:
[1] Não vejo como sendo uma “terceira revolução industrial”. Visto que desde quando acontece o processo inicial do desenvolvimento capitalista, e a manufatura foi substituída pela maquinofatura, e tivemos início às linhas de montagens das fábricas, o que vemos é um processo crescente de transformações técnico-científicas na direção de ampliar e fortalecer a lógica sistêmica contida no modelo de produção capitalista. Não havendo, portanto, nesses três últimos séculos uma substituição dessa formação econômico-social, mas sempre uma sequência de novas invenções e adaptações tecnológicas com o mesmo objetivo moldado pelo sistema capitalista. Não há revoluções no capitalismo, as que houveram aconteceram para propiciar sua substituição, mas fracassaram no seu intento final. Pelo menos até os dias atuais, à exceção da China, o que é absolutamente relevante, e está, digamos, numa situação de transitoriedade, a poucos passos da hegemonia do controle do mercado mundial. Em um novo patamar, agora identificado como “socialismo de mercado”, apesar das controvérsias.
[3] Em 2014 ofereci um mini-curso no IESA/UFG, para analisar a crise econômica, e me inspirei em alguns filmes e documentários, utilizados durante o curso como ferramenta importante. Dentre eles TRABALHO INTERNO: “O documentário TRABALHO INTERNO, premiado no Oscar de 2010, expõe de forma crua todas as responsabilidades de políticos, CEOs, e até mesmo de professores de economia de importantes universidades estadunidenses, na implementação de medidas que fizeram ampliar a crise e o endividamento dos Estados”. (https://gramaticadomundo.blogspot.com/search?q=trabalho+interno)

REFERÊNCIAS:
BANDEIRA, Luiz Alberto Muniz. A segunda guerra fria. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2013
HARVEY, David. 17 Contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Ed. Boitempo, 2016
____________. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Ed. Boitempo, 2018
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Ed. Cia. das Letras
GEROMEL, Ricardo. O poder da China. São Paulo: Editora Gente, 2019.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. São Paulo: Ed. Record, 2000.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Enciclopédia de Guerras e Revoluções no Século XX: As grandes transformações no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.






sábado, 23 de maio de 2020

O MUNDO PÓS-PANDEMIA: ENTRE A DISTOPIA E A UTOPIA

É muito arriscado querer prever como será o mundo pós-pandemia. Pode parecer um paradoxo essa frase com o título utilizado. Mas quando falo da dificuldade em tentar identificar por quais caminhos o mundo seguirá quando passar toda essa agonia causada pela disseminação do “Sars Cov-2”, me refiro à impossibilidade de termos algo concreto, neste momento, que nos garanta com uma margem tranquila de convencimento, desenhar o cenário no qual a humanidade entrará a partir de 2021.
Digo em termos concreto porque nos parece ser muito cedo para medir as consequências dessa hecatombe  epidemiológica, já que ainda estamos na metade da pandemia, principalmente aqui na América Latina e em especial, no Brasil, onde a situação se torna mais grave como decorrência do negacionismo criminoso e a abominação por parte do governo federal, e de sua legião de ignorantes que o apoia, em seguir protocolos médicos e científicos, a respeito de uma doença terrível, até então sem tratamento.
É possível, no entanto, antever algumas situações, mas que não representam novidades, senão um agravamento de condições anteriores, principalmente nos aspectos geopolíticos e econômicos. Esses dois aspectos andam juntos em muitas das circunstâncias, do que já vinha ocorrendo e das transformações que serão geradas por essa crise epidêmica. As relações EUA-China é uma delas, cujas divergências deverão se ampliar consideravelmente, tanto mais quanto se aproximarem as eleições dos EUA. A estratégia por trás do Poder nesse país se repete há décadas, seja com governos democratas ou republicanos. Criar uma crise internacional, seja com guerra ou ameaças de confronto, com países que lhes incomodam, e assim, dessa forma reforçar o discurso nacionalista, de defesa da segurança nacional, e atrair eleitores para a reeleição do mandatário em curso.
Foto: Envolverde - Carta Capital
Outra crise que se agravará é a que envolve as questões ambientais. Em nossa situação particular, e que está relacionado principalmente a Amazônia, isso já está no processo de estrangulamento e no limite das condições suportáveis. Mas assim será também em outros biomas e por toda parte do mundo. O modelo de sociedade que adveio com a era antropocêntrica atingiu o limite do suportável na relação com a natureza e atingiu o seu pico nessas duas primeiras décadas do século XXI.
Certamente a disputa pelo petróleo, principal fonte energética da matriz capitalista, também estará no topo dos conflitos, e seguirá no crescimento exponencial do enfrentamento entre os principais produtores e exportadores, como já estava acontecendo antes da pandemia e se agravou exatamente quando a disseminação do vírus se espalhou pela Europa e daí para todos os cantos do mundo. A oscilação do preço do petróleo pode quebrar economias, além de deixar por um fio as relações geopolíticas, em vias de gerar graves conflitos entre nações, semelhante ao que já tem acontecido historicamente, mas agora em outro patamar pelo agravamento da crise sistêmica capitalista.
Essas são questões que lideram nossas atenções, e que estarão no topo das preocupações estratégicas de todos os países, principalmente daqueles que disputam o poder hegemônico, seja econômico ou militar. Tudo indica que entraremos em uma fase muito parecida com o que foi a guerra fria no pós-guerra, e que vigorou até a década de 1980.
Imagem: Contee - Brasil 247
Mas o que também nos deve preocupar, e por isso centro minha abordagem aqui, são as condições psicossociais. Ou seja, como essa situação que nos envolve irá impactar nossas vidas, e se haverá um retorno ao antigo normal. E não podemos considerar somente os impactos gerados pela doença Covid19. A ausência de uma vacina seguirá impondo a todos nós um distanciamento necessário, mesmo depois que houver uma flexibilização dessas medidas de isolamento. Mas existem no caso brasileiro outros condicionantes, decorrentes de uma grave crise política, pelo fato de não termos um governo capaz de nos garantir segurança agora, durante a pandemia e muito menos depois, pela ausência de medidas capazes de atacar as demandas sociais, gerando caos em vez de procurar atender as necessidades do povo.
Isso tem causado insegurança e intranquilidade para enfrentar esse momento tão terrível e os meses que se seguirão. Há um desnorteio na sociedade, com choques entre decisões que são tomadas pelos governadores e os ataques que esses sofrem do presidente da República, que, absurdamente, nega, ou minimiza, o perigo que esse vírus carrega e as consequências de uma doença para a qual não há antídoto. Embora ele insista em prescrever remédios, como um charlatão, já que não é sua área, que não possuem eficácia comprovada cientificamente e, por isso, rejeitados pela comunidade médica e farmacêutica.
Imagem: asmetro-SN
Enquanto isso multiplicam-se o número de infectados e de mortos, que ainda irá crescer, na medida em que falta essa coordenação nacional e devido aos ataques dos negacionistas e as fake news criminosas que confundem perigosamente boa parte da população, entregue a boatos e informações falsas, que são consideradas em meio a ignorância e desinformação dos que se apegam cegamente à determinadas idolatrias religiosas ou às crenças nas simplificações dos tratos com as doenças, neste caso confundida propositadamente pelo próprio presidente e seus seguidores. As camadas mais pobres da sociedade descobrirão de maneira terrível as consequências dessa perigosa dúvida que lhe foi incutida, e o vírus se espalhará rapidamente pelas periferias e cidades interioranas.
Considerando que já vínhamos de pelo menos três anos de uma crise política e econômica, quando se deu a eleição de Jair Bolsonaro, podemos ter uma ampliação da desesperança que afetou a sociedade brasileira em função de uma luta encarniçada pelo Poder, que nos trouxe a esse quadro político de um governo absolutamente questionável quanto à sua capacidade de governar esse país. 
É natural considerarmos que esses breves elementos de análise nos dão a indicativa que teremos tempos difíceis pela frente. Desemprego e aumento da pobreza levarão ao desespero milhares de pessoas atingidas, e se tornará mais real em pleno século XXI, o que já fora escrito por Josué de Castro em meados do século XX: "Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come"[1]
Como evitar que o caminho da desesperança tire das pessoas a capacidade de lutar por seus direitos e para garantir que o Estado cumpra a função de proteger cada cidadão de seu país? Esse será um desafio pois os tempos de crises e a perda de perspectivas, principalmente por parte da juventude, destrói sonhos e constroem um futuro distópico. E se isso já era tema de discussões em debates nas universidades antes da pandemia, passa a tomar uma importância maior ainda quando estivermos saindo desse distanciamento social, que por ser caótico, diferente de outros países em decorrência do comportamento do presidente, tenderá a deixar as pessoas mais desnorteadas e fragilizadas, em um ambiente politicamente polarizado.
Alguns cenários futurísticos têm sido apresentados há anos em filmes ficcionais. Na maioria deles, projetando uma vida futura altamente dominada por avanços tecnológicos, concentrados nas mãos dos que possuem poder e riqueza, e ambientes urbanos confusos, desorganizados e superpovoados, com desigualdades sociais absurdas, mas com populações entregues à letargia e conformismo. É possível que tenhamos no mundo pós-pandemia cenários distópicos como apresentados em filmes e séries. Mas a distopia se completa na ação opressiva e tirânica tanto de governos, quanto dos que controlam a riqueza, que cada vez mais distanciam-se da realidade social.
O desespero, a privação, a desesperança, a amargura e o desencanto, são elementos que produzem nas pessoas a ausência de crença na vida material, distanciam uma das outras e as fragilizam, tornando-as presas fáceis de discursos salvacionistas seja de seitas fundamentalistas ou de políticos oportunistas de vieses autoritários. As condições econômicas, em uma crise crônica, que passa da recessão para uma situação de depressão, fratura a sociedade, e tende a tornar a depressão humana um dos maiores problemas psicossociais no pós-pandemia. Lutar contra essas sensações de frustrações e evitar um mundo distópico é um desafio somente capaz de ser enfrentado se conseguirmos manter a utopia como algo possível de ser alcançado.
A utopia não é algo palpável, ou alcançável. Mas é uma espécie de força como aquela contida na lei da gravitação universal, de Isaac Newton. É algo que nos atrai, e que imaginamos poder estar ali uma espécie de destino, de objetivo que desejamos atingir, portanto desejamos também atraí-la. E, claro, o que desejamos atingir sempre será aquilo que nos faz bem, e se pensarmos coletivamente, será algo que nos fará bem e a sociedade. Por isso pensamos em utopia como algo positivo. Mesmo que não seja, a utopia, tida como “lugar nenhum”, algo existente, mas puramente sonhado, ela difere da distopia por nos dar a oportunidade de acreditar em nossos melhores sonhos. Ela é essencial para não nos deixar desanimar e desistir de caminhar.
O importante, no entanto, é acreditar que nada disso que sonharmos, do que desejarmos utopicamente, será atingido se não nos municiarmos de força coletiva, e de fazer valer a nossa vontade, independente dos empecilhos que estarão à nossa frente. Não é possível também, pensarmos que seja possível construir uma sociedade justa e menos desigual com pensamentos individualistas ou imaginando ser possível atingir um outro patamar nos prostrando e esperando que algo nos seja dado aleatoriamente. E para isso é essencial transformarmos esse modelo de sociedade, onde a hipocrisia constrói valores culturais que impõe aos mais pobres e fragilizados a condição de coitadinhos, a ficar aguardando ações solidárias fortuitas, e inserindo em suas consciências a culpa por não terem se esforçados e não atingirem os méritos necessários para suas melhorias sociais.
É fundamental, para acreditarmos ser possível ter na utopia o encontro com nossos melhores desejos, conhecer profundamente as estruturas sociais nas quais estamos vivendo. E lutar, de todas as maneiras, para desconstruir os valores e destruir os pilares que lhes dão sustentação. Compreendermos que vivemos uma intensa luta de classes, e se almejamos na construção desse futuro utópico, uma sociedade verdadeiramente democrática, devemos começar fazendo valer o próprio sentido da palavra “demo-cracia”: “demos”=povo; “kratos”=poder. “O poder que emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. Portanto, a não aceitação da dominação eterna a ser exercida pela minoria de abastados, ricos, milionários, bilionários, que representam um percentual insignificante da população mundial, muito embora controle a imensa maioria da riqueza.
Lutar por um mundo justo, levar adiante os sonhos utópicos de um mundo socialmente equilibrado, vê ao longe as luzes que nos fazem crer ser a utopia, é essencial para quebrarmos qualquer sentimento  distópico, porque este somente viria para nos fazer desistir de lutar. Nem esta pandemia, muito menos as atitudes perversas e egoístas dos que só desejam acumular riquezas sobre a pobreza, ou as diatribes de governos eleitos em momento de pânico forçado e de sujeições distópicas por seus linguajares e por suas ações, podem frear nossos sonhos de justiça e de vivermos em um mundo solidário. E isso não é algo possível de ser conquistado olhando para os céus, mas enfrentando os demônios que nos assombram na terra, e no enfrentamento de uma luta de classes que define as condições que escolheremos viver: Submetidos à opressão ou erguendo os punhos, nos alimentando de empatia, desafiando a distopia e seguindo em frente, em busca de nossa utopia.



[1] CASTRO, Josué. Geografia da Fome. Rio de Janeiro-RJ, Antares, 1980.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

O ANTROPOCENO E COMO NOSSAS RELAÇÕES COM A NATUREZA AFETAM NOSSAS VIDAS E MULTIPLICAM AS DOENÇAS

Será que podemos falar algo neste momento, que não tenha a Covid19 como centro da preocupação? Muito difícil. Podemos tentar, mas, ao final, vamos terminar caindo nessa questão. Porque tudo que diga respeito ao nosso estilo de vida, e à maneira como nos relacionamos na sociedade, e como se dá a relação humana com a natureza, indubitavelmente nos levará a indagar sobre as consequências dessas relações. E a pandemia causada pelo vírus “Sars cov-2” tem uma razão de existir, ela não surge espontaneamente, suas causas estão sendo investigadas, e já é possível dizer que tem a ver com nossa forma de nos relacionarmos com o nosso meio, a natureza e a sociedade.
Mas aqui não vamos partir das consequências. O objetivo é analisar as questões relacionadas aos problemas ambientais, sob um foco diferente daquele que comumente a mídia costuma enfocar. Vou procurar inverter a maneira como as coisas são mostradas, e repetidas ad nauseam. Normalmente o foco das notícias são as consequências. Por exemplo: aquecimento global (considerando todas as polêmicas que existem em torno dessa expressão). Ora, que seja, suponhamos que de fato haja um “aquecimento global”, embora eu não goste dessa expressão. Mas de maneira nenhuma isso pode ser visto como o nosso parâmetro para considerarmos as condições do planeta Terra.
O que quero dizer é que as mudanças climáticas, ou os eventos climáticos extremos, geram efeitos diversos, e a elevação da temperatura da terra é uma delas(*). Mas essas não são as causas. E muito menos os eventos extremos se explicam por si sós. Primeiro, é preciso dizer (e não vou me estender porque fugiria da minha especialidade) que as transformações na natureza ocorrem desde milhões de anos atrás, de maneira sucessiva. É impossível determinar o tempo de duração da terra, mas conta-se em bilhões de anos, desde o que poderia ter sido a sua origem: o Big Bang. Compreende-se, por esses números, que nada que se possa falar sobre a terra, ou o universo de uma maneira geral, possa ser dito de maneira simplificada.
Contudo, não podemos fechar os olhos e desconsiderar todo esse processo que advêm de um longo tempo, e imaginarmos que nossas origens se contam a partir de uma ação de um ser divino, porque não vamos chegar ao começo, já que teríamos que buscar respostas sobre como surge esse Deus. E, certamente ficaríamos como vemos divertidamente um cachorro girando em círculo tentando morder o seu próprio rabo. Da mesma forma, o reducionismo da existência da terra vinculando ao surgimento do ser humano tornaria esse o Planeta dos Humanos[1], pressupondo que daí seria o início das transformações na terra.
Portanto, estamos diante de situações muito complexas, e da necessidade do entendimento de transformações que são potencializadas pela ação humana, ou poderíamos usar a palavra aceleradas, mas jamais podemos esquecer que, independente da ação humana mudanças acontecem na natureza, seguindo um ciclo normal, de um equilíbrio necessário que muitas vezes passou por processos de extinção em larga escala.
Mas não quero me aprofundar nos períodos que antecedem o atual, isso falando geologicamente, em milhões de anos. Queremos partir do antropoceno, provavelmente identificado temporalmente como tendo se iniciado a partir do século XVIII, portanto desde quando as atividades industriais assumem uma grande intensidade, criando uma classe forte, daqueles que passaram a controlar a partir dali os meios de produção não mais manufaturados, mas industrializados. Tempo em que também as ideias sofriam transformações revolucionária e o antropocentrismo passou a assumir a condição hegemônica na relação com o conhecimento, deixando para traz o período em que a igreja dominava as ideias e o teocentrismo era a base do entendimento de como o mundo funcionava.
Deixo em aberto aqui essa questão quanto ao surgimento do antropoceno, já que alguns estudiosos consideram que isso se deu desde o aparecimento do homo sapiens, quando a partir de então o ser humano passa a buscar formas de não somente se adaptar ao ambiente, mas com a capacidade que vai adquirindo de lidar com ferramentas ele  inicia um processo intenso de intervenção na natureza, acelerando essa relação de forma exponencial, mediante revoluções acentuadas nos meios de produção, e em sua capacidade de manusear e transformar objetos, até atingirmos esses tempos atuais, de uma enorme intensidade tecnológica.
Mas foi principalmente a partir dos fins da Idade Média que concepções filosóficas de base materialistas ampliaram o entendimento que já vinha desde a antiguidade, apesar do interstício medieval. Tivemos primeiro o Renascimento, um resgate das artes e ciências da Antiguidade esquecidas nos tempos sombrios medievais, e depois o Iluminismo, quando a humanidade se depara com filosofias que passam a expor de forma clara uma diferença essencial entre o homem e os demais animais, a sua capacidade de transformar o seu habitat, para além da capacidade adaptativa. O teocentrismo perde definitivamente lugar para o antropocentrismo, e o ser humano é guindado à condição de centro do universo. Kant, no século XVIII, vai ter um papel importante na diferença do ser humano com os demais animais, que por ser dotado de razão se tornaria superior à natureza bruta. (KANT, 2016, pp. 611-613)
Por sua importância na Geografia, Kant influenciou muitos geógrafos e suas concepções serão importantes no próprio embate existente entre os seguidores de Friederich Ratzel e os de Vidal de La Blache. Aquele tido como determinista por ver um forte processo adaptativo também no ser humano, e busca nisso a explicação para dar sentido e força à categoria território, advinda da própria maneira como os animais delimitam seus espaços, também numa clara influência darwinista. Já em La Blache, está mais fortemente marcada essa linha kantiana, de sobreposição da capacidade humana sobre a natureza, a partir de todo o processo produtivo que o leva a realizar transformações que modificarão seu habitat.
Embora as duas vertentes estejam cobertas de razões, no entendimento do que de fato acontece entre a relação homem-natureza, a forma como o ser humano é elevado quase a condição de Deus, pelo seu potencial de intervenção na natureza e de poder transformá-la, definirá os caminhos pelos quais as sociedades marcharão, elevando por esse mantra a condição de superioridade e de deificação de si mesmo, em uma atribuição recente por Yuri Harari, de “Homo-Deus”. (HARARI, 2019, p. 427)
Essa condição, de superioridade perante a natureza, e todo processo acelerativo que nos tira da condição de manusear primitivamente objetos à inserção de inteligências artificiais em objetos ultra tecnologicamente desenvolvidos, com capacidade de substituir o ser humano em tarefas tidas como essenciais em nossas vidas, tem sido fundamental para uma transformação radical em nossa forma de viver, e, consequentemente, em nossos comportamentos. A cultura segue, por aí, e define nossas atitudes e hábitos.
O deslumbramento com a tecnologia ao longo dos séculos, curto tempo em que a ciência assumiu o protagonismo, não ela espontaneamente enquanto sujeito, mas sim, como instrumento da ação humana, com objetivos definidos de ampliar sua capacidade de produção de mercadorias e de produtos sofisticados que objetivavam, sempre, ampliar o processo produtivo e adquirir inovações que impulsionassem as sociedades por caminhos da artificialização da vida, distanciando-se gradativamente de seu ambiente natural. Este também aos poucos sendo atingidos por essa onda de novas tecnologias, acelerando a destruição da natureza, de onde se extraem as principais matérias-primas a serem usadas nesses processos.
Devastada, a natureza foi se vendo atingida no elemento básico de sua existência: o equilíbrio ecológico. Condição pela qual qualquer ser vivo ou objeto existente se torna essencial para a vida, ou para a conformação do planeta, numa visão vista como dialética por um viés, ou holística, tal qual demonstrado no filme Avatar, explorando o mito de Gaia para dar também essa noção de totalidade e de interação entre todos elementos e seres vivos que habitam a terra. Essa concepção foi difundida no século XX, por James Lovelock.[2]
É certo, contudo, não importar muito as concepções que irão nortear essas teorias para o objetivo que queremos transmitir aqui, visto que cada uma delas considera que a interação na natureza, a forma com se dão as relações entre os seres vivos, e destes com o ambiente em que vivem, se dá por meio de um equilíbrio natural.
Pelo dito, a partir do que temos estudados, consideramos necessário e urgente abordar a aceleração destrutiva dessa relação que o ser humano estabelece com a natureza, de maneira intensa e cada vez mais sofisticada e por isso mais explosiva para esse equilíbrio ecológico. A chamada era antropocênica atinge o seu pico nos dias atuais, reduzindo a cada ano o intervalo entre velhas e novas tecnologias, levando a uma obsolescência rápida de inovações tecnológicas por curto tempo passado celebradas como novidades.
Essa aceleração é consequência da própria característica do sistema capitalista, por essência expansivo (MARQUES 2016). Isso leva a um rápido descarte de algo ainda utilizável, mas que deve ser superado tecnologicamente para permanecer elevado o ímpeto do consumo pelo que é moderno e novidade. Isso faz com que a maior parte das mercadorias existentes no mundo atualmente tenham surgido há menos de duas décadas, ou são sistemas que se atualizam permanentemente e trazem sempre novas cargas de inovações.
Com um mundo em previsão de atingir 9 bilhões de pessoas até os anos 2050, esse mecanismo tende a se manter num grau de obsessão por novas tecnologias e inovações cada vez mais acentuado. As consequências disso, principalmente porque o principal motor desse desenvolvimento são fontes de energias fósseis, mas também porque essas novidades tecnológicas exigem a exploração de recursos hídricos e minerais em larga escala, é a intensificação da destruição da natureza, porque é nela que se encontram as matérias primas necessárias para que isso tudo aconteça.
Nos últimos anos tem surgido um movimento mundial que exige um planeta verde, e que atualmente tem envolvido novas gerações, jovens que despertam para o perigo que o expansionismo capitalista representa para o presente e os dias futuros. Mesmo que não sendo movimentos em essência anti-capitalistas, eles não podem fugir à realidade de ser esse o sistema hegemônico, quase que exclusivamente dominante, que não se detém diante da necessidade de acumular cada vez mais riquezas nas mãos dos que controlam os meios de produção.
Tudo isso nos leva aos questionamentos que são feitos por pesquisadores que se interessam por compreender como se dá o processo evolutivo do planeta terra, e os momentos que por bilhões, milhões e milhares de anos, transformaram o planeta em toda a sua dimensão e o ecúmeno, por caminhos que levaram a pelo menos cinco extinções de espécies vivas, animais e vegetais. Neste momento estaríamos, então, diante da sexta extinção (MARQUES, 2016; KOLBERT, 2015).
Desta feita, acentuada pelos mecanismos gerados pelo agente responsável pela transformação acelerada do meio-ambiente, natural e artificial, o ser humano. Daí a indicação de vivermos em uma era antropocêntrica, na identificação da origem do termo.[3]
Assim, chegamos àquilo que nos angustia atualmente, uma pandemia causada por um vírus que se dissemina numa rapidez jamais vista antes. São dois aspectos importantes de serem abordados para estabelecermos uma ligação com o que quisemos dizer nas linhas acimas: o primeiro o tipo do vírus e a sua origem, certamente já próximos a obtermos uma resposta cem por cento correta, de ter surgido a partir das relações humanas com animais silvestres, fora de seus habitats; o segundo devido a maneira como nós nos estabelecemos nas cidades, superpopulosas e a facilidade com que nos deslocamos por distâncias enormes em curtos espaços de tempo, como consequência dos avanços tecnológicos nos meios de transportes.
Avatar
Somente esses dois aspectos, dentre tantos muitos outros que podemos citar, já nos coloca, a nós seres humanos, como os principais responsáveis pelas alterações dos ambientes naturais, causando um absoluto descontrole no equilíbrio ecológico, bem como construindo artificialmente formas de vida concentradas, em cidades que potencializam disseminação de doenças, e onde, pela absoluta ausência de condições de criarmos as condições de nossas próprias sobrevivências, nos habituamos a nos alimentar e nos vestir seguindo padrões gerados por processos industriais que são fontes por onde se originam todas as ações que são destrutivas para a natureza e a biodiversidade.
Por esse caminho, da agressão à natureza, e de ambientes criados por condições vergonhosamente desiguais, é que o caminho apontado como consequência do processo evolutivo sistêmico, produtor de mercadorias e destruidor de ambientes naturais, será da eliminação de uma quantidade enorme de espécies, que veem seus habitats destruídos. Algumas poucas dessas espécies, desesperadamente em busca de sobrevivência, encontram nos ambientes urbanos refúgios e um novo processo adaptativo. Mas trazem consigo vírus que são mortais para o organismo do ser humano e até mesmo de alguns animais criados em larga escala para atender a uma demanda alimentar de base carnívora.
Mito de Gaia
Compreendemos então, que a crise ambiental que vivenciamos nada mais é do que parte da crise sistêmica capitalista, pelo seu caráter eminentemente expansionista, e que nos leva aceleradamente para mais uma extinção em massa de espécies, a “sexta extinção”. A pandemia da COVID19 poderá não ser o maior processo de disseminação de vírus deste século. Se não mudarmos a forma como lidamos com a natureza, e não conseguirmos conter a ganância e obsessão com que se dão as relações capitalistas e a sua insensibilidade diante de um mundo terrivelmente desigual, iremos em espaços de tempos cada vez mais curtos, nos deparar com outras pandemias, e em muitos casos teremos que nos acostumar com a permanência entre nós de vírus que serão incapazes de serem contidos, transformando doenças epidêmicas em endêmicas, a infernizar principalmente a vida da maioria da população mais pobre e vivente em periferias desassistidas do poder público e entregues à uma miséria crescente.
Cabe-nos questionar se o ser humano também estará incluído na lista das espécies que desaparecerão com a “Sexta Extinção”.




NOTAS:

(*) Em conversas com um colega professor após a produção desse artigo, resolvi acrescentar essa nota explicativa, para melhor compreensão de conceitos que envolvem termos que hoje são ditos usualmente, mas muitas vezes, como eu fiz, de forma muito abrangente, mas nem sempre cientificamente correta: "mudanças climáticas", esse termo é amplo e usual, mas é errado sob o ponto de vista da Climatologia, mudanças climáticas são mensuráveis em intervalos iguais ou superiores a 100 mil anos, o que temos é "variabilidade climática", pois são intervalos curtos de uma ou mais décadas e causadas pelo ser humano. O mais adequado e que não gera problemas é a "ciclicidade climática", pois os eventos extremos se repetem, após décadas, séculos etc. É possível determinar a idade da Terra sim: 4,56 bilhões de anos. (...) o Big Bang ocorreu há 13,87 bilhões de anos, portanto a Terra não é derivada disso, mas sim de vários processos astrofísicos que ocorreram na galáxia Via Láctea até gerar o Sol e o Sistema Solar, por um período de aproximadamente 5 bilhões de anos após o Big Bang". (Prof. Dr. Paulo Henrique Azevedo Sobreira. Geógrafo (bacharelado e licenciatura) e Cosmógrafo. Mestre e Doutor em Geografia Física - Ensino de Astronomia em  Geografia. Professor Associado do Instituto de Estudos Socioambientais - IESA-UFG)
[1] Faço aqui um trocadilho não com o Planeta dos Macacos, o filme. Mas com um documentário, produzido por Michael Moore e lançado em 2019, “Planeta dos Humanos”, disponível no You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=VKNTrFKju3g
[2]  Lovelock propôs a teoria Gaia. Esta teoria propõe a existência de um sistema cibernético de controle, que compreenderia a biosfera, a hidrosfera, a atmosfera, os solos e parte da crosta terrestre, e teria a capacidade de manter propriedades do ambiente, como a composição química e a temperatura, em estados adequados para a vida. https://www.ecodebate.com.br/2017/07/04/teoria-de-gaia-de-ideia-pseudocientifica-teoria-respeitavel-artigo-de-roberto-naime/
[3] Palavra formada a partir do Grego ANTHROPOS, “homem”, mais  GENEA, “geração, raça, ascendência”. https://www.dicio.com.br/antropogenico-2/
REFERÊNCIAS:
HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade. Porto Alegre, RS: LP&M, 2019. 46ª edição.
KOLBERT, Elizabeth. A Sexta extinção. Uma história não natural. Rio de Janeiro, RJ: Editora Intrínseca, 2015. Edição Digital.
MARQUES, Luiz. Capitalismo e Colapso Ambiental. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2016. 2ª edição.