domingo, 25 de novembro de 2018

A ONDA – OS DEMÔNIOS QUEREM NOS AMORDAÇAR


Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace”1
(John Lennon)
Filme "A Onda" - Alemanha, 2009
Experimentamos nos últimos tempos importantes transformações sociais. Apesar de todas as intempéries ocorridas em todo o mundo por intensos conflitos, guerras e crises financeiras, avançamos no tocante a direitos fundamentais em nossas condições humanas, e tudo isso registrado por leis e tratados internacionais. Nessas duas décadas do século XXI muitas conquistas sociais se tornaram realidade. Se não foram suficientes para acabar com as desigualdades e injustiças, o que é pedir demais dentro de uma lógica sistêmica que não pode prescindir disso, pelo menos garantiram um mínimo de proteção a segmentos marginalizados e a setores muito visados por se manifestarem cada vez mais ostensivamente por seus direitos, e pela garantia de poderem ser o que desejarem.
Mas porque entramos numa onda regressiva e a intolerância e ódio se disseminaram acentuadamente? Não é difícil entender isso, apesar do elevado grau de alienação em boa parte das pessoas. Podemos começar tentando entender como as questões econômicas definem as escolhas da população. É inegável que as sociedades capitalistas são condicionadas pelo elemento “economia”. Por isso a estabilidade política mantém as pessoas passivas, principalmente se os resultados apontam para empregos garantidos, possibilidades de consumo, créditos disponíveis e melhoria das suas condições de vida. O inverso disso, a instabilidade econômica, torna mais difícil a qualquer governo se manter incólume e a sociedade, inquieta e insatisfeita, segue em qualquer direção que possa servir de alento para retomar suas capacidades numa lógica que é comandada por um sistema que não permite a quem não tenha recursos financeiros se inserir como cidadão num ambiente que é por essência consumista. 
Num país de desigualdades crônicas, qualquer política econômica que resulte em mais do que equilibrar a economia, inserir um número considerável de famílias nos patamares superiores ao que elas se encontravam, gera um frenesi positivo e cria expectativas de que tais melhorias seguirão indefinidamente. Principalmente se nesse processo for garantido créditos que acentuem o consumo e possibilitem melhorias na qualidade de vida. É claro que a concessão de créditos implica necessariamente em acúmulos de débitos, que se sucedem na medida em que a expectativa seja positiva face ao futuro. Trocando em miúdos, para as classes médias e baixa isso quer dizer: endividamento.
Agora, imaginar que exista uma base eleitoral simplesmente porque políticas econômicas estão garantindo melhorias financeiras e elevando pessoas para a classe média, é um grande equívoco. Se não houver uma manutenção dessas condições econômicas essas pessoas se voltarão com força contra os que controlam o governo, já que imaginam que suas conquistas se devem ao poder de um Deus e que os seus fracassos diante de um desequilíbrio fiscal do Estado e a impossibilidade de garantir as mesmas políticas que os fizeram ascender socialmente, são jogados nas costas dos governantes. A segunda premissa é verdadeira e é inevitável que isso aconteça, já que as crises econômicas, cíclicas, a cada vez encurta o tempo em que aparecem.
Esse comportamento, inicialmente por meio de insatisfações contidas, tornam-se revoltas latentes quando são estimuladas por opositores, ou quando interessa estrategicamente a algumas forças externas vinculadas a governos ou corporações, desestabilizar politicamente um país e envolver multidões em atos que leve a reações violentas. Isso tem ocorrido com frequência na última década, e tem um nome: “guerra híbrida”.
No entanto, nem mesmo o discurso anticorrupção é suficiente para abalar o otimismo das pessoas em um ambiente onde a economia esteja equilibrada e as projeções são positivas. Aí, os problemas existentes, são congelados, como se não existissem, mas existem e cabe a quem tem o poder ter a capacidade de compreender isso buscar corrigi-los, antes que o caldo entorne.
Vejamos, por exemplo, o que ocorreu aqui no Brasil durante as investigações do escândalo denominado de “Mensalão”, também fruto de esquemas vinculados a desvios de recursos públicos para cumprir compromissos de Caixa 2 e assegurar apoio parlamentares aos partidos da base de sustentação do governo, ainda na primeira gestão do presidente Lula. O governo se manteve forte e a reeleição foi garantida.
Mas essa linha, entre apoio a um governo por conta de suas situações econômicas e a revolta com o mesmo, é muito tênue. Se desfaz rapidamente. Então é preciso que os que estão no governo pensem estrategicamente. Primeiro na inevitabilidade das crises e como prevenir-se diante da eminência de que elas ocorrerão. Segundo criando as condições para que essa massa de pessoas tenham a compreensão de como a realidade funciona e dos interesses escusos que muitas vezes levam governos à bancarrota em meio a disputas ferrenhas pelo poder.
Não é tarefa simples. Principalmente nos dias atuais, em que as notícias se proliferam pelas redes sociais, sem que necessariamente relatem fatos que tenham efetivamente acontecidos, ou que sejam verdades devidamente comprovadas ou comprováveis. Some-se a isso uma massa que segue como gado o discurso e as pregações vociferadas a partir dos púlpitos no estilo tradicional de especialistas em lidar com o medo das pessoas e controlá-los mediante a exposição de frases milenares e de vingança divina a uma possível traição aos valores religiosos. Constrói-se, pelo medo, o ódio a quem porventura se constituir em liderança e porta-voz de um povo, e que ouse ameaçar substituir sua divindade pela fidelidade a um mortal. A materialização das crenças de um povo, por meio da identificação de personagens reais, constitui-se em um perigo para dogmas que sobrevivem milenarmente e para os que se empoderam a partir disso e enriquecem às custas do medo e da ignorância popular. Ironicamente, foi assim que aconteceu com o criador do cristianismo. Deuses, existiam muitos, no imaginário que percorria o Império Romano, mas bastou aparecer alguém que diziam ser filho de um deus, e sua existência material provocar revoltas aos valores existentes a partir de pregações vistas como subversivas, e isso fez com que o grande Poder se manifestasse e procurasse eliminá-lo. E isso foi feito, tragicamente com apoio popular, que o trocou por um marginal.
Mas por aqui, uma conjunção de fatores contribuíram para reverter a situação que até 2015 era favorável à esquerda. Alie-se a essas questões os erros cometidos na condução dos governos Lula e Dilma, ao negligenciarem bandeiras agora tidas como moralistas, mas que foram carros chefes em outros momentos da história política do Brasil, como na luta para destituir um presidente identificado como corrupto na década de 1990, Fernando Collor de Mello.
Ao seguir um modelo corruptível, base da estrutura política brasileira, mas não só aqui, como de todas as democracias capitalistas embora com gradações diferentes e até mesmo com mecanismos legalizados de compra de parlamentares (como os lobbies autorizados nos EUA), os governos de esquerdas se viram vítimas de um discurso que foi se tornando eficaz, na medida em que passou a atingir muito mais do que pecadores, mas principalmente os pregadores. Aquelas vozes que foram marcantes na denúncia das corrupções no Estado e na identificação de personagens pérfidos por essa política, como Paulo Maluf , em São Paulo, e Antonio Carlos Magalhães, na Bahia, entre tantos outros, naturalizaram um mecanismo perverso da política brasileira: o Caixa 2 das campanhas políticas.
A esquerda, no poder, tornou-se assim, parecida com a direita, tanto no período militar quanto na redemocratização, até a virada do século XX no tocante à malversação dos recursos públicos, não importa se para manter um projeto de poder político visando atacar as desigualdades sociais. Os fins não podem justificar os meios, se estes forem pérfidos. E isso nos faz lembrar de uma frase marcante da política brasileira: “Nada mais parecido com um Saquarema do que um Luzia no poder”. Denominação dada aos políticos conservadores e liberais no Império, durante o segundo reinado da monarquia brasileira.2 Esses dois segmentos se revezavam no poder político, mas mantinham políticas parecidas no tocante ao uso do poder para a manutenção de privilégios. Isso não é uma comparação, mas a constatação que a esquerda não aprendeu com a nossa história, e foi incapaz de identificar uma onda que vinha de outras partes do mundo e poria abaixo essa forma de governar.
Sub-repticiamente, semelhante a uma serpente na maneira silenciosa de se mover e preparar o ataque, e pouco a pouco tendo se preparado para se colocar em condição de confrontar as ideias transformadoras de realidades sociais por séculos conservadoras, um movimento evangélico reacionário, neopentescostal, fundamentado na teologia da prosperidade e no “design inteligente”, pelo qual se tenta explicar cientificamente a teoria da criação, assumiu o discurso da política e ungiu o seu eleito para colocá-lo como porta-voz das ideias mais retrógradas desse movimento. O objetivo é disseminar esse poder difundido pelos púlpitos, fundamentado no medo, e no conservadorismo dos costumes. Diante da crise e da desesperança construída no meio do povo, o ataque foi frontal e certeiro nos valores progressistas que se disseminaram na sociedade, principalmente entre os mais jovens, na maneira de lidar com as políticas sociais, com os direitos humanos e as liberdades individuais e coletivas.
O ungido era porta-voz também de um discurso virulento, intolerante e claramente adepto da estrutura ditatorial militar que vigorou no Brasil nos anos 1960 e 1970, os 21 anos de trevas que se abateu sobre o país. Defensor de torturas e tendo como heróis torturadores julgados e condenados, e da militarização da política e da sociedade. Seu discurso se conjugou com o medo imposto às pessoas pelas pregações de púlpitos e dos programas religiosos nas mídias e foi atrelado ao medo da violência, esse bem real, consequência do desequilíbrio social, do desemprego em alta escala e da desesperança da juventude. A criminalidade crescente e o uso disso por “abutres” do jornalismo sensacionalista, fez com que gradualmente fosse tomando conta das mentes das pessoas o perfil de um presidente que pudesse acolher novas expectativas, desta feita geradas não pela esperança de um futuro radioso, mas pelo pessimismo de uma realidade perversa potencializada pela perversão do discurso.
A história nos mostra que movimentos políticos ou sociais que transformam-se em ondas, tendem a consolidar-se de forma tirânica, seja como ditaduras, teocracias, totalitarismos, absolutismos ou arremedos de democracias. Não importa o formato, se houver o apoio da maioria da sociedade e que esta assimile o discurso imposto por impostores, com perdão da redundância, as dificuldades para retomar um curso mais racional e progressista se tornam enormes e demandam tempo. E o que se vê, mais do que as questões que envolvem as políticas de Estado, do grande Poder, por assim dizer refletindo os estudos de Michel Foucault3 bem explicado pelo geógrafo francês Claude Raffestin4, é um ataque às liberdades individuais que vieram se consolidando desde o final do século XX.
Desta feita, o movimento em curso pretende portanto, mais do que o Poder, assim, com P maiúsculo, pois que se refere ao Estado. Se organiza para tentar impor barreiras aos avanços culturais da sociedade e a disseminação de valores que confrontem dogmas caros a segmentos religiosos e a igrejas que veem na ampliação de seus séquitos a condição para o enriquecimento crescente de seus líderes. Miram também nos pequenos poderes, nas relações familiares, na verdadeira doutrinação como é feita nas igrejas e que se desejam fazer nas escolas públicas.
Entendo que o movimento “Escola sem Partido”, uma aberração que tenta impor mordaças a professores/as de escolas e universidades, tem por objetivo impedir as liberdades individuais e o que eles denominam de “liberalismo nos comportamentos”, que são vistos como pecaminosos e desvirtuadores de princípios basilares do cristianismo. Não é um movimento restrito ao Brasil, embora com algumas nuances características da nossa cultura e da importação de um evangelismo que se mescla com interesses empresariais na condução da religião, tem muita semelhança com o que foi construído nos EUA nas últimas décadas, mais especificamente desde a primeira eleição de Barack Obama. Com o tempo, e seguindo-se essa estratégia que vemos ser aplicada hoje no Brasil, culminou na eleição de um presidente com as características de um personagem de uma ópera bufa e um discurso antipolítica, escorado nos valores conservadores do fundamentalismo religioso evangélico daquele país.
Mas não é somente um movimento contra esse liberalismo comportamental. Ele visa também conter o avanço das ciências na direção cada vez mais certeira de indicar as razões pelas quais existimos, e a indicação de que quase tudo teorizado por Charles Darwin no século XIX, tem sido gradativamente comprovado, e até mesmo ido mais além, através da investigação científica. Quanto mais a ciência avança, mais se coloca em xeque dogmas tradicionais que representam a base dessas religiões. Por esta razão surgiu para fazer o debate com o evolucionismo, o “design inteligente”, ou a tentativa de provar cientificamente o mito da criação do mundo. E a partir daí se estruturou fortemente, primeiro nos EUA, e de lá se espalhou para outras regiões, principalmente América Latina e Brasil, um fundamentalismo religioso, fortemente militante, que se estrutura por aqui a partir do Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil (CIMEB), que tem como vice-presidente o ultra-conservador e pastor Silas Malafaia, um dos que mais tem se envolvido nos últimos anos nas eleições brasileiras, desde as municipais até a presidencial, reforçando a cada processo eleitoral bancadas evangélicas que tentam impor por meio de projetos de leis valores cristãos, à revelia da condição de estado laico estabelecido pela Constituição Brasileira. Embora essa laicidade seja, de fato, questionável, pela influência que até aqui foi exercida pela igreja Católica, outro ramo do cristianismo. Isso explica o excesso de feriados religiosos santificados que existem no Brasil.
Mais do que tentar impor discussões sobre gêneros, o que esse segmento religioso fundamentalista deseja é manter seus dogmas intocáveis, tentar controlar o conhecimento científico a partir desse movimento tentando influenciar nas destinações de verbas para pesquisas, tendo como foco, principalmente, as áreas de humanas, vistos por eles como ambientes permissivos controlados por marxistas.
Assim, nos deparamos com dois movimentos em meio a uma estratégia clara de Poder. O controle do Estado, etapa vencida com as eleições, que passará a sofrer transformações para adequar políticas sociais e culturais a esses objetivos conservadores fundamentalistas religiosos; e o embate com a academia, na tentativa de impor pelo silêncio e o amordaçamento de intelectuais e professores, seus fundamentos religiosos como elementos explicativos de nossa existência no mundo e a escravidão e dependência que devemos ter ao seu deus, como se esse fosse único, em meio a tantas diversidades espalhadas por todos os continentes e aqui no Brasil. Essa última etapa visa também impor restrições à atuação dos professores do ensino fundamental e médio.
É absolutamente equivocada a afirmação que o ensino brasileiro se baseia em ideologias marxistas. Profundamente falso, já que majoritariamente os professores não são de esquerda e sequer marxista, com uma diminuta, ínfima, exceção. Que se concentram nas áreas de humanas porque Marx e Engels, assim como Comte, são referências acadêmicas nas Ciências Sociais, e não necessariamente militantes. E o fato de terem seus textos citados não tornam os professores automaticamente socialistas ou positivistas. Mas por trás de toda essa algazarra que se faz, e nitidamente com objetivos ideológicos, está a gradativa intenção de retirar do Estado esse caráter laico, e impor ensinos, valores e culturas baseadas no cristianismo, em especial nesse mais tosco, que tem como base a intolerância, a estupidez, o ódio e reflete todo o caráter reacionário construído a partir dos púlpitos de igrejas de linhagens protestantes, ultraconservadoras dos Estados Unidos. Esse fenômeno foi relatado em um livro, sintomaticamente pouco divulgado, denominado “Os demônios descem do Norte”.5 Publicado no final da década de 1980, já analisava todo esse movimento que transformou a política naquele país, e que se espalhou por tantos outros lugares, objetivando impor valores conservadores às sociedades e consolidar o domínio dos poderes capitalistas.
Como se vê, e parafraseando a velha frase shakeasperiana, “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar a nossa vâ filosofia”. Teremos tempos conturbados, e acredito ser pior do que aqueles pelos quais minha geração passou. Já experimentamos um modelo de governo ditatorial, de imposição de valores, cerceamento de nossas liberdades e censura sobre o que se podia noticiar e ensinar nas escolas. E foi um tempo de perseguições políticas, prisões, torturas e mortes, por quem divergia politicamente do governo militar. Um tempo em que as pessoas eram “suicidadas” e morriam assassinadas com laudos de latrocínio, embora as causas fossem a militância política, e os cartazes de terroristas, ladrões e estupradores eram espalhados pelas cidades adjetivando principalmente jovens militantes da oposição. Os dias de hoje nos jogam num cenário tão pérfido quanto aquele, que se acentua em função das ferramentas tecnológicas, das fake news, que podem transformar alguém em criminoso e justificar ações beligerantes, pelo que se fala, até mesmo com o uso de “snipers”. Hipocritamente, “em nome de Deus”.
A verdade só é crível se pudermos investigá-la. Mas nesses tempos o que se deseja não é a verdade, é a manipulação, a alienação, a disseminação de valores inspirados em uma única crença. E a excrescência do “escola sem partido” representa exatamente a tentativa de ideologizar o conhecimento na direção de um pensamento único, é o oposto de tudo que diz querer acabar. Intimidar os professores, tentar nos silenciar, amordaçar-nos impedindo nossa liberdade de cátedra, impedir avanços da ciência, somar-se-á à tentativa de eliminar a laicidade do Estado e impor uma espécie de “sharia” cristã, por meio da qual o comportamento e a cultura seriam controlados. Às mentes iluminadas cabe resistir ao obscurantismo, naturalmente, afinal, como dizia Vinicius de Morais, “a liberdade é a essência do ser humano”.
“E pur si muove!”6
______________________________________________________________________
1 https://www.youtube.com/watch?v=D2yeUGpRfVs
2 https://alunosonline.uol.com.br/historia-do-brasil/saquaremas-luzias-os-partidos-imperio.html
3 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal Editora, 2008.
4 RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.
5 LIMA, Delcio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves editora, 1987.
6 Frase que teria sido pronunciada por Galileu, logo após o final de seu julgamento à “Santa Inquisição”. Seu crime: ter dito que a terra girava em si mesma e em torno do sol. Embora absolutamente correto, ele foi obrigado a se retratar. “Ainda assim, ele foi condenado e obrigado a permanecer em prisão domiciliar pelo resto de sua vida. Conta-se que após o veredicto, Galileu proferiu a seguinte frase: ‘eppur se muove’ – e, no entanto, ela se move”. (https://brasilescola.uol.com.br/fisica/galileu-ciencia-santa-inquisicao.htm)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

DIA DO/A PROFESSOR/A: O QUE TEMOS PRA COMEMORAR? EU VEJO O FUTURO (AMEAÇANDO) REPETIR O PASSADO...


É que vocês não sabem, não o podem saber,
o que é ter olhos num mundo de cegos”.
(José Saramago – Ensaio sobre a cegueira)

1981 - 7 de setembro - greve nacional
dos estudantes
Nesta segunda-feira, dia 15 de outubro,  se comemora o "Dia do/a Professor/a". Não tenho muito o que comemorar. Nos últimos dias tenho vivido tenso, preocupado. Lutei contra a ditadura militar, estive nas ruas e por diversas vezes fui preso, por ousar levantar a voz contra o arbítrio e defender os nossos direitos, inclusive dos professores, em greve históricas que fizemos. Quase sempre éramos reprimidos brutalmente. Fui levado ao DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social) e à Polícia Federal, fichado e ameaçado de ser processado com base na Lei de Segurança Nacional.
Não sei como um vírus foi inoculado nas mentes incautas, a ponto de corrermos o risco de estarmos prestes a revivermos os piores momentos de ataques à liberdade e à democracia, como naqueles terríveis tempos das décadas de 1960, 1970 até meados da década de 1980. Creiam, os estudantes e os professores eram os mais visados. Muitos foram presso, torturados e desapareceram nos porões dos órgãos repressores. A censura era brutal, e quase ninguém sabia o que acontecia no país. Os moradores de ruas eram exterminados, e muitos jogados no oceano.
Como historiador, professor de geopolítica, tento compreender o que pode acontecer a um povo que esquece sua história. Ao ver ex-colegas que comigo militaram naqueles tempos sombrios defender a candidatura de alguém que defende a tortura, e diz que mais de trinta mil deveriam ter sido exterminados, me assusto. Sempre falei sobre como isso aconteceu na Alemanha nazista, na Itália fascista, na Espanha franquista, na ditadura no Chile de Pinochet, no Japão militarista, nas ditaduras que aterrorizaram os que se opunham às suas idéias. É verdade que isso também aconteceu no Camboja de Pol Pot, que se tornou também uma ditadura perversa, embora tivesse surgido com projeto de esquerda. E assim também na Iugoslávia socialista, cujo povo ao se rebelar contra o regime, logo após a morte de Josip Broz Tito, levou aquele país a uma guerra fratricida, que terminou com genocídios e o país dividido em seis partes, hoje seis países (Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Sérvia) e duas províncias autônomas (Kosovo e Vojvodina). A história de Ruanda, e o genocídio de quase um milhão de pessoas da etnia tutsis, eliminados por seus compatriotas hutus, é outro exemplo de como a intolerância e o discurso do ódio jogam uns contra os outros sem que haja alguma razão plausível, a não ser a estupidez e o veneno do ódio.
Sempre falei sobre isso em minhas aulas de Geopolítica. Ver ex-alunos/as, embora poucos, ficar do outro lado da história, e se deixar levar por discursos perversos, racistas, machistas, homofóbicos e antidemocráticos, me faz refletir sobre como temos ao longo dos anos lidado com nossa história. Com a história do mundo. Ao ver amigos e amigas, que por longo tempo marchamos do mesmo lado, combatendo o inimigo perverso que nos tolhia a liberdade e ceifava a nossa  democracia, e que neste momento fecham os olhos e a mente, cedem a pressões de dogmas religiosos e apoiam propostas abjetas, me faz refletir sobre o quanto é tênue a linha entre o que a vida pode nos ensinar e o quão um discurso neofascista pode alienar a ponto de fechar os olhos diante das perversidades e desumanidades que são ditas abertamente.
O Dia do/a professor/a será para mim um momento de reflexão. Talvez um momento para relembrar (e para parafrasear) as palavras de José Saramago, em seu livro “Ensaio sobre a cegueira”. Refletir sobre como foi que essas pessoas cegaram. Não sabemos, mas talvez um dia possamos descobrir a razão. E, se queres que eu diga o que penso, penso que não são cegos. São cegos que vêem. Cegos que, vendo, não veem. Claro que Saramago se refere não à cegueira física, mas a incapacidade de enxergar a realidade em função da alienação e do fundamentalismo religioso.
Não vou me deixar me abater pela cegueira de alguns. Não depois de quase quarenta anos lutando pela democracia. E, neste dia, direi aos meus alunos e alunas que me assistem na disciplina de Geopolítica: se você lê Yves Lacoste, “A geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”; Milton Santos, “Por uma outra globalização”; e Moniz Banderia, “A desordem mundial”, e não compreende o que está em jogo no Brasil e no mundo, então você não entendeu nada do que acontece à sua volta. E, talvez, tenhamos errado na forma de procurar mostrar o que esses livros dizem, como o mundo é de fato, de que ele é muito mais complexo do que nos querem fazer crer (Yves Lacoste).
Como professor, historiador  (mestre), geógrafo (doutor), e com quase 30 anos lidando com contradições para entender as transformações sociais não posso me surpreender com o que está em curso no país. Cabe-me, no entanto, tentar entender como o discurso do ódio se dissemina tão celeremente, e o quão certas pessoas estão contaminadas com um vírus que consome a razão.
Neste dia, o que posso dizer como professor, é que hoje eu transmito o que aprendi e compreendi ao longo de décadas de formação. As ruas me ensinaram quando, como militante, não tive medo de encarar uma ditadura militar. Portanto, não será o neofascismo, nem o medo de um militarismo que pretende degradar a democracia, que me intimidará depois de tudo que aprendi e no que me tornei defendendo a democracia e a liberdade.
Como professor, lhe direi, caso reproduza ou apoie o discurso do ódio, da intolerância, da discriminação e do neofascismo: eu estou do lado certo da história! O tempo dirá isso, como já aconteceu no passado. E não haverá repetição da história. Se acontecer deste projeto nefasto se consolidar, será uma farsa, ou uma tragédia. Certamente, professores como eu, que lutam por uma sociedade onde o saber seja a principal ferramenta a definir nosso futuro, seremos considerados doutrinadores, por trânsfugas ou sectários fundamentalistas, que se consideram modeladores iluminados do jeito das pessoas se comportarem. Seguiremos trabalhando sempre, com a verdade, e essa verdade nos garantirá a liberdade, nem que tenhamos que oferecer nossas vidas, como tantos fizeram no passado para fazer desse país um ambiente de respeito às diversidades e às diferenças.
Seguirei firme, procurando transmitir um saber que possa ser compreendido como necessário à transformação social, ao respeito pelo outro, à aceitação da diversidade, às escolhas individuais, à democracia e à liberdade. Agradeço aos meus melhores alunos e alunas (e são muitos, maioria) que sempre me garantem um feedback, que possibilita meu aprimoramento. E, juntos, podemos cada vez mais tentar entender o que há por trás dos comportamentos humanos, a complexidade da humanidade e aprender sobre qual a melhor atitude e o caminho adequado para atingirmos nossos objetivos comuns. Só não conseguimos, pois não é atribuição nossa, enquanto professor, mudar o caráter das pessoas. Seria bom que fosse, pois “o caráter de um individuo, é o seu destino”.
Um brinde aos que lutam pela liberdade! Um brinde a todos professores e professoras! Um brinde ao professor Haddad! A luta não pode parar! 



terça-feira, 9 de outubro de 2018

O OVO DA SERPENTE – DÉJÀ VU!* - Crônica sobre um Brasil à beira do abismo

Para um historiador nada do que está acontecendo pode surpreender. E não me refiro somente a situação política e social que vive o nosso país. O que acontece no mundo também parece ser incompreensível. Mas para o estudioso da história, da geopolítica ou das ciências sociais, uma análise pelas transformações que ocorreram no passado, em diversas partes, nos dá a indicação de que tudo é possível. Os avanços, as transformações sociais, a intolerância, os retrocessos, as ditaduras, o fascismo, o nazismo. Tudo muda, permanentemente, e em muitos casos, essas mudanças carregam traços do passado, ainda latente e de muitas feridas não cicatrizadas.
Mas quero me ater ao Brasil, nesse momento tenso em que estamos passando. Sempre tivemos como característica uma sociedade muito conservadora. Nos costumes, nos valores, na maneira de encarar as mudanças de comportamentos e na dificuldade de aceitar as transformações que se contrapõem a dogmas seculares, e até mesmo milenares. Por certo tempo avançamos em direção a ideias progressistas, e certamente isso se deveu porque as pessoas sentiram que o rumo que o país estava tomando, no final do século passado, era terrivelmente prejudicial para si e também para a imensa maioria da população desse país. Assim, apostaram em um novo projeto político, bem na contramão desses valores.
De lá pra cá muita coisa mudou. E não foi somente devido aos erros que teriam sido cometidos pelos governos de esquerda. Isso, como a insistência tanto reverberada pela mídia, tem alimentado o discurso fascista. Mas o que mudou é consequência de uma crise que é muito maior. Estamos num processo de transição de um sistema falido, que joga milhões de pessoas no desespero e na miséria, enquanto concentra uma riqueza absurda com 1% da população. A crise econômica de 2008 deixou os Estados em grande parte falidos, porque precisaram salvar os bancos e o sistema financeiro. Mas com poucos recursos no tesouro os Estados não podem adotar políticas sociais e isso acentua as crises, porque se perde um forte agente indutor de investimentos e, por extensão, gerador de empregos. Já os bancos... vão muito bem, e nem sequer se preocupam em salvar os estados. Estes só servem para atender aos seus objetivos. Só não se admite, pela elite, que as políticas do Estado ajudem a população pobre a sair das condições de crise. É claro que isso vai transformar a sociedade num inferno. O problema é que as pessoas olham para o lado errado, e se submetem as informações falsas e deturpadas sobre como deve ser a saída para esses dilemas.
O golpe dado aqui no Brasil, em meio à ambição tresloucada dos derrotados nas eleições de 2014, afundou o país no caos. Três anos de uma perversa recessão, e a ilusão transmitida pela grande mídia que estávamos saindo do buraco, quando na verdade nos afundávamos cada vez mais, deixou os brasileiros baratinados. O que se via, ouvia e se acompanhava pela mídia e redes sociais, era a repetição de acusações e indicações de culpas contra as políticas de governos que ousaram fazer do Estado um estimulador de políticas sociais em benefício dos mais pobres. Bem como inseri-los na fila de ingresso nas universidades públicas.
Paradoxalmente essas camadas beneficiadas por tais ações e políticas passam a combater esses projetos e a defender, de forma inusual, um indivíduo que se contrapõe por essência, e por questões ideológicas, aos mecanismos que foram criados para beneficiá-los. Isso parece loucura, mas não é. As circunstâncias surgidas no contexto da crise, a maneira como a mídia criou um ambiente nefasto, de pessimismo, como condição para desconstruir tudo que havia sido construído de positivo no Brasil desde 2002, a insistente desmoralização dos dirigentes políticos, em especial da presidenta, e a forma como se iniciou um processo de investigação das corrupções dentro da estrutura do Estado como elemento construtor das campanhas eleitorais foi gradativamente criando uma aversão pela política, inicialmente, e pelas principais lideranças de esquerda, algumas envolvidas nas denúncias do uso da máquina pública para manter um projeto de poder. Não importava se esse projeto de Poder visava combater as desigualdades sociais, muito embora não se combatesse a concentração da riqueza. Outro paradoxo.
Mas talvez o elemento mais histriônico, pelo qual se construiu uma chocadeira eletrônica, de onde proliferou uma infinidade de filhotes de fascismo, foram as pautas hipócritas de defesa da família, dos valores tradicionais, se contrapondo às lutas de minorias contra o machismo, a opressão e a intolerância a que sempre foram submetidos. Daí despontou as vozes perversas do fascismo, irritantemente estúpidas e mentirosas, que desvalorizam as pessoas pelas suas opções e escolhas de vida, apregoando para justificar essas posturas bizarras versículos bíblicos e exaltando o nome de Jesus como condutor dessas mais abjetas perversidades humanas. Há uma terrível inversão de valores nesse comportamento, que destrói os melhores valores apregoados pelo cristianismo primitivo.
Mas, nada de novo nisso, é um dejá vu, aconteceu também em 1964, com a famigerada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Não visava liberdade coisa nenhuma. Simplesmente as submissas senhorinhas da classe média alta e da burguesia foram para as ruas com as mesmas pautas intolerantes de hoje, em um contexto diferente, naturalmente. Ali por um golpe militar, agora se vê militares tentando assumir o poder com o mesmo discurso mediante um processo eleitoral, cujo objetivo, se se sagrar vitorioso é a destruição da democracia e das liberdades a muito custo e sacrifício conquistadas, e assim mesmo de forma limitada. Pois é justamente contra a ampliação dessas liberdades que o fascismo se remexeu no  cio.
Qual a diferença nos fatos e estratégias adotadas nesses dois momentos? Primeiro, em 1964, a base da religião que possibilitou esses movimentos foi a igreja católica, naquele momento de forte envolvimento conservador. O que estamos vivendo neste momento, 54 anos depois, é uma estratégia adotada para que se tivesse um movimento favorável, e que não seria um partido político – tanto que para isso usou-se um bastante inexpressivo – foi a conversão de um candidato de extrema-direita, com discurso ditatorial, intolerante, preconceituoso, machista e racista, ao evangelismo neopentecostal, de feição nitidamente ultraconservadora, e isso bem recentemente, em 2016. Em um caso e outro o discurso de intolerância dá também um tom anticristão, e o mesmo caráter reacionário. Mas, naturalmente, há cristãos que resistem a esse engodo. Os que não são alienados e não se submetem à lavagens cerebrais.
Não há cérebros sãos por trás de tudo isso, e se transmite pelo ar um clima insuportável, que se espalha perigosamente e deixa o ambiente cinzento. Há uma frase do poeta Bertold Brecht, forte, mas que sintetiza bem o que significa esse movimento: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. É o que parece nesse momento. Haveremos de combatê-lo, mas conhecemos pela história que isso se dissemina perigosamente, em meio à ignorância, alienação e desespero de uma população que porventura tenha perdido as esperanças. O discurso do ódio, da violência para combater a violência gerada por problemas sociais, a absoluta ausência de preocupação com a harmonia da sociedade, pois desejam eliminar os diferentes, a hipocrisia e as mentiras, encontram nesses ambientes um solo fértil para germinar e crescer. Miremo-nos na história, aprendamos com o passado, ainda é tempo de impedir que entremos na loucura em que se transformaram outras sociedades, em alguns casos gerando genocídios de multidões inocentes. Acreditem que isso possa a vir novamente acontecer, mas tenha uma crença maior, de que é preciso impedir essa possibilidade. A humanidade já extirpou em outros momentos essas serpentes. Elas foram chocadas, estão se reproduzindo, mas serão mais uma vez derrotadas. Esperamos que somente pela via eleitoral.
Por fim, não se trata de querer aplicar esse rótulo de fascista a todos que porventura sejam conservadores. Não pode ser isso. Até porque nem mesmo esses liberais mais moderados escapam desse ódio visceral fascista, e vimos também isso quando se instalou uma ditadura militar aqui no Brasil, e de como funcionou o nazi fascismo na Alemanha e na Itália. Os arrependidos foram perseguidos e também se tornaram vítimas dessas ditaduras. Para isso é fundamental diferenciar quem propaga o discurso do ódio, da intolerância, da violência, daqueles que na ânsia de propor uma mudança terminam seduzidos por esses comportamentos abjetos. Trata-se de utilizarmos estratégias de convencimento, a fim de impedirmos que aqueles que são bem intencionados sejam atraídos pelo canto da serpente. Devemos trazê-los para o lado da democracia, da tolerância, do respeito às diferenças, e da liberdade.


(*) Déjà Vu – “A expressão francesa, que significa “já visto”, é usada para indicar um fenômeno que acontece no cérebro da maior parte da população mundial. O termo foi aplicado pela primeira vez por Emile Boirac (1851-1917), um estudioso interessado em fenômenos psicológicos. Déjà vu é quando nós vemos ou sentimos algo pela primeira vez e temos a sensação de já ter visto ou experimentado aquela sensação anteriormente”. Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/deja-vu.htm


(**) Em 2012 publiquei outro artigo com o mesmo título: O Ovo da Serpente. E ali eu já abordava as fake news e os comportamentos intolerantes. Acesse o link e leia: https://gramaticadomundo.blogspot.com/search?q=O+ovo+da+serpente


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

CAIADO – A FACE CÍNICA DO AUTORITARISMO


* Há cerca de dois meses (as convenções partidárias ainda não tinham acontecido) fui procurado por uma jornalista de um jornal de Aparecida de Goiânia. Ela me solicitou, por meio de algumas perguntas a mim enviadas, que fizesse uma avaliação da candidatura de Ronaldo Caiado, que liderava as pesquisas eleitorais. Como historiador e professor de Geopolítica, considerei que seria uma obrigação minha responder aos questionamentos feitos. Contudo, passados alguns dias sem que a notícia fosse publicada procurei saber quando isso aconteceria. Não muito surpreso fiquei sabendo que o jornal não publicaria por razões que ela desconhecia. Pois bem, fui a fundo, procurei tentar entender e descobri que a razão foi a pressão feita pela assessoria do candidato para que a reportagem não fosse publicada. Para mim não é surpresa isso, conhecedor que sou das práticas e do comportamento desse político. Cabe a indagação: se ele faz isso ainda como candidato, o que fará sendo eleito? Os prenúncios não são bons, sobre o futuro de Goiás e do Brasil. Quiçá ainda tenhamos tempo de alterar esse destino. Decidi, no entanto, que publicaria neste Blog a entrevista, mesmo sem o alcance que teria caso o jornal a publicasse. Espero dessa forma contribuir, mesmo que minimamente, com o processo político eleitoral em curso no Estado de Goiás, e poder expor para as gerações mais jovens comportamentos e ações de políticos que se escondem numa máscara construída por marqueteiros com o intuito de iludir as pessoas. Lamento também a subserviência de órgãos jornalísticos que giram em torno do Poder e se submetem a ele. A liberdade de expressão só é exigida quando se questiona os comportamentos persecutórios e manipuladores de alguns desses órgãos, para que eles possam se submeter a critérios verdadeiramente democráticos. Compreendo, no entanto, que as forças opressoras muitas vezes são muito poderosas e alguns desses jornais, ainda tentando se firmar num ambiente de recessão, terminam por ceder a essas pressões por simples questão de sobrevivência.

Eis a entrevista:
De acordo com pesquisas eleitorais, o pré-candidato sai na frente dos outros pretendentes ao cargo com uma vitória quase certa. Na sua opinião, a maioria da população pretende votar em Caiado pelas propostas que apresenta no Congresso, pela experiência na carreira política ou apenas porque é um nome muito reproduzido nas mídias e que as pessoas mais desconhecem sua carreira e conhecem a figura?
R – Caiado lidera pesquisas que indicam um percentual muito grande de abstenções, votos nulos e brancos. Essa tem sido a característica principal dessas pesquisas. Aliás, reflete também o resultado da eleição no Estado do Tocantins no último domingo. Metade do eleitorado não quis participar do processo.
Penso que tanto o voto em Caiado, quanto em Bolsonaro, é sintoma de uma sociedade descrente da política. Esse ambiente foi criado desde as manifestações de rua que culminaram com o impeachment da presidenta Dilma Rouseff. O problema, para a maioria da população, é que esse ambiente favorece somente aos setores conservadores e reacionários, que defendem prioritariamente o segmento que controla a riqueza e a produção e não os trabalhadores. Há um desconhecimento da história que beneficia esses candidatos que nos últimos anos carregaram no discurso do ódio, alimentando uma intolerância que foi cultivada para destituir a esquerda do poder. Na medida em que esse discurso afasta boa parte da população da política esses elementos se beneficiam, pois seguramente não votariam neles. É um equívoco daqueles que acham que se omitir é a melhor forma de resolver as coisas. Não é, pois proporciona que candidatos da anti-política, defensores de pautas intolerantes e, principalmente, que se opõem às conquistas dos trabalhadores, se destaquem. Tenho esperança que o processo eleitoral, ao se iniciar, traga um bom debate que possa esclarecer o perfil desses candidatos, e como tem sido as posturas deles na defesa dos trabalhadores e trabalhadoras e como tem votado no Congresso Nacional.
Filho de uma das mais tradicionais família goiana, o sobrenome Caiado já ocupou diversos cargos públicos em Goiás. Existem alguns feitos - dessa família ou do próprio senador- que puderam ser sentidas diretamente, para o bem ou para o mal, pela população?
R – Claro que não. Os Caiados foram derrotados na política pelo avanço de idéias modernizadoras, pela necessidade de se fazer o país e o nosso Estado avançarem em políticas desenvolvimentistas e sociais com garantia de emprego para uma população sofrida. Os conservadores chamavam isso, e ainda chamam, de populismo. Essa oligarquia sempre se bateu contra os avanços, pois seus objetivos sempre foram defender grandes proprietários de terras e oprimir trabalhadores rurais e pequenos proprietários. Na base da porrada e da bala. Não há na trajetória dele, e de sua família, nenhuma política que tivesse como foco o social, os trabalhadores, os camponeses, bem ao contrário, é nitidamente defensor do grande agronegócio e dos latifundiários, que concentram rendas e não se preocupam com as condições a que está submetida a população.
Um dos líderes da bancada ruralista no Congresso, Caiado defende bastante o agronegócio. Pelas suas atuações, o político parece mais preocupado com esse seguimento do que com a própria população?
R – Com certeza. E seria assim um futuro governo seu. Sua trajetória sempre foi marcada por esses posicionamentos. Fiz minha pesquisa sobre a violência no Sul do Pará e Norte de Goiás (atualmente Tocantins) nos embates gerados pela Constituinte da década de1980, e a figura do Caiado sempre esteve presente na liderança da UDR, entidade que ele ajudou a criar e que fazia sistematicamente leilões de gados para arrecadar dinheiro para financiar milícias paramilitares e com pistoleiros, a fim de atacar aqueles que defendiam a Reforma Agrária. Padres, parlamentares, lideranças sindicais, advogados, muitos foram assassinados devido a esse movimento que espalhou violência e ódio pelo interior do país e que começou por Goiás. É esse comportamento que ele, seguramente, manterá como governador, caso venha a ser eleito. Basta verificar suas ações no Congresso Nacional e se perceberá isso com clareza. Além do levantamento de sua história de vida a partir do momento em que se constituiu como liderança dos fazendeiros latifundiários.
Quais ideologias do candidato e quais efeitos poderiam ocasionar sobre os goianos, caso eleito governador em 2018?
R – Ronaldo Caiado explicita claramente um comportamento bruto, avesso à democracia. Suas atitudes, agressivas, como as Bolsonaro, é típica de indivíduos autoritários que não se submetem a opiniões contrárias e a comportamentos diversos de seus valores conservadores. Seria um enorme retrocesso na política para o Estado de Goiás, principalmente do ponto de vista das ações modernizantes que transformaram o Estado. O que nós precisamos é muito mais ao contrário. Precisamos transformar esse perfil moderno dado ao nosso Estado na direção da solução de problemas sociais e de redução da concentração de rendas e de riqueza. Caiado defende o oposto disso, e, consequentemente, caso eleito implicaria em aceleração dos conflitos, dos crimes contra a população mais pobre e de uma situação de instabilidade social que seria inevitável. Espero que a população de Goiás abra os olhos, conheça bem o perfil dos candidatos, e opte por quem deseja paz, educação, saúde e emprego para a maioria dos que vivem aqui.
Algo a acrescentar?
R – Acredito que a situação apontada agora pelas pesquisas, que é de momento, tende a mudar quando começar os debates e for mostrado à população quem é quem. Acho que ainda está muito cedo pra se imaginar haver algum candidato imbatível. É claro que quem já está na mídia há muito tempo leva vantagem agora. Mas quando as regras eleitorais começarem a serem postas dentro do limite da lei isso vai mudar. É o que eu espero e torço por isso. Precisamos de mais democracia e não de menos. De mais política e tolerância. Aposto que as pessoas se darão conta do que é melhor para elas e escolherão candidatos que não destilem ódio. Mas não será surpresa se o resultado for esse que as pesquisas indicam. Infelizmente.


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

UM PAÍS À DERIVA: QUE TEMPO É ESSE? PARA ONDE ESTAMOS INDO?


O Grito de Edvard Munch.
Obra expressionista
Não podemos achar que vivemos em uma ilha, onde as coisas acontecem independentemente da realidade que reflete os fatos que se sucedem no mundo. Evidente que não. O que nos afeta é consequência de transformações que foram geradas pelo fracasso daquilo que se convencionou chamar de globalização. E das políticas neoliberais que formaram as condições necessárias para que tais políticas fossem implementadas.
Fracassados os modelos tentados por essa onda de desregulamentação e destruição dos Estados o mundo se depara com uma crise, que não advém de 2008 como muitos possam imaginar. Ela é um processo cíclico que se inicia, se é que há um início ali, na década de 1970. Mas somente na década de 1990 as soluções desejadas pelo capitalismo conseguiram ser plantadas, como decorrência da decadência dos países que seguiam pelo socialismo, e em especial a União Soviética.
Passou-se a um ambiente de absoluta ausência de regulamentações, a não ser aquelas definidas por um ente abstrato, erigido à condição de sujeito: o mercado. Naturalmente isso significa dizer que não havia nenhum tipo de regulação. Em termos, claro. Porque muitos países se aproveitaram dessas circunstâncias, se incluíram no mundo globalizado sem abdicar de ter o Estado como instrumento necessário para transformar o desenvolvimento econômico e social em algo mais palatável em relação à sociedade. Ou seja, sem o Estado como instrumento regulador as classes sociais mais baixas estariam entregues a um sistema claramente marcado pela selvageria da lei do mais forte. E assim ocorreu, em muitos casos. Em outros não. E para onde foi o mundo quase ao final da segunda década do século XXI?
Essa lógica foi desastrosa. Sob diversos aspectos. No econômico levou a uma poder descontrolado das corporações, principalmente aquelas que estão na ponta dos conglomerados: os bancos. A concentração de riquezas chegou a níveis escandalosos. Houve um processo de saneamento das empresas, motivado pela lógica inerente ao sistema capitalista, da necessidade de lucros, levando a uma escalada de desempregos por diversos países, principalmente aqueles que se encontravam em fortes conflitos, seja guerras com inimigos externos, seja por desestabilizações políticas internas, acrescidos das ações de agentes que executavam a chamada “guerra híbrida”.
Para tornar a situação mais complexa o capitalismo, como é comum acontecer diante do agravamento de suas crises crônicas, cíclicas, busca um processo de reestruturação, acelerando transformações tecnológicas cada vez mais sofisticadas, por meio da robotização acentuada e da inteligência artificial. Naturalmente isso garante maior lucratividade para empresas e a redução do uso de mão de obra humana, alimentando uma crise social de proporções crescentes, trazendo junto com isso desemprego, mais problemas sociais, uma juventude cooptada pela criminalidade, desestruturação familiar, intolerância, ódio e xenofobia.
Por outro lado, governos conservadores, alguns alçados à condição de dirigentes por meio de golpes institucionais, programam medidas austeras em relação aos gastos do Estado, prejudicando as camadas mais baixas, ao mesmo tempo em que seguem mantendo subsídios às grandes empresas, ou as beneficiando por meio de isenções fiscais e garantia de infraestruturas para seus aportes e instalações.
No Brasil não foi diferente. As circunstâncias de uma situação política que levou o país a uma forte crise fiscal serviu de pretexto para a derrubada em 2016 de um governo eleito legitimamente, mediante acusações nitidamente farsescas, embora com a anuência de um judiciário carregado de mágoas por causa de decisões que feriram seus interesses corporativos.
A crise política, econômica e institucional se agravou ao longo dos anos seguintes, e deixou numa situação caótica o quadro político e social brasileiro. Um governo incompetente e imoral, completamente distanciado dos interesses da Nação, até porque não foi eleito democraticamente, adotou medidas que sufocaram mais ainda os trabalhadores e empurrou o país para uma das maiores recessões de sua história. Mas o aspecto moral foi o que mais se deteriorou, potencializado pelo crescimento da criminalidade, da insegurança, da violência e do discurso que projeta mais um sentimento de vingança do que a sensação que a justiça prevalecerá. Um vale-tudo se instalou no país disseminado por fake-news nas redes sociais que toma proporções parecidas com o que aconteceu nas eleições dos EUA e no plebiscito do Brexit na Inglaterra.
Inquisição medieval
Nesse quadro a sociedade vive a expectativa de um processo eleitoral. Numa conjuntura em que a população se vê perdida diante dessa manipulação de fatos e da utilização dos mecanismos que foram adotados em outros países, da falsificação da verdade e de informações distorcidas, aliado à perseguição comandada por um Ministério Público de uma parcialidade irritante, embora reforçado por comportamentos semelhantes do judiciário.
Assim, tudo é feito, até por meios desleais no âmbito de uma justiça que se desmoraliza, aprofundando a sensação de parcialidade explícita para que o poder político não retorne às mãos dos partidos de esquerda. À medida que os principais candidatos dos segmentos conservadores não conseguem deslanchar, destaca-se como representante do ódio alimentado ao longo desse tempo, um candidato da extrema-direita. Como característica desses perfis de candidaturas por todas as partes do mundo, seu discurso é baseado na intolerância, na descriminação ao outro sem respeito às diferenças e na alimentação do ódio, sob todos os aspectos. Um discurso que pode ser caracterizado sem erro de neonazista. Paradoxalmente, ao tempo em que professa esse sentimento intolerante, alicerça-se em crenças evangélicas, cristãs, e diz falar em nome de deus.
Cenas da Inquisção
Mas, porque esse indivíduo chegou a essa situação? Basta olharmos para a história e veremos muitos trágicos exemplos de como uma população fica refém de discursos de ódio, na medida em que perde a esperança, não vê perspectivas em curto prazo, principalmente os jovens, e são nesse desespero capturados pelo discurso fácil, enganador, manipulador. São conduzidos pelo medo, e pela forma como culturalmente foram sendo constituídos os valores e a ideologia de uma sociedade conservadora.
Submersos em momentos de avanços sociais, como na primeira década deste século, um sentimento conservador se libertou das profundezas, alimentando o medo e iludindo as pessoas com versículos bíblicos escritos há mais de dois mil anos. Seria impossível crer que um discurso de ódio e perversidade encontrasse guaridas em páginas religiosas? Não é bem assim. A história nos levará a outros tempos, e nos veremos diante de fatos por épocas passadas, onde o discurso religioso se tornou instrumento de fascistas, farsantes e até mesmo de fanáticos que levaram centenas de seguidores à morte, ou a tornarem-se, eles próprios, armas contra quem eles sequer jamais chegaram a conhecer. Porque o ódio cega, e o ódio do sectarismo fanático religioso se alimenta da ilusão e da crença de que determinado indivíduo se torna ungido e destacado por deus para libertá-lo das angústias e dos medos. E os que professam desse ódio e desse sentimento perverso, matam e se matam em nome de deus.
Marcha da Família com Deus
Pela Liberdade, em apoio
ao golpe militar - 1964
Numa situação de crise grave, de desemprego que se conta a dezenas de milhões, em que uma juventude se perde na ausência de esperança e de perspectiva, esse discurso farsesco se espalha rapidamente. E, por mais paradoxo que possa parecer, mesmo sendo os que assim propagam como sendo o escolhido, representante das camadas ricas, que defende abertamente a eliminação dos pobres pela execução daqueles que os deveriam proteger, muitos pobres, alienados, e/ou dominados pelas crenças sectárias religiosas, são facilmente convencidos por esses discursos de ódio, por esse ambiente no qual eles vivem e que a crise o aprofunda. Foi assim que surgiram os personagens mais perversos e genocidas da história mundial.
Muito embora isso, no espectro político que define a disputa eleitoral em curso, tem valido mais a disputa do Poder e da projeção partidária desconectada da preocupação com o futuro que nos aflige. Seria de esperar que num quadro assim delineado tivéssemos uma junção de pensamentos, e de partidos, que se opõem a esse perigo eminente de caminharmos para uma fascistização aberta da sociedade. Mas seguimos um enredo já visto no passado, e isso parece não despertar uma sensação de risco, ou talvez venha acompanhado de um sentimento de que uma derrota agora pode ser revertida nas próximas eleições. Provavelmente alguns estrategistas imaginam que da eleição de um desastroso e pérfido projeto levará as pessoas a se arrependerem, e imaginam um fenômeno semelhante ao sebastianismo ocorrido em Portugal, país que viu seu rei perder-se em meio a uma guerra, sem que jamais se soubesse qual foi o seu destino. A expectativa do retorno de um salvador ilude a sociedade e transfere para um futuro incerto um destino que estará sendo definido neste momento.
Podemos dizer que a história julgará aqueles que se omitirem ou manipularem um processo à custa de um jogo perigoso que envolve toda uma nação. Mas ainda temos tempo de alterar o curso dos acontecimentos. Praticamente vai se definindo uma disputa que colocará de um lado uma candidatura nesse perfil aqui analisado, que representará a destruição de tudo que se construiu e que se avançou na sociedade. Agora, a menos de um mês da eleição é preciso recuperar o tempo perdido de forma a garantir uma candidatura de esquerda na contraposição a essa onda de perseguição e intolerância que tomou conta do Brasil. A rejeição a esse projeto reacionário está num patamar bastante elevado, indicando a possibilidade de uma derrota efetiva em um segundo turno das eleições. Temos que ter foco e saber definir bem claramente quem é o alvo a ser derrotado e quais propostas o povo rejeitará nas urnas, porque trariam mais incertezas para o nosso país. Neste momento virar as baterias contra possíveis aliados no segundo turno é uma estupidez. O "fogo amigo" só ajuda o adversário.
Mas o tempo não para. E as pessoas vão se definindo, em meio a uma confusão inédita na história dos processos eleitorais brasileiro.
Não temos tempo a perder. “Nosso suor sagrado, é bem mais belo que esse sangue amargo. E tão sério… temos nosso próprio tempo” (Legião Urbana).