13 de dezembro de 2007. Há onze anos vivíamos o pior momento de nossas vidas. A pequena Carol falecia aos
dez anos de idade. Tudo mudou para nós, e por muito tempo passamos a conviver
com a necessidade de lidar com uma situação absolutamente cruel. Ver a morte de
uma filha, ou de um filho, nos empurrar para o fundo de um poço. A depressão é
praticamente inevitável, e evitá-la é muito difícil, só possível se buscarmos
nos envolver em alguma atividade que tenha relação com aquele ente falecido,
para que a lembrança de sua presença fique latente desde os momentos iniciais
de sua morte. O sentimento da ausência, porquanto durar, somente nos faz
despencar cada vez mais no abismo de um vazio que se transforma em doença.
É muito difícil equacionar essa
perda. Tive muitas dificuldades em sentir a presença de minha filha em sua
ausência. É uma dialética perversa, o limite de uma contradição presente sempre
por todo o tempo em que vivemos. Podemos conviver com a ideia da morte, sabendo
que ela naturalmente nos atinge, dentro de uma lógica inevitável. Mas nossas
forças não são suficientes para suportar a perda de uma filha, ou de um filho.
É uma sensação de fracionamento de seu corpo, de tal forma que somos acometidos
de uma enfermidade denominada no ambiente da medicina como “síndrome do coração
partido”.
Uma das formas de suportar essa dor
foi me dedicar a escrever. Neste blog, e, antes dele na edição de um livro de
crônicas dedicadas a minha filha e que intitulei, “Depois que você partiu”.
Assim o fiz por um ano, logo depois da morte dela. E, nos anos seguintes,
sempre que a angústia me tomava conta, ou naqueles dias cujas datas são
marcantes, porque elevam a saudade a patamares insuportáveis. A proximidade do
dia em que, fatidicamente perdemos nossa pequena Carol, sempre nos deixa
reflexivos, tristes. Isso ter acontecido no final do ano torna as festas deste
período menos alegres do que antes, quando ela vivia entre nós.
O tempo ameniza a dor, aprendemos
sempre isso. É verdade. Porque também precisamos encontrar formas de continuar
vivendo. Sempre digo que a melhor maneira de ter minha filha ao meu lado
continuamente, em boas lembranças de sua presença em vida, é estar vivo e
saudável. Acostumei-me aos sábados, sempre para mim o pior dos dias depois de
sua morte, a ir para uma roda de samba, num lugar aconchegante, onde encontro
amigos e amigas, o Quintal do Jorjão. E, mesmo ali, silenciosamente em meio a
algumas músicas cantadas, já chorei de saudades de minha filha. As músicas de
Gonzaguinha são as que mais fazem eu me lembrar dela. Mas aprendi a sair das
tristezas que os sábados me traziam. E, aos poucos fui reforçando cada vez mais
a sensação de tê-la comigo, em meu coração, em minhas lembranças, ao meu lado.
Aprendi que tristeza e alegria convivem mutuamente, e que felicidade é um
conceito muito relativo, que se adéqua somente a momentos precisos, nunca a
felicidade pode ser algo permanente em nossas vidas. Como posso ser feliz, sem
minha filha? Não sou. Tenho alegrias e tristezas, e aprendi a viver dessa
maneira, porque minha vida segue ao lado das pessoas que eu amo. E minha filha
segue comigo, bem apegada ao meu peito, do lado esquerdo, e a sinto nas
pulsações do meu coração.
Depois que minha filha partiu muita
coisa mudou em minha vida, se já não somos os mesmos à medida que envelhecemos,
deixamos de ser muito mais, quando perdemos uma filha. Nos tornamos mais
sensíveis com a realidade que nos cerca, a presença dos familiares e amigos, em
gestos solidários a nos confortar, desperta uma sensação altruística, um
sentimento que sempre nos acompanhou enquanto humanos, apesar de esquecido em
algum canto nos dias atuais. Nessas horas ele se torna bem presente, e nos
afeta sobremaneira. Pelo menos me afetou e me fez refletir profundamente sobre
minha relação com o meu ambiente de trabalho, com minha casa, com a sociedade,
com as pessoas.
Afastei-me por um tempo de diversas
atividades, profissionais e políticas. A condição depressiva me desestimulava.
Somente a sala de aula, onde por diversas vezes me emocionei em frente a meus
alunos e alunas, me dava algum alento. O prazer de dar aulas me aliviava das
angústias, paradoxalmente tratando nelas as contradições de um mundo em transe.
São onze anos que parecem uma
eternidade, mas, contraditoriamente, parece que foi ontem que nos debruçamos
pela última vez sobre o corpo de nossa filha, já sem vida, numa imagem que
ficará retida em nossas mentes até o último dia de nossas vidas. Cada momento,
cada segundo, daqueles infortúnios desde quando soubemos de sua morte, em que o
chão se abriu para nós, e, que alguns crêem, os céus se abriram para ela, se
repetem como flashes em nossa memória, ou, como no linguajar das novas
tecnologias das redes sociais, como ‘gif”. Imagens em movimento que se repetem.
Somente no cotidiano de nossas atividades, a nos ocupar pelo que
necessariamente precisamos fazer, encontramos lapsos de tempo, que nos distraem,
e seguimos o curso de nossas vidas. Mas, jamais, como antes. Perdemos um pouco
de nosso corpo e de nosso jeito de ser. Como diz Antoine de Saint-Exupéry: “Aqueles
que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós, deixam um pouco de si,
levam um pouco de nós”.
Mas, parafraseando Chico Buarque,
em uma das tantas músicas que nos lembram da Carol, o tempo passou na janela, e
ela não mais estava aqui para ver as transformações aceleradas de um mundo e um
tempo que deveria ser seu.
Quando a Carol faleceu o nosso país
vivia momentos de expectativas positivas. As esperanças deixavam as pessoas
animadas com as possibilidades de adentrarmos em um outro mundo, de
desenvolvimento e de redução de desigualdades sociais. Apesar de já naquele
momento, escândalos de corrupção também ser a tônica dos noticiários, era
nítido uma mudança no país, que crescia em termos de aumentos de empregos, de
sensação de melhorias nas condições de vida das pessoas, de perspectivas
positivas. Em 2007 já se estremeciam por todo o mundo os alicerces de um
sistema econômico que avançou o sinal, e onde a ganância expôs as debilidades
de uma estrutura que era tênue, porque escorada numa especulação financeira
desenfreada. Por todo aquele ano alertei em minhas aulas para o desastre que se
apresentava como eminente, apesar de escondido pela grande mídia. Mas isso já
era abordado por especialistas e publicado inclusive em livros. O ano em que
minha filha morreu, pode-se dizer, foi o último ano tranquilo do resto de nossas
vidas. E isso não é uma análise
amarga causada pela perda que tivemos com sua morte. O ano de 2008, que nos
levou a uma imensa escuridão, por ser o primeiro ano sem a presença dela entre
nós, foi também o momento de uma grande virada na conjuntura econômica e
geopolítica mundial. Tudo seria diferente a partir de então.
Como a acompanhar nosso calvário,
naquele sentimento de dor, que ainda nos acomete, mas sufocado pelo tempo e
superado por nossas forças de viver, também nossas expectativas de um mundo
melhor, de um país diferente, começou gradativamente a se desvanecer. Diferente
de nosso infortúnio, repentino e aos poucos restrito a parentes próximos, mas
fundamentalmente a mim, como pai, e a minha esposa, como mãe, as desgraças que
afetaram o mundo e o país foi, pouco a pouco ampliando e atingindo um número
cada vez maior de pessoas. E, ao passo em que fui me transformando pela minha dor
e sensibilizado pelo número grande de pessoas amigas que demonstravam sempre o
afeto e a solidariedade com nosso sofrimento, percebendo cada vez mais a
importância de entendermos o sentido de alteridade por todos os momentos de
nossas vidas, o mundo e o nosso país caminhava num sentido oposto, marcado pela
disseminação do ódio, do preconceito, da rivalidade política extremamente
agressiva (antessala do fascismo), pelo aumento perigoso da intolerância e na incapacidade de entender, compreender e escutar o outro. A crise econômica, num
ambiente de consumismo exacerbado e de disputa cada vez mais individualista,
arduamente e duramente competitiva, jogou a sociedade humana num enorme poço de
dimensões profundas e cada vez mais impossível de se enxergar a luz.
Procurei por esse período ser
compreensivo com as diferentes opiniões e formas das pessoas se manifestarem e
escolherem suas maneiras de viver e se comportar. Até porque, imerso em minha
dor, pouco ânimo eu tive nos primeiros anos depois que perdemos a Carol, de me
envolver com qualquer tipo de embates e polêmicas que pudesse significar um
confronto com alguém por simples divergências quanto às suas escolhas de vida,
política e ideológica.
Mas, aos poucos fui me reencontrando
com o meu passado, tristemente sem a minha filha, mas que, sem resgatá-lo eu me
afundaria mais e mais na depressão. A sensação de tê-la presente, conforme
muito me orientou a psicanálise, foi aos poucos me tirando da letargia e me
trazendo de volta para a realidade e para resgatar a minha impulsividade que me
marcou por toda a minha militância política, estudantil e sindical. Ainda
assim, muito mais compreensivo no entendimento das diferenças, e tendo
aprendido muito com as manifestações de solidariedade e carinho de amigos,
amigas e até mesmo pessoas distantes que passaram a conhecer nossas histórias, pelo livro que escrevi e pelo projeto criado por minha esposa, concretizado
hoje na existência do Instituto Ana Carol, e, através dele, mas que se tornou
maior, a Cooperativa de Bordadeiras – Bordana. Assim como pelo despontar para a
luta, e com uma formação política inteligente que nos orgulha, de nosso filho
Iago, atualmente diretor da União Nacional dos Estudantes, entidade da qual
participei em meus tempos de estudante. Embora orgulhosos com isso, o que
certamente nos motiva vê-lo seguindo nossos passos e se destacando, mesclamos
esse sentimento com outro, a preocupação com a situação de indefinição que
ronda o nosso país e a necessidade dele precisar se enquadrar em um mercado de
trabalho que se tornará cada vez mais competitivo e excludente pelo ambiente de
crise e desemprego crescente. São sentimentos naturais, de pais que se
preocupam com o futuro de seu filho, agora único, mas, como já disse em outras
oportunidades, que carrega duas vidas pela consequência do acaso e do destino.
Vivemos, portanto, nos últimos nove
anos uma luta intensa contra a dor de perder uma filha. Superar tornou-se o verbo que passou a ser por nós expressado
intensamente, e superação o
substantivo que nos impedia de chegar ao limbo. Isso é algo permanente, que nos
acompanhará para sempre. Mas, tendo conseguido nos reencontrarmos com a intensidade
que a vida nos impõe em realidade, e sendo uma característica que sempre me
acompanhou, percebi que mais do que viver essa realidade eu deveria lutar para
melhorá-la, mesmo que como uma gota d’água em um oceano de problemas que nos
afetam em nossas vidas particulares, no país e no mundo. Assim, juntamos nossas
lutas, sem por nenhum momento nos esquecermos de nossa pequena Carol, uma
estrela que nos ilumina, um raio de sol que aponta os nossos caminhos. Iago com
sua luta estudantil, essencial para levantar a parcela da população que mais grita
e impõe medo aos governos; Celma com seus projetos de economia solidária e
cooperativismo; e eu, imerso em um mundo que representa um microcosmo da sociedade,
mas que exerce uma enorme importância sobre ela: a universidade.
Mais de uma década depois, (desde do dia 14 de dezembro de 2006, onze anos do sepultamento da nossa pequena, em que entramos na
contagem de onze anos sem ela), certamente não somos mais os mesmos. Tornamo-nos
diferentes, embora sejamos os mesmos. Eu me sinto muito mais tolerante no
tratamento de situações em que o nosso julgamento só pode atingir apenas uma
superficialidade do acontecimento. Porque no mais, ir além da superficialidade,
impõe que eu conheça a realidade do outro, sua forma de pensar e de viver, suas
crenças e escolhas de caminhos por vezes diferentes do meu. O que digo nessas
últimas frases representa o sentido de alteridade, aquela necessidade que
temos, ou que deveríamos ter sempre, de nos vermos no outro, para que isso
facilite cada vez mais a nossa condição de vivermos em sociedade aceitando o
jeito diferente de cada um ser, sem preconceitos e mais tolerantes.
Mas isso não tem sido fácil nos
tempos atuais. A crise econômica, que afeta as estruturas do sistema
capitalista, esse que se impôs hegemonicamente de forma unipolar a partir da
última década do século passado, acentuou embates terríveis dentro da
sociedade, seja na disputa pelo poder, seja na necessidade de se conquistar um
lugar a fim de adentrar o universo do consumismo. Se qualificar e ganhar muito
bem, tornou-se uma obsessão, que se descortinou como uma onda, principalmente
pela maneira como a burguesia mundial, por meio de seus mecanismos ideológicos
de imposição dos valores, via globalização e políticas neoliberais, consolidou
na maior parte do mundo. Isso foi bem e criou uma fantasia de um mundo deslumbrante
mediado pela concorrência e pelo mercado, mas por pouco tempo. Só que o tempo
suficiente para o despontar de uma época marcada por esses valores de forma tão
intensa, em função dos meios tecnológicos que se desenvolveram nesse período,
que disseminou entre as pessoas um valor das coisas de forma absolutamente
fútil, e uma inversão daquilo que antes importava mais. Os sentimentos se diluíram
muito mais do que antes, embora já existisse, como uma tendência que só era controlada
devido à existência de um mundo socialista que se apresentava como alternativa
ao capitalismo egoísta e usurário. Quando aquele mundo ruiu soterrou boa parte das esperanças, enquanto que despertou neste a ganância, a usura e o individualismo. Tudo isso em meio a uma crise imensurável.
Karl Marx, ao escrever o “Dezoito
de Brumário de Luis Bonaparte”, assegurou, numa frase emblemática, que a “história
se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa”. Assim, ele
procurava dizer que não há repetição da história, e a tentativa de assim querer
fazer, não passa de um arremedo do que já havia acontecido. Mas ele possui
frases que, mesmo destacadas do contexto em que ele abordou, são emblemáticas
porque se aplicam, filosoficamente compreendendo-as, a diversas épocas. E a que
eu destaquei consta do Manifesto do Partido Comunista: “Tudo o que era sólido
se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são
finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações
recíprocas”.
![]() |
Iago em manifestação na cidade de Curitiba, durante greve na educação |
O mundo sem minha filha é esse em que, diante uma crise crônica, sistêmica, somos obrigados a
compreender as condições sociais em que estamos e como as relações estão sendo
destruídas em ambientes onde se fortalece o egoísmo, a ganância e a
intolerância. Contudo, e tenho procurado repetir isso sempre que me questionam
como superei tamanha dor e de como desejo encarar as dificuldades que estou
desafiando, percebi que depois de tantos anos me debatendo contra as injustiças
sociais, estudando-as e participando ativamente de lutas para combatê-las, isso
é um alimento que me fortalece e me dá ânimo para encarar tempos tão difíceis,
mas diante dos quais não podemos nos entregar.
Neste dia 13 vou ao cemitério
mais uma vez, como faço todos os anos, e, silenciosamente estabelecerei um
monólogo com suas lembranças, reforçando nossas saudades, e refletirei sobre
como ela se situaria neste mundo. Se seus desejos, enquanto criança poderiam
ter se concretizado, se meus sentimentos seriam diferentes caso não tivesse
passado por tamanha dor, se seus beijos e afagos por tantas vezes repetidos
manteriam a mesma singeleza num tempo de tantas incertezas, se suas vontades se
encontrariam com os verdugos da liberdade, se bateriam contra os arautos da
intolerância e encontrariam forças para gritar, como seu irmão, contra as
injustiças sociais. Cremos, com toda convicção, que ela carregaria nesses
tempos as mesmas indignações e desejos de transformações que correm em nosso
sangue, e no sangue do Iago, pois esses valores sempre estiveram presentes em
nosso cotidiano, na realidade que vivíamos no passado e no presente.
E, dentre tantas músicas que nos
fazem sentir tanta falta dela, quando as escutamos, “Você é linda”; “Jardim da
Fantasia”; “Carolina”; “Gostava tanto de você”; “Com a perna no mundo”; “Velha
Infância”... uma recitarei de forma especial, porque como tantas sempre nos
emociona, e às vezes nos faz chorar, “Pedaço de Mim”: “Oh, pedaço de mim/ Oh,
metade adorada de mim/ Lava os olhos meus/ Que a saudade é o pior castigo/ E eu
não quero levar comigo/ A mortalha do amor/ Adeus”.
E assim, me dirigirei à minha
filha...
![]() |
Celma e Carol |
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(*) Este artigo foi escrito em dezembro de 2016. Atualizei-o, porque, em essência, continua a representar o pensamento que me acompanha neste momento em que se completam onze anos da morte de Ana Carolina Oliveira Campos, nossa eterna Ana Carol.
esse luto sera eterno!! uma amiga minha formada em historia, perdeu uma filha de cinco anos esse ano, meu coração doeu e doi em pensar, não posso imaginar como é a dor desse coração partido!! so espero que tenha sentido toda essa perda!! abçs e SEMPRE CAROL
ResponderExcluirEntendo perfeitamente sua dor este ano em junho perdi minha neta Valentina de 6 anos com sepsia, de repente, uma criança saudável.
ResponderExcluirUma dor inimaginável.
É um vazio infinito.
Me solidarizo e que Deus acalento nossos corações.
Eu entendo o seu sofrimento. Eu perdi minha neta Valentina com 6 anos de Sepsia.fax 5 meses. Mas, sinto que estamos uma eternidade longe dela. Os médicos não descobriram infecção que ela tinha. E ela faleceu em 3 dias. Sua irmã de 8 anos que era muito agarrada com ela. Está sofrendo muito. Nós nos sentimos mutilados. Embora, eu digo para meus filhos, nora e neta, que nós tivemos oportunidade de criar um anjo. E com esse anjo nós ensinamos e aprendemos com ele. E chegou a hora de partir. Sei que meu anjo Valente brilha em outra dimensão, mas também vive dentro de nossos corações.
ResponderExcluirQue Deus conforte o coração de todos vocês.
A mim, eu só aguardo o reencontro. De ver minha Valente.