“Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo” (D. Hélder Câmara)
Vamos falar de
solidariedade. Já tratei disso aqui, de forma mais ampla, quando me referi à
empatia, simpatia, cooperação e solidarismo. Mas dessa vez venho falar com uma
verve mais afiada, e talvez incomode algumas pessoas, bem-intencionadas, e,
creio, verdadeiramente solidárias. Mas de um espírito cristão, tradicional, que
tem uma limitação no enfrentamento da realidade. Não é por acaso que começo
esse artigo com a frase do então arcebispo de Recife, Dom Hélder Câmara. Essa é
a questão.
Se habituar a oferecer
esmolas, como na tradição que perdura séculos, isso mais como uma prática das
camadas mais pobres da sociedade, ou da classe média. Ou tornar-se um
filantropo, nome pomposo para basicamente a mesma ação, só que das camadas mais
ricas, daqueles que possuem muito dinheiro. Embora seja um ato que possa demonstrar
empatia, se constitui muito mais como um desencargo de consciência, ou no caso
dos ricos, puro marketing, que em parte lhe é devolvido pelo “bondoso” Estado,
por meio da restituição do Imposto de Renda. Um Estado bondoso para os ricos,
naturalmente.
Mesmo sendo uma
prática solidária, e na maioria dos casos praticadas por pessoas que tem
sensibilidade frente a uma realidade perversa, portanto de boa vontade, e
absolutamente necessária, devido às condições de miséria que vive boa parte da
população, ela não garante uma transformação na vida dessas pessoas, de forma a
conduzi-la por caminhos que a liberte da pobreza crônica. Ora, eu não pretendo
propor que diante dessas circunstâncias de pobreza e miséria crescente,
deixemos de compartilhar com essa parte excluída da sociedade um mínimo de doações,
que seja, para que ajude essas pessoas a sobreviverem.
Mas não irá nos
salvar. Nem o doador, e muito menos o recebedor. Só manterá os que assim procedem,
com todas as boas vontades, como no mito de Sísifo, condenado a rolar morro
acima uma enorme pedra, que ao chegar no topo irá rolar ladeira abaixo. E
Sísifo, assim, foi condenado a passar o resto de sua vida, nesse estranho devir,
por ter desafiado os deuses. Mas essa história, ou fábula mítica, foi melhor
apregoada por Albert Camus (1930-1960)*, escritor de origem argelina e que
viveu na França, para se referir à sociedade contemporânea. Por suas obras,
expressadas pelo existencialismo, ele busca abordar os absurdos existentes, que
geram anseios e uma abissal relação entre felicidade e sofrimento, no que ele
vai chamar de “estética do absurdo”.
Certamente a
comparação entre essa atitude não significa considerar, como ele faz na
representação ao mito de Sísifo como de uma inutilidade da vida. Mas sim, de se
buscar uma resposta para qual o sentido disso tudo? Será que existe, já que
optamos por continuar a viver? Essa normalização do sofrimento, a aceitação da
perversidade social e a idolatria aos que, no sofrimento, são reconhecidos como
heróis ou heroínas, por sobreviverem, nos faz bem? Não será isso muito pouco,
quando olhamos em volta e no giro do mundo e verificamos a existência de
bilhões de miseráveis, enquanto poucas centenas controlam uma imensidão de
riqueza e esnobam cotidianamente isso?
Então, se nos
compadecemos com a situação perversa em que milhões de pessoas vivem, num
antagonismo absurdo e absolutamente desigual e revoltante com uma minoria de
privilegiados que controlam a grande maioria da riqueza do mundo, por que se
criminalizam aqueles que bradam contra esses absurdos e essas desigualdades,
vistos como subversivos ou pejorativamente como “comunistas”, embora ser
comunista signifique exatamente a essência da não aceitação dessas desigualdades?
Porque não se apoiam impostos sobre fortunas, em muitos casos adquiridas de
maneira criminosa ou sem que se invista em algo produtivo que possa gerar
distribuição de rendas? Porque muitos recusam, e isso já existe em alguns
países, impostos elevados sobre heranças, de forma a que o Estado distribua
esses recursos para investir em programas sociais voltados para tirar as
pessoas da miséria (embora não se deva mantê-las permanentemente nessa
dependência)?
Vejo nesses dias
de tormentos, de sofrimentos, um aumento acelerado da miséria e na outra ponta
os bilionários se tornando mais ricos. E no patamar de baixo desse sistema
absurdamente desigual e injusto, a correria para conter o desespero e ajudar os
que estão desemparados pelo Estado e ignorados pela perversão burguesa da
lógica gananciosa e usurária capitalista.
Não adianta
inserir nos pacotes solidários livretos religiosos, como observei em
reportagens sensacionalistas televisivas, que flertam com a fragilidade
daquelas pessoas absolutamente despossuídas. Isso não salvará essas pessoas do
inferno em que vivem aqui na terra, nem as incentivará a lutar e se rebelar
contra essa condição de miséria em que foram metidos pelos mecanismos que fazem
girar a roda do sistema capitalista. Ao contrário, só as manterá submissas,
lenientes, obedientes e crentes de que aquela condição se deve a uma possível
incapacidade meritocrática, ou a desígnio sabe-se lá de qual deus perverso, que
beneficia poucos em detrimento de muitos.
Devemos, sim,
sermos solidários, termos empatia, e nos ombrearmos com quem deseja amenizar o
sofrimento dessas pessoas. Mas se queremos que tal situação não seja normal, e
que não tenhamos a cada ano repetir ações de solidariedades por meio de doações
de parcos mantimentos para sobreviverem um dia de cada vez, que botemos no
pacote graus elevados de consciência política, de capacidade de discernimento
da realidade, de olhares críticos, e, principalmente, de indignação, revolta,
sentimento de poder se bater de frente contra aqueles que controlam esse
sistema injusto, e que os leve, na conjunção desses sentimentos, a se
organizarem, como em muitos outros momentos da história, e resgatarem suas
dignidades e direitos na vontade, na luta, certos de que não há muito mais a
perder em suas vidas, a não ser suas cadeias.
As pessoas não
devem viver de esmolas, isso lhes corrompem a dignidade, as transformam em
objetos, as desumanizam. Como canta Caetano Veloso, “Gente quer comer. Gente
quer ser feliz. Gente quer respirar ar pelo nariz; Gente lavando roupa,
amassando pão. Gente pobre arrancando a vida com a mão... Gente é pra brilhar,
não pra morrer de fome”.
Mas, se nos
apresentamos como indignados com essa situação, que deveria gerar revolta
coletiva, de imediato surgem os mecanismos ideológicos que criminalizam quem
assim se sente e deseja mudar. Por que é perigoso lutar pelo bem comum? Por
qual razão pessoas despossuídas de bens, escravos assalariados, gente que vive
para trabalhar e mesmo assim sobrevive em meio à pobreza, se apegam a dogmas
religiosos e se prostram a olhar para os céus de onde jamais sairá o solução de
seus problemas? E por que reagem negativamente a um clamor por se opor
firmemente aos que lhes exploram?
Porque assim foram
condicionados pelo aparato jurídico, religioso, midiático e repressivo, que os
manipulam, a favor dos interesses de quem domina meios de produção e o
dinheiro. No entanto, ao se opor pela força ao grito não meramente dos “excluídos”,
mas de quem adquire consciência de classe e se levanta de punhos erguidos e
disposto a lutar por uma vida digna, nem que seja pelo enfrentamento
revolucionário, esses são repelidos por sicofantas, fascistas, mercadores e
traficantes da fé e os que controlam a grande mídia. Essa mesma mídia que finge
se indignar com a pobreza e exalta o caráter solidário que se desdobra
cotidianamente para apaziguar a fome de muitos. Esmolas, são esmolas que eles
recebem, mesmo que tenhamos que dar outros nomes. Porque se repete, é
estrutural, e não os salvam da miséria. Excluídos por quê? Por quem? E de que
estão excluídos?
Esse rompante/desabafo
que faço aqui, não é menos sensível do que aqueles que se irmanam através de
corporações religiosas para praticar essas atitudes solidárias, mas é mais
incisivo porque aponto a necessidade de romper com esses vícios, esses
mecanismos abstratos, esses usos da miséria do outro. E de maneira
revolucionária nos levantarmos contra o sistema causador de todo esse quadro
desolador. Apontando as causas, criando consciência crítica e estimulando esse
povo a acreditar que por meio de sua luta, e da indignação justa, é possível
construir um outro mundo.
É isso que deve
conter em cada cesta básica que entregarmos. Mais do que livretos religiosos,
que exploram a fé e os mantém alienados, devemos inserir manifestos contra a
desigualdade social, e estímulos para que se organizem, se revoltem e lutem
contra o sistema e contra aqueles que controlam a riqueza e os mantém nessas
condições de pobreza e miséria crônica, da qual dificilmente conseguirão sair
porquanto perdurar o capitalismo. Mas pode ser também livretos religiosos,
desde que apontem ser aqui na terra onde cada um de nós devemos viver com
dignidade e respeito, como se pregavam nas comunidades eclesiais de base, por
meio da teologia da libertação. Era por assim reivindicar justiça social que
esse movimento foi perseguido, depois de muito ser caracterizado como
comunista, como na expressão da frase de D. Hélder Câmara.
Empatia e
solidariedade devem significar colocar-se no lugar do outro, e, portanto,
desejar que as condições em que essa pessoa vive seja digna como as que cada um
deseja para si mesmo. E mais do que conceder esmolas, precisamos lutar para que
a melhoria das condições de vida seja real, efetiva e permanente. Nossa luta
não deve ser somente contra governos insensíveis e elitistas, mas também para
que o Estado seja efetivamente um instrumento a serviço dos segmentos
majoritários da sociedade. E talvez não seja possível realizar isso somente nos
iludindo com processos eleitorais que mantém esse ciclo vicioso.
Creio que já
atingimos aquele limite, o auge das contradições de um sistema perverso,
desigual e destruidor de vidas, cada vez mais desumanizado e violento com os
que vivem na pobreza. Na falta de pão a burguesia não oferecerá brioches, mas
repressão. E será assim, enquanto não fizermos como os comunardos de Paris, há
150 anos, tomando “os céus de assalto”. Sabendo que é preciso agir de forma
implacável contra os algozes do povo, para que as mudanças sejam definitivas.
Em muitos lugares a multidão está nas ruas, e é preciso que aqui no Brasil
também isso aconteça, mas é preciso agir com estratégia, organização e política.
Se assim for, a força do povo será incontrolável, e poderemos gritar, “basta de
injustiça e de miséria”!
(*) CAMUS, Albert.
O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2018.
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