domingo, 9 de maio de 2021

O MITO DE SÍSIFO E O COMPADECIMENTO, EM CONTRAPOSIÇÃO À RAZÃO, À INDIGNAÇÃO E À REVOLTA SOCIAL

“Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo” (D. Hélder Câmara)


Vamos falar de solidariedade. Já tratei disso aqui, de forma mais ampla, quando me referi à empatia, simpatia, cooperação e solidarismo. Mas dessa vez venho falar com uma verve mais afiada, e talvez incomode algumas pessoas, bem-intencionadas, e, creio, verdadeiramente solidárias. Mas de um espírito cristão, tradicional, que tem uma limitação no enfrentamento da realidade. Não é por acaso que começo esse artigo com a frase do então arcebispo de Recife, Dom Hélder Câmara. Essa é a questão.

Se habituar a oferecer esmolas, como na tradição que perdura séculos, isso mais como uma prática das camadas mais pobres da sociedade, ou da classe média. Ou tornar-se um filantropo, nome pomposo para basicamente a mesma ação, só que das camadas mais ricas, daqueles que possuem muito dinheiro. Embora seja um ato que possa demonstrar empatia, se constitui muito mais como um desencargo de consciência, ou no caso dos ricos, puro marketing, que em parte lhe é devolvido pelo “bondoso” Estado, por meio da restituição do Imposto de Renda. Um Estado bondoso para os ricos, naturalmente.

Mesmo sendo uma prática solidária, e na maioria dos casos praticadas por pessoas que tem sensibilidade frente a uma realidade perversa, portanto de boa vontade, e absolutamente necessária, devido às condições de miséria que vive boa parte da população, ela não garante uma transformação na vida dessas pessoas, de forma a conduzi-la por caminhos que a liberte da pobreza crônica. Ora, eu não pretendo propor que diante dessas circunstâncias de pobreza e miséria crescente, deixemos de compartilhar com essa parte excluída da sociedade um mínimo de doações, que seja, para que ajude essas pessoas a sobreviverem.

Mas não irá nos salvar. Nem o doador, e muito menos o recebedor. Só manterá os que assim procedem, com todas as boas vontades, como no mito de Sísifo, condenado a rolar morro acima uma enorme pedra, que ao chegar no topo irá rolar ladeira abaixo. E Sísifo, assim, foi condenado a passar o resto de sua vida, nesse estranho devir, por ter desafiado os deuses. Mas essa história, ou fábula mítica, foi melhor apregoada por Albert Camus (1930-1960)*, escritor de origem argelina e que viveu na França, para se referir à sociedade contemporânea. Por suas obras, expressadas pelo existencialismo, ele busca abordar os absurdos existentes, que geram anseios e uma abissal relação entre felicidade e sofrimento, no que ele vai chamar de “estética do absurdo”. 

Certamente a comparação entre essa atitude não significa considerar, como ele faz na representação ao mito de Sísifo como de uma inutilidade da vida. Mas sim, de se buscar uma resposta para qual o sentido disso tudo? Será que existe, já que optamos por continuar a viver? Essa normalização do sofrimento, a aceitação da perversidade social e a idolatria aos que, no sofrimento, são reconhecidos como heróis ou heroínas, por sobreviverem, nos faz bem? Não será isso muito pouco, quando olhamos em volta e no giro do mundo e verificamos a existência de bilhões de miseráveis, enquanto poucas centenas controlam uma imensidão de riqueza e esnobam cotidianamente isso?

Então, se nos compadecemos com a situação perversa em que milhões de pessoas vivem, num antagonismo absurdo e absolutamente desigual e revoltante com uma minoria de privilegiados que controlam a grande maioria da riqueza do mundo, por que se criminalizam aqueles que bradam contra esses absurdos e essas desigualdades, vistos como subversivos ou pejorativamente como “comunistas”, embora ser comunista signifique exatamente a essência da não aceitação dessas desigualdades? Porque não se apoiam impostos sobre fortunas, em muitos casos adquiridas de maneira criminosa ou sem que se invista em algo produtivo que possa gerar distribuição de rendas? Porque muitos recusam, e isso já existe em alguns países, impostos elevados sobre heranças, de forma a que o Estado distribua esses recursos para investir em programas sociais voltados para tirar as pessoas da miséria (embora não se deva mantê-las permanentemente nessa dependência)?

Vejo nesses dias de tormentos, de sofrimentos, um aumento acelerado da miséria e na outra ponta os bilionários se tornando mais ricos. E no patamar de baixo desse sistema absurdamente desigual e injusto, a correria para conter o desespero e ajudar os que estão desemparados pelo Estado e ignorados pela perversão burguesa da lógica gananciosa e usurária capitalista.

Não adianta inserir nos pacotes solidários livretos religiosos, como observei em reportagens sensacionalistas televisivas, que flertam com a fragilidade daquelas pessoas absolutamente despossuídas. Isso não salvará essas pessoas do inferno em que vivem aqui na terra, nem as incentivará a lutar e se rebelar contra essa condição de miséria em que foram metidos pelos mecanismos que fazem girar a roda do sistema capitalista. Ao contrário, só as manterá submissas, lenientes, obedientes e crentes de que aquela condição se deve a uma possível incapacidade meritocrática, ou a desígnio sabe-se lá de qual deus perverso, que beneficia poucos em detrimento de muitos.

Devemos, sim, sermos solidários, termos empatia, e nos ombrearmos com quem deseja amenizar o sofrimento dessas pessoas. Mas se queremos que tal situação não seja normal, e que não tenhamos a cada ano repetir ações de solidariedades por meio de doações de parcos mantimentos para sobreviverem um dia de cada vez, que botemos no pacote graus elevados de consciência política, de capacidade de discernimento da realidade, de olhares críticos, e, principalmente, de indignação, revolta, sentimento de poder se bater de frente contra aqueles que controlam esse sistema injusto, e que os leve, na conjunção desses sentimentos, a se organizarem, como em muitos outros momentos da história, e resgatarem suas dignidades e direitos na vontade, na luta, certos de que não há muito mais a perder em suas vidas, a não ser suas cadeias.

As pessoas não devem viver de esmolas, isso lhes corrompem a dignidade, as transformam em objetos, as desumanizam. Como canta Caetano Veloso, “Gente quer comer. Gente quer ser feliz. Gente quer respirar ar pelo nariz; Gente lavando roupa, amassando pão. Gente pobre arrancando a vida com a mão... Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.

Mas, se nos apresentamos como indignados com essa situação, que deveria gerar revolta coletiva, de imediato surgem os mecanismos ideológicos que criminalizam quem assim se sente e deseja mudar. Por que é perigoso lutar pelo bem comum? Por qual razão pessoas despossuídas de bens, escravos assalariados, gente que vive para trabalhar e mesmo assim sobrevive em meio à pobreza, se apegam a dogmas religiosos e se prostram a olhar para os céus de onde jamais sairá o solução de seus problemas? E por que reagem negativamente a um clamor por se opor firmemente aos que lhes exploram?

Porque assim foram condicionados pelo aparato jurídico, religioso, midiático e repressivo, que os manipulam, a favor dos interesses de quem domina meios de produção e o dinheiro. No entanto, ao se opor pela força ao grito não meramente dos “excluídos”, mas de quem adquire consciência de classe e se levanta de punhos erguidos e disposto a lutar por uma vida digna, nem que seja pelo enfrentamento revolucionário, esses são repelidos por sicofantas, fascistas, mercadores e traficantes da fé e os que controlam a grande mídia. Essa mesma mídia que finge se indignar com a pobreza e exalta o caráter solidário que se desdobra cotidianamente para apaziguar a fome de muitos. Esmolas, são esmolas que eles recebem, mesmo que tenhamos que dar outros nomes. Porque se repete, é estrutural, e não os salvam da miséria. Excluídos por quê? Por quem? E de que estão excluídos?

Esse rompante/desabafo que faço aqui, não é menos sensível do que aqueles que se irmanam através de corporações religiosas para praticar essas atitudes solidárias, mas é mais incisivo porque aponto a necessidade de romper com esses vícios, esses mecanismos abstratos, esses usos da miséria do outro. E de maneira revolucionária nos levantarmos contra o sistema causador de todo esse quadro desolador. Apontando as causas, criando consciência crítica e estimulando esse povo a acreditar que por meio de sua luta, e da indignação justa, é possível construir um outro mundo.

É isso que deve conter em cada cesta básica que entregarmos. Mais do que livretos religiosos, que exploram a fé e os mantém alienados, devemos inserir manifestos contra a desigualdade social, e estímulos para que se organizem, se revoltem e lutem contra o sistema e contra aqueles que controlam a riqueza e os mantém nessas condições de pobreza e miséria crônica, da qual dificilmente conseguirão sair porquanto perdurar o capitalismo. Mas pode ser também livretos religiosos, desde que apontem ser aqui na terra onde cada um de nós devemos viver com dignidade e respeito, como se pregavam nas comunidades eclesiais de base, por meio da teologia da libertação. Era por assim reivindicar justiça social que esse movimento foi perseguido, depois de muito ser caracterizado como comunista, como na expressão da frase de D. Hélder Câmara.

Empatia e solidariedade devem significar colocar-se no lugar do outro, e, portanto, desejar que as condições em que essa pessoa vive seja digna como as que cada um deseja para si mesmo. E mais do que conceder esmolas, precisamos lutar para que a melhoria das condições de vida seja real, efetiva e permanente. Nossa luta não deve ser somente contra governos insensíveis e elitistas, mas também para que o Estado seja efetivamente um instrumento a serviço dos segmentos majoritários da sociedade. E talvez não seja possível realizar isso somente nos iludindo com processos eleitorais que mantém esse ciclo vicioso.

Creio que já atingimos aquele limite, o auge das contradições de um sistema perverso, desigual e destruidor de vidas, cada vez mais desumanizado e violento com os que vivem na pobreza. Na falta de pão a burguesia não oferecerá brioches, mas repressão. E será assim, enquanto não fizermos como os comunardos de Paris, há 150 anos, tomando “os céus de assalto”. Sabendo que é preciso agir de forma implacável contra os algozes do povo, para que as mudanças sejam definitivas. Em muitos lugares a multidão está nas ruas, e é preciso que aqui no Brasil também isso aconteça, mas é preciso agir com estratégia, organização e política. Se assim for, a força do povo será incontrolável, e poderemos gritar, “basta de injustiça e de miséria”!


(*) CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2018.

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