terça-feira, 31 de maio de 2011

DINHO, CHICO MENDES E A LUTA DE CLASSES

Parte do que vai escrito aqui foi uma resposta a uma mensagem de email que recebi, onde o remetente faz uma vinculação entre a morte de Adelino Ramos, o Dinho, militante do PCdoB, e a polêmica em torno do Código Eleitoral. Percebi o quanto o calor de determinados debates define certos comportamentos sectários, e leva algumas pessoas a adotarem um comportamento frio, insensível, irresponsável quando tentam responsabilizar indiretamente certas ações em função de medidas que por ora estejam sendo debatidas.
Há certo oportunismo por trás disso, até mesmo quando se atribui os desmatamentos de agora à uma possível anistia a esses criminosos. Insiste-se nisso, muito embora seja uma absurda mentira. Tanto os desmatamentos, quanto os assassinatos, são conseqüências de uma luta histórica em nosso país. E nem sempre os contrabandos de madeiras estão diretamente ligados aos latifúndios. E a impunidade sempre foi o resultado desse conflito.
O maniqueísmo carrega um elemento espantoso. Os valores mudam de lado quando se chega ao Poder. Isso se dá também dentro das disputas nas diversas organizações sociais, de direita ou de esquerda. Maniqueísmo e oportunismo. Mesmo o MST, talvez a mais forte e organizada entidade de classe brasileira, também se utiliza disso, muda o seu discurso, adota o ambientalismo até mesmo em função da redução do número de seus seguidores, tanto em função do aumento dos assentamentos e investimentos à agricultura familiar, como pela redução do número de desempregados nas cidades. Muito embora mantenha, corretamente, o seu foco no latifúndio, como responsável pelos desequílbrios no campo.
Em minha pesquisa sobre a guerrilha do Araguaia descobri que alguns fazendeiros foram presos e torturados por darem suporte à luta dos guerilheiros. Por outro lado, camponeses tornaram-se guias dos militares, e se tornaram assassinos e alguns deles cumpriram o tétrico papel de degolarem guerrilheiros. Osvaldão foi morto por um desses guias, Arlindo Piauí. Então, não se pode generalizar, nem de um lado, nem do outro. E é preciso ter muito cuidado com o estereótipo que se cria, pois ele pode ser definitivo.
A cultura cristã ocidental é responsável por esses elementos, que foram carregados para dentro da luta revolucionária no século XX e foi a pauta da guerra fria. Bastava estar ligado à União Soviética e era do bem. Bom, isso do lado da esquerda naturalmente. Depois muitos se disseram decepcionados, mudaram de comportamento, mas não o maniqueísmo. Assim, enxergam demônios por trás de todas as iniciativas que não sejam suas. Típico dessa cultura.
Vejo dois elementos responsáveis pelo caos e pela lógica que comanda o mundo capitalista (isso, primeiro é preciso criticar os sistema): as grandes corporações e o sistema de grandes latifúndios no Brasil e América Latina. Recuso-me a trocar essa luta por bandeiras ambientalistas, oportunizadas por inúmeras ONGs que estão atrás de financiamentos. Muito mais fácil de ser conseguido, por exemplo, do que encontrar quem financie uma luta imediata que impeça o assassinato social de milhares de crianças, jovens e adolescentes que se amontoam como trapos nas cidades brasileiras consumidas pelo crack e oxi. Não se vê uma campanha para salvar essas pessoas, exceto por iniciativas de algumas igrejas (salva-se o corpo, aprisiona-se a “alma”). A lógica em um caso e outro é a mesma, é a maneira como as grandes corporações se assenhorearam desse mundo e o que restou para os pobres.
Já o movimento ambientalista virou moda. E como tudo que dentro da cultura atual torna-se modismo, virou uma praga celeremente potencializada pelas redes sociais, onde uma maioria de psitacídeos limita-se a repetir o que ouvem, por estar na ordem do dia, sem nenhuma base que o fundamente. Não há nenhum tipo de aprofundamento na questão, ou de busca pelo que é fato, real. Simplesmente transforma-se em uma corrente a percorrer as caixas de correios e ser repassada adiante sem qualquer reflexão, algo comum na internet. Para combater tais lendas criou-se um site, Lendas e Folclore na Internet: as pulhas virtuais (http://www.quatrocantos.com/LENDAS/index.htm)
Segunda-feira, (30/05) na novela das oitos (pude assistir porque estou acamado por uma gripe, mas de vez em quando gosto de ver), num diálogo com o banqueiro-bandido e o marginalzinho da novela o autor colocou um assunto que é de extrema pertinencia e se encontra no documentário CORPORATION. Ele disse algo parecido com, "essa luta ambiental essa discussão de aquecimento global, pode nos ajudar a investir em outros tipos de energias alternativas, esse é o momento". O que os dois crápulas propunham não é nenhuma novidade, a ENRON já fez isso, faliu, arrebentou com a vida de milhares de famílias, mas seus altos gerentes e investidores saíram por cima (já fiz referência a esses dois documentários aqui no blog).
Essa é a minha opinião. Essa é a minha angústia quando vejo palavras de ordens transformarem-se numa falsa luta, aparentemente progressista, por um futuro que está se perdendo nas ruas, nas cidades, nas neuroses urbanas. Na enorme quantidade de veículos nas cidades, nas drogas que consomem a juventude, no banditismo que afetam os jovens porque eles desejam consumir dentro da lógica imposta pelo sistema capitalista, pelas milhares de crianças seqüestradas cotidianamente para prostituição e para o comércio de órgãos humanos.
Espero que não queiram transformar o Dinho em um mártir ambientalista. Dinho lutava por uma causa, o que ele defendia era o mesmo que fez de Chico Mendes também uma vítima. Nem um nem outro eram ambientalistas. Eram sindicalistas, lutavam pela manutenção da floresta em pé, porque é para eles a condição de sobrevivência da população daquele lugar. Espero que não façam com Dinho o que fizeram com Chico Mendes, alteraram por completo o sentido de sua luta. Ele era seringueiro e lutava para impedir que os seringuais desaparecessem pois era deles que o sustento de seu povo era retirado. Sua preocupação pelo futuro era tão somente uma consequência da necessidade de lutar para que no presente eles não fossem privados daquilo que garantia a mercadoria com a qual eles trabalhavam.
Assim também foi o Dinho. Um líder sindicalista, como toda a família Canuto, boa parte dizimada pelo Latifundio. É uma covardia confundir essas lutas. O modelo latifundiário é e sempre foi o alvo na lógica de combate ao sistema capitalista, mas o contrabandista de madeira não necessariamente é um latifundiário, embora possa estar a serviço desses. Mas ele também é parte da estrutura pervertida do sistema capitalista.
Melhor seria então, abandonar o maniqueísmo e procurar entender a lógica que move o capitalismo e por onde ele deve ser combatido. É ilusão imaginar que essa bandeira ambientalista é suficiente para combater esse sistema. Ele incorpora todos esses elementos e transforma palavras de ordem em mercadorias. Como aconteceu com o movimento Hippie, para quem a bandeira da paz era algo descolado de todos seus sentidos ideológicos. Tudo aquilo pelo qual se lutou na década de 60 do século XX, e representava uma contestação ao sistema, foi depois incorporado aos valores capitalistas, completamente manipulados, bem como aqueles que tanto gritaram por uma nova ordem enquadraram-se à lógica do sistema com outra denominação: yuppies.
Iniciamos o século XXI com todos os elementos que nos indicam estarmos caminhando para uma racionalidade medida não mais pela preocupação com as pessoas, mas com natureza. Os chamados créditos de carbonos já indicam o caminho que isso trilharia. Os países ricos se incumbiriam de fazer com que aqueles em desenvolvimento mantivessem áreas verdes, sendo compensados financeiramente, para que dessa forma eles continuassem o seu ritmo de produção industrial, e até crescessem. A crise de 2008 modificou momentaneamente isso, mas toma agora outro efeito. Situamos-nos numa conjuntura em que os países hegemônicos passam por dificuldades financeiras, a quebradeira atinge Estados Unidos e Europa, e eles se vêem diante do dilema de terem que aceitar o crescimento econômico de países que eram por eles explorados economicamente.
A estratégia muda, as táticas são diferentes, mas o sentido de tudo esconde-se por trás da dominação global nas mãos das grandes corporações. Não é preciso ser muito esperto para ver que enquanto a luta popular for direcionada para esse discurso ecológico, o controle que as grandes corporações exercem, e eles se concentram no seu alvo principal, as grandes cidades, se manterá inabalável. Elas se deslocarão dos países em crise, para aqueles com maiores potenciais de crescimento, e seguirá firme a concentração de riquezas e a manutenção de toda a estrutura capitalista. Os mesmos de sempre seguirão dando as cartas, enquanto alteram-se o sentido da luta de antigos setores revolucionários, que esquecem a luta de classes e entregam-se à luta ambiental. Porque isso também lhes garantem um abrigo profissional.
Leio em notícia recente, que o presidente Lula participa de uma campanha para uma ONG global de combate à fome, a Oxfam, na verdade uma confederação que reúne 15 organizações em 98 países. Essa é, para mim, a luta prioritária. E já se sabe que os mais pobres se encontrarão nos próximos anos com um grande dilema, a dificuldade de acesso a alimentos, pois para os ricos o preço não é problema. Mas só isso não é o bastante, ameniza mas não representa o questionamento de uma realidade desigual causada pelo capitalismo.
Dinho, sobrevivente do massacre de Corumbiara, como Chico Mendes, estavam integrados em um movimento de contestação à lógica sistêmica. Defendiam seus direitos, compreendidos pela necessidade de terem a liberdade de explorar as riquezas que as florestas lhes garantiam. Preocupavam-se com a defesa das vidas, e em superar as dificuldades que enfrentavam. Melhorar de vida no presente, para que dessa forma pudessem ter a certeza de que teriam, de fato, um futuro.
São vítimas, os dois, e milhares de tantos outros, da perversidade de um mundo onde para uma minoria tudo é possível, e isso lhe é garantido aqui, agora, neste momento. Enquanto que para milhões de despossuídos, o que lhes é oferecido é a permanente luta por um futuro melhor, enquanto o presente lhe é destruído.

Por fim, é preciso dar um basta a esses assassinatos. É inadimissível que depois de nove anos de dois governos, tidos como dos trabalhadores, tenhamos que assistir uma ministra dizer que não pode garantir a segurança das lideranças ameaçadas de morte. Claro que é possível, basta ter vontade política, criar batalhões específicos em todas as polícias, colocar pistoleiros e mandantes na cadeia e eliminar de vez o ambiente medieval que domina o campo brasileiro, principalmente na região norte do país.



sexta-feira, 20 de maio de 2011

O CÓDIGO FLORESTAL - A DIALÉTICA DA NATUREZA E A SOBREVIVÊNCIA HUMANA

“Quode magis cogito magis dubito” - 
Quanto mais penso, mais duvido
(Francisco Sanches, pensador português, sec. XIV-XV)

Não é a primeira vez que abordo essa temática aqui neste blog. Logo ao final vou inserir os links para todos os textos que tem os problemas ambientais como tema. Mas, diferentemente dos fundamentalismos e maniqueísmos que conduzem a luta ecológica, e dos interesses oportunistas e políticos de algumas (poucas, mas bem estruturadas) ONGs internacionais, não abdico em meus artigos de considerar a dialética como elemento essencial para que possamos entender toda a situação que nos envolve.
A discussão do momento gira em torno do relatório do novo Código Florestal, elaborado pelo deputado federal Aldo Rebelo, do PCdoB, a pedido das lideranças e do governo, à época tendo à frente o presidente Lula. Equilibrado, e bem racional, a meu ver, o relatório do deputado é um texto que antes de ser combatido deveria ser estudado e discutido.
Nas universidades, como percebo e tenho informações, aqueles que são críticos do texto deixam-se conduzir pela maneira como a mídia dá o enfoque e como as entidades ambientais constroem seus argumentos.
No primeiro caso não se distribui o relatório em sua íntegra para que todos tomem conhecimento, e paralelo a isso, as várias opiniões a respeito, contrárias e favoráveis. Enfim, essa não é uma prática, infelizmente, na universidade. Alguns colegas limitam-se a construir um discurso e assim convencerem seus alunos daquilo que ele defende. Parece que há um medo do contraditório, como a tentar impedir aquilo que é incontrolável: nossa vida transforma-se dialéticamente, e o seu impulso, o que possibilita essas transformações são as contradições. Negar-se, e afirmar-se, no choque das forças que se opõem. Não há, na vida, nada que se construa, sem que isso implique algum tipo de destruição. Ao que Engels chamava de “negação da negação”.
No segundo caso, o maniqueísmo presente nos argumentos ambientalistas e o discurso do medo, que têm sido a tônica no mundo nas últimas décadas, transformam um tema que deveria ser conduzido pela racionalidade em uma espécie de dogma fundamentalista, para o qual todos que vierem a defender o progresso social deveriam ser queimados no fogo do inferno. Muito embora tenhamos também consciência que o significado dessa palavra, “progresso”, pode ter vários sentidos. Mais uma vez a contradição.
Particularmente, eu tenho plena noção dos problemas ambientais. E aqui não confundo a palavra “ambiental” com natureza, como muitos fazem. O ambiente (ou o meio-ambiente) inclui não somente a natureza natural, mas também todo o habitat, o espaço onde se inserem animais, plantas, o ser humano, e tudo que por eles tenha sido construído.
Alguns desses “problemas” decorrem da própria maneira como a vida evolui, e como o espaço vai se transformando para se adaptar às necessidades dos seres vivos, e, obviamente às mudanças geradas por eles próprios. Mas também outros fatores abióticos impõem algumas transformações que fazem com que, permanentemente, o nosso planeta, a terra, altere sua configuração, eixo, rotação e outros aspectos aparentemente imutáveis. O espaço transforma-se permanentemente, com ou sem a ação humana. E isso, dialeticamente, reage sobre nós, provocando todos os tipos de alterações e de necessidade de nos readaptarmos. Assim, o organismo vivo se adapta e se altera, como uma condição para sua própria sobrevivência. Ave, Darwin!
A maneira de não transformarmos idéias em dogmas é exatamente partirmos do princípio que a vida é marcada por contradições. E não há contradição maior, no mundo que o ser humano construiu, do que nos depararmos com uma população de mais de 6 bilhões de pessoas, em muitos casos vivendo em cidades que ultrapassam 10 milhões de habitantes. Isso mais do que triplica se incluirmos também no ambiente citadino os demais bichos que nos fazem companhia. Alguns dos quais nos dias atuais são melhores cuidados do que gente.
Ocorre, também, que nos movemos por interesses. O jogo desses interesses transformou-se ao longo de nossa história na base política que construiu a nossa sociedade, a cultura, a indiosincrasia, a religião etc. A disputa econômica pelo controle dos meios de produção, da riqueza, da terra, e... do Poder! Assim, como nos ensina Raffestin(1), inspirado em Michel Foucault(2), com “P” maiúsculo, para se diferenciar de outros poderes, com “p” minúsculo. Aqueles pequenos poderes que nos acompanham em nossas relações cotidianas, desde a família, até a escola, o trabalho etc.
Então, para entendermos que por trás dos discursos existe “muito mais coisas do que imagina nossa vã filosofia” (parafraseando Shakespeare), precisamos ir além das palavras e frases, muitas delas com forte impacto, como das orações que afetam a fé e faz com que as pessoas as tomem por verdades absolutas, porque são carregadas de simbolismos e, pela repetição, tornam-se dogmas inquebrantáveis. Os que discordarem são transformados em entes do mal, seguindo-se o princípio maniqueísta do gnosticismo primitivo do filósofo persa Mani: a luz e as trevas, o bem e o mal.
Vade retro, maniqueus!
Assim, melhor inspirar-se nas idéias de Voltaire e lembrar-se de uma frase a ele atribuída: “discordo do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-lo”. Dessa forma nos aproximamos daquele sentido dado pelos filósofos antigos, pelo qual somente pelo embate das idéias e das contradições que as mesmas carregam, é possível se atingir o conhecimento em plenitude. Evidentemente jamais como uma verdade tida como absoluta.
Todo esse rodeio filosófico que fiz decorre das dificuldades em se analisar os problemas ambientais do mundo contemporâneo, sem ser rotulado pelos mais engajados ativistas ecológicos como um ente do mal, preparando-se para tocar fogo sobre a terra e transformá-la em um deserto, pela hecatombe que se aproxima em razão das ações maléficas causadas por nós mesmos.
Tudo pode acontecer, ou vai acontecer, pois também a terra não é eterna. Mas precisamos entender que isso que está sendo citado como uma possibilidade, de uma aceleração no processo de destruição de nosso meio-ambiente, decorre na maneira como nós, seres humanos, construímos o nosso habitat. E todos nós, mesmo os mais ácidos críticos ecologistas, não abrimos mão de usufruir das regalias construídas por nossa imensa capacidade criativa. E tudo isso às custas da natureza.
Principalmente a partir do século XIX, quando se consolida o sistema capitalista, fundado na irrefreável sofreguidão em produzir mercadorias a uma velocidade cada vez maior, e transformar as nossas necessidades em ânsia de consumo. Transformamos-nos ao longo dos séculos seguintes em animais consumistas. Consumir e curtir as novidades mercadológicas e os novos produtos cada vez mais sofisticados tornou-se mais do que uma vaidade, passou a representar um vício que em alguns casos atingem a condição de uma verdadeira dependência. Em outras situações, essa lógica baseada no consumo empurrou aquelas pessoas deprimidas, doentes pelo stress causado pelas loucuras da vida moderna, a ir com sofreguidão aos shoppings, templos que passam também a ser uma espécie de depositório da catarse coletiva da cidade grande.
Claro, além disso, o estilo de vida construído dentro dessa lógica de consumo, inspirado naquilo que nos Estados Unidos passou a se chamar “american way of life”, acentuou a obsessão nos indivíduos em buscar permanentemente a ascensão social. De forma a atingir um padrão de vida que se caracterizasse pela garantia de possuir, sempre, os produtos que surgem como novidades no mercado. Acontece que o mecanismo que faz girar o capitalismo impede que isso tenha um limite, é preciso ter cada vez mais para não somente usufruir desses produtos sofisticados, mas também se apresentar na sociedade como vitorioso, porque capaz de poder comprar o que existe de melhor e mais sofisticado.
Tudo nos empurra para as cidades, e foi nelas que o capitalismo se realizou. Enquanto ali se aglomeravam exércitos cada vez maiores de pessoas, em sua maioria pobre, com condições econômicas sofríveis, fora delas consolidou-se um sistema concentrador baseado no latifúndio, na posse da grande propriedade e na utilização dessas terras para produção de monocultura. Principalmente de commodities, cujo preço vem a ser determinado pela moeda de referência internacional nos mercados mundiais.
Sem subsídios do Estado, e com financiamentos parcos também concentrados nas grandes propriedades, os pequenos agricultores abandonaram gradativamente suas terras, seguindo os passos dos filhos que em muitos casos já se dirigira para as cidades em busca de melhores oportunidades.
Assim, enquanto nas cidades concentravam-se uma enorme população de despossuídos, no campo uma quantidade pequena de proprietários concentrava infindáveis hectares de terras, produzindo não somente o que é necessário – como na antiga produção agrícola – mas fundamentalmente aquilo que vai possibilitar um lucro maior. Nas cidades, os milhões de citadinos vão a busca de empregos, conseguem salários, tentam ganhar cada vez mais para consumir as mercadorias que lhes seduzem, e, logicamente precisam para se alimentar. Já não mais produzem para si, mas para aqueles que possuem os meios de produção e determinam o que deve ser produzido.
As cidades modificaram-se espetacularmente em formas e linhas que comprovam a capacidade ilimitada do ser humano em transformar objetos e criar maravilhas tecnológicas. Só que para alimentar esses bilhões de pessoas, e saciar a necessidade de consumir mercadorias, o sistema capitalista acelerou de forma monumental a sua capacidade de inovar, de forma a tornar obsoleta o mais rapidamente possível a sua última invenção.
Ora, mas porque nos espantamos? Ao analisarmos as condições de vida nas sociedades em volta do mundo, e em nosso país particularmente, veremos que há um percentual ainda muito elevado de pessoas que estão fora desse mercado consumidor. No entanto, quando somamos a população daqueles países que somente agora estão acelerando seu desenvolvimento, chegamos a um número que corresponde a mais da metade da população mundial.
Estaremos próximo do limite dessas contradições? Essa é uma pergunta de difícil resposta, já que enquanto há vida a tendência é de sempre ampliarmos nosso grau de contradição. Mas o que fazer se na humanidade mais da metade de sua população ambiciona atingir a condição de vida semelhante à daqueles que vivem nos chamados países desenvolvidos? Porque todo esse alarmismo catastrófico, e ameaças de hecatombes, se intensificaram nos últimos anos, no momento em que os países ricos entraram em uma grave crise econômica e quando outros que estavam fora do "clube" iniciam uma escalada de crescimento e de desenvolvimento social?
De repente soam os sinos a indicar a hora em que a terra explodirá. E nos propõem, os que vêm dos trópicos, que por aqui devemos manter nossas matas, florestas e rios, para que por lá eles possam produzir mercadorias, agregar valor, vender suas mercadorias para nós, os velhos “subdesenvolvidos” e, assim, continuar enriquecendo a eles mesmos. Agora mediante uma nova forma de dominação: o colonialismo verde.
A palavra é CONSERVAÇÃO. Mas o que mais se fala é preservação. Há uma diferença substancial entre essas duas palavras quando o tema é a natureza. O conservacionismo possibilita que utilizemos da natureza os produtos necessários para a nossa sobrevivência, compreendendo que seu esgotamento impede que a vida humana possa prosseguir por mais tempo adiante. Esse é o desafio diante da contradição em que nos encontramos. São milhões de novas pessoas que adentram o mercado de consumo, ascendem a outras classes sociais e adquirem a capacidade de consumir mais e viver melhor. Não se pode negar a essas pessoas terem acesso a produtos que facilitem suas vidas nas cidades, mas isso implicará em mais e mais degradações à natureza.
Então, quando levantamos uma bandeira, por exemplo, de cuidados com a água, devemos ter em conta que a luta não é somente para manter a água límpida e perene. Mas garantir que mais pessoas possam usufruir de um bem que é condição essencial para a manutenção da vida. Devemos olhar para os dois lados da moeda, e não somente imaginar que o discurso de preservar a natureza encerra-se em si só. A natureza sempre vai servir ao ser humano, como serve a todos os outros seres vivos que a compõe e forma um equilíbrio que se sustenta em contradições.
O Código Florestal deve carregar essa compreensão. Num mundo em que um dos maiores problemas que se aproxima é a produção de alimentos, e a especulação em torno disso já produz inflação por todo o mundo, criar dificuldades para que pequenos e médios produtores possam produzir mais é consolidar o modelo concentracionista latifundiário, na medida em que esses agricultores continuarão a abandonar suas terras, deixando-as serem incorporadas pelo grande fazendeiro. Este interessado em produzir apenas commodities.
Ah, mas argumenta-se, os grandes latifundiários estão a defender o relatório do Código. Sim, eles se beneficiarão também. Mas esses sempre encontraram meios para isso e continuarão fazendo, independente do que o código determinar. Melhor seria, e acredito que isso é o mais justo, insistir no questionamento que motivou os movimentos sociais até esse modismo verde entrar em cena, combater o sistema de latifúndios, por fim a essa estrutura agrária arcaica e concentracionista. Não será através de uma legislação ambiental que isso acontecerá, mas com mais luta pela reforma agrária e pelo fim desse modelo. Gostaria de ver quantos se engajariam sinceramente nessa luta, principalmente as grandes ONGs, muitas delas financiadas por grandes corporações que investem fortemente na aquisição de mais terras em nosso país e inundam a produção agrícola com toneladas de venenos agrotóxicos.
Espero ter sido entendido, mas saberei me defender dos fundamentalistas, e não tenho receio em repetir uma frase do filósofo esloveno, Slavoj Zizek: “a ecologia é o ópio do povo”. Diz ele, numa entrevista à revista Magis(3): “É precisamente no terreno da ecologia que podemos delinear a demarcação entre a política da emancipação e a política do medo na sua forma mais pura. De longe, a versão predominante da ecologia é a da ecologia do medo – medo da catástrofe, humana ou natural, que pode perturbar profundamente ou mesmo destruir a civilização humana. Essa ecologia do medo tem todas as oportunidades de se converter na forma ideológica predominante do capitalismo global, um novo ópio das massas que sucede o da religião”.
A gritaria maior em relação ao código se dá, e aí com justa razão, pela provável anistia que isentará todos aqueles que desmataram ilegalmente até o ano de 2008. Mas é absolutamente irreal a possibilidade dessas ações, que atingiram inclusive áreas de reservas florestais, virem a ser punidas com multas. Sabe-se muito bem que isso não acontecerá, e se acontecer recairá sobre os mais fracos, os pequenos e médios agricultores. Melhor será lutar para que o novo código seja efetivamente cumprido, e isso passa em primeiro lugar pela ampliação da estrutura que garante a fiscalização de um território que tem a 5ª maior extensão entre todos os países do mundo. Talvez decuplicar o número de fiscais e ampliar consideravelmente os recursos financeiros para que esse trabalho possa ser feito, com infraestruturas modernas e tecnologias avançadas, investimentos plenamente possíveis se houver vontade política para tal.
Caso contrário, seja qual for o relatório aprovado ele se tornará letra morta, como no caso da lei que pune crimes do colarinho branco, e, no entanto, não se vê nenhum grande executivo preso, a começar pelo banqueiro Daniel Dantas. Ele também proprietário de grandes extensões de terras no Estado do Pará e segundo a investigação comandada pelo delegado Protógenes Queiroz, na operação Satiagraha, culpado por vários crimes. Mas do que uma lei é necessário a determinação para fazê-la funcionar.


NOTAS:

1. RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Editora Ática, 1993
2. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Editora Graal, 2007
3. ZIZEK, Slavoj. A Ecologia é o Ópio do Povo. In: Mágis - Revista da Unisinos, no. 05, dez 2009-jan 2010

Links:

terça-feira, 10 de maio de 2011

OXI, UMA BOMBA QUÍMICA!

Há alguns meses atrás, em dezembro de 2010, inseri uma postagem no blog analisando outro lado da polêmica que envolve as análises sobre o combate às drogas, no Brasil e no Mundo. Questionei o consumo da droga, o mercado, quem são os consumidores. Afinal, a droga, qualquer que seja, é uma mercadoria, valiosa pelo fato de haver um mercado consumidor em potencial. Paradoxalmente, o fato de ser proibida torna seu comércio mais rentável. Muito embora extremamente perigoso e realizado ilegalmente, atrai um sem-números de jovens que se tornam “soldados” de um tráfico macabro, pois negociam produtos altamente químicos e potencialmente mortais. Suas próprias funções são semelhantes a de homens bombas, sabem que cedo encontrarão a morte.
Intitulei o artigo “Correndo atrás da própria sombra” e pode ser lido no arquivo deste blog (http://www.gramaticadomundo.com/2010/12/correndo-atras-da-propria-sombra.html). O que eu quis foi levantar uma discussão de crítica ao sistema capitalista. Uma mercadoria só se valoriza se houver demanda. E quanto maior a procura mais o seu valor será aumentado. Assim acontece também com as drogas, o que coloca o desafio de, tanto quanto combater os traficantes, impedir o aumento do número de consumidores. Uma tarefa tão difícil quanto a outra, na medida em que a sociedade capitalista empurra os jovens a um estilo de vida de agitos, glamoures, competições, e outros hábitos que se tornam portas de entrada para o consumo das drogas. A religião termina sendo a porta de saída, mesmo assim, em um universo muito restrito e dependendo do tipo de drogas que o jovem está a consumir.
Mas, lamentavelmente, a que me dedico a analisar neste post, dificilmente permitirá ao seu usuário encontrar uma porta de saída. Resolvi escrever sobre isso depois de assistir duas reportagens sobre o assunto, uma no SBT, Conexão Repórter e outra no Jornal da Band. Trata-se da mais nova e explosiva droga que começa a se espalhar pelo país: o “oxi”. Mais potente e destrutiva do que o crack, e o que é pior, a um custo bem mais baixo.
Uma frase do apresentador do Jornal da Band foi dita com uma enorme coincidência com o que eu pensava naquele momento. Enquanto a reportagem era mostrada eu via naquelas informações muito mais do que a descrição de uma droga. É uma “droga”, naturalmente, mais é muito mais do que tudo que nós já vimos a respeito, e nos espanta saber que algo esteja sendo produzido para ser comercializado, mesmo que ilegalmente. O OXI é uma verdadeira arma química, com um potencial destrutivo impressionante. Basta ver os ingredientes químicos utilizados em sua composição: cal, querosene, acetona, solução de bateria elétrica etc. acrescentado ao cloridrato de cocaína.
Se o crack, que em sua composição química é o resultado do cloridato de cocaína acrescido de amoníaco e bicabornato, é uma espécie de refugo da cocaína, o OXI pode ser considerado um subproduto do crack. Portanto, potencialmente mais destrutivo do que aquele. Na busca por mais informações, encontrei um artigo interessante e bem didático sobre essa droga, que pode acessado no  link: http://www.webartigos.com/articles/60245/1/Artigo-OXI---Uma-nova-droga-pior-que-o-Crack-ja-esta-no-Brasil-/pagina1.html#ixzz1LxPXVVg7. Foi a ele que me reportei na busca para mais informações sobre essa arma que me escandalizou quando assisti às reportagens citadas.
E o que está sendo feito para combater o tráfico desse produto? Muito pouco, tanto quanto se está combatendo o tráfico de outras drogas. Essa é uma guerra sem fronteiras. Por isso torna-se extremamente difícil o seu combate. O Oxi entrou no Brasil pelo Acre e já está se disseminando por todo o território brasileiro. Já chegou à São Paulo, e daí para o resto do país se espalhará como um rastilho de pólvora. O seu preço, bem mais barato do que o crack, e os seus efeitos destrutivos e de alto grau de dependência, multiplicará as conseqüências já danosas das vítimas que infestam as grandes cidades com filiais da “cracolândia” com números crescentes e assustadores.
Enquanto a polêmica ambiental ocupa as atenções dos meios de comunicação, e gera preocupações de ONGs com o futuro pouco verdejante que encontraremos mais adiante, vidas se perdem como trapos pelas ruas das grandes metrópoles e se espalham em direção às pequenas e médias cidades. Tornam o presente, principalmente dos pobres, grande maioria daqueles que consomem esse tipo de droga, um verdadeiro inferno.
O Oxi é uma bomba química com potencial destrutivo de eliminar um sem-número de pobres e miseráveis. Seu consumo não é exclusividade dos pobres, mas aqueles de outras origens sociais, misturam-se com a pobreza na medida em que a convivência familiar torna-se impraticável, em função das conseqüências da dependência química e dos desequilíbrios mentais que transtornam seus usuários. Passam então para outra nomenclatura: “sem-tetos” ou “moradores de rua”.
Quando essa situação chega a um estado de calamidade pública, esses indivíduos transformam-se em outro problema, de segurança pública. Passam a amedrontar o cidadão comum, em seu cotidiano, na medida em que ocupam lugares públicos e áreas de lazer das cidades. Alteram a paisagem e “enfeiam” a cidade, merecendo tratamentos carregados de intolerância e preconceitos. Tornam-se alvos dos grupos de extermínios.
Enquanto isso, a sociedade é induzida a se preocupar com o futuro. Bandeiras ecológicas, escoradas em um discurso do medo do que virá adiante, viram degraus para ascender indivíduos a outros objetivos políticos, e garantem para alguns a captação de recursos financeiros para financiar seus projetos de preservação da natureza.
Insisto na crítica à lógica que movimenta a política e os oportunismos que escondem interesses particularistas por trás de discursos da moda. Não haverá futuro para milhões de pessoas que vivem na miséria, na pobreza e para uma juventude que se transforma em instrumento de um sistema cruel, mercantiliza seus sonhos e os empurra para um abismo de onde não haverá retorno.
Enquanto a classe média, pequena burguesia, se mantém ativa em seus discursos matizados com ares progressistas, aos pobres é dado apenas a expectativa de um alívio em suas almas, em suas orações que purguem seus pecados e lhes garantam paz em um eventual paraíso. Enquanto uns lutam por um futuro que não existe, outros apegam-se à construção idílica de uma paz celestial. Entre eles um presente contraditório, porque marcado de diferenças nas vidas terrenas reais.
Vivemos em um mundo maravilhoso, não há dúvidas. Mas misterioso e transformado em possível hecatombe pelo discurso do medo de um futuro idealizado, e em um inferno real, pela busca da sensação de prazer e liberdade garantidos por drogas que transformam pessoas em trapos. 
Estado, Ministério Público, Justiça, políticas sociais, assumem a forma de tímidas ações. O combate ao tráfico esbarra na corrupção endêmica que afeta as estruturas policiais. E boa parte dos movimentos sociais transformaram seus discursos em defesa das mudanças e de crítica ao capitalismo, em bandeiras ambientais e na apologia das catástrofes.
Para os pobres, e para a juventude das periferias das grandes cidades, talvez chegue um tempo em que um estatuto em defesa dos animais, ou um código que os vejam como plantas, possam ser usados para protegê-los do inferno das drogas. O desafio é sobreviver, manter coesa uma família em processo de corrosão, diante do impacto gerado pela destruição que o Crack, e agora o Oxi causam. Infelizmente a religião entra em campo para salvar a alma, ou mesmo o indivíduo, mas é incapaz de levar uma luta maior para transformar a sociedade. O que fazer?

IMAGENS:

1. Dignow
2. adcl1997.zip.net
3. Veja. Ed. Abril
4. Gazeta Maringá
5. politicaetc.com

segunda-feira, 2 de maio de 2011

BIN LADEN ESTÁ MORTO! MAS E OSAMA?

Não. O título não está errado. Eu não quis dizer Obama, e sim Osama.
A notícia da morte do líder terrorista mais procurado do mundo chegou neste domingo pelos meios de comunicação. Pela TV e internet foi divulgado a operação que eliminou o chefe da rede Al Qaeda a pouco mais de cem quilômetros de Islamabad, capital do Paquistão. Segundo as informações Bin Laden escondia-se em uma fortaleza na cidade de Abottabad. A cidade tem cerca de 130.000 habitantes e é considerada uma das mais limpas e organizadas do Paquistão. Já entra para História com esse fato.
Mas qual a razão do trocadilho do título? Porque longe da euforia com que a notícia foi veiculada, e até que do ponto de vista simbólico, principalmente para os EUA, faça algum sentido, devemos compreender que a dimensão dos conflitos que se espalham pelo mundo, e do qual o terrorismo é apenas uma tática, vai muito além de Bin Laden.
Não há dúvida que os atos terroristas cometidos pela Al Qaeda são abomináveis. Dentre eles a destruição do World Trade Center. Por mais justas que sejam as razões que motivam seus membros, o assassinato de milhares de pessoas inocentes é inconcebível, até porque são insuficientes para fazer modificar a política também criminosa das potencias imperialistas, notadamente os EUA.
 Ações terroristas fazem parte da história de inúmeros conflitos, e chegou a ser defendida abertamente por Trotsky, na Rússia pré-revolucionária, de forma indiscriminada, e até mesmo por Lênin, aí já de maneira criteriosa, desde que os alvos fossem personagens destacados e lideranças importantes da classe dominante.
Elas são justificadas, por quem a utilizam, pelo fato de o inimigo ser muito mais poderoso e bem armado, não restando outros artifícios capazes de trazer a vitória do que o fustigamento surpreso de ataques a pontos estratégicos. De forma a gerar o terror, o medo, e fragilizar o lado psicológico principalmente da multidão. E assim desnortear o comando militar adversário, muito bem armado, mas impotente diante de inimigo praticamente invisível e que pode estar em qualquer lugar.
Mas ao longo da história os atentados terroristas, principalmente no século XX, terminaram por causar um número extremamente elevado de vítimas inocentes, de forma aleatória, transformando seus responsáveis em bandidos comuns, e não surtindo o efeito desejado de alterar a política, ou até mesmo de derrubar governos.
Contudo, há um outro lado dessa história. O banditismo, principalmente aquele que carrega em sua origem elementos de desigualdades e de injustiças sociais, se causa medo também gera outra expectativa, de ver o lado mais forte ser derrotado. Esse lado é identificado como o causador das injustiças que geraram aqueles atos de banditismo. Isso possibilita que a figura do indivíduo caçado, procurado por atos criminosos cometidos contra um possível opressor, seja transformado em um mito. Essa é a razão de, ao longo da história, serem muitos os casos de indivíduos, acusados de crimes, tornarem-se perante o povo, verdadeiros heróis. Spartacus, Robin Hood, Lampião, são alguns desses exemplos. Sem medo de criar polêmica, cito o mais importante destes, cuja morte transformou suas idéias na maior religião do mundo: Jesus Cristo. E a morte não mata os mitos. Muito ao contrário, potencializa-o, torna-o inquebrantável.
Não quero aqui estabelecer nenhum parâmetro comparativo entre esses personagens, até porque seria absurdo fazê-lo e mero artificialismo. Mas dizer que os atos e fatos cometidos por grandes nações, em especial no tocante ao domínio e exploração rapaces das riquezas de países mais frágeis economicamente, embora ricos potencialmente, sempre geraram reações violentas e geradoras de guerras, guerrilhas e pequenos ou grandes atos terroristas para combater o opressor e invasor de seus domínios territoriais. E grandes lideranças, para o “bem” ou para o “mal”, surgiram desses processos.
 Nessa lista de confrontos, a denominação de terrorista será dada a depender do lado da história em que cada um se coloque. A dizimação da população aborígene na América, inclusive no oeste dos Estados Unidos, a invasão do Vietnã, o aculturamento forçado na Austrália, o bloqueio à Gaza na Palestina ocupada e tantos outros casos de domínio colonialista imposto principalmente pelas potencias, sempre criaram e criarão os Bin Ladens.
Esse espaço é extremamente reduzido para listarmos a quantidade de “heróis e bandidos” que tornaram-se mitos no enfrentamento a situações de opressões e injustiças sociais. Muito embora essa mesma história não seja suficiente para ensinar o quanto essas desigualdades são forças potenciais a elevar figuras como Bin Laden a líderes de causas muitas vezes justas, mas combatidas por caminhos tortuosos e criminosos.
Por essa razão, por continuarem a mesma política belicista e agressora, exploradora das riquezas, principalmente as minerais, é que indico no trocadilho do título a criação de mais um mito, visto de uma realidade completamente diferente daquela com que os jovens estadunidenses euforicamente saíram às ruas para comemorar a morte do “terrorista mais procurado do mundo” .
Osama é um nome comum no Afeganistão, como é em outras partes do mundo, John, Joaquim, José, João e até mesmo Ribamar. Está ligado com elementos da cultura e da religiosidade de cada lugar. São esses indivíduos, anônimos, explorados por uma situação de exploração e desigualdade social, que transformam em mitos figuras que são capazes de enfrentar impérios, exércitos poderosos e “coronéis”.
Iludem-se aqueles que se apegam ao simbolismo da morte de Bin Laden e vê isso como uma grande vitória. Como ato simbólico, a demonstrar o poderio do império e da “força da lei” e do “bem”, momentaneamente surtirá efeito. Inclusive eleitoral, para Obama. Sem trocadilho. Mas a Al Qaeda é muito maior do que o seu líder. Transformou-se em uma organização mundial, uma verdadeira “franquia” de grupos que se organizam para combater a política intervencionista e agressora das potencias européias nesse exato momento expresso na tentativa de eliminar Muamar Kadafi. Embora um ditador, há muitos anos no poder, Kadafi é problema dos Líbios, assim como Berlusconi é um problema dos italianos.
A ação agressora, praticada pela OTAN, a serviços das potencias européias e dos EUA, não se difere dos atos terroristas da Al Qaeda, a não ser pela dimensão tecnológica e do aparato bélico. Assim o foi no Iraque, onde centenas de milhares de iraquianos inocentes foram mortos desde a ocupação estadunidense naquele país. Numa quantidade de mortos muito maior do que a que foi atribuída a Sadam Hussein. O mesmo se repete no Afeganistão.
Nessas situações, e de forma aberrante, a terceirização da guerra permite que os grupos de mercenários executem missões aleatoriamente, e os abusos cometidos, atos de selvageria e assassinato em massa, não podem ser julgados pela justiça daquele país que está sob ocupação. É o caso do que cometeu por muito tempo a Blackwater, maior empresa privada de guerra do mundo. Depois de praticarem vários massacres no Iraque e ter sido denunciada em um livro com o mesmo nome ela foi forçada a mudar sua denominação, passando a chamar-se simplesmente XE.
Quantos novos seguidores da Al Qaeda surgem de situações como essas, de explícitas injustiças, covardias e assassinatos, sem que seja possível punir e condenar os responsáveis? Como surgem os “homens bombas”? Obviamente surgem de situações de crescente revolta contra atos violentos praticados contra uma população frágil e que não permite outro tipo de reação, na medida em que o inimigo é extremamente poderoso. As guerras de guerrilhas e o terrorismo são conseqüência dessa situação. Creio que dois bons filmes podem nos ajudar a entender isso: A Batalha de Argel (recentemente relançado em DVD duplo com bons extras), do diretor Gillo Pontecorvo, que retrata a luta pela libertação do povo argelino contra a dominação colonialista francesa; e Paradise Now, filme mais recente, de 2005, e ganhador de Oscar de melhor filme estrangeiro, que mostra a condição de vida dos jovens palestinos e a sua fragilidade e revolta que os tornam alvos fáceis no processo de recrutamento para tornarem-se “homens bombas”.
Da mesma maneira grupos de bandidos comuns, se aproveitam da situação desses conflitos para dominarem territórios, e quase sempre após essas invasões esses grupos tornam-se um poder paralelo, sendo difícil eliminá-los. Os exemplos podem ser vistos na Somália, no Iêmen, no Sudão, no Afeganistão e em muitos outros lugares. Tornam, eles também, grupos de mercenários fortemente armados, e passam a se constituir entraves para seus antigos aliados: as potencias invasoras. O exemplo mais visível foi do Talibã, armado para combater as antigas tropas soviéticas no Afeganistão. E isso pode estar se repetindo nesse momento na Líbia, e tudo indica que poderá vir a acontecer na Síria.
Bin Laden está morto, mas a situação que o gerou permanece. Isso, certamente, será um motivo para torná-lo um mito muito mais poderoso do que em vida, principalmente nos países onde o radicalismo islâmico se destaca. Embora minoritário, se constitui na força hegemônica de combate as agressões imperialistas. E é bom que o corpo seja apresentado, e devidamente identificado, porque senão se ampliará em muito a dimensão do mito.
E mal se começa a comemorar sua morte e já aparece outro em primeiro lugar, na lista dos dez mais procurados terroristas. A bola da vez agora é o egípcio Ayman Al-Zawahir. Conseguirão ser eliminados? Certamente, o poderio bélico e a capacidade tecnológica e de espionagem é insuperável. Mas assim seguirá a sucessão de novos rebeldes e mitos, porquanto durar as agressões imperialistas e a crescente desigualdade social no mundo.
Por mais que se comemore neste momento a morte de Bin Laden, e que isso sirva para animar o sentimento nacionalista estadunidense, o mundo não estará livre da violência e dos atentados terroristas. E os alvos potenciais continuarão sendo aqueles que em nome do “bem” e da “democracia”, persistem em cometer usurpação, crimes e assassinatos em claro e visível banditismo imperialista.
Para finalizar reporto-me ao livro de Howard Fast, romanceando a vida de Spartacus (que virou roteiro para um filme clássico e ganhador de vários prêmios). Ao ser crucificado na Via Appia – estrada que saía da antiga Roma em direção à Cápua - juntamente com milhares de seus seguidores que, todos eles, teriam assumidos ser também o próprio, ele teria dito no momento em que sua companheira Varínia se aproxima dele com o filho nos braços: “Eu voltarei, e serei milhões”.
Enquanto se ampliar o fosso entre ricos e pobres e a desigualdade se constituir em claro abuso e afronta à humanidade os mitos se multiplicarão, e eles se humanizam na figura daqueles que despontam com coragem de desafiar os mais fortes. E por assim o ser, tornam-se eles mitos maiores do que as dimensões humanas que lhes são atribuídas.
Bin Laden era o alvo, mas o perigo é a miséria e a injustiça social. A Al Qaeda tende a se multiplicar, na medida em que as políticas das grandes potências persistirem em explorar nos países mais pobres as riquezas para salvar suas  ganâncias, usuras e inaceitáveis (para eles) falências.