sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O DESPERTAR DAS BESTAS... (2ª PARTE)


Em 2016 publiquei um artigo aqui neste blog,[i] em que analisei o quadro político daquele momento, as instabilidades geopolíticas e tracei um desenrolar dos acontecimentos em direção a uma situação sombria para os anos seguintes. Procurei entender como a direita ascendeu tão rapidamente e os mecanismos adotados para aplicar o golpe e levar ao Poder a figura nefasta de Michel Temer. Mas também já havia identificado, e coloco isso no artigo, os movimentos trilhados por um personagem que por muito tempo, inclusive nos governos da esquerda, transitou livremente, adotando comportamentos fascistas e provocando com discursos e gestos as ações que eram feitas para resgatar a história pérfida de torturadores e criminosos durante a ditadura militar brasileira
O gabinete dessa figura torpe era a comprovação de que ali se instalava mais do que um indivíduo provocador, mas um elemento altamente nocivo para a democracia, que deveria ter sido cassado por seu comportamento. Lembro de ver, não somente em foto, mas percorrendo os corredores do Anexo IV da Câmara dos Deputados, um gabinete em que ostentava não somente a imagem dos ditadores militares brasileiros, como também ofendia os militantes de esquerda assassinados naqueles tempos tenebrosos. E um cartaz causava náusea, indicando provocativamente que quem procura osso é cachorro, numa relação ofensiva e macabra com os familiares dos militantes que procuravam resposta para os restos mortais daqueles que foram torturados e assassinados no combate ao movimento guerrilheiro do Araguaia.
Nada foi feito contra esse indivíduo, e ele se fortaleceu na medida em que se enraizava um ódio construído pela grande mídia contra o governo Dilma e o receio que depois dela viesse mais dois governos Lula. Deixar impune um defensor do fascismo e de torturadores, foi um erro imperdoável. Outro foi acreditar em uma possível redenção da burguesia urbana e dos latifundiários, e a aceitação da permanência da esquerda no Poder por quanto tempo a “democracia” permitisse. A elite, a burguesia rural e urbana, os “bem-nascidos”, não são democratas, a não ser nos limites permitidos pela “democracia capitalista”, logicamente desde que o Poder político não se afaste de suas mãos por não mais do que duas eleições. Mais do que isso os golpes são tradição que jamais deveriam ter sido negligenciados pela esquerda.
Mas, embora de relance eu tenha observado um movimento que se encaminhava para a periferia e já estava consolidado na classe média, a expansão do neopentecostalismo evangélico, não consegui observar atentamente e descobrir a dimensão do que estava acontecendo. Em relação à classe média sim, era nítido e perceptível pelos grandes templos luxuosos evangélicos construídos em bairros nobres das capitais.
No entanto, a disseminação de pequenas igrejas, iniciadas como “células” (ironicamente o adjetivo/substantivo que dávamos às nossas organizações de base quando atuávamos no movimento estudantil e militávamos clandestinamente) em alguns casos, ou como consequência das dissenções que ocorrem com frequência nesses grupos que faziam com que se espalhassem pelas periferias. Registre-se que de certa forma empoderadas politicamente, já que muitos de seus pastores-líderes, ou a cúpula que dominava o movimento evangélico, e se organizam em diversas associações, apoiaram ou fizeram parte dos governos da esquerda e após o golpe se tornaram mais fortes ainda, já que se tornaram base importante para derrubar a presidenta Dilma Roussef.
A conversão oportunista de Bolsonaro, justamente naquele ano de 2016, representava então uma estratégia adotada por integrantes do PSC – Partido Social Cristão, principalmente o pastor Everaldo, que havia sido candidato à presidência da República. Mas o perfil de Bolsonaro não indicava nenhuma fidelidade a este ou aquele líder evangélico, ele transitaria por todas as igrejas dessa linha cristã, e soube se aproveitar bem da cegueira de seus fiéis para despejar seu ódio ao sabor das disputas bíblicas, mas unindo “hebreus, filisteus, fariseus e seduceus” (me sirvo aqui de metáforas, naturalmente). Conseguindo até nessa loucura pérfida cristã, pelo discurso reacionário, ultrajante e odiento que representa o “mito”, envolver os grupos mais conservadores da igreja católica, dentre os quais o mais importante: renovação carismática católica.
Mas, o uso do adjetivo no primeiro artigo individualizava o termo, e tinha somente um único sentido, aquele dado na identificação religiosa com o “coisa ruim”. Besta no imaginário cristão é a representação demoníaca. Mas neste eu insiro o plural a fim de ampliar o seu sentido, principalmente depois do efeito manada na última eleição, com a surpreendente escolha eleitoral por um indivíduo cujo comportamento e discurso é completamente oposto ao sentido que sempre foi dado pelo cristianismo. Neste caso, o sentido de “besta” se enquadra também no adjetivo muito usado em diversas regiões do Brasil, identificando as pessoas tolas, bocós, ignorantes, e... estúpidas.
No quadro de uma população majoritariamente alienada e desprovida de senso crítico (algo que os governos de esquerda não se preocuparam em alterar, já que o olhar para a educação reproduziu o viés neoliberal que se espalhava pelo mundo e aportou aqui celeremente, anestesiando uma nova geração de doutores, igualmente alienados) a estratégia da falsificação da notícia e a repetição de frases tolas e estúpidas que reproduzem o que secularmente a cultura dominante impôs, por meio de discursos machistas, homofóbicos, misóginos e preconceituosos, comportamentos que se disseminaram rapidamente (porque era o olhar do espelho), se acelerando pela força dos púlpitos que se espalharam incentivados pelas políticas e pelo dinheiro dos EUA, dentro dos interesses geoestratégicos de combater o avanço da igreja progressista, identificada nas comunidades eclesiais de base. Essa corrente foi sufocada no final dos anos 1980 ao mesmo tempo em que crescia a influência e a força das igrejas pentecostais, depois das neopentecostais, no Brasil e na América Latina[2].
Esse público, “fiel”, se tornaria a base ideal para a ascensão de um candidato bufão. A estratégia foi a mesma adotada nos EUA, com Donald Trump, de perfil parecido, mas em um nível de estupidez mais sofisticado. E no Brexit, plebiscito que aprovou a saída da Grã-Bretanha da União Européia, e permitiu a ascensão de outro indivíduo que fica numa espécie de síntese desses dois primeiros, Bolsonaro e Trump: Boris Johnson.
O estrategista foi o mesmo, Steve Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca e conselheiro de Trump. Sua aposta sempre foi a criação de fake news, facilmente assimilada por um público estúpido, avesso à política, com a exploração dos limites possíveis de estupidez existente em uma camada da população, com nítida deficiência intelectual e de compreensão da realidade em toda a sua dimensão. Isso pode ser atestado em um documentário disponível para acesso na internet, numa produção independente mostrada pela Globonews[3].
Mas essa estratégia se adequou também a uma realidade gerada por uma crise econômica sistêmica, estrutural, que afetou a economia de praticamente todos os países do mundo, gerando uma reação de comportamento, aversão à política, desânimo com as instituições e revolta contra tudo que representasse as crenças alimentadas por longos anos que demonizava o Estado. O neoliberalismo, que houvera destruído o estado de bem-estar social, por suas políticas de abrir o mercado para o livre trânsito das corporações e eliminar os mecanismos de defesa das camadas socialmente mais vulneráveis, de repente alimenta nessas pessoas o ódio àquilo que essa política econômica ajudara a enfraquecer.
O sintoma dessa nova realidade, absurda, porque foge do concreto e se prende em abstração, passou a ser denominada de “pós-verdade”. As pessoas, incapazes de compreender as contradições que as cercam, passam a acreditar naquilo que desejam, e direcionam suas revoltas não contra os causadores dos problemas, mas para as consequências dessas situações geradas pelas perversões dessas políticas. Paradoxalmente esse movimento, basicamente da classe média e de parte da população pobre que ascendera socialmente, se volta contra as políticas desenvolvidas por governos progressistas para amenizar a destruição neoliberal, embora usando em parte esse remédio nocivo. E abre caminho para que as estratégias da extrema-direita se encaixassem facilmente num ambiente de perplexidade, apreensão, medo e revolta, mas tudo isso potencializado e alimentado por corporações midiáticas, aliadas aos segmentos mais oportunistas da burguesia, que fomentaram essas insatisfações e a direcionaram contra os governos de esquerda, principalmente na América Latina.
Claro que no Brasil, especificamente, o tiro saiu pela culatra. Os artífices do golpe, capitaneados pelos tucanos (PSDB), imaginavam retomar o controle do Poder, e confiaram isso a uma figura decrépita moralmente, também presidente desse partido, que disparou a senha para desconsiderar o resultado da eleição de 2014. Primeiro sofreram uma rasteira do PMDB, e em seguida, como consequência de toda a propaganda midiática antipolítica, defenestrando a esquerda, culminou com uma polarização entre o PT e a figura nefasta que captara bem, por meio de uma assessoria não somente de Bannon, mas também de uma malta de figuras perversas, odientas e oportunistas, encravadas nos púlpitos de algumas igrejas evangélicas, mas que de algum tempo já tomavam espaços em outro templo, outrora representante da democracia, o Congresso Nacional.
O antipetismo foi mais forte do que o “ele não”. No meio do caminho, numa atitude tosca e irresponsável, um indivíduo, por meio de uma facada, definiu a eleição de um personagem que não tinha tempo na televisão, não aparecia nos debates e quando convidado pelas TVs agia grotescamente, acusando sem provas e ostentando bravatas irresponsáveis.
A aceitação desse discurso por meio de uma massa inebriada, conduzida pelo conservadorismo evangélico e pelo que de pior existe na política, um movimento fascista, praticamente neonazista, deu suporte para ações viscerais na destruição de conquistas históricas dos direitos dos trabalhadores, das populações pobres, das comunidades fragilizadas e historicamente destruídas em suas tradições e reduzidas pelas ações rapaces de grileiros e marginais que vestem ternos, usam togas e escondem-se por detrás de impunidades piores do que aquelas imputadas aos políticos acusados de corrupção.
Somente um tipo de corrupção tornou-se alvo, aquela praticada por um mecanismo que por décadas foi aceito e passado em branco pela justiça eleitoral: o caixa 2, e suas consequências, por meio do beneficiamento a empresas que financiavam as eleições. Mas a corrupção disseminada por outros setores, polícia, judiciário e até mesmo nos costumes, foi naturalizada pela população, que a vê com menos importância, até mesmo porque se serve dela em alguns momentos.
Esse ambiente criado é absolutamente refratário a mudanças rápidas. Estamos num dilema que necessariamente impõe preocupações para além das lutas eleitorais imediatas, porque essas prosseguirão contaminadas por essa polarização e pelo uso e abuso da incapacidade cognitiva de boa parte da população. Aliás, a luta eleitoral só acentua a polarização e, consequentemente, cria uma espécie de blindagem mental, que dificulta a essas pessoas perceberem o abismo enorme que elas têm pela frente.
A conjuntura política, ao contrário do que possa parecer quando analisamos o erro de cálculo da direita e centro-direita, não é hostil à burguesia e aos latifundiários. Pelo contrário. O ambiente de anestesia que se abateu sobre a sociedade e atingiu até mesmo os segmentos organizados, tem facilitado o desmonte acelerado das estruturas de proteção social inseridas por meio de muita luta por longos anos. Isso tem sido feito numa rapidez impressionante, por meio de um rolo compressor de um congresso majoritariamente conservador, com bancadas perversas como as da “bala, da bíblia e do boi”, que agem nas áreas estratégicas, de segurança, da produção agrícola e dos costumes, inserindo aí um forte ataque à cultura e à educação, com desmonte impressionante de segmentos que são responsáveis por consolidar saber e defender valores culturais que são formadores de nossa identidade nacional.
Mais do que pensar em disputar eleições, embora isso seja essencial para mudar principalmente a correlação de forças nos parlamentos, o que é preciso, necessário e urgente, é retomar o protagonismo que está nas mãos das igrejas, seja por meio de pastores evangélicos e do clero católico conservador, e procurar incutir nas mentes das camadas mais desprotegidas e vulneráveis, os trabalhadores, que estão vendo seu direitos serem retirados, e a população da periferia, que imaginam pela fé, construir algo de bom em suas situações econômicas. Uma ilusão de quem desconhece os mecanismos de funcionamento do capitalismo, principalmente agora, neste momento de transição, em que uma transformação tecnológica impõe uma ampliação da destruição de empregos, como consequência do uso de inteligência artificial e da robotização crescente da força de trabalho.
A organização e conscientização dessa massa alienada é algo bastante difícil, levará tempo, mas contará com a situação de desespero que tende a se acentuar, na medida em que essas mudanças aplicadas contra os trabalhadores começarem a serem sentidas no dia a dia, que transformará o cotidiano dessas pessoas, principalmente dos mais jovens, em um verdadeiro inferno aqui na terra. Isso é inevitável, mas cabe as forças progressista se anteciparem e construírem os bunkers para se defenderem dos ataques da extrema-direita, mas sem se colocarem somente numa posição defensiva, procurando construir táticas de ações ofensivas. Possíveis com arma da organização e da conscientização política desses segmentos. Talvez a Venezuela nos ajude a entender como fazer para resistir, ofensivamente, à escalada de destruição da democracia que parte dos demônios do Norte.
Creio ter me alongado, mas esse ambiente tóxico, de perversão e de mudança rápida de conjuntura, nos obriga a ir bem a fundo na compreensão das causas (é preciso saber onde erramos, e porque erramos), na dimensão do problema e na necessária indicação de que é preciso planejar uma forte reação às investidas que estão destruindo e consumindo a sociedade brasileira, incluídos aí povos originários e comunidades tradicionais, principais alvos dessas perversões, pela cobiça das riquezas que existem em suas terras.



NOTAS:
[2] LIMA, Décio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. https://issuu.com/juliocesarpedrosa/docs/delcio-de-lima-os-demonios-descem-d
[3]Fake News – Baseado em fatos reais -  https://vimeo.com/239115794


Nenhum comentário:

Postar um comentário