Em 2016 publiquei
um artigo aqui neste blog,[i] em que analisei o quadro
político daquele momento, as instabilidades geopolíticas e tracei um desenrolar
dos acontecimentos em direção a uma situação sombria para os anos seguintes.
Procurei entender como a direita ascendeu tão rapidamente e os mecanismos
adotados para aplicar o golpe e levar ao Poder a figura nefasta de Michel
Temer. Mas também já havia identificado, e coloco isso no artigo, os movimentos
trilhados por um personagem que por muito tempo, inclusive nos governos da
esquerda, transitou livremente, adotando comportamentos fascistas e provocando
com discursos e gestos as ações que eram feitas para resgatar a história
pérfida de torturadores e criminosos durante a ditadura militar brasileira
O gabinete dessa
figura torpe era a comprovação de que ali se instalava mais do que um indivíduo
provocador, mas um elemento altamente nocivo para a democracia, que deveria ter
sido cassado por seu comportamento. Lembro de ver, não somente em foto, mas
percorrendo os corredores do Anexo IV da Câmara dos Deputados, um gabinete em
que ostentava não somente a imagem dos ditadores militares brasileiros, como
também ofendia os militantes de esquerda assassinados naqueles tempos
tenebrosos. E um cartaz causava náusea, indicando provocativamente que quem
procura osso é cachorro, numa relação ofensiva e macabra com os familiares dos
militantes que procuravam resposta para os restos mortais daqueles que foram
torturados e assassinados no combate ao movimento guerrilheiro do Araguaia.
Nada foi feito
contra esse indivíduo, e ele se fortaleceu na medida em que se enraizava um
ódio construído pela grande mídia contra o governo Dilma e o receio que depois
dela viesse mais dois governos Lula. Deixar impune um defensor do fascismo e de
torturadores, foi um erro imperdoável. Outro foi acreditar em uma possível
redenção da burguesia urbana e dos latifundiários, e a aceitação da permanência
da esquerda no Poder por quanto tempo a “democracia” permitisse. A elite, a
burguesia rural e urbana, os “bem-nascidos”, não são democratas, a não ser nos
limites permitidos pela “democracia capitalista”, logicamente desde que o Poder
político não se afaste de suas mãos por não mais do que duas eleições. Mais do
que isso os golpes são tradição que jamais deveriam ter sido negligenciados
pela esquerda.
Mas, embora de
relance eu tenha observado um movimento que se encaminhava para a periferia e
já estava consolidado na classe média, a expansão do neopentecostalismo
evangélico, não consegui observar atentamente e descobrir a dimensão do que
estava acontecendo. Em relação à classe média sim, era nítido e perceptível
pelos grandes templos luxuosos evangélicos construídos em bairros nobres das
capitais.
No entanto, a
disseminação de pequenas igrejas, iniciadas como “células” (ironicamente o
adjetivo/substantivo que dávamos às nossas organizações de base quando
atuávamos no movimento estudantil e militávamos clandestinamente) em alguns
casos, ou como consequência das dissenções que ocorrem com frequência nesses
grupos que faziam com que se espalhassem pelas periferias. Registre-se que de
certa forma empoderadas politicamente, já que muitos de seus pastores-líderes,
ou a cúpula que dominava o movimento evangélico, e se organizam em diversas
associações, apoiaram ou fizeram parte dos governos da esquerda e após o golpe
se tornaram mais fortes ainda, já que se tornaram base importante para derrubar
a presidenta Dilma Roussef.
A conversão
oportunista de Bolsonaro, justamente naquele ano de 2016, representava então
uma estratégia adotada por integrantes do PSC – Partido Social Cristão,
principalmente o pastor Everaldo, que havia sido candidato à presidência da
República. Mas o perfil de Bolsonaro não indicava nenhuma fidelidade a este ou
aquele líder evangélico, ele transitaria por todas as igrejas dessa linha
cristã, e soube se aproveitar bem da cegueira de seus fiéis para despejar seu
ódio ao sabor das disputas bíblicas, mas unindo “hebreus, filisteus, fariseus e
seduceus” (me sirvo aqui de metáforas, naturalmente). Conseguindo até nessa
loucura pérfida cristã, pelo discurso reacionário, ultrajante e odiento que
representa o “mito”, envolver os grupos mais conservadores da igreja católica,
dentre os quais o mais importante: renovação carismática católica.
Mas, o uso do
adjetivo no primeiro artigo individualizava o termo, e tinha somente um único
sentido, aquele dado na identificação religiosa com o “coisa ruim”. Besta no
imaginário cristão é a representação demoníaca. Mas neste eu insiro o plural a
fim de ampliar o seu sentido, principalmente depois do efeito manada na última
eleição, com a surpreendente escolha eleitoral por um indivíduo cujo
comportamento e discurso é completamente oposto ao sentido que sempre foi dado
pelo cristianismo. Neste caso, o sentido de “besta” se enquadra também no
adjetivo muito usado em diversas regiões do Brasil, identificando as pessoas
tolas, bocós, ignorantes, e... estúpidas.
No quadro de uma
população majoritariamente alienada e desprovida de senso crítico (algo que os
governos de esquerda não se preocuparam em alterar, já que o olhar para a
educação reproduziu o viés neoliberal que se espalhava pelo mundo e aportou
aqui celeremente, anestesiando uma nova geração de doutores, igualmente
alienados) a estratégia da falsificação da notícia e a repetição de frases
tolas e estúpidas que reproduzem o que secularmente a cultura dominante impôs,
por meio de discursos machistas, homofóbicos, misóginos e preconceituosos,
comportamentos que se disseminaram rapidamente (porque era o olhar do espelho),
se acelerando pela força dos púlpitos que se espalharam incentivados pelas
políticas e pelo dinheiro dos EUA, dentro dos interesses geoestratégicos de
combater o avanço da igreja progressista, identificada nas comunidades
eclesiais de base. Essa corrente foi sufocada no final dos anos 1980 ao mesmo
tempo em que crescia a influência e a força das igrejas pentecostais, depois
das neopentecostais, no Brasil e na América Latina[2].
Esse público, “fiel”,
se tornaria a base ideal para a ascensão de um candidato bufão. A estratégia
foi a mesma adotada nos EUA, com Donald Trump, de perfil parecido, mas em um
nível de estupidez mais sofisticado. E no Brexit, plebiscito que aprovou a
saída da Grã-Bretanha da União Européia, e permitiu a ascensão de outro
indivíduo que fica numa espécie de síntese desses dois primeiros, Bolsonaro e
Trump: Boris Johnson.
O estrategista foi
o mesmo, Steve Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca e conselheiro de
Trump. Sua aposta sempre foi a criação de fake news, facilmente assimilada por
um público estúpido, avesso à política, com a exploração dos limites possíveis de
estupidez existente em uma camada da população, com nítida deficiência intelectual
e de compreensão da realidade em toda a sua dimensão. Isso pode ser atestado em
um documentário disponível para acesso na internet, numa produção independente
mostrada pela Globonews[3].
Mas essa
estratégia se adequou também a uma realidade gerada por uma crise econômica sistêmica,
estrutural, que afetou a economia de praticamente todos os países do mundo,
gerando uma reação de comportamento, aversão à política, desânimo com as
instituições e revolta contra tudo que representasse as crenças alimentadas por
longos anos que demonizava o Estado. O neoliberalismo, que houvera destruído o
estado de bem-estar social, por suas políticas de abrir o mercado para o livre
trânsito das corporações e eliminar os mecanismos de defesa das camadas
socialmente mais vulneráveis, de repente alimenta nessas pessoas o ódio àquilo
que essa política econômica ajudara a enfraquecer.
O sintoma dessa
nova realidade, absurda, porque foge do concreto e se prende em abstração,
passou a ser denominada de “pós-verdade”. As pessoas, incapazes de compreender
as contradições que as cercam, passam a acreditar naquilo que desejam, e
direcionam suas revoltas não contra os causadores dos problemas, mas para as
consequências dessas situações geradas pelas perversões dessas políticas.
Paradoxalmente esse movimento, basicamente da classe média e de parte da
população pobre que ascendera socialmente, se volta contra as políticas
desenvolvidas por governos progressistas para amenizar a destruição neoliberal,
embora usando em parte esse remédio nocivo. E abre caminho para que as estratégias
da extrema-direita se encaixassem facilmente num ambiente de perplexidade,
apreensão, medo e revolta, mas tudo isso potencializado e alimentado por
corporações midiáticas, aliadas aos segmentos mais oportunistas da burguesia,
que fomentaram essas insatisfações e a direcionaram contra os governos de
esquerda, principalmente na América Latina.
Claro que no
Brasil, especificamente, o tiro saiu pela culatra. Os artífices do golpe,
capitaneados pelos tucanos (PSDB), imaginavam retomar o controle do Poder, e
confiaram isso a uma figura decrépita moralmente, também presidente desse
partido, que disparou a senha para desconsiderar o resultado da eleição de 2014.
Primeiro sofreram uma rasteira do PMDB, e em seguida, como consequência de toda
a propaganda midiática antipolítica, defenestrando a esquerda, culminou com uma
polarização entre o PT e a figura nefasta que captara bem, por meio de uma
assessoria não somente de Bannon, mas também de uma malta de figuras perversas,
odientas e oportunistas, encravadas nos púlpitos de algumas igrejas
evangélicas, mas que de algum tempo já tomavam espaços em outro templo, outrora
representante da democracia, o Congresso Nacional.
O antipetismo foi
mais forte do que o “ele não”. No meio do caminho, numa atitude tosca e
irresponsável, um indivíduo, por meio de uma facada, definiu a eleição de um
personagem que não tinha tempo na televisão, não aparecia nos debates e quando
convidado pelas TVs agia grotescamente, acusando sem provas e ostentando bravatas
irresponsáveis.
A aceitação desse
discurso por meio de uma massa inebriada, conduzida pelo conservadorismo
evangélico e pelo que de pior existe na política, um movimento fascista,
praticamente neonazista, deu suporte para ações viscerais na destruição de
conquistas históricas dos direitos dos trabalhadores, das populações pobres,
das comunidades fragilizadas e historicamente destruídas em suas tradições e
reduzidas pelas ações rapaces de grileiros e marginais que vestem ternos, usam
togas e escondem-se por detrás de impunidades piores do que aquelas imputadas
aos políticos acusados de corrupção.
Somente um tipo de
corrupção tornou-se alvo, aquela praticada por um mecanismo que por décadas foi
aceito e passado em branco pela justiça eleitoral: o caixa 2, e suas
consequências, por meio do beneficiamento a empresas que financiavam as
eleições. Mas a corrupção disseminada por outros setores, polícia, judiciário e
até mesmo nos costumes, foi naturalizada pela população, que a vê com menos importância,
até mesmo porque se serve dela em alguns momentos.
Esse ambiente
criado é absolutamente refratário a mudanças rápidas. Estamos num dilema que
necessariamente impõe preocupações para além das lutas eleitorais imediatas,
porque essas prosseguirão contaminadas por essa polarização e pelo uso e abuso
da incapacidade cognitiva de boa parte da população. Aliás, a luta eleitoral só
acentua a polarização e, consequentemente, cria uma espécie de blindagem
mental, que dificulta a essas pessoas perceberem o abismo enorme que elas têm
pela frente.
A conjuntura
política, ao contrário do que possa parecer quando analisamos o erro de cálculo
da direita e centro-direita, não é hostil à burguesia e aos latifundiários.
Pelo contrário. O ambiente de anestesia que se abateu sobre a sociedade e
atingiu até mesmo os segmentos organizados, tem facilitado o desmonte acelerado
das estruturas de proteção social inseridas por meio de muita luta por longos
anos. Isso tem sido feito numa rapidez impressionante, por meio de um rolo
compressor de um congresso majoritariamente conservador, com bancadas perversas
como as da “bala, da bíblia e do boi”, que agem nas áreas estratégicas, de
segurança, da produção agrícola e dos costumes, inserindo aí um forte ataque à
cultura e à educação, com desmonte impressionante de segmentos que são
responsáveis por consolidar saber e defender valores culturais que são
formadores de nossa identidade nacional.
Mais do que pensar
em disputar eleições, embora isso seja essencial para mudar principalmente a
correlação de forças nos parlamentos, o que é preciso, necessário e urgente, é
retomar o protagonismo que está nas mãos das igrejas, seja por meio de
pastores evangélicos e do clero católico conservador, e procurar incutir nas
mentes das camadas mais desprotegidas e vulneráveis, os trabalhadores, que estão
vendo seu direitos serem retirados, e a população da periferia, que imaginam pela
fé, construir algo de bom em suas situações econômicas. Uma ilusão de quem
desconhece os mecanismos de funcionamento do capitalismo, principalmente agora,
neste momento de transição, em que uma transformação tecnológica impõe uma
ampliação da destruição de empregos, como consequência do uso de inteligência
artificial e da robotização crescente da força de trabalho.
A organização e
conscientização dessa massa alienada é algo bastante difícil, levará tempo, mas
contará com a situação de desespero que tende a se acentuar, na medida em que
essas mudanças aplicadas contra os trabalhadores começarem a serem sentidas no
dia a dia, que transformará o cotidiano dessas pessoas, principalmente dos mais
jovens, em um verdadeiro inferno aqui na terra. Isso é inevitável, mas cabe as
forças progressista se anteciparem e construírem os bunkers para se defenderem
dos ataques da extrema-direita, mas sem se colocarem somente numa posição
defensiva, procurando construir táticas de ações ofensivas. Possíveis com arma
da organização e da conscientização política desses segmentos. Talvez a
Venezuela nos ajude a entender como fazer para resistir, ofensivamente, à
escalada de destruição da democracia que parte dos demônios do Norte.
Creio ter me
alongado, mas esse ambiente tóxico, de perversão e de mudança rápida de
conjuntura, nos obriga a ir bem a fundo na compreensão das causas (é preciso
saber onde erramos, e porque erramos), na dimensão do problema e na necessária indicação
de que é preciso planejar uma forte reação às investidas que estão destruindo e
consumindo a sociedade brasileira, incluídos aí povos originários e comunidades
tradicionais, principais alvos dessas perversões, pela cobiça das riquezas que
existem em suas terras.
NOTAS:
[1] O
despertar da besta... e o resgate da utopia. https://gramaticadomundo.blogspot.com/2016/05/o-despertar-da-besta-e-o-resgate-da.html
[2] LIMA,
Décio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1987. https://issuu.com/juliocesarpedrosa/docs/delcio-de-lima-os-demonios-descem-d
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