terça-feira, 25 de agosto de 2020

AS ORIGENS DA INTOLERÂNCIA E O FASCISMO MODERNO

A sociedade brasileira, historicamente, sempre foi "racista". Isso é consequência da formação cultural de um povo que por longo tempo aceitava como dentro da normalidade o tratamento diferenciado a pessoas de cor negra e de classes sociais mais pobres. Por muito tempo também, essas imposições que estavam impregnadas nas relações sociais, eram tão marcantes, e impositivas, que aqueles que eram vítimas do preconceito pouco reagiam, como se aquela condição viesse determinada por algum desígnio divino.

E assim, imposto pelas relações de classes a partir de um regime escravocrata, sob a cumplicidade da igreja e a conformação dos fiéis, culturalmente fomos treinados a aceitar tais diferenças como normais. Os que ousassem se bater contra a estratificação social, que prevaleceu em nosso país desde os seus primórdios, eram de diversas formas, segundo sua época, considerados subversivos. A reação era violenta, porque a classe dominante temia as revoltas populares.

Do ponto de vista científico muitos avanços em pesquisas contribuíram para derrubar vários mitos, criados com o intuito de manter as pessoas acomodadas. O principal deles diz respeito à teoria de que o mundo é constituído por raças, sendo algumas delas consideradas superiores. Mais uma vez a religião foi utilizada para reafirmar essas crenças, possibilitando que inúmeras tragédias e genocídios fossem cometidos. As classes e “raças” inferiores não tinham o direito de se insurgirem, e se assim o fizessem, poderiam ser eliminadas sem que isso pudesse se constituir em crime.

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Mas a ciência desmontou essa farsa, tornada uma arma política para dominar povos mais fracos. Raças não existem. Os povos se diferenciam por seus ambientes, pela necessidade de adaptação a situações diversas e adversas, o que os tornam diferentes. Isso quer dizer que todos os seres humanos carregam em sua formação biológica as mesmas características impressas no DNA, com pequenas diferenças que nos distingue uns dos outros.

Por vivermos em ambientes diferentes e termos que nos adaptarmos a eles, criamos resistências que com o tempo definem o nosso perfil, as nossas características, a nossa cor. Também por isso cultivamos hábitos diferentes, seja na forma de nos relacionarmos ou na maneira como nos alimentamos. O próprio DNA vai definir nossas proximidades parentais, tornando aqueles de cada grupo mais ou menos parecidos, o que cientificamente passou a ser conhecido como diferenças, ou semelhanças étnicas. São etnias, e não raças, que se espalharam pelo mundo. Afinal, somos todos componentes de uma única raça. Somos humanos.

As nossas diferenças foram sempre objetos de manipulação, por quem buscava exercer o controle sobre regiões e territórios ricos e estrategicamente importantes. E isso não se deu somente em relação à dominação que o branco vai exercer, consequência de todo o processo de colonização europeia. Antes disso, mulheres, judeus e homossexuais, padeceram por toda a idade média, rejeitados pelos livros sagrados que traziam em seus parágrafos e parábolas toda uma carga negativa contra essas camadas sociais. Depois, com a expansão colonial e a descoberta de riquezas na África e na América, os negros e os índios entraram nessa lista.

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Mas a igreja permanece entre as instituições mais importantes para reforçar uma série de estigmas. E isso se reforçou, na medida em que a concentração das pessoas nas cidades aumentava, o número de templos se reproduzia aceleradamente e um verdadeiro poder intimidatório, armado, tornava as diversas igrejas, principalmente da religião cristã e muçulmana, verdadeiros instrumentos de dominação mediante o controle das consciências, mas também com um aparato militar poderoso a deflagrar guerras santas contra os que se opusessem a aceitar a influência e o poder de uma delas.

O maniqueísmo, trazido dos tempos antigos, pelos maniqueus, donde vigorou por volta do século III, determinava a existência permanente de um antagonismo, expresso em dois princípios irredutíveis, Deus e o bem absoluto, e o Diabo, ou o mal absoluto. Embora perseguidos por muitos séculos, os adeptos do maniqueísmo sincretizaram esses valores de praticamente todas as grandes religiões. Judaísmo, islamismo, cristianismo, e até o zoroastrismo que foi uma grande influência para elas, fundamentaram seus dogmas escorados nessa dicotomia. Construía-se a ideia de que o mal se manifesta não somente, mas principalmente entre aqueles que não aceitam aquela outra divindade religiosa. Isso serviu, ao longo dos séculos, para justificar comportamentos intolerantes e guerras que passavam a serem justificadas como santas, com objetivo de converter impuros e hereges. Daí se origina a velha expressão: “ficar entre a cruz e a espada”.

Inquisição - condenação das "bruxas
Por toda a idade média acusações contra os que não seguiam os credos da religião dominante serviam como pretexto para condenações de bruxarias, heresias, e outros argumentos que tinham o intuito de forçar a aceitação daqueles valores religiosos. Sempre em plena harmonia com os interesses da classe dominante naquela e em cada época. Guerras e execuções monstruosas expunham os comportamentos intolerantes, da não aceitação das diferenças, e, principalmente, da livre escolha de cada um sobre a maneira de ver o mundo e de se comportar perante ele. O que era "permitido estava nos limites do que era tolerado pelas crenças religiosas, do apego a valores culturais escritos em milenares livros sagrados, em condições históricas e sociais completamente distintas.

O dogma, e seus valores inamovíveis, que constitui a espinha dorsal dessas religiões, sempre carregou preconceitos de outras épocas, aceitas como princípios e valores que não podem ser contrariados. E as mulheres sempre foram as principais vítimas dessas intolerâncias, submetidas aos papéis mais inferiores e à condição de submissão diante do poder autoritário do homem. Isso muda, aos poucos, com o passar do tempo, na medida em que aqueles grupos sociais submetidos ao preconceito conquistam vitórias e obtém, mediante lutas de décadas, leis que lhes favoreçam. A partir daí, preconceitos e atos de intolerância ora escondem-se em comportamentos hipócritas, ora assumem-se de formas violentas e fatais.

Com o advento do capitalismo essas intolerâncias assumem novos contornos. A burguesia necessitava romper com os valores culturais que vigorou por toda a idade média, e mesmo antes. Para isso era preciso não somente agir com dureza contra a nobreza decadente, mas também contra a instituição religiosa que determinava regras que a impediam de consolidar o seu poder dominante, naquele momento em ascensão. Por isso a divisão que surgiu no cristianismo foi um fator importante para a consolidação de novos preceitos dogmáticos.

O Estado capitalista assumiu a condução não somente das questões econômicas, mas também dos novos valores baseados, pelo menos em teoria, na liberdade, igualdade e fraternidade. Teoricamente também, os credos religiosos deveriam se submeter a esse novo poder estatal e a uma carta constitucional que deveria ser laica, a fim de garantir os preceitos democráticos, que deveria atender a todos indistintamente.

Na prática as coisas não aconteceram assim. Por trás das leis permaneciam resquícios de hábitos que continuavam impregnados naqueles valores milenares, e se ampliavam com uma nova lógica que determinava as diferenças a partir da capacidade do indivíduo de acumular riqueza. Assim, além das mulheres, homossexuais, negros, índios, também os pobres passavam a se constituir em alvos de intolerância, por se deslocarem para aqueles lugares que oferecessem as melhores alternativas de sobrevivência.

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Muitas vezes estranhos àqueles ambientes essas pessoas tornavam-se malquistas por representarem ameaças aos indivíduos nascidos no lugar. Os estilos de vida diferentes, a cor da pele, e até mesmo as diferenças religiosas, passaram a definir uma nova lógica maniqueísta, que levou a guerras mundiais, com crimes coletivos aterradores. Mesmo quando as razões principais eram econômicas, as religiões estavam presentes, definindo comportamentos e acirrando ódios, quando em tese deveriam ser o oposto. Apesar das exceções, de quem seguiam preceitos éticos e de tolerância. Esses, se descobertos, seriam igualmente eliminados.

A luta em defesa da democracia prevaleceu em meio a muitas, sacrifícios e conquistas, principalmente como decorrência da derrota do nazismo e do fascismo, que em certo momento da história simbolizaram esse ambiente de acirramento das intolerâncias. Mas, sempre que uma determinada sociedade entrava em crise, sintomas crescentes de comportamentos intolerantes reacendiam e tornavam-se mais frequentes. E isso atingiu o auge, nesses novos tempos inaugurados com a chamada globalização e o crescente individualismo. Como em outras épocas a religião volta a se destacar, introduzindo novos valores, agora com a marca da “teologia da prosperidade”, por força do crescimento das igrejas neopentecostais.

Em algumas sociedades impera a contraposição aos “valores ocidentais”, e opõe cristãos x muçulmanos, muçulmanos x judeus, e mesmo no Ocidente, cristãos protestantes x católicos. Em todas elas, carregando dogmas seculares, se mantém e se acirram com as crises, a reação contra ateus, homossexuais e a preocupação em não dar às mulheres a plena condição de decidir sobre seu corpo. As mulheres sempre foram vítimas de preconceitos em todas as religiões.

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E isso explica toda a violência que se mantém até os dias de hoje. Ora, de onde são retirados todos os ódios que se dirigem aos mesmos alvos de tantos séculos? As piadas, os constrangimentos, as brutalidades, se disseminam com a mesma estupidez de sempre, mas vêm carregadas de novos estigmas. Novos na forma, antigos no conteúdo, pois seguem a mesma lógica. Mulheres continuam sendo agredidas, embora leis cada vez mais duras sejam criadas; homossexuais são atacados, espancados e assassinados, e tanto quanto as mulheres são impedidos de definir o que fazer de seus corpos, e de suas escolhas sexuais; pobres, são vistos como ameaças a jovens que se julgam no direito de determinar quem deve se dar bem nos vários lugares, cidades, estados ou nações; e os ateus, cujo crime é buscar ver  a vida na compreensão de que a explicação para tudo o que nos cerca encontra-se na própria biodiversidade em plena transformação desde milhões de anos e de que a crença em um deus é uma das mais perfeitas criações humanas.

Mas, então, o que explica o fato de mesmo após de tantas conquistas e leis tais preconceitos e atos intolerantes permanecerem? Em minha opinião a religião é um fator preponderante. Nesta nova etapa da vida humana, século XXI, potencializada pela mais perversa delas, a religião do capital. Essa, nos dias de hoje definem o fascismo moderno, acentuado nesses anos de globalização neoliberal, cujos alicerces se sustentam no individualismo, no egoísmo e na ganância.

O mesmo capital que se torna a causa que motiva guerras religiosas, seja na disputa por territórios sagrados, de enorme riqueza mineral, ou pela ferrenha disputa pelos dízimos de milhões de ingênuos seguidores de pretensos apóstolos divinos. A religião do capital impregnou a sociedade e fez aumentar a intolerância religiosa, porque quanto mais a disputa pelo dinheiro seja o fator primordial, mas se tem a necessidade de defendê-lo e ampliar constantemente a possibilidade de maiores ganhos.

Em contrapartida, mas também marchando lado a lado com os interesses religiosos seculares, a disputa pelo poder, a política, e a crescente radicalidade de discursos xenófobos (de aversão ao estrangeiro), moralistas e preconceituosos. Na disputa pelo poder, o grande Poder, as grandes corporações midiáticas, entram com sua parcela considerável de culpa, ao posicionar-se ao lado de partidos e de políticos que assumem comportamentos fundados na intolerância. E a razão clara disso sempre foi conter a ascensão de personagens populares que não estivessem diretamente vinculados às elites secularmente dominantes.

Isso se expressou não somente nos períodos eleitorais, mas na aversão às políticas de inclusão social que buscavam minimamente resgatar dívidas causadas por esses valores culturais dominantes e preconceituosos. As políticas de cotas tornaram-se alvos de articulistas conservadores e políticos reacionários. Os velhos sicofantas religiosos arrepiaram-se e afiaram seus discursos, tentando impor a todos suas velhas crenças com base na meritocracia.

homofobia
Com isso a radicalidade do discurso preconceituoso e intolerante construiu nos templos, nas redações, nas escolas, nas ruas estressantes e perigosas para esses segmentos, os novos fascistas, remanescentes de práticas seculares, tão estúpidos, hipócritas e criminosos quanto todas as demais épocas da história. E, muito embora a época moderna traduza-se pelos avanços de leis democráticas, a dependência da decisão de uma justiça refém também de valores conservadores e moralistas, e presa aos interesses da elite dominante, reforçava a velha sensação de impunidade que mantém as cadeias abertas apenas para os pobres.

Ainda no âmbito da justiça, esses fascistas modernos se municiaram não somente de velhas crenças, mas também na impunidade que o dinheiro proporciona, nas brechas da lei e no que nos mostra o censo carcerário, onde 70% não completou o primeiro grau e cerca de 10% é analfabeto. Ou seja, se a cadeia é feita para o pobre, o que impede neo-fascistas e neo-nazistas oriundos de famílias ricas, de agirem contra o que eles consideram escória?

O fascismo moderno não aparece espontaneamente na cabeça de jovens. É fruto de teorias preconceituosas e de instrumentos sociais que criam e reforçam valores que se baseiam na intolerância, na não aceitação das diferenças, e na liberdade de as pessoas definirem suas opções sexuais. Como na atitude bisonha e estúpida de um deputado pastor que pretendia criar medidas que desfizesse a condição de ser dos homossexuais. Como se uma lei pudesse conter as escolhas sexuais de qualquer pessoa. A não ser numa sociedade totalitária, controlada por um governo fascista.

Tudo isso sempre fez parte de dogmas que permanecem sendo instigados de forma instrumental em templos, tabernáculos, igrejas e mesquitas de todo o mundo, muito embora não se constitua em regra geral nem tenha relação com a fé individual, de cada pessoa, com sua legítima crença e liberdade de acreditar no que lhe convier. É algo construído pela religião, e os que controlam as igrejas, e por esses meios se apropriam da fé do povo.

São teorias também que fundamentam programas partidários que representam setores econômicos dominantes e a classe média alta, branca, mas que pelo reforço ideológico religioso dissemina-se indistintamente por todas as demais classes sociais, apontam para perigosos caminhos, se refletem de forma mais agressivas em alguns países, que se expandiram na medida do crescimento da crise econômica mundial e que tende a se ampliar com a pandemia da Covid19, juntamente com o medo e insegurança que afetam as pessoas.

A consolidação de direitos, e de medidas legais contra o preconceito é bem recente no Brasil. Data da elaboração da Constituição de 1988, juntamente com a criação de instrumentos de punição, como o Ministério Público, instituições que surgiram e se fortaleceram, algumas sem vínculos diretos com o Estado, mas também com a criação de Ministérios, Secretarias e delegacias, voltadas para a defesa dos direitos humanos e das mulheres. Mas essas estruturas e leis não estão sobrevivendo à nova onda conservadora, moralista e perversa que se instalou em nosso país desde a última eleição, reabrindo feridas antigas e destilando ódios e preconceitos, em nome da “família cristã” e de um deus perverso, elitista, criado por pessoas pérfidas e de mau-caráter. A marca desse fascismo dos tempos atuais está se impregnando mais fortemente na sociedade, e deixarão feridas que irão demorar a cicatrizar.

Como na vida nada é eterno, esse será mais um período que será superado, muito embora com sacrifícios, lutas de classes e processos intensos de confrontação seja política ou por meio de violência revolucionária. Pois é assim que se tem escrito a história da humanidade e as transformações sociais. Isso é inevitável.

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(*) Esse artigo é uma adaptação do original publicado neste Blog em 2012:

https://gramaticadomundo.blogspot.com/2012/03/as-origens-da-intolerancia-e-o-fascismo.html

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