sábado, 18 de agosto de 2012

TODOS NÓS SOMOS AMERICANOS


Já de há muito tempo tento escrever algo a respeito da apropriação do termo “americano” pelos Estados Unidos da América. A oportunidade surgiu na leitura de um texto de Michael Walzer,  “Que significa ser americano?”, quando o autor propõe uma reflexão sobre não somente o sentido dessa expressão, como do próprio caráter da identidade do cidadão nascido naquele país, bem como de sua relação com o caráter da nação, ou do nacionalismo.
Mas a meu ver, além de uma opinião muito focada das concepões liberais republicanas, afinadas com os setores conservadores, ele peca ao omitir um elemento que é crucial para entendermos esse processo de afirmação dos EUA como um estado imperialista, e da apropriação do sentido de ser “americano”. Refiro-me à questão religiosa, cujos elementos foram norteadores do manifesto que impôs à governança estadunidense os caminhos que passaram a trilhar a partir do século XIX, e a enxergar o restante da América como submissa aos seus interesses imperais.
Podemos, e devemos sempre, encontrar as respostas para as origens dessa apropriação com uma rápida digressão histórica. Tenho repetido que os Estados Unidos nasceu como um país sem nome, e essa “deformação” deveu-se à escolha das lideranças de suas colônias, quando do processo de luta para libertar-se das explorações impostas pelo império britânico e que se tornou a luta pela independência.
Na verdade houve uma união de treze colônias, que se juntaram para lutar contra os ingleses, a partir da resistência em aceitar os exorbitantes impostos cobrados pela produção de chá. Ao final de uma intensa e sangrenta luta, a declaração de independência não firmou, como seria, por exemplo, na França, um Estado-Nação com sentido federado e unificado.
A declaração de independência manteve a autonomia pré-existente, considerando cada uma das treze colônias com plenas liberdades em aspectos que visavam reforçar o sentimento de que elas possuíam características identitárias próprias, refletidas nas origens tanto religiosas como étnicas (na falta de outro nome). Ou seja, suas histórias de vidas mantinham-se vinculadas a outras nações, de onde originalmente vieram.
Criou-se assim os Estados Unidos, da América, continente que abrange dezenas de outras nações e nacionalidades. Cada um dos Estados (ex-colônias) manteve sua autonomia em questões que dizem respeito a valores que se encontram na base de suas formações, garantindo na constituição o direito ao Estado - no sentido mais geral -; a formulação das fronteiras, a defesa de seus limites territoriais e a formação de um poder militar que os defendesse de agressões externas. Isso até a eclosão da guerra civil, que só veio reforçar esse paradoxo, e rompe com um sentido de nação.
A guerra de secessão será um delimitador dessa situação. Após esse conflito os Estados Unidos aproximam-se da formação tradicional de um estado nacional moderno, tal qual construído pela burguesia a partir da decadência do feudalismo e do fracasso do absolutismo.
Walzer analisa essa formação a partir de suas origens, e, abordando as características de um país construído a partir de fortes movimentos migratórios, ressalta a dificuldade, partindo dessa formação, de os Estados Unidos se aceitarem enquanto Nação.
Mas o “ser” americano, a meu ver, se explica pela adoção de um comportamento agressivo, já de um Estado Nação constituído, embora sem nome, cuja característica assumida aproxima-se da antiga metrópole contra a qual séculos antes ele se batera e conseguira libertar-se.
Pintura (cerca 1872) de John Gast, 
chamada Progresso Americano,  é uma 
representação do  Destino Manifesto
(fonte: Wikipédia).
Dois movimentos para isso foram fundamentais. Ideológicamente isso se concretizou mais adiante, no final do século XIX. Além das teorias geopolíticas, necessárias ao controle do domínio dos mares, e consequentemente de toda a América, um mecanismo religioso consolida essa postura imperialista. O chamado “Destino Manifesto”, pelo qual entendia-se que os Estados Unidos teria recebido por influência divina o poder de garantir a liberdade e segurança de toda a América.
Por outro lado as estratégias geopolíticas de militares-teóricos, como Alfred Mahan e Nicholas Spykman, que propunham o controle por parte dos Estados Unidos dos dois oceanos, o Atlântico e o Pacífico, e a necessidade da influência militar sobre toda a América. Rechaçando toda e qualquer ingerência europeia, ou de qualquer outro continente, sobre o território americano. A guerra contra a Espanha, no final do século XIX, e o controle assumido após esse conflito sobre algumas colônias, como Cuba, foi o início dessa nova etapa de um país que começava a constituir-se em um novo império.
A palavra de ordem, “A América para os americanos”, veio juntar-se à concepções de uma política intervencionista agressiva, consolidada pela chamada “política do porrete”, ou o “big stick”, ameaçando todos aqueles que ousassem invadir o solo americano.
Impõe-se assim, pela força de um país que se fortalece e se unifica politicamente a partir da guerra de secessão, o domínio sobre antigas colônias britânicas, espanholas e portuguesas. Senão no sentido tradicional, mas agindo de outra forma, estabelecendo em cada uma delas governos submissos e/ou subalternos.
A expressão Estados Unidos da América se consolidou, assim, a partir do final do século XIX, não somente como dando sentido a um Estado Nação de característica diferente, porque manteve-se a autonomia de todos os seus novos Estados-províncias, mas impondo-se sobre os demais no continente, assenhoriando-se do termo “América” e “americano”.
A difusão desse termo, a ponto de tornar-se uma expressão definitiva da identificação de quem é nascido nos Estados Unidos deveu-se ao poder que essa potência passou a exercer por todo o continente americano. Principalmente devido à submissão secular das elites tradicionais dos países coloniais, que aceitaram essa influência e a apropriação do termo americano e se propuseram a difundi-lo em todo o seu aparato midiático.
De tal forma que essa expressão passou a ser comumente utilizada, inclusive em livros didáticos, embora nitidamente farsesca e historicamente uma vergonhosa mentira, aceita inclusive por intelectuais, dentre os quais muitos historiadores.
A apropriação do termo “americano”, por um país que surge sem nome, e a aceitação submissa por parte das colônias políticas e culturais, demonstra o enorme poder, que, a partir do final do século XIX, o império estadunidense passa a impor para toda a América, e daqui para o mundo a partir do início do século XX.
Considerar o cidadão nascido nos Estados Unidos, como americano, é tanto uma verdade como dizer que os que nascem no Brasil, no Uruguai, no Chile e em tantos outros países desse imenso continente chamado América, também o são. Assim como são europeus os que nascem na França, na Alemanha, Irlanda etc... etc... etc...
Mas porque insistir em falar de americano aos que são estadunidenses? É o velho hábito, que considero uma cultura política, mantido pelo poder da coerção, da subserviência e da aceitação do poder imperial. E, principalmente, porque todo o aparato midiático insiste em repetir cotidianamente, como a reforçar a necessidade de nos considerarmos inferiores, posto que o poder do império se impõe por toda a América. Isso, pode-se também dizer, tornou-se uma tradição pelo comportamento de elites assumidamente provincianas e submissas.
Resta-nos apostar que as futuras gerações conseguirão romper com esse forte domínio de uma cultura política que já se aproxima de duzentos anos. É salutar perceber que nos novos livros didáticos brasileiros gradativamente o termo estadunidense já começa a substituir a palavra americano, no contexto aqui analisado.
Particularmente nada tenho contra os cidadãos nascidos nos Estados Unidos. As questões, de ordem geopolítica que aqui analiso dizem respeito a políticas de dominação secularmente impostas sobre os demais países americanos, desde o México até o Uruguai, por uma potência imperialista. Aliás, diga-se ainda que alguns, para fugir do uso do termo americano, o substitui por norte-americano, reduzindo o alcance do erro, mas transformando Canadá e México em duas províncias dos Estados Unidos.
Para que a História seja justa com aqueles que tentaram uma unificação americana, devem-se resgatar os ideais de Simón Bolívar, responsável pelas lutas de independências em vários países, dentre os quais, Bolívia, Equador, Venezuea, Panamá, Peru e Colômbia. É possível que os ideais de integração bolivariano para a América Latina tenham preocupado o emergente poder imperial dos Estados Unidos, se antecipando a uma provável luta pela união dos estados americanos.
Importa ao final enfatizar a compreensão de que os Estados Unidos não é a América. E a América não é os Estados Unidos. O continente americano tem nos últimos anos se deparado com situações que nos apontam para um resgate cada vez maior das identidades dos povos que habitam cada um de seus países. Mas deverá também consolidar cada vez mais o sentimento de que a América não é o quintal de um grande império, mas um continente a reforçar cada vez mais a sua identidade.
Afinal, todos nós somos americanos!

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