Já de há muito tempo tento escrever
algo a respeito da apropriação do termo “americano” pelos Estados Unidos da
América. A oportunidade surgiu na leitura de um texto de Michael Walzer, “Que
significa ser americano?”, quando o autor propõe uma reflexão sobre não
somente o sentido dessa expressão, como do próprio caráter da identidade do
cidadão nascido naquele país, bem como de sua relação com o caráter da nação,
ou do nacionalismo.
Mas a meu ver, além de uma opinião
muito focada das concepões liberais republicanas, afinadas com os setores
conservadores, ele peca ao omitir um elemento que é crucial para entendermos
esse processo de afirmação dos EUA como um estado imperialista, e da
apropriação do sentido de ser “americano”. Refiro-me à questão religiosa, cujos
elementos foram norteadores do manifesto que impôs à governança estadunidense
os caminhos que passaram a trilhar a partir do século XIX, e a enxergar o
restante da América como submissa aos seus interesses imperais.
Podemos, e devemos sempre,
encontrar as respostas para as origens dessa apropriação com uma rápida
digressão histórica. Tenho repetido que os Estados Unidos nasceu como um país
sem nome, e essa “deformação” deveu-se à escolha das lideranças de suas
colônias, quando do processo de luta para libertar-se das explorações impostas
pelo império britânico e que se tornou a luta pela independência.
Na verdade houve uma união de treze
colônias, que se juntaram para lutar contra os ingleses, a partir da resistência
em aceitar os exorbitantes impostos cobrados pela produção de chá. Ao final de
uma intensa e sangrenta luta, a declaração de independência não firmou, como
seria, por exemplo, na França, um Estado-Nação com sentido federado e unificado.
A declaração de independência
manteve a autonomia pré-existente, considerando cada uma das treze colônias com
plenas liberdades em aspectos que visavam reforçar o sentimento de que elas
possuíam características identitárias próprias, refletidas nas origens tanto
religiosas como étnicas (na falta de outro nome). Ou seja, suas histórias de
vidas mantinham-se vinculadas a outras nações, de onde originalmente vieram.
Criou-se assim os Estados Unidos,
da América, continente que abrange dezenas de outras nações e nacionalidades.
Cada um dos Estados (ex-colônias) manteve sua autonomia em questões que dizem
respeito a valores que se encontram na base de suas formações, garantindo na
constituição o direito ao Estado - no sentido mais geral -; a formulação das
fronteiras, a defesa de seus limites territoriais e a formação de um poder
militar que os defendesse de agressões externas. Isso até a eclosão da guerra
civil, que só veio reforçar esse paradoxo, e rompe com um sentido de nação.
A guerra de secessão será um
delimitador dessa situação. Após esse conflito os Estados Unidos aproximam-se
da formação tradicional de um estado nacional moderno, tal qual construído pela
burguesia a partir da decadência do feudalismo e do fracasso do absolutismo.
Walzer analisa essa formação a
partir de suas origens, e, abordando as características de um país construído a
partir de fortes movimentos migratórios, ressalta a dificuldade, partindo dessa
formação, de os Estados Unidos se aceitarem enquanto Nação.
Mas o “ser” americano, a meu ver,
se explica pela adoção de um comportamento agressivo, já de um Estado Nação
constituído, embora sem nome, cuja característica assumida aproxima-se da
antiga metrópole contra a qual séculos antes ele se batera e conseguira
libertar-se.
Pintura (cerca 1872) de John Gast,
chamada Progresso
Americano, é uma
representação do Destino Manifesto
(fonte: Wikipédia).
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Dois movimentos para isso foram
fundamentais. Ideológicamente isso se concretizou mais adiante, no final do
século XIX. Além das teorias geopolíticas, necessárias ao controle do domínio
dos mares, e consequentemente de toda a América, um mecanismo religioso
consolida essa postura imperialista. O chamado “Destino Manifesto”, pelo qual
entendia-se que os Estados Unidos teria recebido por influência divina o poder
de garantir a liberdade e segurança de toda a América.
Por outro lado as estratégias
geopolíticas de militares-teóricos, como Alfred Mahan e Nicholas Spykman, que
propunham o controle por parte dos Estados Unidos dos dois oceanos, o Atlântico
e o Pacífico, e a necessidade da influência militar sobre toda a América.
Rechaçando toda e qualquer ingerência europeia, ou de qualquer outro
continente, sobre o território americano. A guerra contra a Espanha, no final do século XIX, e o controle assumido após esse conflito sobre algumas colônias,
como Cuba, foi o início dessa nova etapa de um país que começava a
constituir-se em um novo império.
A palavra de ordem, “A América para
os americanos”, veio juntar-se à concepções de uma política intervencionista
agressiva, consolidada pela chamada “política do porrete”, ou o “big stick”,
ameaçando todos aqueles que ousassem invadir o solo americano.
Impõe-se assim, pela força de um
país que se fortalece e se unifica politicamente a partir da guerra de
secessão, o domínio sobre antigas colônias britânicas, espanholas e
portuguesas. Senão no sentido tradicional, mas agindo de outra forma,
estabelecendo em cada uma delas governos submissos e/ou subalternos.
A expressão Estados Unidos da
América se consolidou, assim, a partir do final do século XIX, não somente como
dando sentido a um Estado Nação de característica diferente, porque manteve-se
a autonomia de todos os seus novos Estados-províncias, mas impondo-se sobre os
demais no continente, assenhoriando-se do termo “América” e “americano”.
A difusão desse termo, a ponto de
tornar-se uma expressão definitiva da identificação de quem é nascido nos Estados Unidos deveu-se
ao poder que essa potência passou a exercer por todo o continente americano.
Principalmente devido à submissão secular das elites tradicionais dos países
coloniais, que aceitaram essa influência e a apropriação do termo americano e se
propuseram a difundi-lo em todo o seu aparato midiático.
De tal forma que essa expressão
passou a ser comumente utilizada, inclusive em livros didáticos, embora
nitidamente farsesca e historicamente uma vergonhosa mentira, aceita inclusive
por intelectuais, dentre os quais muitos historiadores.
A apropriação do termo “americano”,
por um país que surge sem nome, e a aceitação submissa por parte das colônias políticas e
culturais, demonstra o enorme poder, que, a partir do final do século XIX, o
império estadunidense passa a impor para toda a América, e daqui para o mundo a
partir do início do século XX.
Considerar o cidadão nascido nos
Estados Unidos, como americano, é tanto uma verdade como dizer que os que
nascem no Brasil, no Uruguai, no Chile e em tantos outros países desse imenso
continente chamado América, também o são. Assim como são europeus os que nascem
na França, na Alemanha, Irlanda etc... etc... etc...
Mas porque insistir em falar de
americano aos que são estadunidenses? É o velho hábito, que considero uma
cultura política, mantido pelo poder da coerção, da subserviência e da
aceitação do poder imperial. E, principalmente, porque todo o aparato midiático
insiste em repetir cotidianamente, como a reforçar a necessidade de nos considerarmos
inferiores, posto que o poder do império se impõe por toda a América. Isso,
pode-se também dizer, tornou-se uma tradição pelo comportamento de elites
assumidamente provincianas e submissas.
Resta-nos apostar que as futuras
gerações conseguirão romper com esse forte domínio de uma cultura política que
já se aproxima de duzentos anos. É salutar perceber que nos novos livros
didáticos brasileiros gradativamente o termo estadunidense já começa a
substituir a palavra americano, no contexto aqui analisado.
Particularmente nada tenho contra
os cidadãos nascidos nos Estados Unidos. As questões, de ordem geopolítica que
aqui analiso dizem respeito a políticas de dominação secularmente impostas
sobre os demais países americanos, desde o México até o Uruguai, por uma
potência imperialista. Aliás, diga-se ainda que alguns, para fugir do uso do
termo americano, o substitui por norte-americano, reduzindo o alcance do erro,
mas transformando Canadá e México em duas províncias dos Estados Unidos.
Para que a História seja justa com
aqueles que tentaram uma unificação americana, devem-se resgatar os ideais de
Simón Bolívar, responsável pelas lutas de independências em vários países,
dentre os quais, Bolívia, Equador, Venezuea, Panamá, Peru e Colômbia. É
possível que os ideais de integração bolivariano para a América Latina tenham
preocupado o emergente poder imperial dos Estados Unidos, se antecipando a uma
provável luta pela união dos estados americanos.
Importa ao final enfatizar a
compreensão de que os Estados Unidos não é a América. E a América não é os
Estados Unidos. O continente americano tem nos últimos anos se deparado com situações
que nos apontam para um resgate cada vez maior das identidades dos povos que
habitam cada um de seus países. Mas deverá também consolidar cada vez mais o
sentimento de que a América não é o quintal de um grande império, mas um
continente a reforçar cada vez mais a sua identidade.
Afinal, todos nós somos americanos!
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