sábado, 15 de agosto de 2020

O DESPERTAR DAS BESTAS (3ª PARTE)

O-despertar-da-besta-1969- José Mogica Marins

Em dezembro de 2019 escrevi neste blog o segundo artigo, com o mesmo título acima, em que analiso as transformações que aconteceram no Brasil na segunda década deste século. Uma análise que venho fazendo já há muito tempo, em outros textos que podem ser aferidos numa simples pesquisa sobre o que já publiquei relacionado à política brasileira e ao “cavalo de pau” que aconteceu na geopolítica mundial nesse período. Enfim, essa loucura toda não estava restrita somente ao Brasil.

Mas 2020 nos traria muito mais surpresas. Despertadas, as bestas infernizaram, literalmente, a política brasileira. Jamais se viu em nossa história política atos tão tacanhos, comportamentos impressionantemente estúpidos e uso de expressões chulas, feitas e ditas por um dirigente político alçado ao maior cargo de nossa república. No entanto, nos espantaríamos mais saber que existia, e existe, dentre os mais de 200 milhões de habitantes desse país, um quantitativo inacreditável de pessoas que não somente apoiam esses comportamentos, como garantem a sustentação de um governo absolutamente irresponsável. Reforçam, assim, atitudes que facilmente nos permitem avaliar os traços de caráter dos que atualmente comandam o estado brasileiro.

Ora, se entendemos ser fácil definir os traços de caráter dos que estão à frente do Poder, achincalhando a nossa frágil república, como é possível explicar tantos seguidores a lhes dar apoio e a compartilhar, por meio das redes sociais, atitudes que podem ser consideradas desprezíveis?

Nos artigos anteriores analiso as conjunturas políticas em dois momentos. Do golpe institucional de 2016, contra a presidenta Dilma Roussef, que levou ao poder o seu vice Michel Temer, político de perfil oportunista, que ascendeu a esse cargo como resultado do jogo político brasileiro tradicionalmente manchado por um presidencialismo de coalizão corrompido, no qual a esquerda sucumbiu estimulada pelo pragmatismo político;[1] ao resultado inesperado, mas consequência de uma série de situações criadas por erros dos próprios governos de esquerda, mas principalmente pela guerra híbrida que se desenrolou também aqui no Brasil, impulsionado de maneira decisiva pela grande mídia, que gerou como resultado um personagem do baixo clero político do Congresso Nacional, absolutamente inexpressivo em suas duas décadas de “atuação” parlamentar e transformou a nossa política em um mosaico estilo franksteniano. Ou pelo menos deixou bem nítido que esse problema de caráter pode não ser exceção, e possibilitou o despertar das bestas. O significado dessa expressão eu explico no segundo artigo.[2]

No entanto, mais do que um comportamento que identifica as características do perfil de indivíduos reacionários, sem caráter e absolutamente desprovidos de qualquer empatia, o que se desenvolviam eram mecanismos construídos por uma estratégia planejada, onde a estupidez e a disseminação do ódio percorriam por caminhos psicossociais, e encontravam na outra ponta uma quantidade grande de pessoas aptas a assimilarem todos os engendramentos perversos de ações e atos que adequaram ao século XXI práticas utilizadas em outros momentos da história que culminaram em genocídios, ditaduras, fratricídios, racismo, homofobia, xenofobia, feminicídio e outras perversidades. Em meio a tudo isso, o uso da fé como componente forte a manipular e incorporar o ódio por meio de valores tradicionais milenares, transpostos de uma era para outra anacronicamente, a repetir dogmas que em outros tempos possibilitaram perseguições, julgamentos morais, inquisição e assassinatos impiedosos por questões de escolhas ideológicas.

É preciso, no entanto, que saibamos compreender a dimensão exata de porque houve uma mudança tão radical no comportamento da população, que em menos de uma década passa a assumir escolhas e posturas tão diferentes, indo de um extremo a outro no espectro político brasileiro. E, também como se deu a reação a esse comportamento por parte dos segmentos de esquerda e dos setores mais intelectualizados da sociedade, tanto nas universidades, quanto na área cultural. Ao mesmo tempo, a necessária compreensão de como a conjuntura se altera rapidamente, não somente como consequência de ações políticas, mas por outro fator que passa a afetar todo o mundo, e completa uma realidade caótica que já se delineara com essas mudanças políticas. Mais do que o despertar das bestas, o que se viu foi um verdadeiro cenário apocalíptico, pior do que a humanidade já vira na Idade Média, com a peste bubônica, e no começo do século XX, com o vírus influenza, gerador da “gripe espanhola”.

A Covid19, gerada por uma mutação de um velho conhecido, batizado agora de Sars Cov-2, trouxe desorganização sistêmica, confusão pandêmica, recessão econômica com um freio em boa parte das cadeias produtivas e ajudou a disseminar um caos político que, em parte já estava em curso, por meio da estratégia que transformou a política brasileira. Embora não atingindo somente o Brasil, a pandemia gerou situações caóticas principalmente naqueles países cujos governantes assumiram o poder apostando no caos, desconstruindo a política e desmoralizando a democracia.

Sobre isso já fiz algumas abordagens e escrevi artigos tanto nesse blog quanto em revistas eletrônicas. Quero me concentrar nos resultados gerados pelo caos social e econômico, e o revés político que tem particularidades que merecem ser devidamente estudadas. A estratégia do caos, nítida no comportamento do governo Jair Bolsonaro é evidente, apesar de uma estabilizada momentaneamente em suas falas desconexas e aparentemente estúpidas, principalmente desde que o Supremo Tribunal Federal abriu investigação contra grupos de extrema-direita, fascistas, que fizeram da mentira uma arma e das redes sociais mísseis a mirar instituições e adversários políticos. Assim como devido à crescente investigação sobre o mal feitos de seus filhos, até a prisão de um velho aliado, e verdadeiro capataz, administrador de um séquito de assessores fantasmas de toda sua família. Até o “cercadinho” dos horrores, em frente à residência oficial, se desfez, alterando o comportamento que até então era de bravatas, bazófias e estultices, devidamente compartilhadas.

Em meio a tudo isso, uma indiferença fria e desumana aos milhares de brasileiros e brasileiras mortos vítima de uma doença para a qual ainda não existe vacina, e o governo a trata de maneira insignificante, com desdém impressionante. Escorado num auxílio econômico emergencial, que tem chegado a dezenas de milhões de pessoas, em muitos casos, com um valor bem acima do que era pago pelo Bolsa Família, embora abaixo das necessidades das famílias de pessoas pobres e desempregadas, o que se viu foi uma inversão na curva de impopularidade que o ameaçava nos últimos meses.

Não era uma mudança impossível de se prever. É sabido que todo governante se mantém com popularidade mediante ações que atendam a situações extremas do povo em condições adversas. Esse é um aspecto, que teve também seus momentos de glórias nos governos de esquerda, quando da investigação do “mensalão” e uma situação econômica que favorecia o governo, reelegeu o presidente Lula e impulsionou a candidatura de Dilma Rousseff, até uma virada como consequência dos descontroles fiscais e equívocos cometidos nas políticas de desonerações para beneficiar setores importantes da economia brasileira. Como sempre, principalmente em sociedades marcadas por desigualdades vergonhosas, a dependência do Estado faz com que o sabor das escolhas políticas, principalmente entre os mais pobres, esteja condicionado às circunstâncias das políticas econômicas.

A crise econômica potencializada pelo Covid19, a confusão política protagonizada pela família Bolsonaro et caterva, o medo do desemprego, as fake-news a gerar um vôo cego em boa parte da população em relação à essa doença, a insensatez, insensibilidade e perversões de todas as formas, espalharam na sociedade um efeito dispersivo, um comportamento aleatório, que evidentemente, só poderia beneficiar os que viam, e veem, no caos, o caminho para se imporem no comando político do estado brasileiro.

Enquanto isso o comportamento dos setores de esquerda, mesmo das camadas mais intelectualizadas, e dos setores culturais, embora mantivessem o espírito de combatividade que lhes é peculiar, pecou por agir seguindo a onda aleatória e sucumbindo à estratégia do caos. Adotou os mecanismos de enfrentamento que eram utilizados pelo bolsonarismo, transformando a política em um nonsense, caindo na armadilha de ir para um enfrentamento, nitidamente numa postura defensiva, tendo como base a ironia, a negação dos erros cometidos e a indiferença em relação ao poder religioso evangélico, tradicional e reacionário, que se escondia por trás de líderes-pastores travestidos de políticos, camaleões, que se infiltraram nos governos anteriores, mas que mantinham um projeto de poder entrelaçado com suas pregações nos púlpitos.

A esquerda abdicou do debate ideológico e transformou as redes sociais em ambientes tóxicos, tal qual a direita já vinha fazendo há anos. A ponto de se disseminar um outro efeito, causado pelas lutas identitárias, de uma já chamada “cultura do cancelamento”, pelo qual se atinge quem porventura cometer algum deslize no trato das questões relacionadas à essas lutas, mesmo que sendo progressista e de esquerda. Até mesmo setores do movimento anarquista, libertário, também alinhado com as lutas populares, passaram a tecer críticas ao movimento antifascista, em meio a denúncias de dossiês sendo feito pelo Ministério da Justiça contra esses movimentos, para serem repassados à Agência Brasileira de Inteligência, e até mesmo sendo entregues a autoridades estadunidenses. Ou seja, para onde é possível a população olhar e enxergar uma luz no fim do túnel, que não seja de uma locomotiva vindo em sua direção?

Isso explica, em parte, o inesperado resultado da pesquisa Datafolha, publicada no dia 13.08, dando indicativas de um crescimento da aceitação do governo Bolsonaro, em praticamente quase todos os segmentos sociais. Em alguns desses segmentos, principalmente entre os mais pobres, com pico elevado de aumento da popularidade, de um presidente que se caracteriza por banalizar a política e fazer do ridículo o elemento condutor de seus comportamentos.

Não há acasos na história. Para tudo existem explicações e causas que nos ensinam como se dão os processos de transformações sociais, as crises econômicas e o caos político, que sempre leva estados a situações de enfrentamentos entre classes sociais, processos revolucionários ou ascensão de governos autoritários e de viés fascista. Como numa guerra, se não houver um enfrentamento organizado, com uma estratégia adequada a fazer do combate ao inimigo resultados promissores e vitórias parciais e definitivas, também na política jamais se obterá sucesso se não houver planejamento nas ações, com objetivos bem delineados e aglutinação de forças que se sobreponham ao poder adversário e imponham sucessivas derrotas. Nenhuma vitória será possível se não houver essa conjunção de fatores, e, principalmente, a adoção de atitudes, ações e proposições coerentes, que consigam levar à população uma confiança capaz de reverter os caminhos pelos quais ela está seguindo. Caso contrário, o adversário, mesmo apostando no caos, na ignorância e na estupidez, se sagrará vitorioso nesse embate de forças para conquistar apoio político e desencadear um processo de virada no espectro político no país.

Charge - Para além dos cérebros

Não me parece que, neste momento, a esquerda esteja conseguindo fazer isso. Pois não consegue se unificar, não possui uma estratégia adequada, os vícios da hegemonia na disputa do poder se mantêm como freio à qualquer aliança possível, e a ilusão eleitoral como saída dessa situação. É evidente, que em se tratando de uma democracia capitalista, o processo eleitoral é determinante. Mas ele não pode ser visto como um instrumento de transformação, senão como consequência das transformações que possam ser feitas a partir da organização e conscientização das massas populares e das camadas trabalhadoras. É o contrário do que está sendo feito, quando se busca obsessivamente por mandatos que possam influenciar a forma da população se comportar politicamente.

Infelizmente, as organizações sociais e entidades de trabalhadores transformaram-se em clubes de simpatizantes de causas, que embora justas, não agregam senão aqueles que já são militantes e/ou os que possuem uma postura crítica e de esquerda. Isso não é suficiente. As periferias das grandes cidades, e as pequenas cidades, estão sendo tomadas por forças conservadoras, neopentecostais, que destroem a capacidade crítica das pessoas, e as aprisionam em valores que são geradores de ódios e intolerância.

É claro que essa indiferença das pessoas em relação à importância de suas participações em sindicatos e associações, não se deve somente a erros de estratégia da esquerda. Mas também foi algo construído ao longo de tempo, com medidas cerceadoras contra essas entidades, mudanças que implicaram em reduzir suas finanças e leis que pulverizaram o sindicalismo, de forma a possibilitar sua divisão. Embora essa fratura tenha sido aceita por muitos da própria esquerda, como desejada, a fim de cada partido poder possuir uma central sindical como instrumento de suas lutas.

Restou à juventude manter sua unificação em torno de suas entidades nacionais, nos âmbitos secundaristas, universitário e pós-graduandos. Malgrado as diferenças que existem ideologicamente em seus meios, o que não é um problema em si, desde que as divergências não ajudem mais o inimigo do que à suas causas. Porque é a essa juventude que recairá o peso maior tanto das consequências dessas políticas nefastas que estão destruindo o estado brasileiro, e a educação como principal alvo, como também porque terá que sair dela, da juventude, a força que poderá fazer com que o futuro do nosso país não seja na direção de um estado fascista, guiado por uma sharia cristã neopentecostal a se contrapor a uma constituição laica e progressista.

Evidente que a esquerda brasileira não é um monolítico. Como também a direita não é. Mas a coesão quase sempre se dá quando uma conjunção de interesses, que mirem em objetivos coletivos e em prol da sociedade, se sobrepõe à posturas hegemônicas, individualistas, com preocupações focadas meramente na ampliação de suas organizações e que se imponha sobre vaidades de líderes que se cegam, e mantem a cegueira como uma doença transmissível para os seus seguidores, que passam a agir truculentamente contra os que não sigam as suas concepções políticas e interesses eleitorais.

Não pretendo carregar aqui o baú da verdade absoluta. São apenas visões, críticas, que acumulei ao longo desses anos, expressos em artigos críticos já publicados aqui neste blog, e que podem ser revistos, claro atentando-se para as datas em que foram escritos. Mas o que desejo é, mais do que querer ser lido compulsivamente, o que do alto de minha pequena modéstia sei ser impossível, é desabafar em relação à uma conjuntura que me aborrece, me intranquiliza e me deixa frustrado depois de quatro décadas de lutas, imaginando poder ver na minha velhice uma parte do nosso caminho pavimentado na direção de uma sociedade menos desigual, tolerante, crítica, avessa ao autoritarismo, defensora do livre debate e da aceitação das ideias divergentes e das concepções e posturas diferentes, como uma condição de ser humano.

Como já escrevi em outros momentos, o futuro não existe. Ele é uma construção do presente, que pode dar certo ou errado a depender dos ensinamentos adquiridos pelo passado. No momento, infelizmente, o futuro é sombrio, tendo como referência as condições em que estamos vivendo. Mas é evidente que é possível mudar, as mudanças estão em nossas mãos. No entanto, isso só será possível se aquelas pessoas que assim desejam, compreenderem que é necessário alterar o curso da história, e que isso só será capaz de acontecer, se mudarem também seus comportamentos, adotarem estratégias coerentes e criarem novas condições para que o nosso futuro possível seja melhor do que o presente.

Por fim, para não deixar a poesia de lado, insiro os versos de uma música de Caetano Veloso, que se encaixa bem nesse momento:[3]

“Enquanto os homens exercem seus podres poderes, motos e fuscas avançam os sinais vermelhos, e perdem os verdes... Somos uns boçais. Será que nunca faremos senão confirmar, a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos? Será, será que será que será que será, será que essa minha estúpida retórica, terá que soar, terá que se ouvir, por mais zil anos?” 

 


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