O-despertar-da-besta-1969- José Mogica Marins |
Em dezembro de
2019 escrevi neste blog o segundo artigo, com o mesmo título acima, em que
analiso as transformações que aconteceram no Brasil na segunda década deste
século. Uma análise que venho fazendo já há muito tempo, em outros textos que
podem ser aferidos numa simples pesquisa sobre o que já publiquei relacionado à
política brasileira e ao “cavalo de pau” que aconteceu na geopolítica mundial
nesse período. Enfim, essa loucura toda não estava restrita somente ao Brasil.
Mas 2020 nos
traria muito mais surpresas. Despertadas, as bestas infernizaram, literalmente,
a política brasileira. Jamais se viu em nossa história política atos tão
tacanhos, comportamentos impressionantemente estúpidos e uso de expressões
chulas, feitas e ditas por um dirigente político alçado ao maior cargo de nossa
república. No entanto, nos espantaríamos mais saber que existia, e existe,
dentre os mais de 200 milhões de habitantes desse país, um quantitativo
inacreditável de pessoas que não somente apoiam esses comportamentos, como
garantem a sustentação de um governo absolutamente irresponsável. Reforçam,
assim, atitudes que facilmente nos permitem avaliar os traços de caráter dos
que atualmente comandam o estado brasileiro.
Ora, se entendemos
ser fácil definir os traços de caráter dos que estão à frente do Poder,
achincalhando a nossa frágil república, como é possível explicar tantos
seguidores a lhes dar apoio e a compartilhar, por meio das redes sociais,
atitudes que podem ser consideradas desprezíveis?
Nos artigos
anteriores analiso as conjunturas políticas em dois momentos. Do golpe institucional
de 2016, contra a presidenta Dilma Roussef, que levou ao poder o seu vice
Michel Temer, político de perfil oportunista, que ascendeu a esse cargo como
resultado do jogo político brasileiro tradicionalmente manchado por um
presidencialismo de coalizão corrompido, no qual a esquerda sucumbiu estimulada
pelo pragmatismo político;[1] ao resultado inesperado,
mas consequência de uma série de situações criadas por erros dos próprios
governos de esquerda, mas principalmente pela guerra híbrida que se desenrolou
também aqui no Brasil, impulsionado de maneira decisiva pela grande mídia, que
gerou como resultado um personagem do baixo clero político do Congresso
Nacional, absolutamente inexpressivo em suas duas décadas de “atuação”
parlamentar e transformou a nossa política em um mosaico estilo franksteniano.
Ou pelo menos deixou bem nítido que esse problema de caráter pode não ser
exceção, e possibilitou o despertar das bestas. O significado dessa expressão
eu explico no segundo artigo.[2]
No entanto, mais
do que um comportamento que identifica as características do perfil de
indivíduos reacionários, sem caráter e absolutamente desprovidos de qualquer
empatia, o que se desenvolviam eram mecanismos construídos por uma estratégia
planejada, onde a estupidez e a disseminação do ódio percorriam por caminhos
psicossociais, e encontravam na outra ponta uma quantidade grande de pessoas
aptas a assimilarem todos os engendramentos perversos de ações e atos que
adequaram ao século XXI práticas utilizadas em outros momentos da história que
culminaram em genocídios, ditaduras, fratricídios, racismo, homofobia,
xenofobia, feminicídio e outras perversidades. Em meio a tudo isso, o uso da fé
como componente forte a manipular e incorporar o ódio por meio de valores
tradicionais milenares, transpostos de uma era para outra anacronicamente, a
repetir dogmas que em outros tempos possibilitaram perseguições, julgamentos
morais, inquisição e assassinatos impiedosos por questões de escolhas
ideológicas.
É preciso, no
entanto, que saibamos compreender a dimensão exata de porque houve uma mudança
tão radical no comportamento da população, que em menos de uma década passa a
assumir escolhas e posturas tão diferentes, indo de um extremo a outro no
espectro político brasileiro. E, também como se deu a reação a esse comportamento
por parte dos segmentos de esquerda e dos setores mais intelectualizados da
sociedade, tanto nas universidades, quanto na área cultural. Ao mesmo tempo, a
necessária compreensão de como a conjuntura se altera rapidamente, não somente
como consequência de ações políticas, mas por outro fator que passa a afetar
todo o mundo, e completa uma realidade caótica que já se delineara com essas
mudanças políticas. Mais do que o despertar das bestas, o que se viu foi um
verdadeiro cenário apocalíptico, pior do que a humanidade já vira na Idade
Média, com a peste bubônica, e no começo do século XX, com o vírus influenza,
gerador da “gripe espanhola”.
A Covid19, gerada
por uma mutação de um velho conhecido, batizado agora de Sars Cov-2, trouxe
desorganização sistêmica, confusão pandêmica, recessão econômica com um freio
em boa parte das cadeias produtivas e ajudou a disseminar um caos político que,
em parte já estava em curso, por meio da estratégia que transformou a política
brasileira. Embora não atingindo somente o Brasil, a pandemia gerou situações
caóticas principalmente naqueles países cujos governantes assumiram o poder
apostando no caos, desconstruindo a política e desmoralizando a democracia.
Sobre isso já fiz
algumas abordagens e escrevi artigos tanto nesse blog quanto em revistas
eletrônicas. Quero me concentrar nos resultados gerados pelo caos social e
econômico, e o revés político que tem particularidades que merecem ser
devidamente estudadas. A estratégia do caos, nítida no comportamento do governo
Jair Bolsonaro é evidente, apesar de uma estabilizada momentaneamente em suas
falas desconexas e aparentemente estúpidas, principalmente desde que o Supremo
Tribunal Federal abriu investigação contra grupos de extrema-direita,
fascistas, que fizeram da mentira uma arma e das redes sociais mísseis a mirar
instituições e adversários políticos. Assim como devido à crescente
investigação sobre o mal feitos de seus filhos, até a prisão de um velho
aliado, e verdadeiro capataz, administrador de um séquito de assessores
fantasmas de toda sua família. Até o “cercadinho” dos horrores, em frente à
residência oficial, se desfez, alterando o comportamento que até então era de
bravatas, bazófias e estultices, devidamente compartilhadas.
Em meio a tudo
isso, uma indiferença fria e desumana aos milhares de brasileiros e brasileiras
mortos vítima de uma doença para a qual ainda não existe vacina, e o governo a
trata de maneira insignificante, com desdém impressionante. Escorado num
auxílio econômico emergencial, que tem chegado a dezenas de milhões de pessoas,
em muitos casos, com um valor bem acima do que era pago pelo Bolsa Família,
embora abaixo das necessidades das famílias de pessoas pobres e desempregadas,
o que se viu foi uma inversão na curva de impopularidade que o ameaçava nos
últimos meses.
Não era uma
mudança impossível de se prever. É sabido que todo governante se mantém com
popularidade mediante ações que atendam a situações extremas do povo em
condições adversas. Esse é um aspecto, que teve também seus momentos de glórias
nos governos de esquerda, quando da investigação do “mensalão” e uma situação
econômica que favorecia o governo, reelegeu o presidente Lula e impulsionou a
candidatura de Dilma Rousseff, até uma virada como consequência dos
descontroles fiscais e equívocos cometidos nas políticas de desonerações para
beneficiar setores importantes da economia brasileira. Como sempre, principalmente
em sociedades marcadas por desigualdades vergonhosas, a dependência do Estado
faz com que o sabor das escolhas políticas, principalmente entre os mais
pobres, esteja condicionado às circunstâncias das políticas econômicas.
A crise econômica
potencializada pelo Covid19, a confusão política protagonizada pela família
Bolsonaro et caterva, o medo do desemprego, as fake-news a gerar
um vôo cego em boa parte da população em relação à essa doença, a insensatez,
insensibilidade e perversões de todas as formas, espalharam na sociedade um
efeito dispersivo, um comportamento aleatório, que evidentemente, só poderia
beneficiar os que viam, e veem, no caos, o caminho para se imporem no comando
político do estado brasileiro.
Enquanto isso o
comportamento dos setores de esquerda, mesmo das camadas mais intelectualizadas,
e dos setores culturais, embora mantivessem o espírito de combatividade que
lhes é peculiar, pecou por agir seguindo a onda aleatória e sucumbindo à estratégia
do caos. Adotou os mecanismos de enfrentamento que eram utilizados pelo
bolsonarismo, transformando a política em um nonsense, caindo na armadilha de
ir para um enfrentamento, nitidamente numa postura defensiva, tendo como base a
ironia, a negação dos erros cometidos e a indiferença em relação ao poder
religioso evangélico, tradicional e reacionário, que se escondia por trás de
líderes-pastores travestidos de políticos, camaleões, que se infiltraram nos
governos anteriores, mas que mantinham um projeto de poder entrelaçado com suas
pregações nos púlpitos.
A esquerda abdicou
do debate ideológico e transformou as redes sociais em ambientes tóxicos, tal
qual a direita já vinha fazendo há anos. A ponto de se disseminar um outro
efeito, causado pelas lutas identitárias, de uma já chamada “cultura do
cancelamento”, pelo qual se atinge quem porventura cometer algum deslize no
trato das questões relacionadas à essas lutas, mesmo que sendo progressista e
de esquerda. Até mesmo setores do movimento anarquista, libertário, também
alinhado com as lutas populares, passaram a tecer críticas ao movimento
antifascista, em meio a denúncias de dossiês sendo feito pelo Ministério da
Justiça contra esses movimentos, para serem repassados à Agência Brasileira de
Inteligência, e até mesmo sendo entregues a autoridades estadunidenses. Ou
seja, para onde é possível a população olhar e enxergar uma luz no fim do
túnel, que não seja de uma locomotiva vindo em sua direção?
Isso explica, em
parte, o inesperado resultado da pesquisa Datafolha, publicada no dia 13.08,
dando indicativas de um crescimento da aceitação do governo Bolsonaro, em
praticamente quase todos os segmentos sociais. Em alguns desses segmentos,
principalmente entre os mais pobres, com pico elevado de aumento da
popularidade, de um presidente que se caracteriza por banalizar a política e
fazer do ridículo o elemento condutor de seus comportamentos.
Não há acasos na
história. Para tudo existem explicações e causas que nos ensinam como se dão os
processos de transformações sociais, as crises econômicas e o caos político,
que sempre leva estados a situações de enfrentamentos entre classes sociais,
processos revolucionários ou ascensão de governos autoritários e de viés
fascista. Como numa guerra, se não houver um enfrentamento organizado, com uma
estratégia adequada a fazer do combate ao inimigo resultados promissores e vitórias
parciais e definitivas, também na política jamais se obterá sucesso se não
houver planejamento nas ações, com objetivos bem delineados e aglutinação de
forças que se sobreponham ao poder adversário e imponham sucessivas derrotas. Nenhuma
vitória será possível se não houver essa conjunção de fatores, e, principalmente,
a adoção de atitudes, ações e proposições coerentes, que consigam levar à
população uma confiança capaz de reverter os caminhos pelos quais ela está seguindo.
Caso contrário, o adversário, mesmo apostando no caos, na ignorância e na
estupidez, se sagrará vitorioso nesse embate de forças para conquistar apoio
político e desencadear um processo de virada no espectro político no país.
Charge - Para além dos cérebros |
Não me parece que,
neste momento, a esquerda esteja conseguindo fazer isso. Pois não consegue se
unificar, não possui uma estratégia adequada, os vícios da hegemonia na disputa
do poder se mantêm como freio à qualquer aliança possível, e a ilusão eleitoral
como saída dessa situação. É evidente, que em se tratando de uma democracia
capitalista, o processo eleitoral é determinante. Mas ele não pode ser visto
como um instrumento de transformação, senão como consequência das transformações
que possam ser feitas a partir da organização e conscientização das massas
populares e das camadas trabalhadoras. É o contrário do que está sendo feito,
quando se busca obsessivamente por mandatos que possam influenciar a forma da
população se comportar politicamente.
Infelizmente, as
organizações sociais e entidades de trabalhadores transformaram-se em clubes de
simpatizantes de causas, que embora justas, não agregam senão aqueles que já
são militantes e/ou os que possuem uma postura crítica e de esquerda. Isso não
é suficiente. As periferias das grandes cidades, e as pequenas cidades, estão sendo
tomadas por forças conservadoras, neopentecostais, que destroem a capacidade
crítica das pessoas, e as aprisionam em valores que são geradores de ódios e
intolerância.
É claro que essa
indiferença das pessoas em relação à importância de suas participações em
sindicatos e associações, não se deve somente a erros de estratégia da
esquerda. Mas também foi algo construído ao longo de tempo, com medidas
cerceadoras contra essas entidades, mudanças que implicaram em reduzir suas finanças
e leis que pulverizaram o sindicalismo, de forma a possibilitar sua divisão. Embora
essa fratura tenha sido aceita por muitos da própria esquerda, como desejada, a
fim de cada partido poder possuir uma central sindical como instrumento de suas
lutas.
Restou à juventude
manter sua unificação em torno de suas entidades nacionais, nos âmbitos
secundaristas, universitário e pós-graduandos. Malgrado as diferenças que
existem ideologicamente em seus meios, o que não é um problema em si, desde que
as divergências não ajudem mais o inimigo do que à suas causas. Porque é a essa
juventude que recairá o peso maior tanto das consequências dessas políticas
nefastas que estão destruindo o estado brasileiro, e a educação como principal
alvo, como também porque terá que sair dela, da juventude, a força que poderá
fazer com que o futuro do nosso país não seja na direção de um estado fascista,
guiado por uma sharia cristã neopentecostal a se contrapor a uma constituição
laica e progressista.
Evidente que a
esquerda brasileira não é um monolítico. Como também a direita não é. Mas a
coesão quase sempre se dá quando uma conjunção de interesses, que mirem em
objetivos coletivos e em prol da sociedade, se sobrepõe à posturas hegemônicas,
individualistas, com preocupações focadas meramente na ampliação de suas
organizações e que se imponha sobre vaidades de líderes que se cegam, e mantem
a cegueira como uma doença transmissível para os seus seguidores, que passam a
agir truculentamente contra os que não sigam as suas concepções políticas e
interesses eleitorais.
Não pretendo
carregar aqui o baú da verdade absoluta. São apenas visões, críticas, que
acumulei ao longo desses anos, expressos em artigos críticos já publicados aqui
neste blog, e que podem ser revistos, claro atentando-se para as datas em que
foram escritos. Mas o que desejo é, mais do que querer ser lido compulsivamente,
o que do alto de minha pequena modéstia sei ser impossível, é desabafar em
relação à uma conjuntura que me aborrece, me intranquiliza e me deixa frustrado
depois de quatro décadas de lutas, imaginando poder ver na minha velhice uma parte
do nosso caminho pavimentado na direção de uma sociedade menos desigual, tolerante,
crítica, avessa ao autoritarismo, defensora do livre debate e da aceitação das ideias
divergentes e das concepções e posturas diferentes, como uma condição de ser
humano.
Como já escrevi em
outros momentos, o futuro não existe. Ele é uma construção do presente, que
pode dar certo ou errado a depender dos ensinamentos adquiridos pelo passado.
No momento, infelizmente, o futuro é sombrio, tendo como referência as
condições em que estamos vivendo. Mas é evidente que é possível mudar, as
mudanças estão em nossas mãos. No entanto, isso só será possível se aquelas
pessoas que assim desejam, compreenderem que é necessário alterar o curso da
história, e que isso só será capaz de acontecer, se mudarem também seus
comportamentos, adotarem estratégias coerentes e criarem novas condições para
que o nosso futuro possível seja melhor do que o presente.
Por
fim, para não deixar a poesia de lado, insiro os versos de uma música de
Caetano Veloso, que se encaixa bem nesse momento:[3]
[2] https://gramaticadomundo.blogspot.com/2019/12/o-despertar-das-bestas-2-parte.html
[3] Podres poderes. Composição: Caetano Veloso. Album, “Velô” – 1984,
Nenhum comentário:
Postar um comentário