Retomo a minha verve. Gosto de escrever, criei esse blog para isso, em
meio às circunstâncias que me jogaram em depressão com a morte de minha filha.
De lá para cá, e já se vão quase dez anos (o blog foi criado em 2010), fui
gradativamente substituindo os textos de caráter mais intimistas, uma maneira
que encontrei de extravasar minhas emoções, por análises geopolíticas gerais e
aqui do Brasil. Já que essa é uma condição do meu trabalho como professor de
geopolítica na Universidade Federal de Goiás. Mantenho em alguns deles, como
este que inicio aqui, um tom bem pessoal como se fora mais do que um artigo
analítico. Assim, identifico-os como crônicas de um cotidiano no qual estou
envolvido, mas que vejo pelo olhar crítico de um especialista e estudioso dessa
área. Mais do que isso, de um historiador e doutor em Geografia, especializado
nesse campo do conhecimento que aborda as relações internacionais e as questões
políticas locais e para além-fronteira. Mas que abrange também as formas de
funcionamento das sociedades e suas relações, a nossa especialmente, muito
embora isso esteja mais restrito a sociólogos e antropólogos. Compreendo, mesmo
assim, que há cada vez mais elementos da geopolítica em nosso cotidiano, já que
a sociedade capitalista ao mesmo tempo em que centraliza, pulveriza
o poder. Uma contradição, naturalmente mais uma de tantas que marcam esse
sistema controverso, embora vitorioso até aqui diante de outros já
tentados.
Quero neste ano poder publicar mais crônicas. Um problema, no entanto,
me manteve em um breve silêncio dos últimos meses do ano passado para este
começo de ano: As redes sociais. Em especial o Facebook, já que o whats app
cumpre mais o papel de distribuir as informações, em sua maior parte falsas ou
distorcidas, se encarregaram de conceber a cada indivíduo uma espécie de dom do
conhecimento geral e genérico. Apesar disso ser algo que pode identificar uma
ampliação da democracia, com a liberdade de cada um poder se manifestar e
opinar livremente, numa sociedade desigual do ponto de vista do conhecimento,
ou onde uma classe média e ricos se julgam superiores não pelo que sabem, mas
pelo que possuem, a ignorância e estupidez assumem uma relevância estonteante e
dificulta uma compreensão da verdade e da realidade.
Não se pode conhecer a realidade sem que se tenha uma capacidade de
discernimento sobre as dimensões do Poder e dos poderes. O Poder com “P”
maiúsculo, na identificação do que envolve as questões de Estado, das grandes
governanças globais e das empresas multinacionais, enormes corporações que
comandam a economia e as finanças mundiais. Ao não terem a dimensão disso e
ficarem submetidos à informações ideológicas, apresentadas como anti-ideologia,
feita por políticos obtusos e sem formação intelectual, demagogos,
conservadores e oportunistas, bem como por dogmas difundidos por indivíduos
mal-intencionados, incorrem-se em terríveis equívocos e passa-se a disseminar
discursos toscos, racistas, xenófobos e intolerantes em relação às escolhas
individuais, seja no tocante à sexualidade, à liberdade de crença e de
não-crença em divindades, e, principalmente a não aceitação do empoderamento
das mulheres. O conservadorismo assume, assim, pelo caminho da ignorância e da
estupidez uma direção que nos levará ao abismo.
Igrejas espalham-se celeremente, pelas periferias e até mesmo
bairros nobres, aproveitam-se do desespero, angústia e, principalmente, dos
medos que povoam nossas vidas numa sociedade violenta e desigual. Não pregam o
fim das desigualdades. Fazem do medo um instrumento de dominação, de mentes e
de corpos. Não usam da solidariedade como forma de construir uma sociedade mais
altruísta, ao contrário, estimulam frases ditas há milênios, como se as mesmas
se adequassem a todas as formas de sociedades por todos os tempos, acentuando a
intolerância e o desrespeito quanto às diferenças. Nos últimos anos, com a
ampliação de uma crise econômica mundial, a que mais tem sido representada
pelos discursos políticos e vieses conservadores que saem dos púlpitos e tomam
conta das bravatas políticas tem sido “olho por olho, dente por dente”, além do
crescente sentimento xenófobo, de um nacionalismo pérfido e intolerante.
Naturalmente, este é o caminho da barbárie.
Nos deparamos em verdade, com um tempo em que disseminam-se informações
curtas e superficiais por um lado, e, por outro lado, em função de todo um
processo de desconstrução das ideias que se firmaram na primeira década do
século e que levaram a esquerda ao poder, surgiram alguns arautos da
inconformidade, do caos, resgatando discursos medievais, fomentando o medo e
disseminando perversões em nome de deus e do resgate do sentido tradicional de
família. Me fez lembrar da malfadada TFP (Tradição Família e Propriedade), que
nos anos sessenta e setenta desfilava suas loucuras pelas ruas com estandartes
em que pregavam a salvação pelos céus e abominavam o comunismo. Eram os tempos
da guerra fria e vivíamos sob o domínio de uma ditadura militar. Não é uma repetição
da história, mas até isso já se pode ver novamente pelas ruas. Loucura,
estupidez, burrice, intolerância, ódio e um absoluto esvaziamento dos cérebros
por meio de repetição de frases bíblicas, de anacronismo, e de força de um
neopentecostalismo que nos faz lembrar de um dos momentos que se conta da
história de Jesus Cristo, em que ele tomado por uma fúria surpreendente,
expulsa do templo os “vendilhões”, aqueles que faziam nesse ambiente um espaço
de perversão, usura e negócios que extrapolavam o que se pregava da fé cristã.
Dentre as aberrações que se diz nos dias de hoje, e que se tornou um
mantra repetido ad nausean, tem sido “desideologizar” “sem viés ideológico”. Os
que acreditam haver nessas viradas políticas que o país passa, com a eleição
inusitada de um parlamentar inexpressivo, do “baixo-clero” e de
postura obtusa, uma realidade onde a ideologia desaparecerá, só confirmam
a incapacidade de reconhecer como funcionam as coisas nas sociedades
capitalistas. Mas não somente nessas, como em qualquer outra já construída pelo
ser humano. Ideologia é o elemento que as move, e nada mais é do que o conjunto
de ideias que determinam as formas como se dão as relações sociais. Pode haver
uma ou mais ideologias dominantes, bem como outras que são expressas por grupos
que não estão vinculados às classes dominantes, sejam economicamente ou
politicamente. Assim, é impossível haver qualquer forma de governo, ou qualquer
tipo de sociedade, que não seja organizada a partir de ideologias. Elas se
apresentam na forma de religião, na constituição de organizações políticas e
sociais, em agrupamentos que se opõem ao establishment e
defendem o fim do estado e de todas as formas de dominação, estão nas igrejas e
em todas as formas filosóficas que representam hábitos e
estilos de viver e de contemplar a realidade e o que pode existir para além
dela. Ideologia faz parte de nossas vidas, não há como viver sem uma. Acreditar
que um governo comandará um estado “sem viés ideológico” só exprime total
ignorância e desconhecimento da própria realidade em que se vive.
Assim, diante de um comportamento completamente avesso ao conhecimento
científico por parte daqueles que assumiram o poder nesse contexto caótico em
que nosso país foi metido, pelas “fake news” e
pela estratégia goelbesiana adotada pela grande mídia, torna-se
difícil tentar racionalizar um debate. O próprio debate já inexiste,
substituído por ironias, zombarias, ridicularização, menosprezo, escárnio etc.
Desse ambiente, gestado nos últimos cinco anos aqui no Brasil, mas adredemente
construído há, pelo menos, uma década desde que os EUA deu uma guinada na
escolha de seu presidente, elegendo um negro de viés liberal. Que pela sua
postura era visto naquele país como um esquerdista, além da sua própria cor
incomodar uma elite branca perversamente intolerante com a diversidade étnica.
A partir daí, e em um ambiente de uma grave crise econômica, a política
deixou de ser aquele elemento que serve para aplacar as crises, e passou ela
própria a fabricar crises, ao sabor de interesses conservadores, de ideologias
reacionárias no combate aos comportamentos libertários e de ampliação do poder
das igrejas neopentecostais, cada vez mais envolvidas na disputa do Poder
político e na disseminação de frases bíblicas visando desconstruir as mudanças
de comportamentos celeremente em curso e representativas de uma época de forte
mudança e de transição. A política foi derrotada, e em meio a essa onda
nefasta de estupidez, tem levado junto a democracia. As duas perderam validade
e confiança. No choque desses elementos, envolvendo a força dos avanços
dos direitos sociais com os freios conservadores e o viés religioso e dogmático
que se ampliaram em meio ao medo gerado pela crise e alimentado pelos púlpitos
e pela mídia, abriu-se um enorme abismo que se amplia indiferente à
possibilidade disso se transformar em um enorme caos. É o tempo da cegueira que
se conta pelas páginas bem descritas de José Saramago. Impossível saber onde
vamos parar, já que fica cada vez mais impossível enxergar saídas e
alternativas para esses dilemas.
Do lado de cá, preparado para brandir como arma uma ideologia que preze
pela solidariedade, pela comum união e pelo respeito à diversidade, sigo
enxergando ao longe a utopia. E ela me ajuda a seguir em frente, embora a vejo
cada vez mais distante à medida que me afasto dos tempos em que meu corpo me
garantia mais energia e força para lutar por aquilo que acredito. No momento
insisto em escrever, torcendo para que as novas gerações consigam chegar ao fim
do último parágrafo, nessa época de informações parciais, curtas e
abstratas. A minha geração fez o que pôde, acreditou que era real o que ainda
era utopia, e cabe aos mais novos construir com solidez outros caminhos, que
levem na mesma direção do que acreditávamos ser a construção de uma sociedade
mais justa, solidária e menos desigual.
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