Esse é um assunto que de forma recorrente trato em minhas aulas de geopolítica[1]: a apropriação do termo “americano” pelos Estados Unidos da América. Desta feita vou partir da leitura de um texto de Michael Walzer, “Que significa ser americano?”,[2] quando o autor propõe uma reflexão sobre não somente o sentido dessa expressão, como do próprio caráter da identidade do cidadão nascido naquele país, bem como de sua relação com o caráter da nação, ou do nacionalismo.
Mas a meu ver,
além de uma opinião muito focada das concepções liberais republicanas, afinadas
com os setores conservadores, ele peca ao omitir um elemento que é crucial para
entendermos esse processo de afirmação dos EUA como um estado imperialista, e
da apropriação do sentido de ser “americano”. Refiro-me à questão religiosa,
cujos elementos foram norteadores do manifesto que impôs à governança
estadunidense os caminhos que passaram a trilhar a partir do século XIX, e a
enxergar o restante da América como submissa aos seus interesses imperais.
Podemos, e devemos
sempre, encontrar as respostas para as origens dessa apropriação com uma rápida
digressão histórica. Mas antes eu quero dizer que sou, e sempre fui, apaixonado
na história dos Estados Unidos, em todo o seu processo desde a transformação de
colônia em um dos primeiros países independentes e de constituição republicana,
por meios revolucionários. Bem como se deu sua expansão territorial se apropriando
de terras mexicanas, adquirindo territórios dominados pelos franceses e até mesmo
pelos russos. E suas conquistas territoriais que conta-se pela bravura dos
exploradores, mas omite-se o verdadeiro genocídio do povo autóctone, os indígenas.
Apaixonar-se por uma história não significa compactuar com os malfeitos, muito
menos aderir aos arroubos imperiais ou imperialistas que passaram a caracterizar
esse país a partir do século XIX.
Tenho repetido que
os Estados Unidos nasceu como um país sem nome, e essa “deformação” deveu-se à
escolha das lideranças de suas colônias, quando do processo de luta para
libertar-se das explorações impostas pelo império britânico e que se tornou a
luta pela independência.
Na verdade, houve
uma união de treze colônias, que se juntaram para lutar contra os ingleses, a
partir da resistência em aceitar os exorbitantes impostos cobrados pela
produção de chá. Ao final de uma intensa e sangrenta luta, a declaração de
independência não firmou, como se deu, por exemplo, na França, um Estado-Nação
com sentido federado e unificado.
A declaração de
independência manteve a autonomia pré-existente, considerando cada uma das
treze colônias com plenas liberdades em aspectos que visavam reforçar o
sentimento de que elas possuíam características identitárias próprias,
refletidas nas origens tanto religiosas como étnicas (na falta de outro nome).
Ou seja, suas histórias de vidas mantinham-se vinculadas a outras nações, de
onde originalmente vieram.
Criou-se assim os
Estados Unidos, da América, continente que abrange dezenas de outras nações e
nacionalidades. Cada um dos Estados (ex-colônias) manteve sua autonomia em
questões que dizem respeito a valores que se encontram na base de suas
formações, garantindo na constituição o direito ao Estado - no sentido mais
geral -; a formulação das fronteiras, a defesa de seus limites territoriais e a
formação de um poder militar que os defendesse de agressões externas. Isso até
a eclosão da guerra civil, que só veio reforçar esse paradoxo, e rompe com um
sentido de nação.
A guerra de
secessão tornou-se um delimitador dessa situação. Após esse conflito os Estados
Unidos aproximaram-se da formação tradicional de um estado nacional moderno,
tal qual construído pela burguesia a partir da decadência do feudalismo e do
fracasso do absolutismo.
Walzer analisa
essa formação a partir de suas origens, e, abordando as características de um
país construído a partir de fortes movimentos migratórios, ressalta a
dificuldade, partindo dessa formação, de os Estados Unidos se aceitarem
enquanto Nação.
Mas o “ser”
americano, a meu ver, se explica pela adoção de um comportamento agressivo, já
de um Estado Nação constituído, embora sem nome, cuja característica assumida
aproximou-se da antiga metrópole contra a qual séculos antes ele se batera e
conseguira libertar-se.
Dois movimentos
para isso foram fundamentais. Ideológicamente isso se concretizou mais adiante,
no final do século XIX. Além das teorias geopolíticas, necessárias ao controle
do domínio dos mares, e consequentemente de toda a América, um mecanismo
religioso consolida essa postura imperialista. O chamado “Destino Manifesto”,
pelo qual entendia-se que os Estados Unidos teria recebido por influência
divina o poder de garantir a liberdade e segurança de toda a América.Pintura (cerca 1872) de John Gast
chamada Progresso Americano
- wikipedia
Por outro lado, as
estratégias geopolíticas de militares-teóricos, como Alfred Mahan e Nicholas
Spykman, que propunham o controle por parte dos Estados Unidos dos dois
oceanos, o Atlântico e o Pacífico, e a necessidade da influência militar sobre
toda a América. Rechaçando toda e qualquer ingerência europeia, ou de qualquer
outro continente, sobre o território americano. A guerra contra a Espanha, no
final do século XIX, e o controle assumido após esse conflito sobre algumas
colônias, como Cuba, foi o início dessa nova etapa de um país que começava a
constituir-se em um novo império.
A palavra de
ordem, “A América para os americanos”, veio juntar-se à concepções de uma
política intervencionista agressiva, consolidada pela chamada “política do
porrete”, ou o “big stick”, ameaçando todos aqueles que ousassem invadir o solo
americano.
Impõe-se assim,
pela força de um país que se fortaleceu e se unificou politicamente a partir da
guerra de secessão, o domínio sobre antigas colônias britânicas, espanholas e
portuguesas. Senão no sentido tradicional, mas agindo de outra forma,
estabelecendo em cada uma delas governos submissos e/ou subalternos.
A expressão
Estados Unidos da América se consolidou, assim, a partir do final do século
XIX, não somente como dando sentido a um Estado Nação de característica
diferente, porque manteve-se a autonomia de todos os seus novos
Estados-províncias, mas impondo-se sobre os demais no continente, assenhoreando-se
do termo “América” e “americano”.
A difusão desse
termo, a ponto de tornar-se uma expressão definitiva da identificação de quem é
nascido nos Estados Unidos deveu-se ao poder que essa potência passou a exercer
por todo o continente americano. Principalmente devido à submissão secular das
elites tradicionais dos países coloniais, que aceitaram essa influência e a
apropriação do termo americano, e se propuseram a difundi-lo em todo o seu
aparato midiático.
De tal forma que
essa expressão passou a ser comumente utilizada, inclusive em livros didáticos,
embora nitidamente farsesca e historicamente uma vergonhosa mentira, aceita
inclusive por intelectuais, dentre os quais muitos historiadores.
A apropriação do
termo “americano”, por um país que surge sem nome, e a aceitação submissa por
parte das colônias políticas e culturais, demonstra o enorme poder, que, a
partir do final do século XIX, o império estadunidense passou a impor para toda
a América, e daqui para o mundo a partir do início do século XX.
Considerar o
cidadão nascido nos Estados Unidos, como americano, é tanto uma verdade como
dizer que os que nascem no Brasil, no Uruguai, no Chile e em tantos outros
países desse imenso continente chamado América, também o são. Assim como são
europeus os que nascem na França, na Alemanha, Irlanda etc. etc... etc...
Mas porque
insistir em falar de americano aos que são estadunidenses? É o velho hábito,
que se tornou uma cultura política, mantido pelo força da coerção, da
subserviência e da aceitação do poder imperial. E, principalmente, porque todo
o aparato midiático insiste em repetir cotidianamente, como a reforçar a
necessidade de nos considerarmos inferiores, posto que o poder do império se
impõe por toda a América. Isso, pode-se também dizer, tornou-se uma tradição
pelo comportamento de elites assumidamente provincianas e submissas.
Resta-nos apostar
que as futuras gerações conseguirão romper com esse forte domínio de uma
cultura política que já se aproxima de duzentos anos. É salutar perceber que
nos novos livros didáticos brasileiros gradativamente o termo estadunidense já
começa a substituir a palavra americano, no contexto aqui analisado.
Particularmente
nada tenho contra os cidadãos nascidos nos Estados Unidos. As questões, de
ordem geopolítica que aqui analiso dizem respeito a políticas de dominação
secularmente impostas sobre os demais países americanos, desde o México até o
Uruguai, por uma potência imperialista. Aliás, diga-se ainda, que alguns, para
fugir do uso do termo americano, o substitui por norte-americano, reduzindo o
alcance do erro, mas transformando Canadá e México em duas províncias dos
Estados Unidos.
Para que a História seja justa com aqueles que tentaram uma unificação americana, devem-se resgatar os ideais de Simón Bolívar, responsável pelas lutas de independências em vários países, dentre os quais, Bolívia, Equador, Venezuela, Panamá, Peru e Colômbia. É possível que os ideais de integração bolivariano para a América Latina tenham preocupado o emergente poder imperial dos Estados Unidos, se antecipando a uma provável luta pela união dos estados americanos.
Importa ao final
enfatizar a compreensão de que os Estados Unidos não é a América. E a América
não é os Estados Unidos. O continente americano tem nos últimos anos se deparado
com situações que nos apontam para um resgate cada vez maior das identidades
dos povos que habitam cada um de seus países. Mas deverá também consolidar cada
vez mais o sentimento de que a América não é o quintal de um grande império,
mas um continente a reforçar cada vez mais a sua identidade.
Afinal, todos nós somos americanos!
[1] Este artigo foi publicado originalmente em 12 de agosto de 2012. Foi revisto e atualizado. https://gramaticadomundo.blogspot.com/2012/08/todos-nos-somos-americanos.html
[2] O que significa ser um americano ( Marsilio Publishers , 1992) ISBN 1-56886-025-0. http://www.sociologicamexico.azc.uam.mx/index.php/Sociologica/article/view/850/823
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