Assim, identifico
essas abordagens como crônicas de um cotidiano no qual estou envolvido, pelo
olhar de historiador e doutor em Geografia, especializado no campo do
conhecimento que aborda as relações internacionais e as questões políticas
locais e para além-fronteira. Mas que abrange também as formas de funcionamento
das sociedades e suas relações, a nossa especialmente. Compreendo que há cada
vez mais elementos da geopolítica em nosso cotidiano, já que a sociedade
capitalista ao mesmo tempo em que centraliza, pulveriza o poder. Uma
contradição, naturalmente mais uma de tantas que marcam esse sistema
controverso, embora vitorioso até aqui diante de outros já tentados.
Fomos escrevendo e
produzindo essas crônicas, procurando compartilhá-las em um ambiente que foi ao
longo do tempo se tornando tóxico: As redes sociais. Tanto o Facebook, que com
uma característica comercial faz com que seus algoritmos selecionem o público
que irá ter acesso a cada postagem, assim como a quantidade percentual, que
quase sempre não passa de 15% (a menos que se pague para ter uma visibilidade
maior), além de permitir a disseminação de perfis falsos propagadores de fake
news; o whats app, que cumpre mais o papel de compartilhar informações interpessoais,
mas que se tornou instrumento de difusão de notícias falsas ou distorcidas por
meio de robôs; o Instagram, mais utilizado entre o segmento jovem; o twitter,
esse com o potencial de gerar mais polêmicas, porque se constituiu na
ferramenta mais importante para políticos e celebridades se destacarem e o You
Tube, que impulsionou uma grande quantidade de novos comunicadores, chamados “youtubers”,
que atingiram grande alcance de público e enorme visibilidade, com muitos se
tornando instrumentos da extrema-direita que formaram opiniões com base em
destruição de reputações e disseminação de ódios e comportamentos intolerantes.
Não se pode
conhecer a realidade sem que se tenha uma capacidade de discernimento sobre as
dimensões do Poder. O Poder com “P” maiúsculo, como diferencia Claude Raffestin
(Por uma Geografia do Poder), inspirado em Michel Foucault. Na identificação do
que envolve as questões de Estado, das grandes governanças globais e das
empresas multinacionais, enormes corporações que comandam a economia, as
finanças mundiais e a política. Muitos não têm a dimensão disso, e ficam
submetidos a informações ideologizadas, apresentadas como anti-ideologia.
Essas são feitas
por demagogos, conservadores, oportunistas, políticos obtusos, bem como por
dogmas difundidos por indivíduos mal-intencionados. Passou-se a disseminar
muito rapidamente discursos toscos, racistas, xenófobos e intolerantes em
relação às escolhas individuais, seja no tocante à sexualidade, à liberdade de
crença e de não-crença em divindades, e, principalmente a não aceitação do
empoderamento das mulheres. O conservadorismo assumiu, assim, pelo caminho da
ignorância e da estupidez uma direção que tem nos levado a uma sociedade marcada
pela intolerância e ódio. Ou que serviu para despertar o que de pior existia, e
estava submerso, nessa sociedade.
Igrejas espalharam-se
celeremente, pelas periferias e até mesmo bairros nobres, aproveitando-se do
desespero, angústia e, principalmente, dos medos que povoam a vida das pessoas,
numa sociedade violenta e desigual. Não pregam o fim das desigualdades. Fazem
do medo um instrumento de dominação, de mentes e de corpos. Não usam a
solidariedade como forma de construir uma sociedade mais altruísta, ao
contrário, estimulam frases ditas há milênios, como se elas se adequassem a
todas as formas de sociedades por todos os tempos, acentuando a intolerância e
o desrespeito quanto às diferenças.
Nos deparamos em
verdade, com um tempo em que disseminam-se informações curtas e superficiais
por um lado, e, por outro lado, em função de todo um processo de desconstrução
das ideias que se firmaram na primeira década do século e que levaram a
esquerda ao poder, surgiram alguns arautos da inconformidade, do caos,
resgatando discursos medievais, fomentando o medo e disseminando perversões em
nome de deus e do resgate do sentido tradicional de família. Nos faz lembrar
dos fascistas integralistas na era Vargas, década de 1930, e da malfadada TFP
(Tradição Família e Propriedade), que nos anos sessenta e setenta desfilava
suas loucuras reacionárias pelas ruas com estandartes em que pregavam a
salvação pelos céus e abominavam o comunismo. Eram os tempos da guerra fria e
vivíamos sob o domínio de uma ditadura militar. Não é uma repetição da
história, mas até isso já se pode ver novamente pelas ruas.
Loucura,
estupidez, burrice, intolerância, ódio e um absoluto esvaziamento dos cérebros
por meio de repetição de frases bíblicas, de anacronismo, e de força de um
neopentecostalismo que faz dos templos espaços de perversão, usura e negócios
que extrapolam o que se pregava da fé cristã.
Dentre as aberrações
que se diz nos dias de hoje, e que se tornou um mantra repetido ad nausean, tem
sido “desideologizar” “sem viés ideológico”. Ora, ideologia é o elemento
superestrutural que nos move, e nada mais é do que o conjunto de ideias que
determinam as formas como se dão as relações sociais. Pode haver uma ou mais
ideologias dominantes, bem como outras que são expressas por grupos que não
estão vinculados às classes dominantes, sejam econômica ou politicamente.
Assim, é impossível haver qualquer forma de governo, ou qualquer tipo de
sociedade, que não seja organizada a partir de ideologias.
Elas se apresentam
na forma de religião, na constituição de organizações políticas e sociais, em
agrupamentos que se opõem ao establishment e defendem o fim do estado e de
todas as formas de dominação, estão em todas as construções filosóficas que
representam hábitos e estilos de viver e de contemplar a realidade e o que pode
existir para além dela. Ideologia faz parte de nossas vidas, não há como viver
sem uma. Acreditar que um governo comandará um estado “sem viés ideológico” só
exprime total ignorância e desconhecimento da própria realidade em que se vive.
Essas percepções, e
a enorme quantidade de pessoas facilmente alvos desses discursos, se encaixaram
perfeitamente como numa tempestade perfeita, numa conjuntura de forte crise
econômica e de caos político, que se criou aqui no Brasil com a disputa
visceral pelo poder e a não aceitação do resultado eleitoral de 2014.
Essa não é uma
situação fácil de desfazer, porque essas concepções se enraizaram, estão
consolidadas pela maneira como a política foi desconstruída e a democracia
desmoralizada, como já dito, pelas ações vis que se disseminaram pelas redes
sociais.
Assim, diante de
um comportamento completamente avesso ao conhecimento científico por parte
daqueles que assumiram o poder nesse contexto caótico em que nosso país foi
metido, pelas “fake news” e pela estratégia goelbesiana adotada pela grande
mídia, tornou-se difícil tentar racionalizar um debate. O contraditório passou
a ser negado, como se isso fosse possível, e o debate substituído por ironias,
zombarias, ridicularização, menosprezo, escárnio, ódio, desprezo, intolerância,
raiva etc.
Esse ambiente foi
gestado nos últimos seis anos aqui no Brasil, mas construído há mais de uma
década pelo mundo afora, se acentuando quando os EUA deram uma guinada ao
escolher seu presidente, elegendo um negro de viés liberal, Barack Obama. Que
pela sua postura era visto naquele país como um esquerdista, além da sua
própria cor incomodar uma elite branca perversamente intolerante com a
diversidade étnica. Muito embora ele fizesse parte do establishment naquele
país. Depois disso vingou naquele país, e se espalhou para outras partes, o
supremacismo racial, a intolerância política, a homofobia e reforçou com bastante
força o machismo, a agredir com mais visibilidade as mulheres.
A política foi
derrotada, e em meio a essa onda nefasta de estupidez, tem levado junto a
democracia. As duas perderam validade e confiança. No choque desses elementos,
envolvendo a força dos avanços dos direitos sociais com os freios conservadores
que se ampliaram em meio ao medo gerado pela crise e alimentado pelos púlpitos
e pela mídia, abriu-se um enorme abismo que se ampliou indiferente à
possibilidade disso se transformar em um enorme caos, com a pandemia. É o tempo
da cegueira que se conta pelas páginas bem descritas do escritor português José
Saramago. Impossível saber onde vamos parar, já que fica cada vez mais
impossível enxergar saídas e alternativas para esses dilemas.
Do lado de cá, preparado para brandir como arma uma ideologia que preze pela solidariedade, pela comum união e pelo respeito à diversidade, sigo enxergando ao longe a utopia. Como aprendi, ela me ajuda a seguir em frente, embora a veja cada vez mais distante à medida que me afasto dos tempos em que meu corpo me garantia mais energia e força para lutar por aquilo que acredito. No momento insisto em escrever, torcendo para que as novas gerações consigam chegar ao fim do último parágrafo, nessa época de informações parciais, curtas e abstratas.
A minha geração
fez o que pôde, acreditou que era real o que ainda era utopia, e cabe aos mais
novos construir com solidez outros caminhos, que levem na mesma direção do que
acreditávamos ser a construção de uma sociedade mais justa, solidária e menos
desigual.
(*) Essa crônica é
uma adaptação de outra escrita em janeiro de 2019 - https://gramaticadomundo.blogspot.com/2019/01/tempos-insidiosos-como-combater-os.html
Brilhante como sempre, meu grande amigo! Sigamos acreditando e lutando pela utopia de libertação de toda a Humanidade!!
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