quinta-feira, 6 de agosto de 2020

TEMPOS PERIGOSOS, EM QUE NEGAM AS CIÊNCIAS E DESTROEM AS ESPERANÇAS

As abordagens que tenho feito e escrito aqui neste blog fogem do padrão tradicional de artigos acadêmicos. Embora eu seja docente há 25 anos, na Universidade Federal de Goiás. Mas a criação desse espaço teve como objetivo criar um canal de comunicação mais fácil, de textos que não exigissem o esforço intelectual comum nas leituras de artigos científicos. Embora nosso desejo não seja fugir da abordagem científica, nem acadêmica, mas tornar mais fácil o entendimento acerca das ciências humanas, da geopolítica, do nosso conhecimento teórico, daquilo que assimilamos pelas notícias cotidianas e a experiência de nossas vidas.

Assim, identifico essas abordagens como crônicas de um cotidiano no qual estou envolvido, pelo olhar de historiador e doutor em Geografia, especializado no campo do conhecimento que aborda as relações internacionais e as questões políticas locais e para além-fronteira. Mas que abrange também as formas de funcionamento das sociedades e suas relações, a nossa especialmente. Compreendo que há cada vez mais elementos da geopolítica em nosso cotidiano, já que a sociedade capitalista ao mesmo tempo em que centraliza, pulveriza o poder. Uma contradição, naturalmente mais uma de tantas que marcam esse sistema controverso, embora vitorioso até aqui diante de outros já tentados.

Fomos escrevendo e produzindo essas crônicas, procurando compartilhá-las em um ambiente que foi ao longo do tempo se tornando tóxico: As redes sociais. Tanto o Facebook, que com uma característica comercial faz com que seus algoritmos selecionem o público que irá ter acesso a cada postagem, assim como a quantidade percentual, que quase sempre não passa de 15% (a menos que se pague para ter uma visibilidade maior), além de permitir a disseminação de perfis falsos propagadores de fake news; o whats app, que cumpre mais o papel de compartilhar informações interpessoais, mas que se tornou instrumento de difusão de notícias falsas ou distorcidas por meio de robôs; o Instagram, mais utilizado entre o segmento jovem; o twitter, esse com o potencial de gerar mais polêmicas, porque se constituiu na ferramenta mais importante para políticos e celebridades se destacarem e o You Tube, que impulsionou uma grande quantidade de novos comunicadores, chamados “youtubers”, que atingiram grande alcance de público e enorme visibilidade, com muitos se tornando instrumentos da extrema-direita que formaram opiniões com base em destruição de reputações e disseminação de ódios e comportamentos intolerantes.

Essas redes sociais se encarregaram de conceber a cada indivíduo uma espécie de dom do conhecimento geral e genérico. Apesar de isso ser algo que pudesse significar ampliação da democracia, com a liberdade de cada um poder se manifestar e opinar livremente, numa sociedade desigual do ponto de vista do conhecimento. Mas não foi esse o resultado.  Numa realidade em que uma classe média e ricos se julgam superiores não pelo que sabem, mas pelo que possuem, a ignorância e estupidez assumiram mais relevância, de forma rápida e estonteante, dificultando uma compreensão da verdade e da realidade.

Não se pode conhecer a realidade sem que se tenha uma capacidade de discernimento sobre as dimensões do Poder. O Poder com “P” maiúsculo, como diferencia Claude Raffestin (Por uma Geografia do Poder), inspirado em Michel Foucault. Na identificação do que envolve as questões de Estado, das grandes governanças globais e das empresas multinacionais, enormes corporações que comandam a economia, as finanças mundiais e a política. Muitos não têm a dimensão disso, e ficam submetidos a informações ideologizadas, apresentadas como anti-ideologia.

Essas são feitas por demagogos, conservadores, oportunistas, políticos obtusos, bem como por dogmas difundidos por indivíduos mal-intencionados. Passou-se a disseminar muito rapidamente discursos toscos, racistas, xenófobos e intolerantes em relação às escolhas individuais, seja no tocante à sexualidade, à liberdade de crença e de não-crença em divindades, e, principalmente a não aceitação do empoderamento das mulheres. O conservadorismo assumiu, assim, pelo caminho da ignorância e da estupidez uma direção que tem nos levado a uma sociedade marcada pela intolerância e ódio. Ou que serviu para despertar o que de pior existia, e estava submerso, nessa sociedade.

Igrejas espalharam-se celeremente, pelas periferias e até mesmo bairros nobres, aproveitando-se do desespero, angústia e, principalmente, dos medos que povoam a vida das pessoas, numa sociedade violenta e desigual. Não pregam o fim das desigualdades. Fazem do medo um instrumento de dominação, de mentes e de corpos. Não usam a solidariedade como forma de construir uma sociedade mais altruísta, ao contrário, estimulam frases ditas há milênios, como se elas se adequassem a todas as formas de sociedades por todos os tempos, acentuando a intolerância e o desrespeito quanto às diferenças.

Nos últimos anos, com a ampliação de uma crise econômica mundial, a frase que mais tem sido representada pelos discursos políticos e vieses conservadores que saem dos púlpitos e tomam conta das bravatas políticas tem sido “olho por olho, dente por dente”, além do crescente sentimento xenófobo, de um nacionalismo pérfido e intolerante. Naturalmente, este é o caminho da barbárie. Com o surgimento da Covid19 e a pandemia, essas vozes se tornaram mais presentes, repercutindo fortemente pelas redes sociais, e por canais de televisão, negando a ciência e os estudos científicos, já comprovados por experiencia e demonstrações que vêm sendo confirmadas há séculos. Até ao ponto de se gerar campanhas anti-vacinas, distorcendo a realidade e impondo às pessoas, pelo medo, a busca da cura milagrosa pela fé e o uso indiscriminado de medicamentos receitados por charlatões.

Nos deparamos em verdade, com um tempo em que disseminam-se informações curtas e superficiais por um lado, e, por outro lado, em função de todo um processo de desconstrução das ideias que se firmaram na primeira década do século e que levaram a esquerda ao poder, surgiram alguns arautos da inconformidade, do caos, resgatando discursos medievais, fomentando o medo e disseminando perversões em nome de deus e do resgate do sentido tradicional de família. Nos faz lembrar dos fascistas integralistas na era Vargas, década de 1930, e da malfadada TFP (Tradição Família e Propriedade), que nos anos sessenta e setenta desfilava suas loucuras reacionárias pelas ruas com estandartes em que pregavam a salvação pelos céus e abominavam o comunismo. Eram os tempos da guerra fria e vivíamos sob o domínio de uma ditadura militar. Não é uma repetição da história, mas até isso já se pode ver novamente pelas ruas.

Loucura, estupidez, burrice, intolerância, ódio e um absoluto esvaziamento dos cérebros por meio de repetição de frases bíblicas, de anacronismo, e de força de um neopentecostalismo que faz dos templos espaços de perversão, usura e negócios que extrapolam o que se pregava da fé cristã.

Dentre as aberrações que se diz nos dias de hoje, e que se tornou um mantra repetido ad nausean, tem sido “desideologizar” “sem viés ideológico”. Ora, ideologia é o elemento superestrutural que nos move, e nada mais é do que o conjunto de ideias que determinam as formas como se dão as relações sociais. Pode haver uma ou mais ideologias dominantes, bem como outras que são expressas por grupos que não estão vinculados às classes dominantes, sejam econômica ou politicamente. Assim, é impossível haver qualquer forma de governo, ou qualquer tipo de sociedade, que não seja organizada a partir de ideologias.

Elas se apresentam na forma de religião, na constituição de organizações políticas e sociais, em agrupamentos que se opõem ao establishment e defendem o fim do estado e de todas as formas de dominação, estão em todas as construções filosóficas que representam hábitos e estilos de viver e de contemplar a realidade e o que pode existir para além dela. Ideologia faz parte de nossas vidas, não há como viver sem uma. Acreditar que um governo comandará um estado “sem viés ideológico” só exprime total ignorância e desconhecimento da própria realidade em que se vive.

Mas isso passou a existir. O discurso construído teve como alvo, em um ambiente onde as mídias insuflaram a desesperança e a descrença, os mais pobres, aquelas pessoas frustradas, despolitizadas, sem perspectivas pela frente e atropeladas pelo passado, os que acumularam ao longo da vida frustrações, tendo alimentado a crença que a culpa era deles próprio, não do sistema, e que somente a fé poderia lhes dar algum alento, e os ressentidos, que não se alimentavam dessa fé e passavam a ver na política a responsável por seus fracassos, demonizando indistintamente os que porventura estivessem em algum cargo público.  

Essas percepções, e a enorme quantidade de pessoas facilmente alvos desses discursos, se encaixaram perfeitamente como numa tempestade perfeita, numa conjuntura de forte crise econômica e de caos político, que se criou aqui no Brasil com a disputa visceral pelo poder e a não aceitação do resultado eleitoral de 2014.

Essa não é uma situação fácil de desfazer, porque essas concepções se enraizaram, estão consolidadas pela maneira como a política foi desconstruída e a democracia desmoralizada, como já dito, pelas ações vis que se disseminaram pelas redes sociais.

Assim, diante de um comportamento completamente avesso ao conhecimento científico por parte daqueles que assumiram o poder nesse contexto caótico em que nosso país foi metido, pelas “fake news” e pela estratégia goelbesiana adotada pela grande mídia, tornou-se difícil tentar racionalizar um debate. O contraditório passou a ser negado, como se isso fosse possível, e o debate substituído por ironias, zombarias, ridicularização, menosprezo, escárnio, ódio, desprezo, intolerância, raiva etc.

Esse ambiente foi gestado nos últimos seis anos aqui no Brasil, mas construído há mais de uma década pelo mundo afora, se acentuando quando os EUA deram uma guinada ao escolher seu presidente, elegendo um negro de viés liberal, Barack Obama. Que pela sua postura era visto naquele país como um esquerdista, além da sua própria cor incomodar uma elite branca perversamente intolerante com a diversidade étnica. Muito embora ele fizesse parte do establishment naquele país. Depois disso vingou naquele país, e se espalhou para outras partes, o supremacismo racial, a intolerância política, a homofobia e reforçou com bastante força o machismo, a agredir com mais visibilidade as mulheres.

A partir daí, e em um ambiente de uma grave crise econômica, a política deixou de ser aquele elemento que serve para aplacar as crises, e passou ela própria a fabricar crises, ao sabor de interesses conservadores, de ideologias reacionárias no combate aos comportamentos libertários e de ampliação do poder das igrejas neopentecostais, cada vez mais envolvidas na disputa do Poder político, visando desconstruir as mudanças de comportamentos celeremente em curso e representativas de uma época de forte mudança e de transição.

A política foi derrotada, e em meio a essa onda nefasta de estupidez, tem levado junto a democracia. As duas perderam validade e confiança. No choque desses elementos, envolvendo a força dos avanços dos direitos sociais com os freios conservadores que se ampliaram em meio ao medo gerado pela crise e alimentado pelos púlpitos e pela mídia, abriu-se um enorme abismo que se ampliou indiferente à possibilidade disso se transformar em um enorme caos, com a pandemia. É o tempo da cegueira que se conta pelas páginas bem descritas do escritor português José Saramago. Impossível saber onde vamos parar, já que fica cada vez mais impossível enxergar saídas e alternativas para esses dilemas.

Do lado de cá, preparado para brandir como arma uma ideologia que preze pela solidariedade, pela comum união e pelo respeito à diversidade, sigo enxergando ao longe a utopia. Como aprendi, ela me ajuda a seguir em frente, embora a veja cada vez mais distante à medida que me afasto dos tempos em que meu corpo me garantia mais energia e força para lutar por aquilo que acredito. No momento insisto em escrever, torcendo para que as novas gerações consigam chegar ao fim do último parágrafo, nessa época de informações parciais, curtas e abstratas.

A minha geração fez o que pôde, acreditou que era real o que ainda era utopia, e cabe aos mais novos construir com solidez outros caminhos, que levem na mesma direção do que acreditávamos ser a construção de uma sociedade mais justa, solidária e menos desigual.


(*) Essa crônica é uma adaptação de outra escrita em janeiro de 2019 - https://gramaticadomundo.blogspot.com/2019/01/tempos-insidiosos-como-combater-os.html

 


Um comentário:

  1. Brilhante como sempre, meu grande amigo! Sigamos acreditando e lutando pela utopia de libertação de toda a Humanidade!!

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