domingo, 1 de dezembro de 2019

A EXPERIÊNCIA DE UM SERTANEJO NORDESTINO DA CAATINGA ATÉ O CERRADO GOIANO – E A CAÇA AO PEQUI

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Eu cheguei em Goiás na primeira metade da década de 1970[1]. Para ser mais exato, em 1974. Vim do recôncavo baiano, região enfincada entre o litoral e o sertão. Morava na cidade de Serrinha, famosa por ter uma “água milagrosa”, até cantada em música: “água de Serrinha, milagrosa, muita gente tem a prova...”.[2] Por ali se esparramava muito sisal, onde se produzia corda, muita corda. E se perdia braços, nas máquinas de desfiar o sisal.
Mas minhas lembranças que desejo juntar aqui na transição para o Cerrado, vem é do sertão mais profundo. Perto de onde se convencionou chamar “Raso da Catarina”. Quando eu saí da Bahia tinha 14 anos de idade, e por um tempo morei em Jeremoabo, cidade que faz parte da região que leva esse nome, bem no meio da Caatinga, próximo a Sergipe e Paulo Afonso, onde se situa uma enorme cachoeira e uma enorme represa para geração de energia elétrica. Uma das mais antigas da Bahia.
Passei bons momentos de minha infância por ali. Por certa vez fui por uma necessidade. Minha madrinha, Estelita Montalvão, irmã de minha mãe vivia ali, sozinha. Era uma pessoa que se tornou por um tempo uma segunda mãe. E ela me tinha como um filho, já que nunca tivera um. Eu tinha um carinho e um amor especial por ela. Uma outra tia ficara com nossa família ainda na cidade de Alagoinhas, onde nasci. Era o ano em que nascera meu irmão mais novo, o fatídico ano de 1964. Meu pai era vereador naquela cidade. Se elegeu por cinco mandatos. No último não chegou até o final, foi preso, levado para Salvador, onde ficou por 30 dias, no Forte de Monteserrat. Ele era do PTB, então partido do presidente João Goulart. Minha mãe se recuperava do resguardo pelo nascimento de meu irmão quando os brucutus chegaram lá em casa, armados de fuzis, e sem cerimônia levaram meu pai preso deixando minha mãe no desespero. Eu não vi essas cenas, estava, portanto, em Jeremoabo vivendo com minha tia, exatamente para aliviar a barra para minha mãe.
Ali, numa cidadezinha pacata, sem muita coisa por fazer, vivi bons momentos. E estabeleci uma forte ligação com a caatinga, para onde por muitas vezes saí para caçar com meu pai em períodos de férias. Adentrava aquela vegetação cortante em busca de codorna, nhambu e rolinhas. Adorava fazer farofa desses bichinhos. Não os matávamos por esporte ou diversão.
Andávamos horas e horas por dentro da caatinga, até chegar no rio Vaza Barris. Este tem uma história no meio de outra história. O Vaza Barris nasce próximo a Canudos, lugar que ficou marcado na história pela resistência dos jagunços (O termo "jagunço" é dúbio, com o tempo mudou a sua conotação) liderados por Antonio Conselheiro, na famosa guerra contra milhares de soldados derrotados por três vezes. Até ser completamente dizimada. O açude de Cocorobó, que soterrou parte da história de Canudos, é formado pelas águas do Vaza Barris. Mas nos limites baiano atualmente o rio é intermitente.
De lá o Vaza Barris corta o sertão em direção a Sergipe quando se torna perene, e vai desembocar no Oceano Atlântico, formando no seu estuário na praia de Mosqueiro, em Aracaju.
Foi nesses rincões da caatinga que vivi. Permeados de histórias da jagunçada de Antonio Conselheiro (foi em Jeremoabo a primeira refrega, com os poucos soldados enviados para lá, logo no começo do conflito de Canudos, sendo surpreendidos na delegacia da cidade) de cangaceiros (Lampião visitara várias vezes Jeremoabo, e ouvi muitas histórias do medo imposto por Virgulino e sua turma) e também foi rota da Coluna Prestes.
Carrego comigo cada detalhe daquele lugar, jamais perco esse vínculo e por muitas vezes retornei ali e ainda espero ir mais vezes. A pobreza, a dureza e secura do solo, as árvores espinhentas e pouco frondosas, a raridade dos riachos e rios num ambiente de seca quase permanente, me atraem pela paixão e pela atração do pertencimento. Aquele era o meu lugar. E por isso, por tanto tempo fui apaixonado pela Guerra de Canudos, quase sendo esse o tema do meu mestrado.
Tenho várias edições do livro de Euclides da Cunha, "Os Sertões". Na primeira leitura o sacrifício foi passar das cem primeiras páginas. Mas por ele aprendi a compreender a importância da geologia, embora tenha adquirido um olhar crítico e estratégico e não meramente descritivo. Já li Os Sertões três vezes, e ainda lerei mais.
Nosso destino na Bahia, no entanto, foi encerrado, pelo menos para moradia permanente, com a transferência de meu pai, funcionário do antigo DNER, hoje DNIT, para Morrinhos. Pois é, embora nas cidades, nosso destino nos tirou de uma "Serra" e nos levou para um "Morro". Da caatinga e do recôncavo baiano, para o cerrado goiano.
Um ambiente totalmente diferente. Que nos assustava quando soubemos da mudança que teríamos. Nossos amigos zoavam dizendo que íamos nos ver com os índios. Era essa a imagem que se tinha do “assustadoramente” distante Goiás.
Claro que o que vimos foi completamente diferente. Apesar de características distantes daquela de onde viemos, no falar, no comer, no jeito de se comportar e se vestir. Mas nossa capacidade adaptativa é enorme. Ainda mais quando estamos entrando na adolescência. Foi fácil nos adaptarmos.
Vista panorâmica de Serrinha-BA
Mas as condições econômicas que vivíamos eram muito difíceis. O salário que meu pai ganhava era irrisório, e a vida dele era rolar dívidas. Comprava pacotes de cigarro no armazém da cooperativa dos servidores do DNER, para vender em outros armazéns e ter dinheiro para fazer compras de verduras na feira. Carne, só de frango, criados em casa, e de pombos. Sim, naquela época comíamos pombos, também criados no quintal. E, de vez em quando um tatu, feito ensopado por minha mãe.
Não nos restava outra saída que não nos virarmos para termos um pouco de dinheiro, para nos divertirmos e aproveitar a adolescência. Mas, fazer o quê? Capinei roça de melancia, trabalhei de peão numa usina de fabricar massa asfáltica, tudo ao lado do bairro onde morávamos, em residências construídas para os funcionários do DNER.
E, na ausência dessas atividades, nos embrenhávamos no cerrado. Foi a partir daí que tive contato direto com a flora e a fauna do cerrado, e o conheci na prática, pela necessidade.
Saíamos bem cedo, por volta de cinco horas, ainda escuro, e caminhávamos por quilômetros dentro do cerrado, do lado oposto da BR-153. O bairro onde morávamos era na margem da rodovia. Cada um de nós, íamos em grupo de amigos, às vezes três, mas chegávamos a ir em turma de cinco ou seis, levava dois baldes nas mãos. Os mais fortes ainda carregavam sacolas. Íamos “Caçar Pequi”. Sim, era assim que dizíamos. Ainda cerrado nativo, quanto mais andávamos mais nos deparávamos com imensos pés de pequis. Retornávamos próximo ao meio-dia carregados desse bendito fruto, responsável por nossos divertimentos de finais de semana.
Quando chegávamos nos apressávamos para descascar os frutos (às vezes eram descascados embaixo do próprio pequizeiro). Os dois baldes acabavam virando somente um. E lá íamos para a beira da BR, com um prato, que era como vendíamos os pequis. Não demorava muito e fileira de carros estacionavam perigosamente no encostamento da rodovia, ainda não duplicada. Em menos de duas horas nós conseguíamos vender todos os pequis catados. Era também um divertimento, e não nos envergonhávamos, muito pelo contrário.
Isso durou muito tempo, o pequi tornou-se um fruto bendito, que nos possibilitava aproveitar os fins de semanas, difícil de ser caso dependêssemos de alguma ajuda de nossos pais. Eram tempos difíceis, muito difíceis.
Mas ficou um trauma. Essa também foi a razão por eu nunca ter gostado de comer pequi. Creio que o cheiro forte, por diversas vezes tendo que manuseá-lo, repetidamente, me fez enjoar. Nunca gostei de comer pequi, mas o pequi será inesquecível para mim.
Em 1978 vim para Goiânia, era preciso encontrar um emprego, tão logo concluí o curso colegial. Foi difícil encontrar alguma coisa. Trabalhei de peão de obra, saindo na segunda-feira cedo e dormindo na obra até sábado, como apontador, depois auxiliar de almoxarifado e por fim almoxarife. Até que em 1980, consegui passar no vestibular, depois de me preparar pelos fascículos do curso abril vestibular. Tentei jornalismo, duas vezes, e por fim história.
Vim estudar então na UFG, no Instituto de Ciências Humanas e Letras, bem ao lado da placa que homenageia August de Saint-Hilaire, homenageado neste evento depois de 200 anos de sua passagem pelo Brasil. Desconhecido para mim até então. Mas o bosque, famoso em minha época, mas degradado depois e mal-visto, era conhecido, de forma divertida, como uma área de pouso da “esquadrilha da fumaça”. Os entendedores entenderão. Naquela época era um lugar recôndito para quem queria “relaxar”, e eram poucos os espaços possíveis, diferentes de hoje.
A minha curiosidade me levou a procurar saber quem tinha sido aquele francês que era homenageado com um bosque no recém construído campus da Universidade Federal de Goiás.
E foi dessa forma que conheci um pouco da história de Saint-Hilaire. Não viajei tão longe quanto ele, mas me identifiquei com o seu naturalismo pelo que que já sentira em minha vida.
Hoje sei da importância de viajar, e sempre falo isso para meus alunos e alunas. Viagem, as experiências de grandes geógrafos, biólogos e historiadores (Humboldt, Reclus, Vidal de La Blache... Saint-Hilaire) assim como Charles Darwin, e suas importantes descobertas, se deram pelas viagens, pelos conhecimentos empíricos de realidades complexas, diferentes e admiráveis. Além do mais, vajar nos ajuda a eliminar boa parte de nossos preconceitos.
Era esse o meu relato, e a forma que encontrei de me aproximar do que se propôs a fazer a organização do evento que homenageia esse importante naturalista, botânico, mas sem sombra de dúvidas, pelos seus relatos e observações, também geógrafo e historiador.



Mesa redonda: Romualdo Pessoa,
Eguimar Chaveiro, Lena Castelo Branco
Coord: Profª Fabrizia Gioppo
Foto: Antenor Pinheiro
[1] Esse texto foi elaborado para o evento “Encontro com Saint-Hilaire: 200 anos após sua visita à província de Goiaz”, na mesa redonda: “Solidões” do sertão – estigmas, imaginários e memórias de Goiás. O evento foi organizado pelo grupo de trabalho ligado às linhas de pesquisas da Profª Maria Geralda e coordenado pelo Laboter (Laboratório de Estudos e Pesquisas Territoriais), do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA-UFG).

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