* CRÔNICA PUBLICADA NO LIVRO "DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU".
O futuro não existe. Essa pode ser uma frase forte, que transmite uma sensação de absoluta ausência de esperança. Fomos acostumados a ouvir sempre a tradicional frase: “a esperança é a última que morre”. O intuito sempre foi nos dar força para enxergarmos longe, bem além da realidade presente, em momentos de dificuldades ou de ameaças que apontam para perdas irreparáveis. Buscamos muitas vezes, espiritualmente, retirar forças de nossas fantasias sobre existências sobrenaturais, e com isso nos conformamos muito mais rapidamente com momentos trágicos e de perdas de pessoas que fazem parte de nossas vidas.
Mas, de fato, o futuro é apenas uma construção idealizada por nós. Por mais que essa constatação possa ser apresentada como uma elaboração partida de quem se encontra em estado depressivo, ou de alguém identificado como pessimista ninguém pode, a rigor, viver da expectativa do futuro.
Ou melhor, não deveria viver dessa expectativa. Pois na verdade essa tem sido uma das características do mundo contemporâneo, viver mais do futuro do que compreender o presente. Faz parte de estratégias de marketing, de construção de conceitos e ideologias que visam sustentar um conjunto de valores consolidados pelo tempo dentro da lógica de funcionamento do sistema econômico em que vivemos.
Hoje, onze meses após o desaparecimento de minha filha, vivo a me questionar permanentemente se não perdi muito tempo de minha vida preso entre essas duas realidades virtuais. A de um presente pouco valorizado, no sentido da importância de vivê-lo da melhor maneira possível, sem a obsessão do futuro. E a de um futuro, que representa uma incógnita, naturalmente, que se apresentava como uma condição para justificar a escolha de um caminho de luta para a construção de algo que o presente não representava. E por isso, tornava-se mais importante viver para o futuro do que para o presente.
Um futuro em que você desconstrói o presente, porque ele te revolta e a mudança em si já representaria uma fuga dele. E outro futuro em que você busca construir no presente, abstraindo a existência deste, sem nenhuma certeza de que ele por certo virá. Nas duas vertentes, vivemos todos à espera do futuro, que nunca chegará, simplesmente porque jamais nos conformamos com aquilo que nós mesmos construímos.
Minhas reflexões apontam na necessidade de nos concentrarmos mais sobre o passado para compreendermos o presente. Muito se diz da irrelevância disto, na medida em que o passado se foi, e jamais voltará. Mas não se trata de trazer de volta o passado, que em ultima instância significa a morte do que se foi, e sim a lembrança e o conhecimento de como construímos o mundo presente, onde erramos e acertamos, e por onde, no presente, devemos seguir para tornar nossas vidas mais prazerosas e menos sofridas.
Contudo, pensar dessa maneira tem sido analisado como sintoma de absoluta ausência de vontade de viver, na medida em que ao não enxergarmos o futuro perderíamos qualquer perspectiva de darmos valor ao que pretendemos construir. Assim, estaríamos fadados a simplesmente vivermos parados no tempo, absortos, desprovidos de vontades em realizar mudanças significativas em nossas vidas.
Vamos analisar o que pretendo dizer com o título desta crônica, partindo primeiramente desse pressuposto.
Desde a morte de minha filha tenho ficado a refletir sobre passado, presente e futuro. E percebam que desde a primeira crônica que escrevi tenho evitado usar a palavra “morte”, quando me refiro a ela, preferindo “partida”, pois embora tenha cessado a sua vida, não o foi a sua existência, enquanto permanência em minha memória. Apenas uma partida, uma “triste partida”, quase que como no poema de Patativa do Assaré, de um retorno impossível e de doídas saudades pelo que ficou.
Em minhas aulas repito sempre que a humanidade chegou ao ponto em que estamos pela capacidade que o ser humano adquiriu de construir utopias. De sonhar e lutar incessantemente para que cada sonho se tornasse realidade. Aprendi como na música de Raul Seixas, que “sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só. Sonho que se sonha junto é realidade”. Pensar dessa maneira nos levou muito mais longe do que poderia imaginar os maiores visionários em suas épocas.
Mas o que construímos? Que tipo de sociedade edificamos com essa capacidade única dentre todos os seres vivos que habitam o planeta, de idealizar e de planejar o futuro? Podemos seguramente dizer que realizamos transformações impressionantes, inventamos coisas magníficas que de tão espetaculares nos tornamos delas escravos. Mas dentre tantas capacidades adquiridas, certamente nenhuma delas foi mais eficaz do que a criação de armas que pudessem nos destruir de várias maneiras possíveis. E, de tão inebriados ficamos que já não importava mais a vida do outro, ou até mesmo a melhor maneira de vivermos, senão a necessidade de construirmos um ambiente que se aproximasse ao máximo da idealização de um futuro marcado por essa capacidade inventiva.
Com isso tornou-se difícil construirmos um único futuro. A rapidez com que mudavam e mudam-se os valores nos impunham a necessidade de descartarmos num espaço de tempo cada vez menor aquilo que imaginávamos ser um futuro distante. Era preciso refazê-lo, pois, permanentemente. Na mesma rapidez com que se intensificavam os produtos, mercadorias, que definiriam a nossa maneira futurística de viver. Mudamos, assim, o futuro, sem jamais tê-lo vivido.
Presente e futuro passaram a se confundir. Ou, como conhecemos academicamente, o arcaico e o moderno passam a viver lado a lado, momento em que o futuro chegou para alguns e a permanência do passado caracteriza os outros. Estes passam a serem conhecidos como excluídos. Os demais, parcelas diminutas da sociedade rumam aceleradamente para um futuro que para alguns se encontra inatingível, muito embora o sistema ache várias formas de fazer com que todos, absolutamente todos, mantenham sempre a esperança de que ele será alcançável tal qual é imaginado, sonhado e até mesmo trazido para o presente de forma virtual.
Com isso, creio que mais do que viver o presente, passamos a viver para o futuro. Não importando as dificuldades que tenhamos para atingi-lo ou até mesmo jamais chegar a vivê-lo, seja pela morte que prematuramente pode inviabilizá-lo, seja porque na maneira como o mundo divide-se o futuro sonhado só é mesmo possível para alguns. O que também não garante nenhuma certeza de que ele virá, na medida em que a morte desconhece valores, crenças e condições sociais. Ela sim, é a única certeza do futuro.
Ao mesmo tempo em que deixamos o presente e vivemos em função do futuro, esquecemos o passado quase por completo. Nossa memória torna-se cada vez mais seletiva e abstraímos determinadas condições e até mesmo a história que nos trouxe ao ponto em que nos encontramos. Em meio a um mundo de incessantes mudanças vemos a todo o momento lamento de pessoas que afirmam nada mudar: “As coisas são sempre assim, nunca vão mudar”, dizem contraditoriamente em meio a um ambiente e a uma realidade sociais profundamente dinâmicos, de permanentes mudanças.
Diante de uma dor infinita e do sofrimento pela perda de minha filha, tento redimensionar meu olhar sobre o mundo e compreender melhor nossas vidas. Tenho sido amargo em minhas reflexões porque quando paramos para observar o presente somos bombardeados por um aparato midiático que busca explorar certas características que foram se tornando marcas em nossa maneira de viver. Os meios de comunicação, em suas buscas ávidas por audiência que lhes aumentem os ganhos financeiros, exploram a curiosidade mórbida que se acentuou na natureza humana, até mesmo por algumas crenças religiosas que visam apresentar o sacrifício como elemento permanente na nossa relação entre a vida, morte e a salvação espiritual.
Imagino, no entanto, que viver a vida presentemente, absorvendo o passado de forma positiva, sem, contudo, cairmos em um mundo de auto-ajuda ou auto-sacrifício, deixando de lado a obsessão futurística, seria a melhor maneira de encontrarmos um caminho menos individualista e egoísta para a humanidade. Achar o caminho não significa idealizar o futuro. Ele será construído na medida em que o presente vá sendo consolidado. O que nos falta é compreender que não haverá futuro algum se no presente algum obstáculo nos impedir de seguir adiante.
Sem minha filha, tendo a repensar minha vida a partir do universo que me cerca. Do que ficou de minha família, sem a Carol, mas com o meu filho Iago e minha esposa. De que adiantou pensar tanto no futuro de minha filha se sua vida foi ceifada. Poderíamos ter vivido de forma diferente, ser mais tolerante, construído melhor nossas relações e imposto menos sacrifício aos dias que se passaram, quase sempre vistos como um degrau para o futuro. Pensar diferente o presente, estreitar nossos laços mais com o passado, sem viver necessariamente de nostalgias, mas sem a obsessão de que o futuro é tudo em nossas vidas, pode nos ajudar a aproveitar melhor cada momento junto daquelas pessoas de quem gostamos. E até mesmo olharmos o outro com menos desconfiança.
Isso nos remete à discussão sobre o sentido da utopia. Pode parecer que assim deixo de pensar um futuro utópico e tento viver essa utopia no presente completamente destoado da realidade que é o mundo hoje. Isso é fato. Constatar isso, saber o quão difícil seja enfrentar os desafios de um mundo que se tornou extremamente complexo e demasiadamente humano, para parafrasear Nietsche, amplia as nossas angústias e nos transfere para um universo de questionamentos e incertezas que podem nos afundar numa depressão. Esta que tem sido talvez por isso mesmo, a doença mais característica dos tempos atuais e tem produzido uma geração profundamente ansiosa.
A dúvida entre viver o presente real, construir um mundo virtual ou um futuro desejável, mas profundamente incerto, é algo que nos deixa completamente inseguros e fragilizados, apesar de sentirmos a necessidade de nos apresentarmos como pessoas fortes e plenas de segurança pelo que queremos. O que queremos é o futuro. Mas será que veremos esse futuro que queremos? Essa questão não encerra esta crônica, antes nos leva de volta ao começo.
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(*) Esta crônica foi publicada no livro "Depois que você partiu", com o título: "Não verás futuro algum". Achei melhor modificá-lo, pois o tempo me fez ver que o título original transparecia uma visão de rendição ao incerto. Não era o sentido que tentei expressar em seu conteúdo, como pode ser atestado na leitura.
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(*) Esta crônica foi publicada no livro "Depois que você partiu", com o título: "Não verás futuro algum". Achei melhor modificá-lo, pois o tempo me fez ver que o título original transparecia uma visão de rendição ao incerto. Não era o sentido que tentei expressar em seu conteúdo, como pode ser atestado na leitura.
CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Depois que você partiu. Goiânia: Editora Kelps, 2014. 2ª edição, ampliada. Pp. 101-106.
(Nota: A primeira edição do livro foi publicada em dezembro de 2008. Um ano depois da morte de Ana Carol, em 13 de dezembro de 2007. Essa crônica faz parte da primeira edição)
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