sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

QUERIDA CAROL, NUNCA LHE ESQUECEMOS. VOCÊ NOS FAZ MUITA FALTA.

Minha querida Carol,
A última carta que lhe escrevi foi em 2010, muito embora eu tivesse de lá pra cá escrito diversas outras crônicas dedicadas a você. Por esse tempo todo, eu e sua mãe, sempre conversamos com você, de diversas maneiras e cada um a seu jeito. O que não permitimos, jamais, é deixar que nosso pensamento por sequer um dia nos afaste de sua lembrança. Você nos acompanha em cada momento de nossas vidas, ao nosso lado, em nossa memória em nossos corações.
Neste dia, sempre, como no dia de seu aniversário e no dia dedicado aos que já partiram, o dia de finados, reservamos em nosso tempo o momento em que seguimos para o lugar da última morada de seu pequeno e ainda frágil corpo. O que nos resta é nos debruçarmos sobre sua sepultura, simbolicamente, e ali, por alguns minutos, em que lembranças passam celeremente, ficamos num diálogo mudo, silencioso, refletindo sobre a falta que você nos faz por todo esse tempo.
Hoje é um dia em que me retraio, paro para escrever essas cartas e crônicas e passo o dia recluso, a pensar em você e em como teria sido diferente a nossa vida com você entre nós fisicamente, não somente nas lembranças.
Muita coisa aconteceu por esse tempo. Houve uma espécie de revolução no comportamento das pessoas. Aqui em nosso país e no mundo. Para seu pai que é estudioso dessas questões, não houve muita surpresa, mas certas circunstâncias e comportamentos tem nos deixado espantados e apreensivos. Nem tudo poderia ter sido previsto, dado a intensidade com que tem acontecido. E a estupidez se tornou condutora de atos impensáveis há alguns anos. Até na escolha de quem nos governa.
Em meio a tudo isso, e com uma importância que para nós tem uma dimensão enorme, seu irmão, nosso querido Iago, se tornou presidente da maior e mais importante entidade da juventude estudantil brasileira, a União Nacional dos Estudantes.
Minha filha, sabemos o quanto você admirava Iago, e ficamos a imaginar como você estaria por aqui entre nós, nesse momento de protagonismo tão grande de seu irmão, que muito nos orgulha, mas que nos preocupa também. Ficamos eu e sua mãe a nos perguntar como você estaria hoje, provavelmente já na universidade, em meio a um ambiente que se tornou foco das loucuras de um governo bizarro que saiu sabe-se lá de qual galáxia e aportou por aqui para atazanar as vidas das pessoas de bem, trabalhadoras, e daquelas que sempre sofreram as maiores perversidades de um sistema injusto e desigual. Paradoxalmente, muitas dessas pessoas, pobres e viventes da periferia, ajudaram a eleger esse (des)governo. Sabe-se lá as razões, temos que descobrir, e estamos fazendo isso.
A conclusão que sempre chegamos, em nossos sonhos que jamais se realizarão, é que você estaria tão engajada quanto ele, porque foi assim o ambiente em que você viveu em seus intensos dez anos de uma vida curta. Em meio a reuniões partidária, de um partido de esquerda, combativo e combatido por sua ideologia e por se opor firmemente à essa lógica insana capitalista, e, principalmente nas reuniões de mulheres que você frequentava com sua mãe, na associação de moradores do conjunto Caiçara e até mesmo na Assembleia Legislativa, onde sua mãe trabalhava na assessoria da deputada Denise Carvalho e na UFG, onde você percorria os corredores do Instituto em que eu trabalho, mas ainda no prédio antigo.
Esse ambiente só poderia ter lhe criado condições de ver uma vida por um viés progressista, de luta e de busca por tentar corrigir as distorções de um mundo perverso e desigual. Foi esse caminho que Iago seguiu. Não temos dúvida que você hoje seria protagonista dessa luta contra esse modelo nefasto que se tornou o podre poder político em nosso país.
Por todos esses últimos anos minha filha, desde 2015, quando você completaria 18 anos, passei a observar atentamente cada uma das minhas alunas, e a procurar nelas algum traço de como você seria, ou poderia ter sido. Tento encontrar características que poderiam me dizer: assim seria a Carol. Mas em cada uma dessas garotas vejo traços seus, mas me falta identificar nelas um perfil que você teria com certeza, da impulsividade, da ousadia, da intrepidez, traços que já identificávamos em sua personalidade. Vejo isso somente em algumas, pouquíssimas. Apesar de ser um momento tenso, de uma dificuldade que será crescente para essa geração de hoje, da qual você faria parte. Não vejo muita disposição de se lutar contra os absurdos que tem acontecido. Há uma relativa paralisia, talvez um estupor, diante de um quadro tão terrível.
Seu pai é professor, gosta de escrever, e, como de hábito costuma usar palavras que não são muito usuais, principalmente em uma realidade em que as palavras estão sendo substituídas por figurinhas. Mas quando falo estupor, quero dizer que há um entorpecimento nas pessoas, de perda de sensibilidade, e de uma certa conivência com a estupidez que passou a comandar as ações no governo e se espalha pela sociedade perigosamente.
É contra isso que seu irmão tem lutado com muita altivez, se destacando e se transformando em uma grande liderança da juventude. Cremos, com toda a corujice que é possível, embora triste por ser somente a construção de um futuro impossível, apesar de ser absurdo acreditarmos em futuro, já que ele é sempre uma construção que miramos a partir do hoje, que você estaria nesse embate, e talvez a nos causar mais apreensão e digo porquê.
Minha filha, você costumava estar presente nas reuniões do Centro Popular da Mulher, em que se discutia e se discute as pautas do movimento de luta das mulheres. Mas certamente você ainda não tinha o entendimento dessas questões em sua profundidade. Nos últimos anos de sua vida, no entanto, você já começava a ter essa percepção, embora ainda muito distante de compreender a realidade sofrida e opressiva das mulheres. Pois, creia, desde quando você partiu dessa vida, para os dias de hoje, embora o protagonismo das mulheres tenha aumentado em suas lutas por emancipação, respeito, dignidade e igualdade de direitos, o que se vê é a ampliação do machismo de tal forma que nunca se viu tantos casos de feminicídios (essa é uma palavra que nem se falava tanto) e violências absurdas, estúpidas e cretinas como está acontecendo todos os dias de forma escandalosa. Isso é o que nos faz pensar de que forma você lidaria com isso e como nós nos sentiríamos sabendo que hoje cada mulher é um alvo em potencial dessa agressividade doentia, de uma psicosociopatia cruel. Já estou eu a falar novamente uma palavra inusual. Na verdade, procurei seu significado e não encontrei, então fica como uma formulação minha, na junção de psicopatia e sociopatia. É assim que podemos caracterizar muitos desses casos de feminicídio e agressão às mulheres.
Querida Carol, não conseguirei relatar aqui todas as mudanças que aconteceram ao longo desse tempo interminável que marca sua partida e esse momento em que completam 12 anos que não mais a podemos ver em vida. Ao mesmo tempo, como sempre acontece nesse dia em que lhe escrevo, ou escrevo uma crônica sobre você, os meus olhos turvam, as lágrimas me criam dificuldades e a memória me leva mais ao passado distante do que a momentos recentes.
Mas não pense minha querida, que nos escondemos da vida. Por anos a dor era muito forte, a depressão me consumia e eu fiquei travado. Até parte de minha memória se foi, e pouco a pouco fui recuperando. Sua mãe se envolveu em dois projetos maravilhosos, da criação do Instituto que leva o seu nome – Instituto Ana Carol – e depois da criação dele veio a Cooperativa de Bordadeiras – Bordana. Ela juntou terapia, luto, resiliência e desprendimento para envolver mulheres que pudessem não somente manter suas lembranças, mas criar algum tipo de protagonismo e empoderamento para muitas delas. Não tenho dúvidas que ela conseguiu, em meio a dificuldades que persistem, por falta de dinheiro e estrutura.
Ela segue lutando, a Bordana crescendo em visibilidade e eu irei dar a minha contribuição mais efetiva em breve, quando me aposentar. Aí poderei assumir a presidência do IAC e quem sabe poder fazer com que alguns dos projetos que ela tenta desenvolver possam sair do papel, já que a Bordana passou a consumir muito tempo e energia. Positivas, naturalmente, algo que sua mãe sempre procura ter, e nisso ela se contrapõe a mim, já que temos personalidades diferentes, você já percebia disso em vida.
Não que eu seja pessimista, mas como repito sempre citando um grande escritor nordestino, paraibano e pernambucano, Ariano Suassuna, me coloco na condição de um “realista esperançoso”. No entanto, penso às vezes que ela está certa, e talvez deva incluir a palavra “otimista”, sem ser tolo e não compreender que a realidade às vezes nos passa rasteiras quando acreditamos demais no imponderável, naquilo que se torna impossível de se atingir, mas pelo otimismo sempre acreditamos. É assim que ela é, e aprendo muito, embora não tanto na rapidez que ela gostaria. Mas utopia é isso, é acreditarmos em algo muitas vezes distante, aparentemente inatingível, mas que nos ajuda a caminhar, como bem dizia um escritor uruguaio, Eduardo Galeano.
Minha linda para sempre criança, como escrevi em uma crônica remetendo aos tempos de Peter Pan e da Terra do Nunca, “Minha eterna Wendy”. Esses doze anos se contam também em nossas vidas. Seu pai envelheceu, tanto pelo tempo que se esvai, como pelo sofrimento da dor de lhe ver partindo dessa vida. Já vivi mais tempo do que viverei, e, como sou ateu, não alimento expectativa de que após essa vida tenhamos alguma outra que nos faça reencontrar. Quem vive, e fica, carrega no coração e nas memórias as lembranças e as imagens de quem partiu. Como fazemos cotidianamente em relação a você, e às outras pessoas queridas que também já partiram.
Minha vez chegará, em breve ou sabe-se lá daqui a quantos anos. Espero, com toda a força desse mundo, que sua mãe e o Iago estejam ao meu lado quando chegar a minha vez, e, tenho certeza que se minha morte for lenta, seu rosto, seu jeito, suas lembranças serão aquelas que mais fortemente se farão presentes nesse momento. E se rapidamente, de forma fulminante eu me for, por frações de segundos eu me lembrarei de você, tamanho o amor que carrego em meu coração que jamais deixará de bater sem que eu tenha sua imagem em minha frente. Por isso sempre carrego para todos os lados em que vou, principalmente nas viagens, o último cartão que você me deu de presente no dia dos pais, e uma foto em que tiramos na Adufg, com seu olhar meigo, embora triste nessa foto.
Seu pai, desse jeito que relato, materialista, ateu e um realista esperançoso, carrega no peito todo o amor do mundo, por você e por seu irmão, como partes de mim, saídas de mim, e de sua mãe, naturalmente, que junto comigo vive cada momento desses de intensas saudades, dor e lembranças alegres (e triste, por quando você se adoentou e não resistiu à uma doença terrível que não sabíamos estar em seu corpo).
Nunca vamos lhe esquecer e o amor que sentimos não diminui. E isso é que nos dá força, junto com o orgulho que sentimos de se irmão. O amor nos dá força, e temos certeza que será por esse caminho, não do ódio que reconstruiremos essa nossa sociedade. Nos inspiraremos em você, e no Iago, para seguirmos adiante em nossas vidas, honestamente e combatendo as injustiças como pudermos.
Até mais minha querida, beijos, muitos beijos distribuímos no dia de hoje e sempre, por suas imagens que estão espalhadas por nosso casa, em suas lembranças, nas músicas que ouvimos... Ah, aquela música que eu cantava pra você, com minha voz afônica e disritmada, “Você é linda”, uma bela canção do Caetano Veloso que foi cantada à capela em seu velório, sempre me faz lembrar de ti, e às vezes me leva às lágrimas quando a escuto.
Para o todo e sempre, porquanto formos vivos, você estará presente em nossas vidas, em nossas memórias, em nossos corações. As saudades fazem parte do nosso cotidiano, porque “saudade é o amor que fica”.
Beijos de seu pai, de sua mãe e de seu irmão.
13 de dezembro de 2019, 12 anos depois que você partiu.


PS: Ontem, dia 12, assistimos a defesa de um Trabalho de Final de Curso (TCC), no curso de Comunicação da PUC, apresentado pela aluna Jássia Muryelle. Foi emocionante ver, uma apresentação e um vídeo que resgata toda uma luta pela superação de um momento que nos tirou parte de nossas vidas. A seguir insiro o link para esse vídeo, que publiquei no meu canal no Youtube.
Acesse, assista e compartilhe.

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