A última carta que lhe escrevi foi em 2010, muito
embora eu tivesse de lá pra cá escrito diversas outras crônicas dedicadas a
você. Por esse tempo todo, eu e sua mãe, sempre conversamos com você, de
diversas maneiras e cada um a seu jeito. O que não permitimos, jamais, é deixar
que nosso pensamento por sequer um dia nos afaste de sua lembrança. Você nos
acompanha em cada momento de nossas vidas, ao nosso lado, em nossa memória em
nossos corações.
Neste dia, sempre, como no dia de seu aniversário e no
dia dedicado aos que já partiram, o dia de finados, reservamos em nosso tempo o
momento em que seguimos para o lugar da última morada de seu pequeno e ainda
frágil corpo. O que nos resta é nos debruçarmos sobre sua sepultura,
simbolicamente, e ali, por alguns minutos, em que lembranças passam
celeremente, ficamos num diálogo mudo, silencioso, refletindo sobre a falta que
você nos faz por todo esse tempo.
Hoje é um dia em que me retraio, paro para escrever
essas cartas e crônicas e passo o dia recluso, a pensar em você e em como teria
sido diferente a nossa vida com você entre nós fisicamente, não somente nas
lembranças.
Muita coisa aconteceu por esse tempo. Houve uma
espécie de revolução no comportamento das pessoas. Aqui em nosso país e no
mundo. Para seu pai que é estudioso dessas questões, não houve muita surpresa,
mas certas circunstâncias e comportamentos tem nos deixado espantados e apreensivos.
Nem tudo poderia ter sido previsto, dado a intensidade com que tem acontecido.
E a estupidez se tornou condutora de atos impensáveis há alguns anos. Até na
escolha de quem nos governa.
Em meio a tudo isso, e com uma importância que para
nós tem uma dimensão enorme, seu irmão, nosso querido Iago, se tornou
presidente da maior e mais importante entidade da juventude estudantil brasileira,
a União Nacional dos Estudantes.
Minha filha, sabemos o quanto você admirava Iago, e
ficamos a imaginar como você estaria por aqui entre nós, nesse momento de
protagonismo tão grande de seu irmão, que muito nos orgulha, mas que nos
preocupa também. Ficamos eu e sua mãe a nos perguntar como você estaria hoje,
provavelmente já na universidade, em meio a um ambiente que se tornou foco das
loucuras de um governo bizarro que saiu sabe-se lá de qual galáxia e aportou
por aqui para atazanar as vidas das pessoas de bem, trabalhadoras, e daquelas
que sempre sofreram as maiores perversidades de um sistema injusto e desigual. Paradoxalmente, muitas dessas pessoas, pobres e viventes da periferia, ajudaram a eleger esse (des)governo. Sabe-se lá as razões, temos que descobrir, e estamos fazendo isso.
A conclusão que sempre chegamos, em nossos sonhos que
jamais se realizarão, é que você estaria tão engajada quanto ele, porque foi
assim o ambiente em que você viveu em seus intensos dez anos de uma vida curta.
Em meio a reuniões partidária, de um partido de esquerda, combativo e combatido
por sua ideologia e por se opor firmemente à essa lógica insana capitalista, e,
principalmente nas reuniões de mulheres que você frequentava com sua mãe, na associação
de moradores do conjunto Caiçara e até mesmo na Assembleia Legislativa, onde
sua mãe trabalhava na assessoria da deputada Denise Carvalho e na UFG, onde
você percorria os corredores do Instituto em que eu trabalho, mas ainda no
prédio antigo.
Esse ambiente só poderia ter lhe criado condições de ver
uma vida por um viés progressista, de luta e de busca por tentar corrigir as
distorções de um mundo perverso e desigual. Foi esse caminho que Iago seguiu.
Não temos dúvida que você hoje seria protagonista dessa luta contra esse modelo
nefasto que se tornou o podre poder político em nosso país.
Por todos esses últimos anos minha filha, desde 2015,
quando você completaria 18 anos, passei a observar atentamente cada uma das
minhas alunas, e a procurar nelas algum traço de como você seria, ou poderia
ter sido. Tento encontrar características que poderiam me dizer: assim seria a
Carol. Mas em cada uma dessas garotas vejo traços seus, mas me falta
identificar nelas um perfil que você teria com certeza, da impulsividade, da
ousadia, da intrepidez, traços que já identificávamos em sua personalidade.
Vejo isso somente em algumas, pouquíssimas. Apesar de ser um momento tenso, de
uma dificuldade que será crescente para essa geração de hoje, da qual você faria
parte. Não vejo muita disposição de se lutar contra os absurdos que tem
acontecido. Há uma relativa paralisia, talvez um estupor, diante de um quadro
tão terrível.
Seu pai é professor, gosta de escrever, e, como de
hábito costuma usar palavras que não são muito usuais, principalmente em uma
realidade em que as palavras estão sendo substituídas por figurinhas. Mas
quando falo estupor, quero dizer que há um entorpecimento nas pessoas, de perda
de sensibilidade, e de uma certa conivência com a estupidez que passou a comandar
as ações no governo e se espalha pela sociedade perigosamente.
É contra isso que seu irmão tem lutado com muita
altivez, se destacando e se transformando em uma grande liderança da juventude.
Cremos, com toda a corujice que é possível, embora triste por ser somente a
construção de um futuro impossível, apesar de ser absurdo acreditarmos em
futuro, já que ele é sempre uma construção que miramos a partir do hoje, que
você estaria nesse embate, e talvez a nos causar mais apreensão e digo porquê.
Minha filha, você costumava estar presente nas
reuniões do Centro Popular da Mulher, em que se discutia e se discute as pautas
do movimento de luta das mulheres. Mas certamente você ainda não tinha o
entendimento dessas questões em sua profundidade. Nos últimos anos de sua vida,
no entanto, você já começava a ter essa percepção, embora ainda muito distante
de compreender a realidade sofrida e opressiva das mulheres. Pois, creia, desde
quando você partiu dessa vida, para os dias de hoje, embora o protagonismo das
mulheres tenha aumentado em suas lutas por emancipação, respeito, dignidade e igualdade
de direitos, o que se vê é a ampliação do machismo de tal forma que nunca se
viu tantos casos de feminicídios (essa é uma palavra que nem se falava tanto) e
violências absurdas, estúpidas e cretinas como está acontecendo todos os dias
de forma escandalosa. Isso é o que nos faz pensar de que forma você lidaria com
isso e como nós nos sentiríamos sabendo que hoje cada mulher é um alvo em
potencial dessa agressividade doentia, de uma psicosociopatia cruel. Já estou
eu a falar novamente uma palavra inusual. Na verdade, procurei seu significado
e não encontrei, então fica como uma formulação minha, na junção de psicopatia
e sociopatia. É assim que podemos caracterizar muitos desses casos de feminicídio
e agressão às mulheres.
Querida Carol, não conseguirei relatar aqui todas as
mudanças que aconteceram ao longo desse tempo interminável que marca sua
partida e esse momento em que completam 12 anos que não mais a podemos ver em
vida. Ao mesmo tempo, como sempre acontece nesse dia em que lhe escrevo, ou
escrevo uma crônica sobre você, os meus olhos turvam, as lágrimas me criam
dificuldades e a memória me leva mais ao passado distante do que a momentos
recentes.
Mas não pense minha querida, que nos escondemos da
vida. Por anos a dor era muito forte, a depressão me consumia e eu fiquei
travado. Até parte de minha memória se foi, e pouco a pouco fui recuperando.
Sua mãe se envolveu em dois projetos maravilhosos, da criação do Instituto que
leva o seu nome – Instituto Ana Carol – e depois da criação dele veio a
Cooperativa de Bordadeiras – Bordana. Ela juntou terapia, luto, resiliência e desprendimento
para envolver mulheres que pudessem não somente manter suas lembranças, mas
criar algum tipo de protagonismo e empoderamento para muitas delas. Não tenho
dúvidas que ela conseguiu, em meio a dificuldades que persistem, por falta de
dinheiro e estrutura.
Ela segue lutando, a Bordana crescendo em visibilidade
e eu irei dar a minha contribuição mais efetiva em breve, quando me aposentar.
Aí poderei assumir a presidência do IAC e quem sabe poder fazer com que alguns
dos projetos que ela tenta desenvolver possam sair do papel, já que a Bordana
passou a consumir muito tempo e energia. Positivas, naturalmente, algo que sua
mãe sempre procura ter, e nisso ela se contrapõe a mim, já que temos
personalidades diferentes, você já percebia disso em vida.
Não que eu seja pessimista, mas como repito sempre
citando um grande escritor nordestino, paraibano e pernambucano, Ariano
Suassuna, me coloco na condição de um “realista esperançoso”. No entanto, penso
às vezes que ela está certa, e talvez deva incluir a palavra “otimista”, sem
ser tolo e não compreender que a realidade às vezes nos passa rasteiras quando
acreditamos demais no imponderável, naquilo que se torna impossível de se
atingir, mas pelo otimismo sempre acreditamos. É assim que ela é, e aprendo
muito, embora não tanto na rapidez que ela gostaria. Mas utopia é isso, é acreditarmos
em algo muitas vezes distante, aparentemente inatingível, mas que nos ajuda a
caminhar, como bem dizia um escritor uruguaio, Eduardo Galeano.
Minha linda para sempre criança, como escrevi em uma crônica
remetendo aos tempos de Peter Pan e da Terra do Nunca, “Minha eterna Wendy”.
Esses doze anos se contam também em nossas vidas. Seu pai envelheceu, tanto pelo
tempo que se esvai, como pelo sofrimento da dor de lhe ver partindo dessa vida.
Já vivi mais tempo do que viverei, e, como sou ateu, não alimento expectativa
de que após essa vida tenhamos alguma outra que nos faça reencontrar. Quem
vive, e fica, carrega no coração e nas memórias as lembranças e as imagens de
quem partiu. Como fazemos cotidianamente em relação a você, e às outras pessoas
queridas que também já partiram.
Minha vez chegará, em breve ou sabe-se lá daqui a
quantos anos. Espero, com toda a força desse mundo, que sua mãe e o Iago
estejam ao meu lado quando chegar a minha vez, e, tenho certeza que se minha
morte for lenta, seu rosto, seu jeito, suas lembranças serão aquelas que mais
fortemente se farão presentes nesse momento. E se rapidamente, de forma fulminante
eu me for, por frações de segundos eu me lembrarei de você, tamanho o amor que
carrego em meu coração que jamais deixará de bater sem que eu tenha sua imagem
em minha frente. Por isso sempre carrego para todos os lados em que vou,
principalmente nas viagens, o último cartão que você me deu de presente no dia
dos pais, e uma foto em que tiramos na Adufg, com seu olhar meigo, embora
triste nessa foto.
Seu pai, desse jeito que relato, materialista, ateu e
um realista esperançoso, carrega no peito todo o amor do mundo, por você e por
seu irmão, como partes de mim, saídas de mim, e de sua mãe, naturalmente, que
junto comigo vive cada momento desses de intensas saudades, dor e lembranças
alegres (e triste, por quando você se adoentou e não resistiu à uma doença
terrível que não sabíamos estar em seu corpo).
Nunca vamos lhe esquecer e o amor que sentimos não
diminui. E isso é que nos dá força, junto com o orgulho que sentimos de se
irmão. O amor nos dá força, e temos certeza que será por esse caminho, não do ódio
que reconstruiremos essa nossa sociedade. Nos inspiraremos em você, e no Iago,
para seguirmos adiante em nossas vidas, honestamente e combatendo as injustiças
como pudermos.
Até mais minha querida, beijos, muitos beijos distribuímos
no dia de hoje e sempre, por suas imagens que estão espalhadas por nosso casa,
em suas lembranças, nas músicas que ouvimos... Ah, aquela música que eu cantava
pra você, com minha voz afônica e disritmada, “Você é linda”, uma bela canção
do Caetano Veloso que foi cantada à capela em seu velório, sempre me faz lembrar
de ti, e às vezes me leva às lágrimas quando a escuto.
Para o todo e sempre, porquanto formos vivos, você
estará presente em nossas vidas, em nossas memórias, em nossos corações. As
saudades fazem parte do nosso cotidiano, porque “saudade é o amor que fica”.
Beijos de seu pai, de sua mãe e de seu irmão.
13 de dezembro de 2019, 12 anos depois que você
partiu.
PS: Ontem, dia 12, assistimos a defesa de um Trabalho de Final
de Curso (TCC), no curso de Comunicação da PUC, apresentado pela aluna Jássia
Muryelle. Foi emocionante ver, uma apresentação e um vídeo que resgata toda uma
luta pela superação de um momento que nos tirou parte de nossas vidas. A seguir
insiro o link para esse vídeo, que publiquei no meu canal no Youtube.
Acesse, assista e compartilhe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário