Em recente
discurso, o presidente da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom, fez um
apelo emocionado e deixou uma indagação que merece toda a reflexão: “Porque é
tão difícil para os humanos se unirem?”
Pois bem, esse é o
assunto que trago para discussão. Embora essa temática já tivesse sido escolhida
bem antes de ler sobre o desabafo do presidente da OMS, no momento em esta
organização está sob pressão dos EUA e de outros países governados por políticos
de extrema-direita, inclusive o Brasil. E por isso a minha abordagem vai além
da análise política.
São nesses tempos
de crises que se escancaram comportamentos que podem definir as condições pelas
quais as pessoas se posicionam na relação com os demais. Em tipos de sociedades
como a que vivemos, fundadas em elementos que nos dividem e segregam, onde os
preconceitos e a intolerância, acompanhados de discursos de ódios, se somam à
busca egoísta pela riqueza individual, isso fica evidente mesmo em períodos de
normalidade, ou de estabilidade política e econômica. As crises só escancaram e
desnudam esses comportamentos, a ponto de descobrirmos haver um alto índice de
sociopatas com os quais dividimos até mesmo os espaços familiares. Isso não é
genético, é cultural.
Mas precisamos
entender como isso funciona. Muitas vezes nos espantamos, e ficamos indignados,
com determinadas ações de indivíduos, isoladamente ou em grupos, e nos
irritamos com atitudes mesquinhas, desprovidas de um mínimo sentimento de
solidariedade, ou de respeito às diferenças sociais, e de origens, em relação à
outras pessoas. Só que isso sempre é visto com um viés particularista. Ou seja,
imagina-se ser um traço do caráter daquele indivíduo que pratica esse tipo de
ato.
Sim, é verdade.
Isso reflete um perfil de caráter, que se expõe em atos perversos. No entanto,
não é isolado. É resultado de atitudes acumuladas em padrões de comportamentos
sociais. Porque isso está ligado às condições de classe social, por um lado, e
por outro lado pela assimilação de valores culturais da classe dominante, que
afetam pessoas de segmentos da sociedade das camadas baixas da pirâmide social.
Ou seja, mesmo entre os pobres, em cuja faixa se mostra mais presente atitudes
solidárias, esse padrão de comportamento se manifesta, de forma cada vez mais
intensa e com grau de radicalidade que beira o fascismo.
O ALTRUÍSMO
Um dos livros mais
importante em minha trajetória como professor, graduado em história e doutorado
em geografia, foi “O povo do lago”[1], escrito pelo
paleoantropólogo Richard Leakey e o biólogo Roger Lewin. Tendo como cenário o
lago Turkana, localizado nas fronteiras do Quênia e da Etiópia, na África, onde
um importante sítio arqueológico – Koobi Fora – possibilitou que inúmeros
vestígios sobre nossas origens fossem descobertos, esses pesquisadores
conseguiram transmitir, de forma simples, em um relato de fácil compreensão até
para os mais leigos, como nos constituímos enquanto seres humanos, nossa
relação com a natureza e os caminhos em direção ao futuro.
Um de seus
capítulos, e no qual foco meu olhar para essa abordagem, faz referência à forma
como os hominídeos, nossos ancestrais primitivos, conseguiram sobreviver em
meio a ambientes inóspitos, selvagens, embora fossem mais frágeis que seus
adversários em uma natureza livre, onde se impunha a força e a condição de
sobrevivência adequada à capacidade adaptativa.
É importante
destacar como esses autores se referem, ao contrário do que tradicionalmente se
via na história, à coleta como elemento mais importante na consolidação da vida
sedentária, em comparação com a caça. Porque esta não era garantia de sucesso
por todo o tempo, já que nos primórdios a ausência de instrumentos eficazes
impedia que os grupos humanos, notadamente os machos, retornassem ao grupo
trazendo animais abatidos. A coleta, desenvolvida pelas mulheres, tornou-se,
assim, a garantia de alimentos diariamente, fazendo com que surgissem também os
primeiros utensílios, as sacolas, para transportá-los. Constituía-se, portanto,
como sociedade de coletoras-caçadores.
Mas, tanto em
relação à caça, em muitos casos somente com obtenção de carniças, ou seja, dos
restos de carcaças deixadas para trás por grandes animais, como também na
coleta, o elemento primordial a se destacar, e seguramente o que garantiu a
sobrevivência humana, foi o altruísmo.
O altruísmo, ou
essa capacidade de compartilhamento e cooperação, adquirida pelos hominídeos, se
tornou o elemento mais importante para explicar a nossa sobrevivência em cenários
complexos e adversos. Pode-se dizer que o altruísmo foi a condição necessária
para que pudéssemos evoluir nos protegendo em grupos e nos ajudando mutuamente.
Isso em grande
medida saiu do caminho natural, espontâneo e de sobrevivência, para se tornar
disperso entre grupos sociais, sendo mais forte naqueles segmentos mais pobres,
nas periferias das cidades, ou nas igrejas e instituições criadas por essas, na
medida em que a caridade se constituía como uma maneira de amenizar os pecados
individuais.
Evoluímos para
formas de organizações sociais que se fundamentaram na propriedade privada da
terra, e depois dos meios de produção e da escravização dos indivíduos através
da necessária venda de sua força de trabalho, condição a partir do advento do
capitalismo para a própria sobrevivência individual. Com essa nova formação
econômica e social a cooperação e a visão coletiva foram substituídas pela
busca do sucesso individual, numa sociedade marcada cada vez mais pela
competição, e nos tempos globalizantes, pela competitividade.
O altruísmo além
de nos garantir a sobrevivência por viver em grupo e compartilhar o fruto do
trabalho oriundo da caça e da coleta, foi também um forte elemento na
constituição da família, e dos sentimentos de pertencimentos não só pelo lugar,
pelo território, mas pelo outro. É no princípio desse sentimento que o ser
humano aprende a cuidar de seus mortos e a dar aos seus corpos um destino que
não fosse aquele de deixá-los ao tempo para ser consumido por aves de rapinas. O
altruísmo foi fundamental na nossa formação enquanto núcleo social-familiar.
EMPATIA, SIMPATIA E ALTERIDADE
O altruísmo nos
legou a empatia, algo que se manteve no ser humano, homens e mulheres, imbuídos
do sentimento de poder sentir as dificuldades e os sofrimentos da outra pessoa,
e, mais do que isso, saber compreender suas escolhas, seu jeito de ser, de
colocar-se no seu lugar sem querer que esta assimile seu modo de ser e de
pensar.
“A empatia implica
a capacidade de nos posicionarmos no lugar do outro para compreendermos a sua realidade
interna, independentemente da pessoa em questão, de estarmos ou não de acordo
com ela ou de simpatizarmos ou não com ela. A empatia genuína está ao serviço
da comunhão emocional, da aceitação e do respeito pelo outro e pela sua
realidade, o que implica uma atitude de não julgamento e de despojamento de
preconceitos do próprio”[2]
Empatia não é
sinônimo de altruísmo, embora sejam palavras próximas uma da outra, porque,
afinal, elas significam a necessária compreensão do entendimento com o outro.
Se o altruísta se dispõe a ajudar, sob quaisquer circunstâncias, um semelhante
por ver que há uma fragilidade que precisa ser apoiada, e ele pode fazer isso,
a empatia garante que isso seja feito sem que se queira modificar o jeito de
ser daquele indivíduo. A empatia significa que temos a capacidade de ajudar as
pessoas independente de conhecê-las, ou de ter afinidades com ela,
compreendendo o seu jeito de ser e se colocando no lugar desse outrem, mesmo
sendo diferente de você, ou que pense diferente.
Uma pessoa que
tenha empatia consegue sentir a dor da outra pessoa, buscando se colocar no
lugar dela, e não tentando transferir para ela o seu jeito de lidar com aquela
dor, procurando imaginar como essa pessoa está se sentindo nas condições dela,
com as percepções e compreensões que ela tenha. É o transpor-se para o lugar do
outro, sem querer trazê-lo para a maneira de você pensar. Isso é comum nas
perdas de entes queridos. O sentimento de uma pessoa é único, a dor é
irreparável e intransferível. Mas as vezes muitas pessoas, por suas crenças e
fé, tentam transferir isso e procuram confortar o outro à sua maneira de ser e
de ver aquele sentimento.
Nesse ponto é
preciso encontrar a verdadeira relação que se estabelece. Se alguém não se
coloca no lugar do outro e busca expressar um sentimento de carinho,
solidariedade e respeito, e extrai isso de dentro de si por uma relação
construída com base na amizade, o que temos é uma simpatia.
“Podemos entender
a simpatia como um sentimento de afinidade com determinada pessoa, que leva o
indivíduo a estabelecer uma harmonia no encontro com ela. Simpatizamos com
amigos e com as pessoas com quem partilhamos afinidades, interesses e valores e
nas quais reconhecemos alguma compatibilidade e complementariedade com o nosso
funcionamento”.[3]
São portanto duas
situações diferentes, em que uma requer uma relação construída por afinidades,
ou mesmo uma característica própria de determinada pessoa que transborda em
gentileza e deseja compartilhar esse sentimento, o que denota simpatia;
e na outra situação, de empatia, uma transposição da condição e do seu
jeito de ser e sentir, para outra pessoa que não necessariamente você a
conheça, mas sente a necessidade de ajudá-la, ou de compreendê-la em suas
posições, colocando-se no lugar dela, entendendo as circunstâncias na qual ela
vive e aceitando a maneira dela viver e pensar. Nem sempre, pois, uma pessoa
simpática tem empatia. Por que sua gentileza e afabilidade é uma característica
própria que essa pessoa tenta transferir para o outro, mas ela pode ser incapaz
de demonstrar sensibilidade com as condições em que o outro vive e aceitar a
maneira como o outro é.
Entre esses dois
sentimentos seria importante incluirmos outro, a alteridade. Esse é o
sentimento que garante a aceitação do outro do jeito que ele é, por suas
escolhas, por mais que seja diferente de você. A alteridade é o que nos garante
respeito pelas diferenças e, por extensão, esse sentimento nos possibilita
sermos tolerantes.
A empatia faz com
que você se coloque no lugar da outra pessoa; a alteridade é a garantia de que
respeitaremos aquela pessoa por mais diferente que ela seja de nós, ou para
nós; e simpatia é o que nos faz ser afável e querido pela nossa amabilidade,
por uma característica pessoal.
POR QUE ESSES SENTIMENTOS IMPORTAM EM
NOSSO TEMPO
Ao olharmos para
trás e analisarmos cada momento da história, veremos sempre desigualdades,
riquezas acumuladas em meio a muita pobreza, o controle do poder por uma
minoria e a política de pão e circo para aplacar a ira da maioria e mantê-la
inerte. Mas o que nos faz diferente a cada uma dessas épocas, comparando grosso
modo com a nossa maneira de viver nos dias de hoje? Seguramente vamos encontrar
respostas diferentes e análises sociológicas e filosóficas que destoam uma da
outra, mas que na junção delas podemos encontrar coerência. Principalmente se identificarmos
sob qual olhar, dimensão ideológica, essa análise está sendo feita.
O olhar que
tivermos desse espectro que nos rodeia indicará o tipo de sentimento que nutrimos,
o grau de empatia que carregamos e se nos portamos, ou não, de maneira
altruísta. A simpatia transita livremente entre essas situações. E a
alteridade, normalmente vem acompanhada da empatia e do altruísmo.
O sistema
capitalista é incapaz de potencializar esses sentimentos – empatia, altruísmo,
alteridade – entre as camadas mais ricas da sociedade. Porque a base do
enriquecimento, com raras exceções, embora elas existam, é a usura, a ganância
e o egoísmo. A caridade, ou filantropia, advém de um sentimento religioso, uma
condição criada pelos dogmas cristãos para transmitir a sua máxima de “amar a
deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Isso perpassou ao
longo de séculos, milênios, mas se mantém dentro desses princípios até os dias
de hoje. E os seus atos representam muito mais um alívio para a alma de um
cristão, ou quem pratica o espiritismo, do que uma reparação diante das
condições de miséria que tantos se encontram. Tanto que você pode, e deve, ser
caridoso, mas jamais pode se atrever a defender a distribuição da riqueza a fim
de reduzir as desigualdades sociais.
Mas, há exceção,
naturalmente. Aos que assim se comportam restará o uso, tornado “pejorativo”,
do termo “comunista”. Cuja palavra advém, aliás, de “comum união”, ou “comum
unidade”, muito dito e difundido nos primórdios do cristianismo, entre as
comunidades pobres. Isso levou a uma frase de indignação e espanto, do arcebispo
católico pernambucano, D. Hélder Câmara (1909-1999), diante da hipocrisia e
falta de empatia da sociedade: “Quando dou comida aos pobres me chamam de
santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”.
O altruísmo e a
empatia são elementos que compõe a natureza da forma de viver solidariamente,
em distribuir o produto do trabalho como ele foi feito e desenvolvido em
cooperação, por meio de trocas e de respeito mútuo à condição de ser de cada
um.
Alguém que destila
o ódio, arrota intolerância, destrata os mais fragilizados socialmente e não
aceita a condição de ser do outro, não possui o mínimo de empatia. Se é um
governante, então, essa característica fica visível em seus atos governamentais,
nas ações e políticas que se opõe à aceitação dessas diferenças e de maneira de
viver que sejam distintas daquelas padronizadas culturalmente por uma sociedade
abjeta (por ser hipócrita) e desigual. Esse indivíduo, escolhido pelo próprio
povo para lhe representar, traduz o comportamento e os valores culturais de
quem o escolheu.
E isso nos desafia
a compreender as razões pelas quais as pessoas pobres, que vivem em ambientes
horríveis, insalubres, despossuídas de qualquer condição humana digna, se apega
aos sentimentos que são opostos às suas condições nessa sociedade. E como
aqueles que se apegam ao deus do cristianismo se opõem a tudo que originalmente
fez nascer uma das maiores religiões do mundo, a busca por um mundo solidário e
de comum união?
Seria
incompreensível se não soubéssemos que esses valores são adquiridos, por meio
de instrumentos culturais, pela religião, pelas condições de existência dessas
pessoas, fragilizadas e entregues a messianismos e charlatanismos. A escolha
advém desses mecanismos ideológicos que os conformam e extraem de si aqueles
elementos que podiam fazer a diferença e os levarem para uma luta que mirasse uma
sociedade fundada no cooperativismo, no solidarismo, na empatia, na alteridade
e no altruísmo. Nem sempre a lógica funciona nesses casos, não estamos tratando
de ciências exatas, mas de ciências humanas, da sociabilidade e dos
instrumentos que nos cerceiam e nos amarram enquanto cidadãos coletivos.
Quero finalizar
com duas frases que cito sempre. Uma de Heráclito de Éfeso, filósofo da
antiguidade que primeiro soube apresentar a maneira dialética de olhar o mundo:
O CARÁTER DE UM INDIVIDUO É O SEU CAMINHO. Compreendendo que o caráter é
moldado pelos valores que são incorporados à sociedade por mecanismos criados
pela classe dominante.
Ou podemos romper
com esses valores e seguir por outro caminho. Isso vai depender do caráter que construirmos
em nós mesmos. Aí servirá a frase dita por Karl Marx: "Não é a consciência
dos homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, seu ser social é que
determina sua consciência". Daí porque adquirir consciência de classe é
tão importante. Por aí traçamos nosso caminho, e o nosso destino.
O que nos leva a
constatar que nem tudo se resume a uma questão de caráter.
[3] IDEM
OUÇA TAMBÉM O TEXTO EM VÍDEO NO MEU CANAL NO YOU TUBE:
https://www.youtube.com/watch?v=acTmtps9wvc&t=3s
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