quarta-feira, 8 de julho de 2020

ALTRUÍSMO E EMPATIA – O QUE NOS FAZ EGOÍSTAS OU SOLIDÁRIOS

Em recente discurso, o presidente da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom, fez um apelo emocionado e deixou uma indagação que merece toda a reflexão: “Porque é tão difícil para os humanos se unirem?”
Pois bem, esse é o assunto que trago para discussão. Embora essa temática já tivesse sido escolhida bem antes de ler sobre o desabafo do presidente da OMS, no momento em esta organização está sob pressão dos EUA e de outros países governados por políticos de extrema-direita, inclusive o Brasil. E por isso a minha abordagem vai além da análise política.
São nesses tempos de crises que se escancaram comportamentos que podem definir as condições pelas quais as pessoas se posicionam na relação com os demais. Em tipos de sociedades como a que vivemos, fundadas em elementos que nos dividem e segregam, onde os preconceitos e a intolerância, acompanhados de discursos de ódios, se somam à busca egoísta pela riqueza individual, isso fica evidente mesmo em períodos de normalidade, ou de estabilidade política e econômica. As crises só escancaram e desnudam esses comportamentos, a ponto de descobrirmos haver um alto índice de sociopatas com os quais dividimos até mesmo os espaços familiares. Isso não é genético, é cultural.
Mas precisamos entender como isso funciona. Muitas vezes nos espantamos, e ficamos indignados, com determinadas ações de indivíduos, isoladamente ou em grupos, e nos irritamos com atitudes mesquinhas, desprovidas de um mínimo sentimento de solidariedade, ou de respeito às diferenças sociais, e de origens, em relação à outras pessoas. Só que isso sempre é visto com um viés particularista. Ou seja, imagina-se ser um traço do caráter daquele indivíduo que pratica esse tipo de ato.
Sim, é verdade. Isso reflete um perfil de caráter, que se expõe em atos perversos. No entanto, não é isolado. É resultado de atitudes acumuladas em padrões de comportamentos sociais. Porque isso está ligado às condições de classe social, por um lado, e por outro lado pela assimilação de valores culturais da classe dominante, que afetam pessoas de segmentos da sociedade das camadas baixas da pirâmide social. Ou seja, mesmo entre os pobres, em cuja faixa se mostra mais presente atitudes solidárias, esse padrão de comportamento se manifesta, de forma cada vez mais intensa e com grau de radicalidade que beira o fascismo.

O ALTRUÍSMO

Um dos livros mais importante em minha trajetória como professor, graduado em história e doutorado em geografia, foi “O povo do lago”[1], escrito pelo paleoantropólogo Richard Leakey e o biólogo Roger Lewin. Tendo como cenário o lago Turkana, localizado nas fronteiras do Quênia e da Etiópia, na África, onde um importante sítio arqueológico – Koobi Fora – possibilitou que inúmeros vestígios sobre nossas origens fossem descobertos, esses pesquisadores conseguiram transmitir, de forma simples, em um relato de fácil compreensão até para os mais leigos, como nos constituímos enquanto seres humanos, nossa relação com a natureza e os caminhos em direção ao futuro.
Um de seus capítulos, e no qual foco meu olhar para essa abordagem, faz referência à forma como os hominídeos, nossos ancestrais primitivos, conseguiram sobreviver em meio a ambientes inóspitos, selvagens, embora fossem mais frágeis que seus adversários em uma natureza livre, onde se impunha a força e a condição de sobrevivência adequada à capacidade adaptativa.
É importante destacar como esses autores se referem, ao contrário do que tradicionalmente se via na história, à coleta como elemento mais importante na consolidação da vida sedentária, em comparação com a caça. Porque esta não era garantia de sucesso por todo o tempo, já que nos primórdios a ausência de instrumentos eficazes impedia que os grupos humanos, notadamente os machos, retornassem ao grupo trazendo animais abatidos. A coleta, desenvolvida pelas mulheres, tornou-se, assim, a garantia de alimentos diariamente, fazendo com que surgissem também os primeiros utensílios, as sacolas, para transportá-los. Constituía-se, portanto, como sociedade de coletoras-caçadores.
Mas, tanto em relação à caça, em muitos casos somente com obtenção de carniças, ou seja, dos restos de carcaças deixadas para trás por grandes animais, como também na coleta, o elemento primordial a se destacar, e seguramente o que garantiu a sobrevivência humana, foi o altruísmo.
O altruísmo, ou essa capacidade de compartilhamento e cooperação, adquirida pelos hominídeos, se tornou o elemento mais importante para explicar a nossa sobrevivência em cenários complexos e adversos. Pode-se dizer que o altruísmo foi a condição necessária para que pudéssemos evoluir nos protegendo em grupos e nos ajudando mutuamente.
Isso em grande medida saiu do caminho natural, espontâneo e de sobrevivência, para se tornar disperso entre grupos sociais, sendo mais forte naqueles segmentos mais pobres, nas periferias das cidades, ou nas igrejas e instituições criadas por essas, na medida em que a caridade se constituía como uma maneira de amenizar os pecados individuais.
Evoluímos para formas de organizações sociais que se fundamentaram na propriedade privada da terra, e depois dos meios de produção e da escravização dos indivíduos através da necessária venda de sua força de trabalho, condição a partir do advento do capitalismo para a própria sobrevivência individual. Com essa nova formação econômica e social a cooperação e a visão coletiva foram substituídas pela busca do sucesso individual, numa sociedade marcada cada vez mais pela competição, e nos tempos globalizantes, pela competitividade.
O altruísmo além de nos garantir a sobrevivência por viver em grupo e compartilhar o fruto do trabalho oriundo da caça e da coleta, foi também um forte elemento na constituição da família, e dos sentimentos de pertencimentos não só pelo lugar, pelo território, mas pelo outro. É no princípio desse sentimento que o ser humano aprende a cuidar de seus mortos e a dar aos seus corpos um destino que não fosse aquele de deixá-los ao tempo para ser consumido por aves de rapinas. O altruísmo foi fundamental na nossa formação enquanto núcleo social-familiar.

EMPATIA, SIMPATIA E ALTERIDADE

O altruísmo nos legou a empatia, algo que se manteve no ser humano, homens e mulheres, imbuídos do sentimento de poder sentir as dificuldades e os sofrimentos da outra pessoa, e, mais do que isso, saber compreender suas escolhas, seu jeito de ser, de colocar-se no seu lugar sem querer que esta assimile seu modo de ser e de pensar.
“A empatia implica a capacidade de nos posicionarmos no lugar do outro para compreendermos a sua realidade interna, independentemente da pessoa em questão, de estarmos ou não de acordo com ela ou de simpatizarmos ou não com ela. A empatia genuína está ao serviço da comunhão emocional, da aceitação e do respeito pelo outro e pela sua realidade, o que implica uma atitude de não julgamento e de despojamento de preconceitos do próprio”[2]
Empatia não é sinônimo de altruísmo, embora sejam palavras próximas uma da outra, porque, afinal, elas significam a necessária compreensão do entendimento com o outro. Se o altruísta se dispõe a ajudar, sob quaisquer circunstâncias, um semelhante por ver que há uma fragilidade que precisa ser apoiada, e ele pode fazer isso, a empatia garante que isso seja feito sem que se queira modificar o jeito de ser daquele indivíduo. A empatia significa que temos a capacidade de ajudar as pessoas independente de conhecê-las, ou de ter afinidades com ela, compreendendo o seu jeito de ser e se colocando no lugar desse outrem, mesmo sendo diferente de você, ou que pense diferente.
Uma pessoa que tenha empatia consegue sentir a dor da outra pessoa, buscando se colocar no lugar dela, e não tentando transferir para ela o seu jeito de lidar com aquela dor, procurando imaginar como essa pessoa está se sentindo nas condições dela, com as percepções e compreensões que ela tenha. É o transpor-se para o lugar do outro, sem querer trazê-lo para a maneira de você pensar. Isso é comum nas perdas de entes queridos. O sentimento de uma pessoa é único, a dor é irreparável e intransferível. Mas as vezes muitas pessoas, por suas crenças e fé, tentam transferir isso e procuram confortar o outro à sua maneira de ser e de ver aquele sentimento.
Nesse ponto é preciso encontrar a verdadeira relação que se estabelece. Se alguém não se coloca no lugar do outro e busca expressar um sentimento de carinho, solidariedade e respeito, e extrai isso de dentro de si por uma relação construída com base na amizade, o que temos é uma simpatia.
“Podemos entender a simpatia como um sentimento de afinidade com determinada pessoa, que leva o indivíduo a estabelecer uma harmonia no encontro com ela. Simpatizamos com amigos e com as pessoas com quem partilhamos afinidades, interesses e valores e nas quais reconhecemos alguma compatibilidade e complementariedade com o nosso funcionamento”.[3]
São portanto duas situações diferentes, em que uma requer uma relação construída por afinidades, ou mesmo uma característica própria de determinada pessoa que transborda em gentileza e deseja compartilhar esse sentimento, o que denota simpatia; e na outra situação, de empatia, uma transposição da condição e do seu jeito de ser e sentir, para outra pessoa que não necessariamente você a conheça, mas sente a necessidade de ajudá-la, ou de compreendê-la em suas posições, colocando-se no lugar dela, entendendo as circunstâncias na qual ela vive e aceitando a maneira dela viver e pensar. Nem sempre, pois, uma pessoa simpática tem empatia. Por que sua gentileza e afabilidade é uma característica própria que essa pessoa tenta transferir para o outro, mas ela pode ser incapaz de demonstrar sensibilidade com as condições em que o outro vive e aceitar a maneira como o outro é.
Entre esses dois sentimentos seria importante incluirmos outro, a alteridade. Esse é o sentimento que garante a aceitação do outro do jeito que ele é, por suas escolhas, por mais que seja diferente de você. A alteridade é o que nos garante respeito pelas diferenças e, por extensão, esse sentimento nos possibilita sermos tolerantes.
A empatia faz com que você se coloque no lugar da outra pessoa; a alteridade é a garantia de que respeitaremos aquela pessoa por mais diferente que ela seja de nós, ou para nós; e simpatia é o que nos faz ser afável e querido pela nossa amabilidade, por uma característica pessoal.

POR QUE ESSES SENTIMENTOS IMPORTAM EM NOSSO TEMPO

Ao olharmos para trás e analisarmos cada momento da história, veremos sempre desigualdades, riquezas acumuladas em meio a muita pobreza, o controle do poder por uma minoria e a política de pão e circo para aplacar a ira da maioria e mantê-la inerte. Mas o que nos faz diferente a cada uma dessas épocas, comparando grosso modo com a nossa maneira de viver nos dias de hoje? Seguramente vamos encontrar respostas diferentes e análises sociológicas e filosóficas que destoam uma da outra, mas que na junção delas podemos encontrar coerência. Principalmente se identificarmos sob qual olhar, dimensão ideológica, essa análise está sendo feita.
O olhar que tivermos desse espectro que nos rodeia indicará o tipo de sentimento que nutrimos, o grau de empatia que carregamos e se nos portamos, ou não, de maneira altruísta. A simpatia transita livremente entre essas situações. E a alteridade, normalmente vem acompanhada da empatia e do altruísmo.
O sistema capitalista é incapaz de potencializar esses sentimentos – empatia, altruísmo, alteridade – entre as camadas mais ricas da sociedade. Porque a base do enriquecimento, com raras exceções, embora elas existam, é a usura, a ganância e o egoísmo. A caridade, ou filantropia, advém de um sentimento religioso, uma condição criada pelos dogmas cristãos para transmitir a sua máxima de “amar a deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Isso perpassou ao longo de séculos, milênios, mas se mantém dentro desses princípios até os dias de hoje. E os seus atos representam muito mais um alívio para a alma de um cristão, ou quem pratica o espiritismo, do que uma reparação diante das condições de miséria que tantos se encontram. Tanto que você pode, e deve, ser caridoso, mas jamais pode se atrever a defender a distribuição da riqueza a fim de reduzir as desigualdades sociais.
Mas, há exceção, naturalmente. Aos que assim se comportam restará o uso, tornado “pejorativo”, do termo “comunista”. Cuja palavra advém, aliás, de “comum união”, ou “comum unidade”, muito dito e difundido nos primórdios do cristianismo, entre as comunidades pobres. Isso levou a uma frase de indignação e espanto, do arcebispo católico pernambucano, D. Hélder Câmara (1909-1999), diante da hipocrisia e falta de empatia da sociedade: “Quando dou comida aos pobres me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”.
O altruísmo e a empatia são elementos que compõe a natureza da forma de viver solidariamente, em distribuir o produto do trabalho como ele foi feito e desenvolvido em cooperação, por meio de trocas e de respeito mútuo à condição de ser de cada um.
Alguém que destila o ódio, arrota intolerância, destrata os mais fragilizados socialmente e não aceita a condição de ser do outro, não possui o mínimo de empatia. Se é um governante, então, essa característica fica visível em seus atos governamentais, nas ações e políticas que se opõe à aceitação dessas diferenças e de maneira de viver que sejam distintas daquelas padronizadas culturalmente por uma sociedade abjeta (por ser hipócrita) e desigual. Esse indivíduo, escolhido pelo próprio povo para lhe representar, traduz o comportamento e os valores culturais de quem o escolheu.
E isso nos desafia a compreender as razões pelas quais as pessoas pobres, que vivem em ambientes horríveis, insalubres, despossuídas de qualquer condição humana digna, se apega aos sentimentos que são opostos às suas condições nessa sociedade. E como aqueles que se apegam ao deus do cristianismo se opõem a tudo que originalmente fez nascer uma das maiores religiões do mundo, a busca por um mundo solidário e de comum união?
Seria incompreensível se não soubéssemos que esses valores são adquiridos, por meio de instrumentos culturais, pela religião, pelas condições de existência dessas pessoas, fragilizadas e entregues a messianismos e charlatanismos. A escolha advém desses mecanismos ideológicos que os conformam e extraem de si aqueles elementos que podiam fazer a diferença e os levarem para uma luta que mirasse uma sociedade fundada no cooperativismo, no solidarismo, na empatia, na alteridade e no altruísmo. Nem sempre a lógica funciona nesses casos, não estamos tratando de ciências exatas, mas de ciências humanas, da sociabilidade e dos instrumentos que nos cerceiam e nos amarram enquanto cidadãos coletivos.
Quero finalizar com duas frases que cito sempre. Uma de Heráclito de Éfeso, filósofo da antiguidade que primeiro soube apresentar a maneira dialética de olhar o mundo: O CARÁTER DE UM INDIVIDUO É O SEU CAMINHO. Compreendendo que o caráter é moldado pelos valores que são incorporados à sociedade por mecanismos criados pela classe dominante.
Ou podemos romper com esses valores e seguir por outro caminho. Isso vai depender do caráter que construirmos em nós mesmos. Aí servirá a frase dita por Karl Marx: "Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, seu ser social é que determina sua consciência". Daí porque adquirir consciência de classe é tão importante. Por aí traçamos nosso caminho, e o nosso destino.
O que nos leva a constatar que nem tudo se resume a uma questão de caráter.




NOTAS:

[1] LEAKEY, Richard e LEWIN, Roger. O Povo do Lago. Brasília: Editora UnB, 1996.
[3] IDEM

OUÇA TAMBÉM O TEXTO EM VÍDEO NO MEU CANAL NO YOU TUBE:

https://www.youtube.com/watch?v=acTmtps9wvc&t=3s

Nenhum comentário:

Postar um comentário