Recentemente pude
realizar uma web-conferência sobre dialética em meu canal do You Tube (https://www.youtube.com/watch?v=NX_PAdZo9Ow&t=5187s), com a
presença do músico e filósofo Laércio Correntina. Nosso mote partiu de uma das
frases da música de Nelson Mota e Lulu Santos, “Nada do que foi será, de novo
do jeito que já foi um dia”. Extraída da bela música “Como uma onda”, apelidada
por mim de “melô da dialética”.
A discussão foi
ótima, demonstrando a partir da exposição de Laércio Correntina, a necessidade
de conhecermos o significado da dialética, e como por meio desse conhecimento
nós podemos ter uma compreensão maior da realidade. Naturalmente, quanto mais
nos aprofundarmos no estudo da dialética, mais dúvidas e questionamentos surgirão
em nossas cabeças. Por que essa é a essência desse método do conhecimento do
mundo real.
A base do
conhecimento adquirido pela dialética é a contradição. É por meio da
contradição, no embate entre a ideia exposta inicialmente (tese) e da sua
negação (antítese), que se pode chegar a uma nova formulação (síntese). Por
isso, esses são os elementos principais do método dialético: a contradição, o
choque dos contrários e a negação da negação.
Por esses
princípios baseados na dialética não há absolutamente nada que não carregue em
si a sua própria contradição. Ou que, uma vida sempre traz juntamente consigo
os germes de sua própria destruição. É o embate entre a vida e a morte, entre o
velho e o novo, entre o ser e o não ser... em uma persistente e eterna mudança.
Pelo viés da dialética nada está estático, tudo está em permanente movimento.
Por isso a mudança, o movimento, é sempre uma constante. O que não nos permite
dizer que “nada muda”, como popularmente ouvimos sempre. Ou, e neste ponto
quero polemizar mais adiante, que ao sairmos dessa pandemia que nos aflige
iremos lidar com “um novo normal”. Ao afirmar isso negamos a própria maneira
como se dá a vida, em nós seres humanos, na natureza em sua plenitude, e na
sociedade. O que se chama de “normal” é um olhar estático de uma realidade que
está sempre em movimento.
Aí reside a
diferença com a lógica formal. Nesta se compreende que as coisas existem cada
uma em sua individualidade, de forma que as relações se dão por meio de
movimentos externos, e os acontecimentos são na verdade meras ações que
obedecem a um princípio lógico em que se exclui a contradição, e que leva a
busca do conhecimento por meio da indução e dedução.
A lógica dialética
nos conduz à necessidade do entendimento do mundo como num processo contínuo de
interligação entre as coisas. Nada se explica isoladamente, e não há acaso,
existem causas que se sucedem num movimento cíclico, e isso acontece porque cada
coisa carrega em si elementos que a levarão ao envelhecimento, e no choque
entre o velho e o novo as mudanças advirão inevitavelmente. Tanto internamente,
quanto externamente. Em um processo em que ao mesmo tempo em que as coisas se
afirmam, contém em si os elementos de sua própria negação.
Isso pode parecer
um olhar pessimista da realidade. Mas é simplesmente o estudo das evidências
demonstradas no próprio ciclo da vida, em que se sucedem o nascimento, a
infância, a adolescência, o amadurecimento, envelhecimento e morte. Isso no
caso dos seres humanos. Mas o ciclo da vida acompanha todos os seres vivos. E
se externamente nos deparamos com situações graves que nos levam à morte, às
vezes de maneira repentina, fugindo desse ciclo natural, internamente isso se
dá de forma incessante. Carregamos em cada um de nós, seres vivos, os germes de
nossa própria destruição. Ou seja, existem dentro de nós um número
inquantificável de células. São trilhões que nascem por dia, e um tanto
aproximado que morrem. Essa relação vai se invertendo à medida em que
envelhecemos e que vamos perdemos nossas defesas imunológicas, os anticorpos.
Pouco a pouco esses anticorpos vão perdendo a luta que nos imuniza, e
inevitavelmente envelhecemos e morremos.
Ao longo do tempo
os seres humanos foram criando narrativas com base em crenças que visam
justificar algo que não existe, a nossa imortalidade, para além das nossas
condições terrenas. De acordo com cada cultura, em cada canto do mundo, foram
surgindo seitas, mitos, divindades, religiões... com o intuito de amenizar
nossas angústias em torno de algo para o qual nunca estamos preparado: a morte.
Essas angústias,
em muitos casos transformadas em medos, surgiram de tentativas de amenizar
nossas dúvidas quanto ao limite da vida, ou a inevitabilidade da morte, em
buscas de respostas que visavam aliviar esses anseios. Mas essas tensões
naturais em nossas vidas foram sendo aproveitadas por oportunistas, charlatões,
que conduziram as pessoas pelo medo a aventuras terríveis, e perversões feitas
em nome dessas divindades. Esse comportamento provocou genocídios, suicídios
coletivos e diversas tragédias, consequências da manipulação decorrente da
maneira como as pessoas lidam com a realidade.
Ao não compreender
a dimensão da vida, em sua essência, e na sua materialidade, entregam-se às
ilusões e se veem presas em crenças fundamentalistas que se escoram nos temores
da morte e na esperança da vida para além dela. Nesses casos, perde-se a
sensibilidade com o outro, e abdica-se da própria maneira de ser e se viver em
sociedade. Os que agem assim fecham-se em redomas onde as verdades são
afirmação dogmáticas de ideias, de crenças elaboradas no intuito de manipulação
e de construção de poderes. A cegueira diante dessas visões fechadas levaram a
esses resultados terríveis, quase sempre explicados em nome de suas divindades.
Ora, quando saímos
do campo das questões filosóficas, em relação ao entendimento da vida e como
lidamos com as realidades concretas, e resolvemos aplicar o método dialético
para compreendermos como as sociedades surgem, se transformam e entram em
declínio, veremos que esse método dialético nos permite entender que o sistema
no qual vivemos não é eterno, porque nada é eterno, tudo tem começo, meio e
fim.
Foi assim que Karl
Marx e Friedrich Engels buscaram entender o processo de transformação social,
desde os tempos primitivos. Com a aplicação do método dialético no estudo das
sociedades, e com uma visão sobre a materialidade da vida, transposta para a
história das sociedades humanas, eles formaram um entendimento de que as
contradições são os elementos fundamentais que levam às transformações sociais.
E que cada sistema carrega dentro de si, por meio dessas contradições, os elementos
de sua própria destruição.
A evolução de cada
sociedade, é o momento da afirmação de um modo de produção. Com o passar do
tempo, o choque entre os contrários, entendendo-se como existente classes
sociais antagônicas que entram em contradições, esse sistema entra em declínio
e caminha para sua destruição, sendo inevitavelmente substituído por outra
formação econômica e social, com outros elementos que lhes darão sustentação.
Ao analisarem
assim eles compreenderam que desde as sociedades primitivas, todas as sociedades
que surgiram fundaram-se numa luta de classes, entre senhores de escravos e
escravos; nobres e servos; burgueses e proletários. E, por assim ser, o
capitalismo também chegará ao seu limite, na medida da intensificação de suas
crises que acentuarão as suas contradições. Por isso eles propuseram a
construção de um sistema onde as classes sociais não mais existissem, onde a
estrutura social se baseasse na organização coletiva, na cooperação, e na
distribuição da produção com base nas condições individuais e na capacidade de
trabalho de cada um.
Mas isso não
significa o fim das contradições. Mas tão somente a redução de condições
sociais degradantes, e desigualdades vergonhosas entre quem possui o controle
dos meios de produção e os que só possuem suas forças de trabalho. Jamais,
enquanto houver vida, as contradições desaparecerão, seja na natureza ou na
sociedade. Nesses dois casos o que sempre existirá, ao mesmo tempo, é um
equilíbrio e um desequilíbrio, que decorre na existência de diferenças
naturais, no caso da natureza, e sociais, quando falamos de sociedades humanas.
Quando essas diferenças, ou contradições, atingem um determinado limite, forçam
necessárias mudanças, o que torna esse processo uma das chamadas leis da
dialética: da transformação quantitativa em qualitativa.
Portanto, as
mudanças acontecem o tempo inteiro. Muito embora a rotina de nossas vidas deixe
a percepção de que “as coisas não mudam”. O que ocorre é que nossas vidas,
individualmente, são um sopro na comparação com o tempo de existência das
sociedades e civilizações humanas, e menos ainda, quando nos referimos ao tempo
geológico, de existência da terra. Por isso muitos, que não possuem a percepção
dialética da realidade, imaginam que as coisas não mudam. Ou, em outro extremo,
e também absolutamente equivocado, de que a história se repete. Não pode
existir repetição na história, por que essa se conta no tempo, e este é
irreversível. O que passou jamais pode vir a acontecer novamente.
Por tudo isso a
discussão sobre se teremos um “novo normal” é puramente estimulada por uma
retórica que advém da maneira como se dissemina, dentro de uma lógica formal, a
compreensão que as coisas só mudam como decorrência de um fato espetacular, ou
um fenômeno da natureza, ou de guerras. Mas é claro que haverá mudanças. Sim,
poderá ser algo novo. Mas a dialética explica exatamente isso: o novo sempre
vem, como canta o poeta Belchior.
A questão é a
ausência da percepção de que as coisas estão mudando permanentemente. Porque a
maneira de ver e sentir o que acontece no mundo, e em suas vidas, da maioria
das pessoas, segue essa lógica formal. Evidentemente, dentro das
características que marcam o sistema capitalista, após cada catástrofe, ou
crises profundas, há um processo de reacomodação. O sistema se retroalimenta
dessas crises e, seja por necessidade ou por conveniência dos interesses dos
que controlam a riqueza e os meios de produção, as mudanças, principalmente
tecnológicas, irão acontecer e o que se convencionou chamar de “novo normal”
advém, na verdade, das necessárias transformações no âmbito do próprio sistema.
Isso é bem descrito no livro de Naomi Klein, “A Doutrina do Choque – A ascensão
do capitalismo de desastre”.
Em muitos casos,
como o que vivemos atualmente, já havia uma crise sistêmica, que se estende
desde o final do século XX e se acentuou a partir de 2001 e explodiu com força
em 2008, quando o sistema financeiro quase quebrou, o que causaria uma forte
depressão mundial. De lá para cá, a recessão econômica atingiu diversos países,
variando de continente para continente, mas não havia se recuperado quando a
OMS declarou situação de pandemia. Como a quarentena forçada, ou o
distanciamento físico/social, era a melhor maneira de se proteger do vírus
“sars cov-2”, isso paralisou a maioria das cadeias produtivas, causando uma
estagnação da economia. O quadro, que era de recessão, pode chegar a tornar-se
depressivo economicamente, tornando as mudanças absolutamente necessárias.
Mas isso não
significa modificar as condições pelas quais o sistema capitalista organiza sua
superestrutura, ou seus valores morais, culturais, jurídicos e o estilo de vida
que impõe às pessoas hábitos consumistas. Pelo menos não de forma radical. No
entanto, seguramente muitas mudanças ocorrerão, e mais do que isso, já estão
ocorrendo, nesses poucos meses de um tempo absolutamente estranho nas vidas dos
que vivem essa época.
O que vai
acontecer, a partir do que virá, é impossível indicar com precisão. Os prováveis cenários, sob diversos aspectos, sociais, econômicos ou geopolíticos são de difíceis previsões. No entanto as mudanças, de fato, são inevitáveis. Só que o
chamado “novo normal” não será nada mais do que uma adaptação sistêmica,
capitalista, principalmente com o advento de novas tecnologias e funcionalidades,
mas com as mesmas desigualdades sociais inerentes a esse modelo de formação
econômica. São mudanças que se encaixarão no estilo consumista frio e desigual,
com novas funções, empregos destruídos, elites perversas e ampliação da
pobreza. Também não será o velho normal, mas o mesmo sistema injusto,
fragmentado e segregacionista.
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(*) Para acessar o vídeo da web-conferência
sobre Dialética acesse:
"NADA DO QUE FOI SERÁ, DE NOVO DO
JEITO QUE JÁ FOI UM DIA" - MÚSICA E FILOSOFIA NA PANDEMIA - https://www.youtube.com/watch?v=NX_PAdZo9Ow&t=5187s
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