É muito arriscado
querer prever como será o mundo pós-pandemia. Pode parecer um paradoxo essa
frase com o título utilizado. Mas quando falo da dificuldade em tentar
identificar por quais caminhos o mundo seguirá quando passar toda essa agonia
causada pela disseminação do “Sars Cov-2”, me refiro à impossibilidade de
termos algo concreto, neste momento, que nos garanta com uma margem tranquila
de convencimento, desenhar o cenário no qual a humanidade entrará a partir de
2021.
Digo em termos
concreto porque nos parece ser muito cedo para medir as consequências dessa
hecatombe epidemiológica, já que ainda
estamos na metade da pandemia, principalmente aqui na América Latina e em
especial, no Brasil, onde a situação se torna mais grave como decorrência do
negacionismo criminoso e a abominação por parte do governo federal, e de sua
legião de ignorantes que o apoia, em seguir protocolos médicos e científicos, a
respeito de uma doença terrível, até então sem tratamento.
É possível, no
entanto, antever algumas situações, mas que não representam novidades, senão um
agravamento de condições anteriores, principalmente nos aspectos geopolíticos e
econômicos. Esses dois aspectos andam juntos em muitas das circunstâncias, do
que já vinha ocorrendo e das transformações que serão geradas por essa crise
epidêmica. As relações EUA-China é uma delas, cujas divergências deverão se
ampliar consideravelmente, tanto mais quanto se aproximarem as eleições dos
EUA. A estratégia por trás do Poder nesse país se repete há décadas, seja com
governos democratas ou republicanos. Criar uma crise internacional, seja com
guerra ou ameaças de confronto, com países que lhes incomodam, e assim, dessa
forma reforçar o discurso nacionalista, de defesa da segurança nacional, e
atrair eleitores para a reeleição do mandatário em curso.
Foto: Envolverde - Carta Capital |
Outra crise que se
agravará é a que envolve as questões ambientais. Em nossa situação particular,
e que está relacionado principalmente a Amazônia, isso já está no processo de
estrangulamento e no limite das condições suportáveis. Mas assim será também em
outros biomas e por toda parte do mundo. O modelo de sociedade que adveio com a
era antropocêntrica atingiu o limite do suportável na relação com a natureza e
atingiu o seu pico nessas duas primeiras décadas do século XXI.
Certamente a
disputa pelo petróleo, principal fonte energética da matriz capitalista, também
estará no topo dos conflitos, e seguirá no crescimento exponencial do
enfrentamento entre os principais produtores e exportadores, como já estava
acontecendo antes da pandemia e se agravou exatamente quando a disseminação do
vírus se espalhou pela Europa e daí para todos os cantos do mundo. A oscilação
do preço do petróleo pode quebrar economias, além de deixar por um fio as relações
geopolíticas, em vias de gerar graves conflitos entre nações, semelhante ao que
já tem acontecido historicamente, mas agora em outro patamar pelo agravamento
da crise sistêmica capitalista.
Essas são questões
que lideram nossas atenções, e que estarão no topo das preocupações
estratégicas de todos os países, principalmente daqueles que disputam o poder
hegemônico, seja econômico ou militar. Tudo indica que entraremos em uma fase
muito parecida com o que foi a guerra fria no pós-guerra, e que vigorou até a
década de 1980.
Imagem: Contee - Brasil 247 |
Mas o que também
nos deve preocupar, e por isso centro minha abordagem aqui, são as condições
psicossociais. Ou seja, como essa situação que nos envolve irá impactar nossas
vidas, e se haverá um retorno ao antigo normal. E não podemos considerar
somente os impactos gerados pela doença Covid19. A ausência de uma vacina
seguirá impondo a todos nós um distanciamento necessário, mesmo depois que
houver uma flexibilização dessas medidas de isolamento. Mas existem no caso
brasileiro outros condicionantes, decorrentes de uma grave crise política, pelo
fato de não termos um governo capaz de nos garantir segurança agora, durante a
pandemia e muito menos depois, pela ausência de medidas capazes de atacar as
demandas sociais, gerando caos em vez de procurar atender as necessidades do
povo.
Isso tem causado insegurança e intranquilidade para enfrentar esse momento tão terrível e os
meses que se seguirão. Há um desnorteio na sociedade, com choques entre
decisões que são tomadas pelos governadores e os ataques que esses sofrem do
presidente da República, que, absurdamente, nega, ou minimiza, o perigo que
esse vírus carrega e as consequências de uma doença para a qual não há
antídoto. Embora ele insista em prescrever remédios, como um charlatão, já que
não é sua área, que não possuem eficácia comprovada cientificamente e, por
isso, rejeitados pela comunidade médica e farmacêutica.
Imagem: asmetro-SN |
Enquanto isso
multiplicam-se o número de infectados e de mortos, que ainda irá crescer, na
medida em que falta essa coordenação nacional e devido aos ataques dos
negacionistas e as fake news criminosas que confundem perigosamente boa parte
da população, entregue a boatos e informações falsas, que são consideradas em
meio a ignorância e desinformação dos que se apegam cegamente à determinadas
idolatrias religiosas ou às crenças nas simplificações dos tratos com as
doenças, neste caso confundida propositadamente pelo próprio presidente e seus
seguidores. As camadas mais pobres da sociedade descobrirão de maneira terrível
as consequências dessa perigosa dúvida que lhe foi incutida, e o vírus se
espalhará rapidamente pelas periferias e cidades interioranas.
Considerando que
já vínhamos de pelo menos três anos de uma crise política e econômica, quando
se deu a eleição de Jair Bolsonaro, podemos ter uma ampliação da desesperança
que afetou a sociedade brasileira em função de uma luta encarniçada pelo Poder,
que nos trouxe a esse quadro político de um governo absolutamente questionável
quanto à sua capacidade de governar esse país.
É natural
considerarmos que esses breves elementos de análise nos dão a indicativa que
teremos tempos difíceis pela frente. Desemprego e aumento da pobreza levarão ao
desespero milhares de pessoas atingidas, e se tornará mais real em pleno século
XXI, o que já fora escrito por Josué de Castro em meados do século XX: "Metade
da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não
come"[1]
Como evitar que o
caminho da desesperança tire das pessoas a capacidade de lutar por seus
direitos e para garantir que o Estado cumpra a função de proteger cada cidadão
de seu país? Esse será um desafio pois os tempos de crises e a perda de perspectivas,
principalmente por parte da juventude, destrói sonhos e constroem um futuro
distópico. E se isso já era tema de discussões em debates nas universidades
antes da pandemia, passa a tomar uma importância maior ainda quando estivermos
saindo desse distanciamento social, que por ser caótico, diferente de outros
países em decorrência do comportamento do presidente, tenderá a deixar as
pessoas mais desnorteadas e fragilizadas, em um ambiente politicamente
polarizado.
Alguns cenários
futurísticos têm sido apresentados há anos em filmes ficcionais. Na maioria
deles, projetando uma vida futura altamente dominada por avanços tecnológicos,
concentrados nas mãos dos que possuem poder e riqueza, e ambientes urbanos
confusos, desorganizados e superpovoados, com desigualdades sociais absurdas,
mas com populações entregues à letargia e conformismo. É possível que tenhamos
no mundo pós-pandemia cenários distópicos como apresentados em filmes e séries.
Mas a distopia se completa na ação opressiva e tirânica tanto de governos,
quanto dos que controlam a riqueza, que cada vez mais distanciam-se da
realidade social.
O desespero, a
privação, a desesperança, a amargura e o desencanto, são elementos que produzem
nas pessoas a ausência de crença na vida material, distanciam uma das outras e
as fragilizam, tornando-as presas fáceis de discursos salvacionistas seja de
seitas fundamentalistas ou de políticos oportunistas de vieses autoritários. As
condições econômicas, em uma crise crônica, que passa da recessão para uma
situação de depressão, fratura a sociedade, e tende a tornar a depressão humana
um dos maiores problemas psicossociais no pós-pandemia. Lutar contra essas
sensações de frustrações e evitar um mundo distópico é um desafio somente capaz
de ser enfrentado se conseguirmos manter a utopia como algo possível de ser
alcançado.
A utopia não é algo
palpável, ou alcançável. Mas é uma espécie de força como aquela contida na lei
da gravitação universal, de Isaac Newton. É algo que nos atrai, e que
imaginamos poder estar ali uma espécie de destino, de objetivo que desejamos
atingir, portanto desejamos também atraí-la. E, claro, o que desejamos atingir
sempre será aquilo que nos faz bem, e se pensarmos coletivamente, será algo que
nos fará bem e a sociedade. Por isso pensamos em utopia como algo positivo. Mesmo
que não seja, a utopia, tida como “lugar nenhum”, algo existente, mas puramente
sonhado, ela difere da distopia por nos dar a oportunidade de acreditar em
nossos melhores sonhos. Ela é essencial para não nos deixar desanimar e
desistir de caminhar.
O importante, no
entanto, é acreditar que nada disso que sonharmos, do que desejarmos
utopicamente, será atingido se não nos municiarmos de força coletiva, e de fazer
valer a nossa vontade, independente dos empecilhos que estarão à nossa frente. Não
é possível também, pensarmos que seja possível construir uma sociedade justa e
menos desigual com pensamentos individualistas ou imaginando ser possível
atingir um outro patamar nos prostrando e esperando que algo nos seja dado
aleatoriamente. E para isso é essencial transformarmos esse modelo de
sociedade, onde a hipocrisia constrói valores culturais que impõe aos mais
pobres e fragilizados a condição de coitadinhos, a ficar aguardando ações
solidárias fortuitas, e inserindo em suas consciências a culpa por não terem se
esforçados e não atingirem os méritos necessários para suas melhorias sociais.
É fundamental,
para acreditarmos ser possível ter na utopia o encontro com nossos melhores
desejos, conhecer profundamente as estruturas sociais nas quais estamos
vivendo. E lutar, de todas as maneiras, para desconstruir os valores e destruir
os pilares que lhes dão sustentação. Compreendermos que vivemos uma intensa luta
de classes, e se almejamos na construção desse futuro utópico, uma sociedade verdadeiramente
democrática, devemos começar fazendo valer o próprio sentido da palavra “demo-cracia”:
“demos”=povo; “kratos”=poder. “O poder que emana do povo e em seu nome deve ser
exercido”. Portanto, a não aceitação da dominação eterna a ser exercida pela
minoria de abastados, ricos, milionários, bilionários, que representam um
percentual insignificante da população mundial, muito embora controle a imensa
maioria da riqueza.
Lutar por um mundo
justo, levar adiante os sonhos utópicos de um mundo socialmente equilibrado, vê
ao longe as luzes que nos fazem crer ser a utopia, é essencial para quebrarmos
qualquer sentimento distópico, porque
este somente viria para nos fazer desistir de lutar. Nem esta pandemia, muito
menos as atitudes perversas e egoístas dos que só desejam acumular riquezas
sobre a pobreza, ou as diatribes de governos eleitos em momento de pânico
forçado e de sujeições distópicas por seus linguajares e por suas ações, podem
frear nossos sonhos de justiça e de vivermos em um mundo solidário. E isso não
é algo possível de ser conquistado olhando para os céus, mas enfrentando os
demônios que nos assombram na terra, e no enfrentamento de uma luta de classes
que define as condições que escolheremos viver: Submetidos à opressão ou
erguendo os punhos, nos alimentando de empatia, desafiando a distopia e seguindo
em frente, em busca de nossa utopia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário