sábado, 23 de maio de 2020

O MUNDO PÓS-PANDEMIA: ENTRE A DISTOPIA E A UTOPIA

É muito arriscado querer prever como será o mundo pós-pandemia. Pode parecer um paradoxo essa frase com o título utilizado. Mas quando falo da dificuldade em tentar identificar por quais caminhos o mundo seguirá quando passar toda essa agonia causada pela disseminação do “Sars Cov-2”, me refiro à impossibilidade de termos algo concreto, neste momento, que nos garanta com uma margem tranquila de convencimento, desenhar o cenário no qual a humanidade entrará a partir de 2021.
Digo em termos concreto porque nos parece ser muito cedo para medir as consequências dessa hecatombe  epidemiológica, já que ainda estamos na metade da pandemia, principalmente aqui na América Latina e em especial, no Brasil, onde a situação se torna mais grave como decorrência do negacionismo criminoso e a abominação por parte do governo federal, e de sua legião de ignorantes que o apoia, em seguir protocolos médicos e científicos, a respeito de uma doença terrível, até então sem tratamento.
É possível, no entanto, antever algumas situações, mas que não representam novidades, senão um agravamento de condições anteriores, principalmente nos aspectos geopolíticos e econômicos. Esses dois aspectos andam juntos em muitas das circunstâncias, do que já vinha ocorrendo e das transformações que serão geradas por essa crise epidêmica. As relações EUA-China é uma delas, cujas divergências deverão se ampliar consideravelmente, tanto mais quanto se aproximarem as eleições dos EUA. A estratégia por trás do Poder nesse país se repete há décadas, seja com governos democratas ou republicanos. Criar uma crise internacional, seja com guerra ou ameaças de confronto, com países que lhes incomodam, e assim, dessa forma reforçar o discurso nacionalista, de defesa da segurança nacional, e atrair eleitores para a reeleição do mandatário em curso.
Foto: Envolverde - Carta Capital
Outra crise que se agravará é a que envolve as questões ambientais. Em nossa situação particular, e que está relacionado principalmente a Amazônia, isso já está no processo de estrangulamento e no limite das condições suportáveis. Mas assim será também em outros biomas e por toda parte do mundo. O modelo de sociedade que adveio com a era antropocêntrica atingiu o limite do suportável na relação com a natureza e atingiu o seu pico nessas duas primeiras décadas do século XXI.
Certamente a disputa pelo petróleo, principal fonte energética da matriz capitalista, também estará no topo dos conflitos, e seguirá no crescimento exponencial do enfrentamento entre os principais produtores e exportadores, como já estava acontecendo antes da pandemia e se agravou exatamente quando a disseminação do vírus se espalhou pela Europa e daí para todos os cantos do mundo. A oscilação do preço do petróleo pode quebrar economias, além de deixar por um fio as relações geopolíticas, em vias de gerar graves conflitos entre nações, semelhante ao que já tem acontecido historicamente, mas agora em outro patamar pelo agravamento da crise sistêmica capitalista.
Essas são questões que lideram nossas atenções, e que estarão no topo das preocupações estratégicas de todos os países, principalmente daqueles que disputam o poder hegemônico, seja econômico ou militar. Tudo indica que entraremos em uma fase muito parecida com o que foi a guerra fria no pós-guerra, e que vigorou até a década de 1980.
Imagem: Contee - Brasil 247
Mas o que também nos deve preocupar, e por isso centro minha abordagem aqui, são as condições psicossociais. Ou seja, como essa situação que nos envolve irá impactar nossas vidas, e se haverá um retorno ao antigo normal. E não podemos considerar somente os impactos gerados pela doença Covid19. A ausência de uma vacina seguirá impondo a todos nós um distanciamento necessário, mesmo depois que houver uma flexibilização dessas medidas de isolamento. Mas existem no caso brasileiro outros condicionantes, decorrentes de uma grave crise política, pelo fato de não termos um governo capaz de nos garantir segurança agora, durante a pandemia e muito menos depois, pela ausência de medidas capazes de atacar as demandas sociais, gerando caos em vez de procurar atender as necessidades do povo.
Isso tem causado insegurança e intranquilidade para enfrentar esse momento tão terrível e os meses que se seguirão. Há um desnorteio na sociedade, com choques entre decisões que são tomadas pelos governadores e os ataques que esses sofrem do presidente da República, que, absurdamente, nega, ou minimiza, o perigo que esse vírus carrega e as consequências de uma doença para a qual não há antídoto. Embora ele insista em prescrever remédios, como um charlatão, já que não é sua área, que não possuem eficácia comprovada cientificamente e, por isso, rejeitados pela comunidade médica e farmacêutica.
Imagem: asmetro-SN
Enquanto isso multiplicam-se o número de infectados e de mortos, que ainda irá crescer, na medida em que falta essa coordenação nacional e devido aos ataques dos negacionistas e as fake news criminosas que confundem perigosamente boa parte da população, entregue a boatos e informações falsas, que são consideradas em meio a ignorância e desinformação dos que se apegam cegamente à determinadas idolatrias religiosas ou às crenças nas simplificações dos tratos com as doenças, neste caso confundida propositadamente pelo próprio presidente e seus seguidores. As camadas mais pobres da sociedade descobrirão de maneira terrível as consequências dessa perigosa dúvida que lhe foi incutida, e o vírus se espalhará rapidamente pelas periferias e cidades interioranas.
Considerando que já vínhamos de pelo menos três anos de uma crise política e econômica, quando se deu a eleição de Jair Bolsonaro, podemos ter uma ampliação da desesperança que afetou a sociedade brasileira em função de uma luta encarniçada pelo Poder, que nos trouxe a esse quadro político de um governo absolutamente questionável quanto à sua capacidade de governar esse país. 
É natural considerarmos que esses breves elementos de análise nos dão a indicativa que teremos tempos difíceis pela frente. Desemprego e aumento da pobreza levarão ao desespero milhares de pessoas atingidas, e se tornará mais real em pleno século XXI, o que já fora escrito por Josué de Castro em meados do século XX: "Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come"[1]
Como evitar que o caminho da desesperança tire das pessoas a capacidade de lutar por seus direitos e para garantir que o Estado cumpra a função de proteger cada cidadão de seu país? Esse será um desafio pois os tempos de crises e a perda de perspectivas, principalmente por parte da juventude, destrói sonhos e constroem um futuro distópico. E se isso já era tema de discussões em debates nas universidades antes da pandemia, passa a tomar uma importância maior ainda quando estivermos saindo desse distanciamento social, que por ser caótico, diferente de outros países em decorrência do comportamento do presidente, tenderá a deixar as pessoas mais desnorteadas e fragilizadas, em um ambiente politicamente polarizado.
Alguns cenários futurísticos têm sido apresentados há anos em filmes ficcionais. Na maioria deles, projetando uma vida futura altamente dominada por avanços tecnológicos, concentrados nas mãos dos que possuem poder e riqueza, e ambientes urbanos confusos, desorganizados e superpovoados, com desigualdades sociais absurdas, mas com populações entregues à letargia e conformismo. É possível que tenhamos no mundo pós-pandemia cenários distópicos como apresentados em filmes e séries. Mas a distopia se completa na ação opressiva e tirânica tanto de governos, quanto dos que controlam a riqueza, que cada vez mais distanciam-se da realidade social.
O desespero, a privação, a desesperança, a amargura e o desencanto, são elementos que produzem nas pessoas a ausência de crença na vida material, distanciam uma das outras e as fragilizam, tornando-as presas fáceis de discursos salvacionistas seja de seitas fundamentalistas ou de políticos oportunistas de vieses autoritários. As condições econômicas, em uma crise crônica, que passa da recessão para uma situação de depressão, fratura a sociedade, e tende a tornar a depressão humana um dos maiores problemas psicossociais no pós-pandemia. Lutar contra essas sensações de frustrações e evitar um mundo distópico é um desafio somente capaz de ser enfrentado se conseguirmos manter a utopia como algo possível de ser alcançado.
A utopia não é algo palpável, ou alcançável. Mas é uma espécie de força como aquela contida na lei da gravitação universal, de Isaac Newton. É algo que nos atrai, e que imaginamos poder estar ali uma espécie de destino, de objetivo que desejamos atingir, portanto desejamos também atraí-la. E, claro, o que desejamos atingir sempre será aquilo que nos faz bem, e se pensarmos coletivamente, será algo que nos fará bem e a sociedade. Por isso pensamos em utopia como algo positivo. Mesmo que não seja, a utopia, tida como “lugar nenhum”, algo existente, mas puramente sonhado, ela difere da distopia por nos dar a oportunidade de acreditar em nossos melhores sonhos. Ela é essencial para não nos deixar desanimar e desistir de caminhar.
O importante, no entanto, é acreditar que nada disso que sonharmos, do que desejarmos utopicamente, será atingido se não nos municiarmos de força coletiva, e de fazer valer a nossa vontade, independente dos empecilhos que estarão à nossa frente. Não é possível também, pensarmos que seja possível construir uma sociedade justa e menos desigual com pensamentos individualistas ou imaginando ser possível atingir um outro patamar nos prostrando e esperando que algo nos seja dado aleatoriamente. E para isso é essencial transformarmos esse modelo de sociedade, onde a hipocrisia constrói valores culturais que impõe aos mais pobres e fragilizados a condição de coitadinhos, a ficar aguardando ações solidárias fortuitas, e inserindo em suas consciências a culpa por não terem se esforçados e não atingirem os méritos necessários para suas melhorias sociais.
É fundamental, para acreditarmos ser possível ter na utopia o encontro com nossos melhores desejos, conhecer profundamente as estruturas sociais nas quais estamos vivendo. E lutar, de todas as maneiras, para desconstruir os valores e destruir os pilares que lhes dão sustentação. Compreendermos que vivemos uma intensa luta de classes, e se almejamos na construção desse futuro utópico, uma sociedade verdadeiramente democrática, devemos começar fazendo valer o próprio sentido da palavra “demo-cracia”: “demos”=povo; “kratos”=poder. “O poder que emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. Portanto, a não aceitação da dominação eterna a ser exercida pela minoria de abastados, ricos, milionários, bilionários, que representam um percentual insignificante da população mundial, muito embora controle a imensa maioria da riqueza.
Lutar por um mundo justo, levar adiante os sonhos utópicos de um mundo socialmente equilibrado, vê ao longe as luzes que nos fazem crer ser a utopia, é essencial para quebrarmos qualquer sentimento  distópico, porque este somente viria para nos fazer desistir de lutar. Nem esta pandemia, muito menos as atitudes perversas e egoístas dos que só desejam acumular riquezas sobre a pobreza, ou as diatribes de governos eleitos em momento de pânico forçado e de sujeições distópicas por seus linguajares e por suas ações, podem frear nossos sonhos de justiça e de vivermos em um mundo solidário. E isso não é algo possível de ser conquistado olhando para os céus, mas enfrentando os demônios que nos assombram na terra, e no enfrentamento de uma luta de classes que define as condições que escolheremos viver: Submetidos à opressão ou erguendo os punhos, nos alimentando de empatia, desafiando a distopia e seguindo em frente, em busca de nossa utopia.



[1] CASTRO, Josué. Geografia da Fome. Rio de Janeiro-RJ, Antares, 1980.

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